Direitos Humanos: análise do surgimento do estado como sociedade e a herança das antigas civilizações


Porrayanesantos- Postado em 02 maio 2013

Autores: 
SILVA, Luzia Gomes da

 

RESUMO  

 

Normalmente a doutrina, ao se referir às origens dos direitos humanos, menciona o surgimento do conceito de Estado como sociedade individualizada e perfeita, que aconteceu com Niccolò di Bernardo dei Macchiavelli (1469-1527), em sua conhecida obra “El Prince” (em italiano Il Principe) de 1513[1].

 

Porém não se pode negligenciar a herança das antigas civilizações que nos limites apreensíveis à época, privilegiaram a pessoa humana.

 

Palavras-chave: Antigas civilizações; herança; Direitos Humanos; Código Urukagina.


 

1.    CONSIDERAÇÕES INICIAIS

 

Conforme a constatação de Rogério Gesta Leal[2], “parece ser consenso entre os historiadores que as origens mais antigas dos direitos fundamentais da pessoa humana se encontram nos primórdios da civilização”, englobando desde as concepções formuladas pelos hebreus, pelos gregos, pelos romanos, e pelo Cristianismo, até a atualidade.

 

Não existem muitas notícias acerca das relações sociais e suas regras nos tempos que antecedem o surgimento da escrita cuneiforme, que aconteceu por volta de 6000 a 4000 a.C., na Mesopotâmia[3] (significa terra entre rios, região histórica do Oriente Médio - Ásia, incluída no Iraque e banhada pelos rios: Eufrates e Tigre), com a civilização suméria, que com um estilete em forma de cunha (cuneiforme), fabricado a partir da casca da cana-de-açúcar ou outra planta similar, marcava símbolos na forma de caracteres em tábuas feitas de argila ainda molhada. Porém inegavelmente os povos antigos conheceram alguma forma de direitos humanos, mesmo que bastante rudimentares.

 

De acordo com a verificação de Alexandre de Moraes[4], existem vestígios de uma teoria de direitos individuais do ser humano no antigo Egito e na Mesopotâmia, que por volta do terceiro milênio a.C. já previam alguns instrumentos de proteção individual em relação aos líderes das cidades[5].

 

O “Código de Urukagina”, escrito por volta de 2350 a.C., considerado o mais antigo texto normativo que se têm notícias, revela os esforços de seu tempo para a implementação de ações de combate à opressão pelo poder e tirania. O Rei Urukagina, de Lagash ou Suméria, atual Tello, no Iraque, autor do primeiro Código conhecido pela humanidade, e que leva o seu nome, foi um sábio e sagaz reformador, sendo que a ele “pertenece el honor de haber restablecido la justicia y de haber devuelto la libertad a los ciudadanos oprimidos”[6]. É este documento normativo que grava pela primeira vez na história humana a palavra “liberdade”, na forma do termo sumério “amargi”, definida epistemologicamente com liberdade e retorno para a mãe[7].

 

No livro intitulado “the sumerians, their history, culture, and character” de Adam Falkenstein[8], consta que:

 

From about 2350 B.C., during the reign of Urukagina of Lagash, we have one of the most precious and revealing documents in the history of man and his perennial and unrelenting struggle for freedom from tyranny and oppression. This document records a sweeping reform of a whole series of prevalent abuses, most of which could be traced to a ubiquitous and obnoxious bureaucracy consisting of the ruler and his palace coterie; at the same time it provides a grim and ominous picture of man's cruelty toward man on all levels - social, economic, political, and psychological. Reading between its lines, we also get a glimpse of a bitter struggle for power between the temple and the palace - the “church” and the “state” - with the citizens of Lagash taking the side of the temple. Finally, it is in this document that we find the word “freedom” used for the first time in man's recorded history; the word is “amargi”, which, as has recently been pointed by Adam Falkenstein, means literally “return to the mother”. Howevwe, we still do not know why this figure of speech came to be used for “freedom”.

 

O Rei Urukagina conseguiu instaurar a liberdade aos cidadãos de Lagash.

 

2.    ESTADO DA ARTE E REVISÃO DA LITERATURA

 

Segundo historiadores, a partir da análise de descobertas arqueológicas, “la ley, la liberdad y la justicia eran dos conceptos fundamentales en Sumer; tanto en la teoría como en la práctica, la vida social y económica sumerias estaban impregnadas de estos conceptos”[9].

 

Vários textos sumérios escritos com letras cuneiformes, em cilindros de argila, escavados em 1895, perto de Tello, como é hoje conhecido a antiga Lagash ou Suméria, dão conta de que o Urukagina, rei de Lagash, se sentia deveras orgulhoso de suas ações:

 

[...] había devuelto la libertad y la justicia a sus conciudadanos, largo tiempo oprimidos; había desembarazado al Estado de funcionarios parásitos, había puesto fin a la arbitrariedad y a la explotación inicua; la viuda y el huérfano habían encontrado en él un protector[10].

 

O Código de Urukagina tem relevante importância histórica como legado à civilização do ocidente, porque plantou a semente do conceito de liberdade fundamentada na lei e na justiça como parâmetro para permitir uma vida humana mais digna, principalmente porque estabelece mecanismos concretos de justiça social, representando um significativo instrumento normativo de limitação dos poderes dos governantes, incluindo sacerdotes e funcionários públicos de alto escalão, notadamente por meio de regras de garantis às pessoas socialmente mais débeis, como os pobres, os cegos e as viúvas. Nas palavras de Samuel Noah Kramer[11] sobre esse tema:

 

Urukagina limpió igualmente la ciudad de usureros, de ladrones y de toda clase de criminales, tal como lo demuestra el siguiente ejemplo: “si el hijo de un hombre pobre se agenciaba un estanque para la pesca, nadie le robaría su pesca ahora”. Ya no había ningún dignatario que se atreviese a usurpar el jardín de la madre de un hombre pobre, despojando los árboles y llevándose los frutos, como era costumbre antes. Urukagina hizo un pacto con Ningirsu, el dios de Lagash, especificando en él que no permitiría que las viudas ni los huérfanos fuesen víctimas de los “hombres poderoso”.

 

O Código de Urukagina não se equipara às constituições contemporâneas, nem mesmo pode ser considerado um Código como os conhecidos na atualidade, mas apesar de vigência bastante curta, de 2350 até quando Urukagina (2355 a.C - 2350) foi deposto, e talvez sem aplicação prática[12], foi um texto normativo de grande importância, ao menos para a posteridade ocidental, porque decorreu de um esforço legislativo reformista de diversas cidades sumérias no sentido da promoção da justiça, trazendo no prólogo que “o poderoso não oprimirá o órfão e a viúva, pois que tal pacto foi estabelecido por Urukagina com Ningirsu”[13].

