Do direito incondicional à condicionalidade do direito: as contrapartidas do Programa Bolsa Família


Portiagomodena- Postado em 29 abril 2019

Autores: 
Giselle Lavinas Monnerat
Mônica de Castro Maia SennaI
Vanessa Schottz
Rosana Magalhães
Luciene Burlandy

RESUMO

Este artigo analisa a concepção e desafios em torno da exigência de contrapartidas do Programa Bolsa Família (PBF). A obrigatoriedade de inserção de crianças e adolescentes na escola e de crianças, gestantes e nutrizes nos serviços de saúde é central no desenho do PBF e, à semelhança do que ocorre em outros países, tem sido alvo de intensa polêmica. Busca–se, assim, mapear a discussão teórica que embasa os argumentos favoráveis e contrários aos programas de transferência monetária condicionada, utilizando como estratégia metodológica a sistematização bibliográfica e estudo da legislação do PBF. A análise demonstra que, se de um lado, estão aqueles que rejeitam as contrapartidas sob alegação de que estas feririam o direito incondicional de cidadania, de outro, situam–se os que defendem as condicionalidades sob argumentos distintos. Aqui estão tanto concepções que entendem que é preciso dar algo em troca do recebimento do benefício quanto aquelas que vêem tais exigências como estratégia para favorecer o acesso aos serviços sociais e romper o ciclo da pobreza. Esta última visão está presente nos documentos oficiais do programa. Porém, na legislação complementar, a operacionalização das condicionalidades é definida de forma coercitiva, distanciando–se da concepção de inserção social.

Palavras–chave: Política social, Transferência condicionada de renda, Assistência social


ABSTRACT

This paper analyzes the concepts and challenges of the counterpart contributions demanded by Brazil's Family Allowance Program, which requires mandatory school attendance for children and adolescents, and healthcare for children, pregnant women and breast–feeding mothers. These issues are prompting much discussion in Brazil and elsewhere in the world. This study charts theoretical aspects that underpin arguments for and against conditional cash transfer programs, through a review and systematization of the literature and a study of the related legislation. This analysis demonstrates that the opponents of counterpart obligations claim they breach unconditional rights to citizenship. Some supporters of these conditional transfers believe that a return is required for these benefits, while others see such requirements as a strategy for ensuring easier access to social welfare services, thereby breaking away from the cycle of poverty. Although latter view is present in Brazil's original Family Allowance Program, the manner in which supplementary legislation defines the application of the conditions is coercive and remote from the concept of social insertion.

Key words: Social policy, Conditional income transfers, Social welfare


 

 

Introdução

A preocupação em prover assistência social aos mais pobres acompanha a história da formação e posterior desenvolvimento do capitalismo. A ruptura com os padrões de relações típicas da ordem feudal e a visibilidade e emergência da pobreza enquanto questão social introduziram, desde cedo, o debate sobre a associação entre assistência e trabalho.

Ainda nos séculos XVII e XVIII, no contexto de constituição do mercado de trabalho, predominava uma concepção moralista da pobreza, que atribuía as causas da condição de pobre a falhas de caráter individual. Assim, a prestação da assistência social assumia caráter punitivo que exigia em troca da "ajuda" a realização de trabalhos forçados por parte dos beneficiários.

Rupturas com esta lógica são gestadas ao final do século XIX, no contexto da emergência do operariado como ator político e do conseqüente processo de lutas pelo reconhecimento dos direitos políticos. Abre–se espaço, assim, para a propagação de idéias não liberais que contribuem para a tematização do direito ao trabalho e para o redimensionamento das questões morais e sociais ligadas à pobreza, que terão impacto profundo no desenho futuro das políticas sociais.

A partir desse momento, a perspectiva de responsabilidade individual em arcar com os custos da reprodução da própria vida cede lugar à noção de que todos devem participar na provisão de bem–estar a todos os cidadãos. O Estado adquire papel central na regulação da vida social e a constituição do Welfare State representou a institucionalização de um relativo consenso acerca da noção de pobreza como uma questão social, sendo dever do Estado equacioná–la.

A despeito das condições macroeconômicas positivas de vários países que desenvolveram o Welfare State no século XX, o avanço dos direitos de cidadania conformou, ao menos na Europa, generosos sistemas de proteção social que, na sua concepção, desvincularam a relação tradicional entre assistência e trabalho. É justamente esta visão solidarista de direito social que permite inaugurar concepções de sistemas abrangentes de proteção social universais e sem condicionalidades.

Todavia, no cenário recente marcado pela reestruturação do mundo do trabalho e pela chamada crise do Welfare State, o debate sobre as relações entre assistência e trabalho vem sendo retomado a partir do enfoque sobre os desafios da inserção social, o que implica, para alguns estudiosos, redimensionar a noção clássica de direito social. No âmbito deste processo, ganha destaque o desenvolvimento de experiências de transferência condicionada de renda que recupera, sob novas bases, a polêmica em torno da inserção social e da cobrança de contrapartidas dos beneficiários.

