Direitos autorais no mundo digital


Porbgomizzolo- Postado em 30 março 2015

Direitos Autorais no mundo digital

Sergio Amadeu da Silveira

O digital tem afetado praticamente todas as atividades de intermediação. A internet abalou as indústrias fonográfica, cinematográfica e editorial, que controlavam a distribuição de bens culturais e a relação entre artistas e seu público. Também atingiu a imprensa, que definia quais informações teriam o status de notícia. De certo modo, enfraqueceu o papel do professor como detentor do conhecimento e o da escola como principal meio de alcançá-lo. Sem dúvida, as diversas organizações que trabalham com a criação, a produção e a distribuição de bens culturais não sofrem os impactos das redes digitais da mesma forma, mas nenhuma delas conseguiu manter sua dinâmica como ocorria no mundo pré-internet. Tão afetada como a indústria da intermediação foi a instituição do copyright e as diferentes concepções de autoria. Na busca do epicentro dessa tormenta emergem distintas abordagens teóricas e reações práticas que vão desde a tentativa de proibição e criminalização do compartilhamento de arquivos na internet até o surgimento das licenças Creative Commons. Os fatos e as tendências comportamentais de amplos segmentos das sociedades ocidentais fortalecem as hipóteses de que o instituto da propriedade é historicamente determinado. O professor de língua inglesa e história da arte George P. Landow (1995, p. 243) é enfático ao afirmar que: las concepciones de autoría guardan una estrecha relación con la forma de tecnología de la información que prevalece en un momento dado, y, cuando ésta cambia o comparte su dominio con otra, también se modifican, para bien y para mal, las interpretaciones culturales de autoría. A naturalização da ideia de autor tal como a conhecemos no mundo industrial é substituída por sua historicização no cenário informacional que Manuel Castells (1999) definiu como constitutiva de uma sociedade em rede. O pensador francês Pierre Lévy escreveu, nos anos 1990, que uma subcultura nascida da expansão das tecnologias de informação, denominada cibercultura, estava espalhando importantes mudanças por meio da internet, tais como a participação ativa dos intérpretes, a criação coletiva, a obra-acontecimento, a obra-processo, a interconexão e a mistura dos limites, características que, segundo ele, convergem em direção ao declínio (mas não ao desaparecimento puro e simples) das duas figuras que caracterizaram, até o momento, a integridade, a substancialidade e a totalização possível das obras: o autor e a gravação (Lévy, 1999, p. 136). De modo similar a McLuhan, que encontrava a explicação para as mudanças comportamentais na criação tecnológica, Lévy encontra no interior das redes digitais, portanto no ciberespaço, um ambiente tecnologicamente hostil ou demasiadamente árido para o velho instituto da autoria. Escreveu claramente que a obra virtual é obra “aberta” por construção. [...] A música tecno colhe seu material na grande reserva de amostra de sons. Se não fosse pelos problemas jurídico-financeiros que tolhem seus produtores, as hipermídias seriam muitas vezes construídas a partir das imagens e textos disponíveis. Programas de computador montam textos “originais” por meio da recombinação de fragmentos de corpos preexistentes (Lévy, 1999, p. 136). Na mesma direção, o pesquisador André Lemos, inspirando-se no ficcionista Willian Gibson, afirmou que “o princípio que rege a cibercultura é a ’re-mixagem’, conjunto de práticas sociais e comunicacionais de recombinação” (Lemos, 2006, p. 52). O ideal da originalidade, engrandecido a partir do Renascimento europeu, tem seu status crescentemente diminuído nas redes informacionais. Os fluxos digitais podem ser apropriados pelos usuários da rede, que abandonam a posição de meros receptores para assumirem a posição de interagentes, tornando a produção cultural mais diversificada. Desse modo, um conjunto expressivo de cientistas sociais e pensadores argumenta que os valores sociais e as técnicas estão mudando novamente as artes e a cultura, bem como suas concepções de criação, produção e distribuição.