 

A relevância do Código de Urukagina para os direitos humanos está no tratamento legislativo dado pelo Rei à questão da justiça social fundada na defesa do mais fraco e na obrigatoriedade que impunha a si próprio de defender o bem-estar de seus súditos[14].

 

Ainda na Mesopotâmia “nas pequenas comunidades a vida demandou certo grau de formalização - na verdade houve uma evolução de costumes para um sistema legal”. Destarte, “a Justiça tornou-se, realmente, a mais importante preocupação dos sumérios, e se seus sucessores na Mesopotâmica”. Ao divulgarem formulários judiciais, os dirigentes pretendiam “trazer Justiça à terra”[15].

 

Tempos depois surge o Código de Ur-Nammu, promulgado no período da Mesopotâmia Renascentista, por volta de 2100-2000 a.C. Esse texto normativo versou sobre todos os assuntos possíveis de serem tratados em um Código e serviu de inspiração para a laboração do Código de Hammurabi. Ur-Nammu estabeleceu que “pelo poder de Namma, senhor da cidade de Ur e, de acordo com a palavra de Utu” e em assim fazendo considerou-se preparado para “estabelecer igualdade da Terra, banindo a maldição, a violência e a fome”[16]. Uma das pretensões de Ur-Nammu foi reprimir a violência e o instinto natural humano de vingança[17].

 

O Código de Ur Nammu, fundado na terceira dinastia de Ur, foi seguindo por um Código da Cidade de Eshnunna[18].

 

O Código de Leis de Eshnunna, escrito em 1930 a.C., tem o nome relacionado à cidade de Eshnunna e não ao legislador. A cidade de Eshnunna existiu no vale Diyala na Mesopotâmia antiga, hoje “sítio arqueológico de Tell Asmar”, situado na Província de Diyala no Iraque. As compilações das Leis de Eshnunna, com sessenta artigos, estão em duas estelas (colunas de pedra) guardadas pelos governantes da cidade de Tell Armar[19].

 

Foi no período entre a queda da dinastia de Ur e o começo do reinado de Hammurabi que Eshnunna conheceu momentos de grande expansão territorial, e conseguiu entrar de maneira determinante no cenário político da Babilônia[20].

 

O Código de Leis de Eshnunna, que também foi utilizado como base normativa para a elaboração do Código de Hammurabi, trata de muitas matérias, com destaque para as regras relacionadas ao funcionamento do palácio e do reino de Eshnunna, às Cortes de Julgamento, a intervenção estatal no domínio econômico para conter preços de alimentos, ao casamento, ao divórcio e à escravidão que era prática costumeira da época.

 

Porém, conforme Emanuel Bouzon[21], “uma simples leitura das tábuas 1M 51.059 e 1M 52.614 nos mostra claramente que o material legal aqui reunido não forma um Código de Leis no sentido moderno do termo”, destacando que “muitos pontos da vida jurídica e social da cidade não são tratados nas leis de Eshnunna”, o que evidencia a existência de outros textos normativos paralelos. Contudo, é explicável eis que “a preocupação de reunir todas as leis vigentes em um código, que realmente mereça esse nome, é relativamente moderna”.

 

Por volta de 1.880 a 1.870 a.C., aproximadamente, o Rey Lipit-Ishtar de Isin, quarta dinastia da Babilônia, compilou o Código de Lipit-Ishtar, cujo prólogo indica que as normas eram concebidas, na época, como manifestações de autopromoção do Rei:

 

Eu sou o rei, o bem criado, de boa semente por parte de mãe, o filho do divino Enlil. Qual rebento de cedro que levanta orgulhoso a cabeça, sou um homem de força poderosa, de potência invencível. Na minha juventude, espreguiço-me com força: sou um leão que a todos precede, não tenho rival; sou um dragão que abre a sua garganta, o terror do exército (inimigo); sou a águia Imdugud, que sobrevoa os montes; um touro que comanda a manada e ao qual ninguém resiste; um bisonte brilhante, de olhos reluzentes. Tenho uma barba de lápis lázuli, tenho bons olhos, boa boca, sentidos lúcidos, possuo a figura do um leão selvagem, adornado com generosa beleza; sou o adorno de todas as palavras [...][22].

 

Com essas declarações, o Rey Lipit-Ishtar afirmava que fora designado pelas grandes divindades para reinar sobre o país e estabelecer a justiça, fazer desaparecer os motivos de queixas e expulsar por meio da força dos exércitos armados os inimigos e os rebeldes, e trazer o bem-estar aos habitantes de Isin.

 

O Código de Hammurabi, escrito durante o período do reinado de Hammurabi, “fixado definitivamente entre 1728 e 1686 a.C.”[23] é mais extenso, mais completo, melhor ordenado e com um efeito muito mais autoritário que todos os demais Códigos que o antecederam. Também tem uma característica mais autoritária. Porém, em essência, não era mais do que uma revisão aumentada de seus antecessores.

 

No prólogo ao seu Código Hammurabi proclamava que a Babilônia era agora “soberana do mundo” e que os alicerces da sua realeza eram “tão firmes como os do céu e da terra”. Segundo esse mesmo prólogo, os deuses é que o haviam instruído “a fazer a justiça presente na terra, a destruir o mal e os maus a fim de que os fortes não pudessem oprimir os fracos, a erguer-se como o deus-sol para iluminar a terra”[24].

 

Consta na epígrafe do Código de Hammurabi, conforme Aluisio Gavazzoni[25], a seguinte frase:

 

Eu sou o rei mais importante entre reis, minhas palavras são escolhidas, minha habilidade não tem igual. Por ordem de Shamash, o grande juiz do céu e da Terra, possa minha justiça prevalecer na Terra; pela palavra de Marduk, meu senhor, nunca exista alguém que a mude.

 

Redigido em caracteres cuneiformes e no idioma babilônico, o Código de Hammurabi continha um texto composto de aproximadamente 300 leis, “intercalado entre un prólogo glorioso y un epílogo cargado de maldiciones para los violadores”. Em decorrência do número de leis e do estado de conservação da estela (coluna de pedra) que o contém, o Código de Hammurabi é considerado o documento jurídico mais importante que se possu hoje acerca da civilização mesopotâmica[26].