Também no Brasil, mudanças no padrão de proteção social vêm sendo adotadas nas últimas décadas, ainda que com grandes especificidades em relação aos países europeus. Neste sentido, é crucial reconhecer que os altos índices de pobreza bem como as fragilidades do nosso sistema de proteção social dão o tom da complexidade dos problemas a serem enfrentados.

É no esteio desse processo que se verifica, desde os anos 1990, uma profusão de experiências de implementação de programas de transferência condicionada de renda dirigidos à população pobre. Entretanto, é somente com a criação do Programa Bolsa Família (PBF), em 2003, que este tipo de programa se espalha por todo o país, atingindo grau de cobertura significativo.

O PBF cuja gestão deve se pautar na descentralização, intersetorialidade e controle social exige das famílias beneficiadas o cumprimento de uma agenda de compromissos as chamadas condicionalidades traduzidas na obrigatoriedade de inserção de crianças, adolescentes, gestantes e nutrizes em determinados programas de saúde e de crianças e adolescentes na escola. Em situação de não cumprimento de tais exigências, as famílias beneficiárias devem ser desligadas do Programa.

O objetivo deste artigo consiste precisamente em analisar a concepção de contrapartidas no desenho do Programa Bolsa Família, tendo como referência o debate internacional sobre o tema. Busca–se, assim, examinar os diversos argumentos favoráveis e contrários à formulação de programas de transferência de renda condicionada para melhor situar o caso brasileiro. A revisão bibliográfica e o estudo da legislação sobre o PBF foram os principais procedimentos metodológicos que subsidiaram a discussão aqui empreendida.

 

Programas de transferência de renda no cenário internacional

Origens dos programas de transferência de renda

Os programas de transferência de renda não são propriamente uma novidade na história recente das políticas sociais. Diversos autores, entre eles Silva1, Suplicy2, Lavinas3 e Branco4, realizam importante resgate das origens e do debate em torno de tais programas, tanto nos Estados Unidos da América quanto na Europa.

De acordo com Suplicy2, uma primeira proposta de renda para todos como meio de sobrevivência é feita por Thomas More em seu livro Utopia, de 1516. No entanto, é somente com a Speenhamland Law, promulgada na Inglaterra em 1795, que se pode falar mais especificamente da origem deste tipo de assistência1. Trata–se do primeiro programa de transferência de renda conhecido na Europa industrial e que marca uma inflexão na política social desenvolvida na Inglaterra desde 1536 sob a vigência das denominadas Leis do Pobres. De acordo com Pereira5, as Leis dos Pobres formavam "um conjunto de regulações pré–capitalistas que se aplicava às pessoas situadas à margem do trabalho, como idosos, inválidos, órfãos, crianças carentes, desocupados voluntários e involuntários, etc.". Neste contexto, os pobres "válidos" eram obrigados a aceitar qualquer tipo de trabalho, a mendicância era castigada e somente os incapacitados tinham direito à assistência social. Na verdade, a gestão da pobreza tinha caráter mais punitivo do que protetor.

Criada num contexto de grande perturbação social e agravamento da pobreza, a Speenhamland Law inglesa reconhece o direito dos pobres ao recebimento de uma renda mínima, independente de seus proventos e em função de uma tabela que dependia do preço do pão e do número de filhos. Para Polanyi6, tratava–se de assegurar o "direito de viver", pois quando não era possível garantir, através do trabalho, o suficiente para sobreviver, cabia à sociedade fazer a complementação de renda. Nesta mesma ocasião, a assistência social é estendida aos pobres capacitados para o trabalho, situação inovadora para a época e absolutamente contrária a lógica capitalista que se queria consolidar5.

No entanto, no cenário de expansão da revolução industrial, esta lei logo se mostrou um impeditivo para a formação de um mercado de trabalho nos moldes capitalistas, tendo sido duramente criticada a partir do final do século XVIII. As principais críticas ressaltavam que o fato do indivíduo receber assistência mesmo que estivesse empregado fazia com que se tornasse improdutivo, já que o salário podia ser complementado pela ajuda externa. Ademais, a existência de fundos públicos para subsidiar os salários era vista como o principal impedimento à constituição do proletariado industrial ao mesmo tempo em que, contraditoriamente, provocava o achatamento dos salários6. Considerava–se, assim, que para conter a improdutividade dos empregados e promover o mercado de trabalho capitalista era necessário acabar com o direito incondicional dos pobres à assistência6. Com efeito, o tom moralista do debate sobre a ajuda aos pobres no século XIX e a reforma da Lei dos Pobres de 1834 reforçaram a crítica a qualquer tipo de transferência monetária aos grupos pauperizados.

Poor Law Reform de 1834 substituiu a Speenhamland Law e pôs fim às dificuldades de constituição de um mercado de trabalho livre, haja vista que, além da assistência aos pobres ter se tornado residual, a abolição total da Lei do Domicílio (Act of Settlement de 1662), restituiu a mobilidade espacial do trabalhador. Neste cenário, tem fim o direito ao rendimento mínimo e o indivíduo, agora "livre" para se estabelecer em qualquer paróquia, tem que garantir sua sobrevivência no contexto da sociabilidade competitiva do capitalismo. Para Pereira5, a crítica à proteção institucional cria as condições para o confronto ideológico entre assistência social e trabalho, além da disseminação da concepção liberal de que a pobreza é fruto do paternalismo e da tutela estatal.