 

No início de seu reinado, Hammurabi contava com um território de oitenta quilômetros de raio. Quando morreu, quarenta e dois anos depois, sua cidade era a capital de um reino que se estendia do Golfo Pérsico para além da fronteira da moderna Turquia, e dos montes Zagros, no leste, ao rio Khabur, na Síria. Conseguiu tudo isso associando um senso estadista aguçado, com astúcia, coragem e paciência: “sabia quando era tempo de esperar, de ceder e curvar-se, e quando era hora de golpear”[27].

 

No apogeu de sua carreira, o Rei de Hammurabi era senhor de um domínio unificado que virtualmente incluía toda a Mesopotâmia e suas adjacências. Organizou a sociedade babilônica a partir da propriedade privada, utilizando-se de um sistema de ordem hierárquica de base feudal. Também regulou à exaustão os crimes, o que evidencia uma cultura solidamente disciplinada[28].

 

Sobreviveu até hoje considerável soma de informes sobre a maneira do Rei Hammurabi dirigir o império. Juntando-se ao seu minucioso Código Legal, existem muitas cartas suas aos babilônios nomeados seus funcionários nas províncias conquistadas. A correspondência revela que esse homem extraordinário foi não só um formidável guerreiro e um astuto diplomata, mas também um diligente e meticuloso administrador, sinceramente interessado no bem-estar dos seus súditos. Suas cartas mostram que devotou muita atenção pessoal a assuntos de importância secundária, como o pagamento de rendas e pequenas demandas judiciais, enquanto cuidava de arrecadar os impostos e de manter os sistemas de crucial importância para Babilônia[29].

 

Alexandre de Moraes[30], ao tratar da evolução histórica dos direitos fundamentais verifica que o Código de Hammurabi pode ser o primeiro texto normativo codificado da história universal a consagrar uma série de direitos comuns, como a propriedade, a vida, a honra, a dignidade, a família; bem como a prever a supremacia das leis em face dos governantes.

 

Apesar de conter dispositivos cujo conteúdo se pratica até os dias de hoje, o Código de Hammurabi se fundamenta, basicamente, na lei de talião, na conhecida regra “olho por olho, dente por dente”. Com efeito, previa “castigos desumanos como o afogamento, o empalamento e o arrancamento da língua e de outras partes do corpo, por exemplo”[31].

 

3.    RESULTADOS E DISCUSSÕES TEÓRICAS

 

Uma análise atenta do prólogo e epílogo dos Códigos de Ur Namu, Lipit-Ishtar e Hammurabi indica como motivo principal que levou esses reis a proclamar e publicar seus códigos legais foi o intento de empreender em seus reinos uma reforma social e jurídica: o Rei Ur-Nammu declara solenemente em seu prólogo que no seu tempo “o órfão não foi entregue ao rico; a viúva não foi entregue ao poderoso; e o homem de um ciclo não foi entregue ao homem de uma mina”. De modo similar, o Rei Hammurabi declara no epílogo de sua estela “que o homem oprimido, que está implicado em um processo, venha diante de minha estátua de rei da justiça e leia atentamente minha estela escrita e ouça minhas palavras preciosas. Que a minha estela resolva a sua questão, ele veja o seu direito, o seu coração se dilate!”. Na mesma linha, Lipit-Ishtar justifica a proclamação de sua legislação[32].

 

Na sequencia cronológica a “Lei Torah”, também conhecida como “Pentateuco” e “Lei de Moisés[33][34], que ainda hoje constitui texto central do judaísmo, escrita por volta do século XII a.C (1300 a.C), atribuída a Moisés e reunida nos primeiros livros da Bíblia sob o título de “Pentateuco”, traz um conjunto de regras religiosas, morais e sociais impostas obrigatoriamente ao povo de Israel. A Lei Mosaica fundamentava-se nos dez mandamentos (Decálogo) que são leis tidas como de inspiração divina. Nas palavras de Césare Cantu[35]:

 

Como a primeira doutrina que Deus deu ao homem ao mesmo tempo em que a palavra que os patriarcas tinham transmitido, se tenha obscurecido, aprouve ao Senhor revelar novamente a sua vontade e das alturas do Sinai deu a Moisés o Decálogo, em que está resumido tudo quanto forma a moral do homem e a civilização dos povos. A unidade de Deus, proclamada à frente da lei, traz consigo a unidade da espécie e desde então começa a igualdade entre os homens: a mesma proibição dos maus pensamentos sanciona a individualidade, e faz que cada um se julgue e se reconheça um ente digno de respeito. Moisés teve de lutar contra a obstinação de um povo agreste e inculto, que enquanto seu profeta lhe preparava em dez linhas as regras da vida, sacrificava ao boi Ápis e respondia aos benefícios com murmúrios.

 

O Decálogo da Lei Torah, embora admitisse a escravidão e a pena de morte, refletindo os costumes da época, pela primeira vez na história humana determinou que os governantes e os governados se sujeitassem à mesma lei e na igual medida. Apenas Deus (“Iahweh”), tido como o autor dos dez mandamentos, estava acima deles. Protegia, basicamente, a vida, a propriedade, a honra, a família e o descanso semanal. Consta no Segundo Livro da Torah (Pentateuco), o Shemot (Êxodo), Capítulo 20, versículos 02-17, o que segue, in verbis[36]:

 

2. Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei do Egito, da casa da servidão. 3. Não terás deuses estrangeiros diante de mim. 4. Não farás para ti imagem de escultura, nem figura alguma de tudo o que há em cima no céu, e do que há embaixo na terra, nem de coisa, que haja nas águas debaixo da terra. 5. Não as adorarás, nem lhes darás culto: porque Eu sou o Senhor teu Deus, o Deus Forte, o zeloso, que vinga a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira, e quarta geração daqueles, que me aborrecem; 6. e que faz misericórdia até mil gerações àqueles, que me amam, e que guardam os meus preceitos.7. Não tomarás em vão o nome do Senhor teu Deus: porque o Senhor não terá por inocente aquele que tomar o seu nome em vão. 8. Lembra-te de santificar o dia do sábado. 9. Trabalhará seis dias e farás neles tudo o que tens para fazer. 10. O sétimo dia, porém, é o dia do descanso consagrado ao Senhor teu Deus. Não farás nesse dia obra alguma, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem o teu escravo, nem a tua escrava, nem a tua besta, nem o peregrino, que vive das tuas portas para dentro. 11. Porque o Senhor fez em seis dias o céu, e a terra, e tudo o que neles há, e descansou no sétimo dia. Por isso o Senhor abençoou o dia sétimo, e o santificou. 12. Honrarás teu pai, e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que o Senhor teu Deus te há de dar. 13. Não matarás. 14. Não cometerás adultério. 15. Não furtarás. 16. Não dirás falso testemunho contra o teu próximo. 17. Não cobiçarás a casa de teu próximo: não desejarás a sua mulher, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma, que lhe pertencer[37].

 

Moisés era um jovem idealista, com sonhos de uma vida melhor para seu povo. Entretanto passou por grandes dificuldades enquanto líder. Possuidor de um poder superior aos seus, o poder do conhecimento adquirido junto ao Faraó, pegou duas tábuas de pedra rudemente talhadas e subiu o Monte Sinai. Lá meditou e escreveu algumas regras que entendia imprescindíveis ao ressurgimento dos valores éticos de seu povo, para a mantença da união. Inteligentemente atribuiu a “Iahweh” este legado, fazendo com que cressem num único deus, agregando os hebreus numa só cultura, e conseguiu o equilíbrio social.

 

A partir daí “Iahweh” (Deus) foi reconhecido por todo o povo hebreu como senhor supremo dos seus destinos, como deus único e verdadeiro que, impondo obediência, apontava um meio para viverem em harmonia. O povo seguiu obedecendo a Moisés, seu guia, até chegarem à terra de Canaã, atual Palestina[38].

 

Ressalte-se que o povo de Israel, apesar de um grupo pequeno da família semítica, se converteu pela sua influência espiritual num povo universal e pôde, embora com muitas misturas e conversões pelo contato com raças estrangeiras, manter uma unidade étnica de culto, aflorando os primeiros preceitos legais da história, as Tábuas da Lei - doze mandamentos, dando origem ao Direito Mosaico[39].

 

Os ideais hebraicos de soberania da lei e de consideração pela dignidade e pelo valor do indivíduo contam-se entre as grandes influências formadoras que plasmaram o desenvolvimento da moderna democracia. É hoje quase universalmente admitido que as tradições do judaísmo contribuíram tanto quanto a influência do Cristianismo e da filosofia estóica[40] para promover o reconhecimento dos direitos humanos e o desenvolvimento da sociedade livre[41].

 

Com a disseminação dos hebreus pelo mundo e a ulterior chegada do Cristianismo, o humanismo religioso se proliferou significativamente, contribuindo para as transformações sócio-culturais da civilização ocidental onde se desenrolou o processo de unificação da humanidade, baseada na progressiva afirmação dos direitos humanos[42].

 

A consciência histórica dos direitos humanos apenas veio a eclodir depois de um longo e árduo período de preparação, concretizado por meio de ações voltadas limitação do poder político. O primeiro passo decisivo à compreensão e reconhecimento da existência de direitos que, inerentes à própria condição humana, devem ser admitidos como legítimos a todos e não como simples concessão benevolente dos que exercem o poder, foi a tomada de consciência generalizada de que as instituições de governo devem ser utilizadas para o serviço dos governados e não para o benefício pessoal dos governantes[43].

 

Seguindo-se essa perspectiva, é preciso reconhecer, juntamente com Fábio Konder Comparato[44], que a proto-história dos direitos humanos começa nos séculos XI (1000) e X (900) a.C., quando, com David, foi instituído o reino unificado de Israel. Foi David quem fundou Israel e transformou capital de Israel, a “capital dos judeus”.

 

O reino de David, que se estendeu por 33 (trinta re três) anos (de 996 a 963 a.C.), caminhando em sentido contrário aos regimes monárquicos dos povos anteriores e contemporâneos seus, estabeleceu, pela primeira vez na história política da humanidade, a figura do Rei-Sacerdote, um monarca que embora não tenha se proclamado “deus” e nem se declarado “legislador”, demonstra seu poder e superioridade quando se apresenta como o delegado do Deus único e o responsável supremo pela aplicação da lei divina. Destarte, surgia “o embrião daquilo que, muitos séculos depois, passou a ser designado como o Estado de Direito”, concebido como “uma organização política em que os governantes não criam o direito para justificar o seu poder, mas submetem-se aos princípios e normas editados por uma autoridade superior”[45].

 

Percebe-se, assim, que sob esta linha de pensamento, os direitos humanos surgem da mudança na relação entre o Governo e os Governados: os direitos passam a ser vistos como direitos aos cidadãos, no geral, e não apenas aos súditos; a sociedade representa a totalidade que antecede o indivíduo, fragmentando o caráter individualista existente no momento anterior à idade moderna. Trata-se de uma fase germinativa dos direitos humanos. É neste período que, segundo Norberto Bobbio[46], são afirmados os “direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado”.

 

A notável experiência de limitação institucional do poder de governo desenvolvida no reino de David foi retomada no século VI a.C., quando se deu a criação das primeiras instituições democráticas de Atenas, prosseguindo no século procedente com a fundação da república romana[47].

 

Na sequencia histórico-cronológico-normativa, tem-se o Código de Manu, vigente na Índia Antiga, escrito por Manu Vaivasvata, provavelmente no período entre os séculos II a.C. e II d.C. Manu Vaivasvata era um personagem mítico que expressa no referido texto normativo indiano uma série de ideias sobre valores como justiça, verdade e respeito. Contudo, embora não aparente, o Código de Manu era elitista, porque trazia um amontoado de considerações que visavam à superioridade do pensamento sacerdotal, assegurando-lhe a posição de comando diante da sociedade. Na Índia Antiga os sacerdotes ocupavam uma casta superior na hierarquia social. No Código deManu a casta (sistema de divisão social existente até hoje, sendo que as barreiras de casta, já não existentes nos grandes centros urbanos, permanecem usuais, principalmente nas cidades interioranas e na zona rural[48]) é fator preponderante para determinar o valor da honra e da situação da pessoa dentro do direito[49].

 

A Grécia Antiga corresponde ao momento histórico considerado entre os anos 1.000 a 776 a.C. até a morte de Alexandre, o Grande, em 323 a.C., seguido do helenismo, que marcou a transição para o domínio e apogeu de Roma, quando em 146 a.C. a Grécia foi feita província romana com o nome de “Acaia”. Neste período a supremacia do Estado era indiscutível, especialmente nos primeiros tempos, resultando como de fundamental importância as relações entre os indivíduos e a cidade-estado.

 

O povo grego da época desenvolveu debate filosófico intenso, separando o direito dos deuses do direito dos homens, fazendo valer a ideia de que a promulgação e a revogação da lei nada tinham de divino. As principais leis gregas da época foram a Lei de Drácon (621 a.C.) e a Lei de Sólon (594-593 a.C.)[50].