Sob a regência da Lei dos Pobres de 1834, os pobres desempregados e incapazes ficaram sem assistência, restando apenas a reclusão nos albergues, onde a estigmatização e a violação dos direitos marcaram a intervenção pública sobre a questão da pobreza no século XIX.

Na contramão das críticas às propostas de transferência de renda aos pobres, Thomas Paine, um dos ideólogos da revolução francesa e pioneiro na formulação de uma renda básica incondicional, formulou, ainda no século XVIII, os argumentos segundo os quais todos teriam direito a usufruir da riqueza de uma nação. Entendeu que a origem da pobreza está na propriedade privada, o que justificaria a implementação de uma transferência de renda para todos1,2,3,6. Entretanto, foi preciso esperar até o século XX para que os trabalhadores conquistassem direitos políticos e sociais.

O debate sobre os programas de transferência de renda no século XX até os dias atuais

O debate que surge a partir das experiências internacionais sinaliza que a principal polêmica em torno do tema se refere à discussão renda mínima versus direito ao trabalho e direitos sociais versuscontrapartidas exigidas dos beneficiários4. Assim, o que está em questão é saber se, no atual quadro de transformação societária, os programas de transferência monetária contribuem para aprofundar os direitos de cidadania, ou, ao contrário, concorrem para sua negação e regressão. A sistematização dessa polêmica não é tarefa fácil, dado que as análises sobre o tema são variadas, assim como também são diversas as propostas e experiências de programas de transferência monetária.

No século XX, notadamente após a Primeira Guerra Mundial, amplia–se a defesa em torno dos programas de transferência monetária como solução para o problema do desemprego. As propostas de implementação destes programas assumem, em diferentes contextos, denominações e perspectivas diversas.

Nos Estados Unidos, as propostas de implantação de programas de transferência monetária emergem em 1935 com o Programa de Auxílio às Famílias com Crianças Dependentes (Aid for families with dependent children AFDC), que pagava um complemento às famílias com renda abaixo de um determinado valor. Nos anos 1960, os programas de transferência monetária foram bastante tematizados, tendo sido aprovado, em 1974, o Crédito Fiscal por Remuneração Recebida (Earned Income Tax Credit – EITC), que era um complemento monetário às famílias, com crianças, inseridas no mercado de trabalho. A formatação de tais programas nos Estados Unidos está associada à concepção de imposto negativo e a processos de focalização e critérios rígidos de inserção no mercado de trabalho1,2.

Milton Friedman é identificado como o idealizador do imposto negativo. Representando a corrente liberal, essa proposta apóia–se na idéia de minimização do Estado interventor por considerar que grande parte dos problemas de ordem fiscal deve–se justamente ao alargamento das ações estatais. Uma das preocupações centrais do imposto negativo é a promoção de uma estratégia de transferência monetária que não seja capaz de criar um estímulo ao ócio. Para tanto, é fixada uma linha de pobreza, através de um rigoroso teste de meios, acima da qual a pessoa paga o imposto e abaixo recebe um determinado valor complementar à renda auferida através do trabalho1.

Dessa forma, o imposto negativo apresenta componentes fortemente baseados no individualismo, no mercado auto–regulador e na concepção de que o pobre precisa ser constantemente estimulado ao trabalho, criando fortes processos de estigmatização social. Grande parte das críticas ao imposto negativo, conforme mostra Branco4, relaciona–se à perspectiva de monetarização do apoio social, além de desconsiderar o aspecto multidimensional da pobreza, já que elimina a prestação dos demais serviços sociais.

Também na Europa, desde os anos 1930, diversos países introduziram programas de transferência de renda nas formas de benefícios destinados a crianças, idosos, deficientes, inválidos, aos com baixos rendimentos e os relativos ao seguro desemprego. O primeiro país a implementar este tipo de programa foi a Dinamarca em 1933, seguida da Inglaterra em 1948, Alemanha em 1961, Holanda em 1963, Bélgica em 1974, Irlanda em 1974, Luxemburgo em 1986 e mais recentemente a França em 1988, apresentando cada qual diferentes padrões e nomenclaturas. Interessa salientar que, diferentemente dos Estados Unidos, a instituição destes programas na Europa se deu sob a influência do debate sobre a Seguridade Social inaugurado, nos anos 1940, por Beveridge4,5,7,8.

É efetivamente após a Segunda Guerra Mundial, com a consolidação dos Welfare States, que acontecem mudanças importantes no padrão de intervenção social nas economias capitalistas avançadas, notadamente na Europa. Neste cenário, uma outra perspectiva de justiça social acompanha a ação social do Estado, onde a figura do pobre merecedor dá lugar ao indivíduo portador de direitos.

Nos países europeus, sobretudo, desenvolve–se um forte debate acerca da inadequação do Welfare State diante dos dilemas da sociedade salarial e do pleno emprego. É, portanto, nessa circunstância que as proposições em torno dos programas de transferência monetária são retomadas como parte da reflexão sobre o futuro do Welfare State e do questionamento da centralidade do trabalho como meio privilegiado de acesso à renda.