 

Foram redigidos, destarte, dois Códigos de Leis em Atenas, no intervalo de pouco menos de trinta anos. O Código de Drácon foi escrito quando a luta entre as duas classes (patrícios e plebeus) se fazia mais forte e quando os eupátridas ainda estavam no poder. Sólon redigiu o seu Código quando os eupátridas foram vencidos pela classe inferior. É por isso que apesar de praticamente contemporâneos, as diferenças entre os dois textos normativos são bastante profundas[51].

 

Em regra os historiadores citam como o primeiro legislador grego Drácon (660 a 600 a.C.) de Atenas, cujo Código, que recebeu o seu nome, foi escrito provavelmente do ano 621 a.C. em diante. Como era eupátrida (eu = bom; pátridas = parido: bem parido, filho da elite) e carregava consigo todo o sentimento de sua casta, além de ter sido formado no direito religioso, ao codificar as leis antes aplicadas discricionariamente pelos eupátridas apenas passou por escrito costumes antigos, sem alterações de relevo[52].

 

De acordo com Numa-Denys Fustel de Foulanges[53], a primeira lei codificada por Drácon foi a seguinte: “devem-se honrar os deuses e heróis do país, e oferecer-lhes sacrifícios anuais, sem se afastar dos ritos seguidos pelos antepassados”. Da interpretação do referido texto normativo extrai-se que, embora Drácon tenha sido o responsável pela instituição do Governo das Leis na Grécia, manteve os preceitos religiosos da época[54].

 

As leis de Drácon eram cruéis, ditadas por uma religião implacável, que via em toda falta urna ofensa à divindade, ofensa tida como crime imperdoável. O roubo era punido com a morte porque atentava contra a religião da propriedade. Apenas os familiares do morto podiam demandar na justiça por um crime, ou seja, o ser humano pertencia ainda mais à família do que ao Estado.

 

A insatisfação com as leis de Drácon era generalizada, porque fazia demarcação profunda das classes superior e inferior e se mostrava extremamente dura em relação à classe menos favorecida. Tanto assim que depois de trinta anos de sua existência a classe inferior veio a reclamar nova legislação.

 

Surge assim, o Código de Sólon, totalmente diferente do anterior, correspondendo uma verdadeira revolução social porque se aplica igualmente a todas as pessoas, independentemente da classe que ocupe. Sólon (638-558 a.C.) foi indicado para ser o legislador de um novo Código porque a opinião pública repudiara completamente as Leis de Drácon. Atingiu o intento, tanto que se orgulhava de ter escrito as mesmas leis para os grandes e pequenos[55].

 

O destaque para o Código e Sólon está na façanha de ter conseguido limitar a autoridade do pai de família, dentro de sua casa. O direito antigo de Atenas permitia até a venda ou a morte do filho pelo pai. Sólon limitou significativamente esta regra, embora ainda admitisse venda ou morte em caso de falta muito grave. Porém, mesmo sendo considerado o berço do pensamento político, os atenienses sequer imaginaram a possibilidade da instituição de um estatuto com direitos oponíveis ao próprio Estado, traço básico para a identificação de direitos humanos.

 

Com a disseminação dos hebreus pelo mundo e a ulterior chegada do Cristianismo, o humanismo religioso se proliferou significativamente, contribuindo para as transformações sócio-culturais da civilização ocidental onde se desenrolou o processo de unificação da humanidade, baseada na progressiva afirmação dos direitos humanos[56].

 

No entanto foi o direito romano, por lei da Lei das Doze Tábuas (450 a.C.), quem estabeleceu um complexo mecanismo normativo para proteger os direitos individuais dos arbítrios dos governantes. Destarte, a Lei das Doze Tábuas é considerada a origem dos textos escritos consagradores da liberdade, da propriedade e da proteção aos direitos do cidadão[57] (MORAES, 2000, p. 25).

 

De modo similar ao que aconteceu em Atenas, por volta do ano 509 a.C Roma reorganizou seu regime republicano representativo.[58]

 

Com a Lei das Doze Tábuas, o direito dos homens foi afastado do direito das divindades, além de se tornar público e passível de conhecimento de todos. Nesse sentido assim expressou Numa-Denys Fustel de Foulanges[59]:

 

Antes a lei era decreto da religião; passava por uma revelação feita pelos deuses aos antepassados, ao fundador divino, aos reis sagrados, aos magistrados sacerdotes. Nos novos códigos, pelo contrário, não é mais em nome dos deuses que o legislador fala; os decênviros de Roma receberam o poder do povo; foi também o povo que investiu Sólon do direito de fazer leis. O legislador, portanto, não representa mais a tradição religiosa, mas a vontade popular. A lei doravante tem por princípio o interesse dos homens, e por fundamento o assentimento da maioria.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

Duas são as consequências desta postura norma: a) a lei não mais se apresenta como fórmula indiscutível e que não pode ser mudada por ditada por uma divindade. Transformando-se em obra humana, deixando de ser divina, é reconhecida a possibilidade de sujeitar os preceitos legais a mudanças; se a lei é feita pelo homem, este pode modificá-la; e b) a lei, antes parte da religião e propriedade das famílias sagradas, torna-se propriedade comum de todos.

 

Desse modo, o direito mudou de natureza[60], embora a Lei das XII Tábuas seja mais uma transição entre o regime antigo e o que a sucedeu. A Lei das XII Tábuas foi elaborada pelos patrícios, mas a pedido e para uso da plebe, pois que decorrente de movimentos populares, identificada pela sociedade ocidental como o primeiro conjunto de leis destinado à consagração da propriedade, da liberdade e da proteção aos direitos dos indivíduos. De acordo com Rogério Gesta Leal[61], “os avanços jurídicos e políticos que surgem em Roma, os quais podem aproximar-se de garantias de direitos individuais, são conquistados a duras penas e sob pressão popular”, a exemplo do que aconteceu com a luta dos plebeus em busca de tratamento igualitário ao da nobreza; a designação dos tribunos da plebe; a conquista de leis editadas para nivelar as posições sociais.

 

Para a confecção da Lei das XII Tábuas, depois de uma luta política que durou dez anos, foi instituído pelo Senado romano um grupo formado por dez membros, incluindo entre eles os plebeus, razão pela qual a plebe (povo) detinha o direito de alcançar a Magistratura. Em 451, sem a presença de plebeus, foi redigida uma lei em dez tábuas, que foi aprovada pelos comícios por centúrias. Em 450 a.C., outros decênviros redigiram as outras duas tábuas de lei, incorporadas às dez primeiras. Com efeito, estava composta a primeira constituição romana, a Lei das XII Tábuas[62].