Nesta conjuntura, o debate sobre os programas de transferência monetária é intensificado e surgem propostas que se diferenciam, principalmente, pela forma de conceber a relação entre renda e trabalho (se vinculada ou desvinculada), se a favor da condicionalidade ou incondicionalidade, focalizado ou universal ou ainda se adota a perspectiva da substituição ou complementariedade ao sistema de proteção existente.

A Renda Básica Incondicional (RBI) de Van Parijs9,10,11 se referencia na perspectiva de que o Welfare State não se sustenta mais e, por isso, uma renda universal, incondicional, independente do trabalho e dos testes de meios e de qualquer contrapartida é fundamental para conferir cidadania aos excluídos. Para o autor, a combinação desses critérios se configura numa resposta ao desafio conjunto de enfrentar a pobreza e o desemprego, a partir de um novo paradigma no qual a renda é desvinculada do trabalho.

Com base nas transformações contemporâneas no mundo do trabalho, Aznar12 e Gorz13,14 entendem que, em face da lógica atual em que a produtividade vem aumentando pari passu à diminuição do emprego da força de trabalho,a renda não pode ser conseqüência da quantidade de trabalho. Diferente de Van Parijs, estes autores propõem que os programas de transferência monetária sejam complementares e não substitutivos ao sistema de proteção social.

Assim, a Renda Social proposta por André Gorz13,14 e o Segundo Cheque defendido por Guy Aznar12 partem da concepção de que a desvinculação da renda de um trabalho produtivo é humilhante e estigmatizante e, portanto, baseia–se na proposição de um sistema de transferência de renda associada à redução progressiva do tempo de trabalho para todos aliada a uma política de qualificação profissional efetiva e consistente. A redução do tempo de trabalho teria o potencial de geração de novas oportunidades para todos e de distribuição da riqueza socialmente produzida. A idéia é de que se possa criar a sociedade de tempo livre, na qual as pessoas poderiam desenvolver com liberdade seus projetos pessoais e sociais13,14.

Entre os críticos da proposta de alocação universal, é possível perceber a preocupação com os desdobramentos da dissociação da renda do trabalho nos processos de integração e inserção sociais. Rosanvallon8, um dos principais representantes desta vertente, chama atenção para o fato de que repensar as relações entre direitos sociais, renda e trabalho implica compreender os impactos da crise do trabalho nas redes de sociabilidade e nos circuitos de reciprocidade e solidariedade. Para este autor, a cidadania passiva alimentada pelo Welfare State teria reforçado o papel do Estado como principal agente da solidariedade e enfraquecido os circuitos de responsabilização social. A perspectiva de universalização dos benefícios sociais sem contrapartida ou envolvimento dos atores sociais não seria, portanto, capaz de solucionar os problemas atuais ligados à pobreza e exclusão social. Nesta direção, a inserção social é assinalada por Rosanvallon8 como uma nova concepção de direito social.

A principal expressão da vertente de inserção social é o programa Renda Mínima de Inserção (RMI), instituído na França em 1988. O RMI é um programa destinado a todas as pessoas maiores de 25 anos que não aufiram renda suficiente para a garantia da sobrevivência. Para a seleção da população, é utilizado o recurso de testes de meios, sendo que a proteção ao beneficiário se estende à garantia de acesso à saúde e moradia, dentre outros serviços sociais8,15. No desenho do RMI, não há previsão de limite de tempo de permanência no programa, pois que o objetivo principal é preparar o indivíduo para a inserção ou reinserção no mercado de trabalho.

Nos Estados Unidos, vêm se discutindo e desenvolvendo, desde os anos 1980, experiências de programas de transferência monetária que condicionam a prestação da assistência social ao exercício de algum tipo de trabalho. No governo Ronald Reagan, sob a influência da crítica liberal ao Welfare State , as reformas empreendidas no campo da política social passam a se associar à idéia de workfare.

Para Rosanvallon8, é possível identificar nesta perspectiva do workfare umaimportanteconvergência filosófica com a noção de pobreza que predominou até meados do século XIX. Para o autor, a orientação que preside a cobrança de contrapartida no âmbito do workfare americano nos anos 1980 não se enquadra no debate sobre a constituição de novos direitos sociais: Apreendido nessa perspectiva, o tema do workforce era equívoco; correspondia mais a uma estratégia de enquadramento e de disciplina dos pobres, principalmente dos jovens, do que uma nova abordagem dos direitos sociais e de inserção na sociedade 8.

Particularmente na década de 1990, disseminou–se a idéia de que a assistência social ofertada pelo Welfare State americano criava dependência e uma certa permissividade com relação aos esforços pessoais necessários para a inserção no mercado de trabalho. Com a intenção de romper com esta lógica, é proposto, no governo Bill Clinton, a redução do tempo de permanência dos beneficiários nos programas de transferência monetária. Assim, após o prazo de dois anos, os beneficiários que não tivessem retornado ao mercado de trabalho deveriam prestar serviços à coletividade. Segundo Rosanvallon8, tais mudanças não foram muito bem sucedidas visto que houve resistência por parte de sindicatos de trabalhadores que temiam a redução do número de empregos e também de liberais que previam que a intervenção do Estado fosse ampliada, principalmente em razão da necessidade de incrementar o número de empregos. Os democratas também rechaçavam a idéia de contrapartidas por acreditarem que este tipo de cobrança fere os direitos de cidadania.