 

A Lei das XII Tábuas era de caráter genérico e trazia todo o direito romano, incluindo dispositivos legais de direito penal, direito público, direito privado e direito processual, embora nada mencionasse sobre direito internacional. Seu texto se afastava muito do direito romano primitivo, porque a cada na medida em que as classes inferiores ascendem politicamente, alguma nova modificação é introduzida nas regras do direito (e assim continua até a atualidade), dando início à construção de um direito novo, não inspirado pela religião e aproximando-se cada vez mais do direito natural.

 

Não se pode desprezar, porém, o fato de que o pensamento religioso legou seu subsídio à evolução dos fundamentos do direito e, por consequência, trouxe e deixou para as gerações futuras uma nova visão sobre o ser humano: “e criou Deus o homem à sua imagem: fê-lo à imagem de Deus, e criou-os macho e fêmea” (Gênesis, 1:27[63]). A Bíblia apresenta o ser humano como um ser situado ente o Céu e a Terra, a um só tempo terreno e espiritual[64].

 

Ao lado da contribuição religiosa, os dez mandamentos da Lei Mosaica representam “autêntico código de ética e de comportamento social, cujo cumprimento identifica um conteúdo e uma prática voltada aos direitos humanos mais tarde protegidos”. A Bíblia em si mesma “tem um conteúdo essencialmente humanista, que a partir de um marco religioso presente na cultura greco-romana, consolidou-se no Cristianismo”[65].

 

O germe dos direitos humanos e da decorrente afirmação da dignidade humana procede muito provavelmente do sofrimento físico e espiritual dos povos. Por exemplo, no desenrolar da Guerra de Tróia[66], que aconteceu possivelmente entre 1194-1184 a.C.[67], o sacrifício de Ifigênia pelo seu próprio pai Agamenon[68], um rico rei de Argos (Micenas), praticante da arte da guerra e do uso brutal do poder, “representou, de certa forma, o paradigma da tragédia enquanto meio de se purificar a alma de suas paixões destruidoras”[69]. De acordo com a versão mitologias da Guerra de Tróia, Agamenon, rei de Micenas ou Argos (localizada na região hoje conhecida como Argolis, um dos distritos da Grécia, situado na zona leste da península grega chamada Peloponeso) e seu irmão Menelau esposaram as filhas do rei de Esparta, Clitemnestra e Helena, respectivamente. Quando Páris, filho do rei de Tróia (localizada no atual monte Hissarlik, na planície dos Dardanelos, na costa noroeste da Turquia), raptou Helena, mulher de seu irmão, Agamenon formou um exército para se vingar dos troianos, recebendo apoio dos príncipes da Grécia. A expedição de soldados acabou aportando em Áulis (Atenas, na Grécia) em razão de uma forte tempestade[70].

 

Depois de três semanas os barcos danificados estavam prontos, mas cada vez que tentavam içar velas, os ventos sopravam ainda mais fortes. Logo alguém insinuou que por traz das tempestades estava a vontade de alguma divindade. Um vidente consultado afirmou que a divina Ártemis era a responsável pelo vento, porque ofendida por Agamenon que havia matado um de seus cervos numa caçada. Em troca, para se acalmar e não mais interferir nos intentos da esquadra, exigia que Agamenon oferecesse em sacrifício seu rebento mais belo, no caso a filha Ifigênia.

 

Sem ter como negar a previsão, cujo ritual previsivo aconteceu em público, com muitas testemunhas, e diante da ameaça de deserção dos soldados caso a vontade da deusa não fosse cumprida, Agamenon pôs o seu êxito pessoal, como chefe guerreiro, acima de uma pessoa, no caso, a sua filha[71]. Depois de cumprir o sacrifício, ofertando no Altar de Áulis a vida de sua filha, os mares se acalmaram e a frota seguiu navegando rumo ao destino.

 

Outro exemplo da compreensão, no curso da história, de que a dignidade suprema dos seres humanos e seus direitos, tem sido “fruto da dor física e do sofrimento moral[72]” encontra-se na máxima grega “sofrer para compreender” (“tô pathei mathos”), que segundo Fábio Konder Comparato[73] consta no poema trágico de Ésquilo[74], chamado “Agamenon”, escrito em 458 a.C. Ésquilo destaca a importância do sofrimento na edificação humana: “tristezas, canta tristezas, mas possa o bem triunfar”[75]. Esses dizeres traduzem claramente a ideia de que o sofrimento livra o ser humano de impurezas e o instrui no contexto moral. Neste pensar:

 

A bem dizer, o avanço ético faz-se sempre por reação a esses períodos de avania social. A cada grande surto de violência aniquiladora, os homens recuam, horrorizados, à vista da ignomínia, e compreendem afinal o sentido da dignidade humana. É a confirmação da sabedoria expressa pela máxima grega: sofrer para compreender[76].

 

A descoberta do sofrimento como fonte perene de sabedoria é atribuída a Ésquilo. O sofrimento humano não se esgotaria, portanto, na dimensão de um castigo ou de uma punição dos deuses, porque era tido como fonte inesgotável de conhecimento.

 

Destaca-se que nessa época o ser humano ainda não era totalmente livre, porque “controlado pela vontade e arbítrio dos deuses”[77], porém o “divino” fazia parte de sua vida diária, cujo convívio se dava de forma natural, sem conflitos, eis que:

 

[...] a intervenção dos deuses, no agir dos homens, não significa nenhuma interrupção da ordem natural das coisas, nem nenhum milagre extraordinário. Para o grego arcaico, seria impossível interpretar a existência humana e os acontecimentos da vida quotidiana sem essas intervenções divinas. É graças a elas que a vida recebe seu sentido[78].

 

Além dessa concepção de que são os deuses que movimentam e motivam as pessoas e as aconselham nas suas deliberações, entendia-se que na experiência da dor e do sofrimento é que o ser humano faz valer sua liberdade, pagando o preço imposto por ela. Este clima foi propício para o desenvolvimento da “cultura da culpa”, assim designada por Eric Robertson Dodds[79]. Neste contexto as punições dos deuses recebiam peculiar relevo e o débito da culpa podia ser expiado pelo indivíduo ou seu descendente.

 

Durante longo período da história da civilização humana, a religião imperou como soberana absoluta, tanto na vida privada quanto pública. O Estado era definido como “comunidade religiosa”, onde a liberdade individual era desconhecida e o ser humano ficava à mercê do Estado em corpo, alma e bens materiais.

 

Com o passar do tempo foram sendo introduzidas modificações no governo, no direito e na religião. Nos cinco séculos que precederam o Cristianismo a união entre a religião, o direito e a política já não se manifestava tão estreita. Os velhos princípios da sociedade humana foram abalados por diversos acontecimentos, como o esforço das classes marginalizadas à ascensão, a decadência da casta sacerdotal, o trabalho dos filósofos e o progresso do pensamento. Tudo isso convergiu para libertar o ser humano do império da cultura da culpa e da submissão incontestável à vontade das divindades.

 

A independência do direito e da política ocorreu na medida da descrença nas divindades, não porque as pessoas deixaram de ser religiosas, mas porque a antiga religião estava desgastada e desacreditada.

 

Ávidos pelo preenchimento desse vazio, o sentimento religioso foi revigorado pelo Cristianismo[80]. O Cristianismo é uma crença que se formou em torno dos ensinamentos de Jesus Cristo, que nasceu no ano 01 da era atual da civilização humana e foi morto no ano 33. Logo depois de sua morte, seus ideais se espalharam rapidamente na Ásia, na áfrica e na Europa, principalmente entre aqueles mais pobres e oprimidos, porque trazia mensagens de paz, respeito, amor e consolo, como se extrai, por exemplo, do seguinte texto bíblico escrito por Lucas, apóstolo e discípulo de Jesus Cristo: “o Espírito do Senhor repousou sobre mim, pelo que Ele me consagrou, com sua unção e enviou-me a pregar o Evangelho aos pobres, a sarar os quebrados de coração”[81]. A religião fez muitos seguidores em pouco tempo, tanto que o Imperador Constantino[82] concedeu liberdade de culto aos católicos no ano de 313 d.C. Mais tarde, em 392, o cristianismo foi transformado por Constantino na religião oficial do Império Romano. Com as grandes navegações, que começaram no Século XIV, ainda na Idade Média, a religião católica chega às Américas, por meio dos padres Jesuítas, que receberam por missão catequizar as comunidades indígenas das colônias recém-descobertas.

 

A crença cristã reconquistou o comando sobre o espírito humano, tornando-se menos material que as religiões anteriores. Se no passado foram forjados deuses com alma humana ou com grandes forças físicas, e cada homem fizera o seu deus, havendo tantos deuses quantas as famílias e as cidades, o Cristianismo prega o monoteísmo e o amor entre as pessoas, consideradas filhas de um só Deus. Esta divindade, por sua essência, é estranha à natureza humana. Com efeito, o “divino” foi colocado do lado de fora e acima da natureza visível. “Deus” é apresentado pelo Cristianismo como Ser único, infinito e universal.

 

O monoteísmo já constava na Lei Mosaica, porém, naquela época a religião não era nem essencialmente ética nem profundamente espiritual. Deus era venerado como legislador supremo e mantedor inflexível da ordem moral do universo. O Deus de Moisés interessava-se quase tanto pelos sacrifícios e pela observância dos ritos como pela boa conduta e pela pureza de coração. Além disso, a religião não se preocupava fundamentalmente com assuntos espirituais. Nada oferecia além de recompensas materiais nesta vida, e nenhuma na vida futura. O Cristianismo transformou a religião exterior em espiritual. Modificou no ser humano a natureza e a forma de adoração. O temor a Deus foi substituído pelo amor de Deus.

 

Ademais, o Cristianismo não é uma religião doméstica de determinada família, mas uma crença nacional de uma cidade ou de um povo, com missão universal. Desde o início não pertenceu a um grupo de pessoas, mas chamou a si toda a humanidade[83].

 

Não foi fácil nem mesmo para os primeiros discípulos de Jesus Cristo obedecer à ordem “ide e ensinai a todas as gentes”[84], porque nunca antes a religião havia ultrapassado as barreiras de uma família, de uma cidade, ou de uma raça. Ainda existia o pensamento de que o Deus dos hebreus não queria ser adorado por estrangeiros, do mesmo modo que acreditavam os povos greco-romanos antigos de que cada raça tinha sua divindade, sendo que a propagação do nome e do culto do deus significava a renúncia a um bem próprio. Mas o Deus da crença cristã não fazia diferença entre raças (gentios, judeus, etc.).

 

O Cristianismo, revelado depois de um longo progresso do pensamento humano[85], apresentou um único Deus para ser adorado por toda a humanidade, um Deus universal, para todos, que não tinha povo eleito e não distinguia raças, famílias ou Estados. Isso acabou refletindo no direito e nas relações políticas. As barreiras internacionais entre povos e raças foram afrouxadas. Nos tempos antigos, a religião e o Estado formavam um todo. Em lugar disso, Jesus Cristo ensina que o seu reino não é deste mundo. Separa a religião do Estado. A religião, não sendo terrena, deixa de imiscuir-se nas coisas da terra. Jesus Cristo acrescenta: “dai a César o que e de César, e a Deus o que é de Deus”[86]. Foi a primeira vez que se distinguiu nitidamente Deus do Estado. Esse princípio foi à fonte de onde brotou a liberdade do individuo. Uma vez que a alma se libertou, realizou-se o mais difícil, e a liberdade tornou-se possível na ordem social.

 

Ao colocar Deus, a família, a pessoa humana, acima da pátria, muda a natureza do direito, que não mais recebe as regras de divindades. O Cristianismo não teve a pretensão de regular o direito, tornando-o independente da religião.

 

O Cristianismo é responsável também por instituições seculares como a democracia e a ciência e fomentou valores como respeito pela dignidade humana, direitos humanos e a igualdade humana. Conforme Dinesh D’Souza[87]:

 

A preciosidade e a dignidade comum a cada vida humana é uma ideia cristã. Somos iguais porque fomos criados iguais aos olhos de Deus. Essa é uma ideia de implicações significativas. Na Grécia e Roma antigas, a vida humana tinha muito pouco valor. Os Espartanos, por exemplo, lançavam criancinhas fracas nas ladeiras para que morressem. As culturas grega e romana foram erigidas sobre a escravidão. O Cristianismo baniu o infanticídio e a morte do mais fraco e “dispensável”, e mesmo hoje os valores cristãos são responsáveis pelo horror moral que sentimos quando ficamos sabendo dessas práticas. O Cristianismo inicialmente tolerou a escravidão - uma instituição universal naquela época - mas mobilizou gradualmente os recursos morais e políticos para por fim a ela. Desde o início, o Cristianismo desencorajou a escravidão de irmãos cristãos. A escravidão, o fundamento das civilizações grega e romana, definhou e desapareceu em grande medida no decurso da cristandade medieval na Idade Média.