Assim, ao analisar a experiência americana, Rosanvallon8 associa a lógica e ideologia do workfare mais diretamente às reformas implementadas na década de 1980. Com efeito, para este autor, na era Clinton há certo afastamento da crítica moralista ao Welfare State que predominou na década anterior, prevalecendo a idéia de que o trabalho é mais importante do que o apoio gratuito do Estado.

No entanto, quando este autor compara as políticas de inserção social promovidas nos Estados Unidos e na Europa, a partir principalmente dos anos 1990, demonstra que existem importantes clivagens entre as duas experiências que se originam, fundamentalmente, dos diferentes tipos de Estado de Bem–Estar erigidos nestas regiões. Nos Estados Unidos , se consolidou um modelo de welfare residual, cuja lógica liberal de não intervenção estatal produziu um tipo de política de inserção estrita. Os conservadores liberais temiam que essa perspectiva de política social viesse a ampliar ou recolocar a questão da intervenção do Estado, especificamente na geração de mais empregos públicos. Na Europa, ao contrário, a experiência dos programas de inserção social foi desenvolvida sob a cultura e tradição de um Welfare State universal redistributivo o que trouxe, na visão de Rosanvallon8, possibilidades mais fecundas para se pensar o redimensionamento dos direitos sociais e da inserção no mundo do trabalho.

Sobre a noção de inserção presente no desenho do RMI, é preciso ressaltar dois pontos importantes: o primeiro é que ao aderir ao programa a pessoa assina um contrato com o Estado aceitando a sua participação nas diversas ações voltadas para a sua inserção social; o segundo é que as ações devem ser definidas a partir da necessidade e da capacidade de cada um, havendo, portanto, a necessidade de um acompanhamento individual através das instituições estatais1,8,16. Além disso, o beneficiário do RMI tem a garantia de acesso a um conjunto de serviços sociais. Rosanvallon8 argumenta que este programa de inserção apresenta a qualidade de conjugar o direito social, à medida que é acessível a todos aqueles que estão excluídos, a um contrato, visto que exige contrapartidas. Nesse caso, as contrapartidas representam uma nova forma de relação entre indivíduo e sociedade que também se responsabiliza pela inserção social.

No entanto, há muitas polêmicas com relação ao RMI. A crítica mais severa se dirige a exigência de celebração de um contrato, visto que isso, na visão de muitos analistas, facilitaria o desenvolvimento de controle rígido sobre os beneficiários, sendo também uma forma de estigmatização social.

Chama atenção também a crítica à visão reducionista da inserção enquanto possibilidade de empregar as pessoas em empresas e instituições em detrimento de se pensar a inserção como processo amplo e permanente de cada indivíduo. Sendo assim, a exclusão não é entendida como fenômeno coletivo e estrutural. Para alguns autores, uma prova disto é o fato dos contratos do RMI serem feitos de forma individual e vir se traduzindo em um tipo de inserção cada vez mais precária dos beneficiários do programa1.

Também na América Latina, os programas de transferência monetária estão bastante disseminados e as principais experiências têm sido acompanhadas da exigência de contrapartidas por parte dos beneficiários. Na maioria dos programas desenvolvidos nos países latino–americanos, a questão da contrapartida/condicionalidade assume recortes um pouco diferentes quando comparados com a perspectiva de inserção social desenvolvida, por exemplo, na França. Em nosso continente, predomina a lógica de cobrança de contrapartidas no sentido da inserção nos serviços de saúde e educação, cujo objetivo é ampliar o acesso da população beneficiária aos direitos sociais, não se tratando, pois, de buscar (re) inserir o indivíduo no mercado de trabalho. Estas diferentes visões sobre a inserção social estão, certamente, relacionadas às diferentes realidades do sistema de seguridade social presentes na Europa e América Latina.

No Brasil, de igual modo, o Programa Bolsa Família (PBF) caracteriza–se como um programa de transferência monetária que exige contrapartidas relacionadas à inserção nos serviços de educação e saúde.

 

Contrapartidas no Programa Bolsa Família

Não é nenhuma novidade demarcar que o padrão de proteção social historicamente construído no Brasil caracterizou–se pelo predomínio de uma lógica corporativista e meritocrática, em que os direitos sociais estavam vinculados à proteção de determinadas categorias profissionais contra riscos de perda da sua capacidade laboral e baseavam–se na contribuição prévia. Por outro lado, aos excluídos do mercado formal de trabalho eram destinadas ações assistenciais pontuais. Essa lógica de construção dos direitos sociais contribuiu enormemente para interditar as possibilidades de desenvolvimento de um sistema de proteção social abrangente e universal entre nós.

A introdução do conceito de seguridade social no texto constitucional de 1988 buscou romper com o padrão acima referido, consagrando a universalidade dos direitos sociais e a responsabilização do Estado em prover tais direitos como princípios norteadores da organização do sistema de proteção social brasileiro. No entanto, a institucionalização da noção de seguridade social tem enfrentado enormes resistências, que põem em risco o próprio ideário constitucional.