 

De acordo com José Soder], “a compreensão para os direitos do ser humano surgiu, na organização política, após o aparecimento do Cristianismo”. Nas suas palavras:

 

[...] o reconhecimento dos direitos do ser humano, medrou em solo cristão. O fator primordial que, em evolução lenta, porém segura, levou à eclosão das modernas declarações dos direitos, foi o cristianismo com sua concepção transcendental da dignidade humana. Esta noção cristã do ser humano descerra um panorama velado para a antiguidade. Constitui, entretanto, a grande mola que acionou toda a evolução jurídica no sentido de uma centralização sempre maior em torno do ser humano, reconhecido em seu valor inalienável de pessoa.

 

Ainda segundo José Soder são dois os aspectos mais importantes do Cristianismo à afirmação dos direitos humanos: a dignidade humana e a fraternidade universal. O cristianismo concebe o indivíduo como pessoa que:

 

[...] possui uma alma espiritual imperecível e uma finalidade eterna, a ser realizada na ressurreição dos corpos e na visão beatífica de Deus. A pessoa humana é não apenas criatura, mas também filho e imagem de Deus, sendo Jesus Cristo o filho unigênito do Pai, o primeiro entre muitos irmãos.

 

O conceito cristão de dignidade humana engloba também as relações dos indivíduos entre si, abrange, também, as relações dos indivíduos entre si. É o que se extrai do texto bíblico de Gálatas, capítulo 3, versículo 28: “não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho, nem fêmea. Porque todos vós sois um em Jesus Cristo”.

 

A doutrina cristã prega o amor ao próximo e a fraternidade universal:

 

O mandamento típico de Jesus Cristo é o mandamento do amor ao próximo. A lei da caridade universal é tão fundamental no conceito de Jesus Cristo, que a equipara à lei máxima do amor a Deus. Mais ainda, através da fraternidade universal, através das obras de amor ao próximo, deve-se realizar, segundo a vontade de Jesus Cristo, o amor a Deus, dependendo destas obras o destino eterno do ser humano. Tão universal e tão perfeita há de ser esta caridade, que ela inclua mesmo os inimigos, a exemplo do amor que neste mundo o próprio Deus tem para com os homens maus.

 

Desse modo, o Cristianismo consagrou a dignidade humana e fraternidade universal como seu princípio maior, influenciando de modo extraordinário para o desenvolvimento e reconhecimento dos direitos dos indivíduos, tanto pelo Estado quanto pela sociedade. Para os seguidores da doutrina cristã, apenas a pessoa humana possui valor absoluto, então, o Estado não poderia constituir a entidade absoluta de outrora.

 

José Soder[92] é enfático ao afirmar que “a concepção cristã do Estado e do direito expressa, de maneira insofismável, os princípios que contêm em gérmen os direitos do homem”, acrescentando que “um estudo acurado nas bases constitucionais do Estado cristão mostraria a presença da maioria daqueles princípios que a época moderna formulou em solenes declarações de direitos”.

 

No ano de 392 d.C., o Cristianismo se organiza na “religião católica” e é transformado na religião oficial do Império Romano. Dominando o cenário religioso, a Igreja Católica passa a ser a instituição mais poderosa da sociedade medieval. Foi com base nos pilares cristãos da dignidade humana e da fraternidade universal que a construção dos direitos humanos seguiu seu curso, adentrando a era medieval.

 

Em apertada síntese, sobre a afirmação dos direitos humanos, a civilização greco-romana, embora audaciosa, não chegou a compreender direitos humanos, mas delineou os contornos fundamentais do moderno reconhecimento desses direitos por meio de estudos doutrinários sobre o direito natural.

 

Destaca-se que o fato de a sociedade greco-romana não ter conhecido os direitos humanos, não impediu que os filósofos, através do desenvolvimento sobre o direito natural, construíssem bases de liberdades fundamentais, porém não conseguiu evoluir até alcançar o ponto de transformar seus postulados em correspondentes princípios de organização política.

 

Numa visão de hoje sobre o passado, verifica-se que os povos que viveram na Idade Antiga greco-romana vivenciaram duas situações relacionadas aos direitos humanos: a) a conhecida distância entre a teoria e a prática na aplicação dos direitos, sejam eles quais forem, que sobrevive ao tempo e permanece como principal obstáculo à concretização dos direitos humanos. Atualmente o tema é devidamente discutido e os direitos humanos são proclamados em importantes textos aderidos pela maioria dos países, porém, no momento de realização muitos são os empecilhos, grande parte deles relacionados à má gestão administrativa e desorganização dos Estados; b) a restrição da liberdade dos povos greco-romanos pelas divindades. Os governantes se declaravam constituídos por deuses que lhes concediam poderes absolutos sobre os súditos. Noções sobre os valores da pessoa humana, como dignidade e toda a amplitude e complexidade que o termo encerra, só conseguiu espaço para seu desenvolvimento com a idealização da junção das divindades num só Deus (monoteísmo) e da unificação das religiões pelo Cristianismo.

 

Pelo menos até o período babilônico antigo, a finalidade da fixação por escrito e proclamação de coleções de leis parece ter sido, pois, corrigir abusos e restabelecer a justiça.

 

As civilizações antigas não chegaram a conhecer direitos humanos como definidos na atualidade, nem mesmo direitos internacionais, exceto as estreitas relações entre nações vizinhas que falassem o mesmo idioma e congregassem divindades comuns. Fora dessas situações especiais e esporádicas, não existia uma regulamentação normativa de aplicação comum entre os povos

 

Em suma, o desenvolvimento da cultura dos direitos humanos teve início por volta dos séculos XI e X a.C., com a instituição da unificação do Reino de Israel, uma forma rudimentar de unidade estatal, mas só veio a acontecer de fato na Idade Média, por volta do século XII, como resultado de diversos fatores, com destaque para a difusão do Cristianismo e a unificação da igreja. De fato, a forte concepção religiosa trazida pelo Cristianismo, com a mensagem de igualdade de todos os seres humanos, independentemente de origem, raça, sexo ou credo, influenciou diretamente a consagração dos direitos humanos enquanto necessários à dignidade humana.

 

Não se pode falar em “direitos humanos” como hoje definidos, na Antiguidade. O máximo que existiu foi o reconhecimento de algum direito individual. No entanto, podem-se identificar já na Mesopotâmia vestígios de uma proto-história pelo menos do reconhecimento da dignidade do indivíduo enquanto ser humano e mesmo sem conhecer a técnica de limitação do poder estatal, alguns povos se preocuparam em privilegiar, de algum modo, o ser humano nas suas instituições sociais, cultura e costumes.

 

O desvendamento do passado contribui para a valorização do direito contemporâneo, porque a evolução foi muito lenta e extremamente árdua, fruto de muito sofrimento, sacrifício e abnegação das civilizações antepassadas.

 

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