A adoção de medidas voltadas à estabilização monetária, eficiência macroeconômica e restrição dos gastos públicos, sobretudo a partir da segunda metade dos anos 1990, constrangeu as possibilidades de construção de políticas sociais mais abrangentes e universais, dando espaço para a defesa e implantação de ações focalizadas nos grupos mais pobres. Dentro desse cenário, marcado pela grave crise econômica (expressa nas altas taxas de desemprego e no aumento da informalidade) e pela emergência de novos atores sociais na cena pública, o tema da pobreza e das desigualdades sociais ganha relevo na agenda pública, incitando o debate político e acadêmico em torno da questão e cobrando respostas dos governantes.

Assim, os anos 1990 assistem a uma profusão de experiências e programas públicos voltados à garantia de renda mínima para famílias em situação de vulnerabilidade social e fome. Iniciativas municipais e estaduais ganham fôlego enquanto crítica à centralização decisória, ao assistencialismo, ao clientelismo e à descontinuidade das ações governamentais, conformando as estratégias e a dinâmica das mudanças institucionais no campo da proteção social. Tais programas buscavam associar ao benefício monetário o estímulo à freqüência escolar e o acesso aos serviços básicos de saúde.

Inspirado nessas experiências municipais, o governo federal criou alguns programas nacionais de transferência monetária, o que permitiu sua difusão no cenário nacional. Todavia, problemas relativos ao caráter fragmentado e pouco eficaz destes programas persistiam. Buscando responder, em parte, a essa questão, o governo federal criou em 2003 o Programa Bolsa Família (PBF), unificando quatro destes programas anteriormente existentes (Bolsa–Escola, Bolsa Alimentação, Auxílio–gás e Cartão Alimentação). Como dito na lei de criação do programa, tal unificação visa melhorar a gestão e aumentar a efetividade do gasto social através da otimização e racionalização, ganhos de escala e facilidade da interlocução do governo federal com estados e municípios17.

O PBF prioriza a família como unidade de intervenção, sendo destinado àquelas que se encontram em situação de pobreza ou de extrema pobreza. O critério é fixado por uma linha estabelecida a partir da renda familiar, cujo valor é de, no máximo, R$ 120,00 per capita17.

Ao unificar os programas de transferência monetária, o PBF incorpora as diversas condicionalidades exigidas nos programas anteriores, sendo que a oferta dos serviços e o monitoramento das condicionalidades fica a cargo dos municípios. Cabe às famílias beneficiárias do PBF manter as crianças e adolescentes na escola, cumprindo a exigência de 85% de freqüência escolar. As famílias também devem estar vinculadas aos serviços de saúde para acompanhamento de crianças de zero a seis anos, das gestantes e nutrizes em programas de saúde específicos, estando prevista ainda a participação em atividades educativas sobre saúde e nutrição.

Recomenda–se a adoção de programas complementares, tais como aqueles voltados à geração de emprego e renda; cursos profissionalizantes; micro–crédito; compra de produção agrícola familiar, entre outros. Estas ações, no entanto, não integram o conjunto de condicionalidades imposto pelo Bolsa Família, fato que levanta questões sobre o alcance das contrapartidas como estratégia de inclusão social, tal como enunciado em documentos oficiais do programa.

O tempo de permanência no Programa não é estipulado, mas a legislação do PBF (Portaria Interministerial 551 de 9 de novembro de 200517) é muito clara quanto aos motivos de desligamento das famílias, sendo um deles justamente o descumprimento das condicionalidades. A lei define ainda que todas as instâncias de governo têm responsabilidade na gestão das condicionalidades, porém é sobre o município que recai a maior parte das tarefas, principalmente aquelas relativas à oferta dos serviços de educação e saúde previstas.

A exigência de contrapartidas é, portanto, um ponto central do desenho do PBF e vem se traduzindo em uma questão bastante polêmica. A controvérsia aparece, por um lado, no reconhecimento de que as condicionalidades do programa têm potencial de pressionar a demanda sobre os serviços de educação e saúde, o que, de certa forma, pode representar uma oportunidade ímpar para ampliar o acesso de um contingente importante da população aos circuitos de oferta de serviços sociais e, por outro lado, se traduz na idéia de que, à medida que o direito social é condicionado ao cumprimento de obrigatoriedades, podem ser ameaçados os princípios de cidadania3.

O debate em torno das contrapartidas dos programas de transferência monetária abarca diferentes posições. Lavinas18 afirma que a contrapartida condiciona o direito constitucional à assistência ao cumprimento de exigências numa situação em que os potenciais beneficiários já estão em situação bastante vulnerável. Por outro lado, Silva19 compreende a contrapartida como uma possibilidade de combinação do assistencial/compensatório com o estrutural, visto que, por exemplo, é a própria exigência de manter crianças na escola que permitiria minimizar os efeitos do trabalho infantil sobre as oportunidades de escolaridade de crianças e jovens. Logicamente que, dentro desta perspectiva, não cabe nenhum grau de punição às famílias.

No entanto, quanto a este debate, é preciso, em primeiro lugar, ter em mente que a contrapartida exigida não se configura em termos de contribuição financeira tal como no passado meritocrático de nossa política social. Mas isso, de fato, é insuficiente para descartar a reflexão sobre a pertinência ou não desta exigência. Assim, permanece a questão: a contrapartida é uma cobrança indevida, já que o direito é uma prerrogativa dos membros de uma sociedade? Ou é aceitável, principalmente no caso brasileiro, porque se trata de envolver as famílias num circuito virtuoso de direitos e deveres com potencial para ultrapassar o assistencialismo e fomentar a cultura cívica e garantir o acesso a uma rede extensa de proteção social?

Como demonstra a experiência internacional, ao exigir uma contrapartida dos beneficiários, os programas de transferência monetária introduzem, ao mesmo tempo, a difícil escolha entre, de um lado, romper com a noção de direito incondicional, à medida que os compromissos tornam os beneficiários co–responsáveis pela superação de suas dificuldades, e, de outro lado, adotar a estratégia de exigir contrapartidas com a perspectiva de atacar, de uma só vez, várias dimensões da pobreza. Esta última vertente visa, portanto, suprir uma deficiência de longa data, atendendo a um conjunto de carências jamais consideradas no rol de políticas e programas sociais brasileiros. No entanto, tal perspectiva torna–se bastante complexa quando a legislação referente ao PBF se preocupa em detalhar o processo de punição às famílias que não cumprirem as condicionalidades.

Permanece, assim, na ordem do dia, a instigante questão condicionalidade versus incondicionalidade dos programas de transferência monetária. No caso brasileiro, para além dessa polarização, a aposta dos idealizadores do PBF é de que tal exigência pode favorecer a cidadania pois a relaciona à ampliação do exercício do direito à saúde e educação, ainda incompletos entre nós. Com efeito, é de se notar que a condicionalidade é apresentada, pelos formuladores do Programa, como sinônimo de inclusão social e emancipação.

Entretanto, não se pode deixar de pontuar que, uma vez exigidas condicionalidades, é preciso traçar mecanismos consistentes de acompanhamento social das famílias beneficiárias, tendo em vista a necessidade de reverter tal exigência em oportunidade de inserção social. Desta forma, pode–se afirmar que a adoção de condicionalidades em programas de transferência de renda somente é válida quando entendida e implementada como estratégia de ampliação do acesso aos serviços sociais e políticas de emprego e renda, não sendo, portanto, o mero reflexo de uma visão restritiva do direito social.

Sobre essa perspectiva, interessa analisar o conteúdo e a dimensão das ações de controle e acompanhamento das condicionalidades adotadas pelos formuladores do Programa e traduzidas na legislação. Com efeito, conta–se hoje com uma base legal bastante detalhada para exercer controles rigorosos sobre as famílias beneficiárias, na qual as punições vão desde o bloqueio do benefício por trinta dias até seu cancelamento. O conteúdo punitivo desta legislação é bastante surpreendente porque, até então, o conjunto de dispositivos legais permitia imaginar que a concepção em torno das condicionalidades tinha caráter primordialmente estratégico, no sentido da ampliação do acesso dos beneficiários aos serviços sociais.

No entanto, uma questão crucial colocada pelo Bolsa Família é a conhecida fragilidade da institucionalidade pública para acompanhar o cumprimento das condicionalidades, o que permite que se questione a capacidade dos municípios para realizar esta tarefa a contento.

Diante do reconhecimento de que a implementação descentralizada de programas sociais tende a produzir, no nível local, interpretações singulares e muitas vezes diferentes dos objetivos enunciados pelos formuladores do programa, o governo federal optou por adotar a estratégia de incentivar financeiramente os municípios que mantiverem determinado nível de qualidade da gestão do programa. Para isso, foi criado o Índice de Gestão Descentralizada (IGD) que agrupa quatro variáveis, sendo que uma delas mede o grau de controle das condicionalidades do PBF.

Decerto, é bastante provável que o Bolsa Família provoque efeitos positivos do ponto de vista da ampliação do acesso à educação e saúde, notadamente de uma fração da população que historicamente apresenta baixo poder de utilização destes serviços. É possível até que um contingente não desprezível de pessoas que nunca freqüentou os serviços de educação e saúde seja incluído, via o Bolsa Família, pela primeira vez neste circuito, mesmo que ainda limitado, de cidadania social.

Este certamente tende a ser um dos efeitos esperados da implementação das condicionalidades. No entanto, se o incentivo do governo federal para deslanchar o acompanhamento das condicionalidades se resumir ao financiamento, há o risco de disseminação de uma concepção restrita da questão, cuja conseqüência é o desenvolvimento de mero controle da freqüência escolar e da adesão às ações de saúde.

A rigor, a idéia–chave do acompanhamento das condicionalidades deveria englobar ações sociais mais amplas com vistas a potencializar uma rede de proteção social em torno dos beneficiários do programa. Desse modo, se, por um lado, essa perspectiva do acompanhamento está vinculada à concepção de condicionalidade enquanto uma estratégia que visa, de alguma forma, interferir nas situações estruturais responsáveis pela persistência da pobreza, por outro lado, a legislação que regulamenta a forma de gestão do acompanhamento das condicionalidades, como vimos, se aproxima mais da concepção de punição e fiscalização do que propriamente dos objetivos enunciados de inserção social.

Chama–se atenção, então, para a necessidade de se proceder a uma diferenciação entre controle estrito da freqüência escolar e da inserção nos serviços de saúde e acompanhamento social dos beneficiários. Este último requer estabelecimento de vínculo com as famílias e propostas de intervenção social mais amplas.

Não obstante os desafios mencionados, deve–se acrescentar que a presença de condicionalidades no PBF pode favorecer a gestão intersetorial das políticas sociais, mesmo que ainda dentro do espectro de ação da educação, saúde e assistência. Obviamente que se corre o risco destas ações ficarem limitadas à justaposição de ações muito pontuais.

Outro aspecto a ser problematizado com relação às contrapartidas é que, mesmo supondo que o acompanhamento das condicionalidades ocorra em condições ideais, é igualmente válido indagar sobre o alcance e qualidade da educação pública vis à vis às exigências atuais do mercado de trabalho, tendo em vista promover a independência das famílias com relação ao benefício. Importa também investigar a capacidade dos serviços de saúde para absorver o aumento de demanda que possivelmente o programa provocará, assim como questionar a condição marginal que as ações ditas estruturais parecem representar no contexto de implementação do PBF.

 

Considerações finais

A exigência de contrapartidas é talvez uma das novidades mais importantes no desenho do Bolsa Família e, ao mesmo tempo, uma polêmica central do programa. Muitos questionam a legitimidade da contrapartida, já que este benefício é um direito social e deve ter caráter incondicional. Por outro lado, no caso brasileiro, que apresenta muitas fragilidades no processo de constituição da seguridade social, é preciso, segundo os idealizadores do Programa, criar mecanismos que estimulem a inserção das famílias nos serviços de educação e saúde, tendo em vista a perspectiva de ruptura com o ciclo reprodutivo da pobreza.

Cabe ressaltar que as condicionalidades do PBF apresentam características bastante diferentes da maioria das experiências européias. Enquanto o eixo central das propostas desenvolvidas na França foi, por exemplo, o de resgatar vínculos com a atividade produtiva no mercado de trabalho e com as distintas redes de sociabilidade20, na experiência nacional, talvez em razão de não termos constituído um Welfare State universalista, o benefício monetário foi condicionado à freqüência da criança, da nutriz e gestante às ações de saúde e educação, com repercussões distintas no alcance da intervenção pública na área social.

Em que pese a diferença acima mencionada, observa–se que tal como na experiência francesa, a lógica da contrapartida exigida no PBF está embasada numa perspectiva de que os direitos sociais são definidos de forma "contratual", articulando direito e obrigação. Embora no caso brasileiro não haja expediente que configure um contrato em termos jurídicos, a articulação entre direito e obrigação é também central, estando claras as punições e os motivos de desligamento das famílias do programa.

No que tange aos principais dilemas da implementação das condicionalidades, pode–se dizer que se, por um lado, tais exigências têm potencial para facilitar o acesso de camadas da população que dificilmente conseguiriam chegar aos serviços, por outro, coloca a dúvida sobre a capacidade de os serviços de educação e saúde absorverem adequadamente o aumento de demanda resultante da implementação do programa. O mais grave é que estamos diante de uma situação em que se questionam as condições e a capacidade mesma dos municípios ofertarem o que de mais básico está previsto no elenco de direitos sociais, isto é, as ações de saúde e educação.

A perspectiva de punir as famílias que não cumprirem as condicionalidades parece incompatível com os objetivos de promoção social do Programa. Nesta direção, não se pode deixar de considerar as condições que as famílias pobres dispõem para atender as requisições impostas, tendo em vista as dificuldades cotidianas de sobrevivência a que a maioria está exposta.

Do ponto de vista das possibilidades de reversão de algumas condições estruturais que geram a pobreza, o Bolsa Família apresenta, com certeza, inúmeras fragilidades. Ademais, é preciso assinalar que as expectativas de superação da pobreza depositadas no programa são bastante elevadas se considerarmos o grau de desigualdade social existente, o acúmulo de vulnerabilidades que a população pobre está submetida, a debilidade do nosso sistema de proteção social e, em geral, o baixo valor do benefício. Com efeito, não se podem secundarizar os efeitos da histórica lógica de submissão da política social à política econômica.

Ainda assim, é crucial compreender em que medida as condicionalidades do programa tendem a potencializar processos e resultados intermediários virtuosos, tais como a esperada ampliação do acesso aos serviços sociais e a promoção da intersetorialidade, questões altamente relevantes dentro do atual quadro de institucionalidade das políticas sociais no país.

Como se vê, trata–se de um debate ainda em curso, que envolve uma série de questões complexas, as quais merecem ser aprofundadas.

 

Colaboradores

GL Monnerat, MCM Senna e V Schottz participaram da concepção, redação e revisão crítica do artigo. R Magalhães e L Burlandy participaram da redação e revisão crítica do artigo.

 

Referências

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