A metalinguagem digital 

O diretor do Programa de Estudos Midiáticos do Massachusetts Institute of Technology (MIT), Henry Jenkins, defende que “a con - vergência midiática é mais que uma mera mudança tecnológica. A convergência altera a relação entre as tecnologias existentes, as indústrias, os mercados, os gêneros e o público” (Jenkins, 2008, p. 41). A convergência efetiva se dá no meio digital. É cada vez mais evidente que a produção mundial de bens simbólicos e icônicos está se digitalizando guardando as especificidades de cada cultura e região. Mas, em todo lugar, a digitalização generalizada implica a liberação dos conteúdos culturais de seus suportes físicos. Desse modo, a música se libera do vinil, o texto do papel e a imagem da película, enaltecendo suas características fundamentais de bens in - formacionais, intangíveis e imateriais. A ampla conversão dos bens culturais para o formato digital nos per - mite observar que o digital é uma metalinguagem, pois todos os bens intangíveis podem ser transferidos para o modo binário e por ele comunicados. O digital adquiriu a condição de linguagem de to - das as linguagens ou modos de comunicar uma ou mais ideias. Um texto em alemão, português ou chinês pode ser digitalizado e, ao mesmo tempo, inserido em um vídeo também digital. O digital é a metalinguagem das diversas culturas do nosso planeta e representa um dos elementos essenciais da revolução informacional. A intensa digitalização reforçou a essência imaterial dos bens cultu - rais, que a indústria cultural pensava estar eternamente presa a seus suportes e a suas cadeias de distribuição. No mundo industrial, para produzir e distribuir um disco ou um CD de música era necessário um processo relativamente caro, que ia da reprodução material de uma matriz física ao uso de veículos automotores para finalizar o esquema logístico em milhares de lojas. No mundo informacio - nal, uma música pode ser distribuída pela rede e atingir milhões de usuários em minutos. A música, o texto, o programa de computador, a foto, o game, o desenho, a imagem, o vídeo, ao se digitalizarem, podem ser re - produzidos infinitamente, pois como bens imateriais não sofrem o fenômeno da escassez, muito menos do desgaste do original. Assim, do ponto de vista econômico, o custo marginal para reproduzir um bem imaterial digitalizado é igual a zero. Quando alguém compar - tilha um vídeo ou uma música em uma rede peer-to-peer (P2P), não danifica o original nem limita sua reprodução. Uma cópia, 10 mil có - pias ou milhões de cópias, não faz diferença. Assim, a internet, uma rede de fluxo de dados em formato binário ou digital, além de ser o terreno privilegiado da convergência de sons, imagens e textos digitais, é uma rede de reprodução de bens culturais como nunca antes se viu. A natureza da internet é o compartilhamento de arquivos digitais, ou seja, a cópia exata de algarismos, de bits, de instruções e sequências binárias. O bloqueio ao compartilhamento de arquivos digitais será sempre uma tentativa tecnicamente difícil. Uma vez digitalizado, o arquivo pode ser facilmente distribuído e, quanto mais cresce a largura de banda, capacidade de transferência de bits em uma rede, mais velozes são as trocas de bens informacionais.

Reações do mundo industrial

A indústria de copyright havia erguido bloqueios artificiais ao livre fluxo dos bens culturais em um cenário onde estes estavam presos a seus suportes. Mas os bens culturais, as informações e as ideias sem - pre foram de difícil apropriação privada. Todavia, no cenário analógi - co, a criação era confundida com seu suporte. As redes digitais dis - solveram tais barreiras. Como resposta, as associações das empresas fonográficas e cinematográficas passaram a disseminar a ideia de que o download ou a cópia de arquivos digitais sem pagamento de licenças de copyright seriam um ato comparável a um roubo. Onde estaria o roubo, se o original não foi violado, destruído ou afetado? Exatamente na destruição do modelo de negócio erguido no mundo industrial. A necessidade de pagamento pela audição, pela visualização ou pela leitura de um bem cultural seria subtraída. A alegação da indústria do copyright é que o criador, no cenário digital, sem receber pela propriedade de sua obra, não teria condições de continuar criando. As dificuldades geradas para a cobrança das cópias digitalizadas de um bem cultural levariam à redução e até à destruição da criatividade. A reação organizada pelos grupos hegemônicos da indústria da intermediação à expansão da internet tem ocorrido nos planos legislativo e jurídico, principalmente pelo enrijecimento das leis de copyright. É plenamente observável a ampliação do prazo de cerceamento de um bem cultural, impedindo que este caia em domínio público mesmo que seu criador já tenha morrido há mais de 95 anos, como no caso norteamericano. Tal cerceamento prolongado, portanto, se dá claramente em benefício dos intermediários detentores dos direitos patrimoniais da obra, e não em razão dos autores. Além disso, há uma tentativa generalizada de criminalizar práticas cotidianas de milhões de pessoas que trocam arquivos digitais, principalmente nas redes P2P. O exemplo mais atual é uma lei aprovada na França, em 2008, denominada Lei Sarkozy, que permitirá ao Estado desconectar por alguns meses o cidadão que tenha compartilhado uma música ou um vídeo que violem a licença de propriedade dos mesmos. É muito interessante perceber que, para executar a proposição de Sarkozy, o Estado francês estará subordinando o direito à privacidade ao direito de propriedade intelectual, uma vez que os provedores de acesso à internet terão de vasculhar a troca de pacote de dados de seus usuários para saber se ele está violando o copyright. Sobre tais reações, o jurista norte-americano Lawrence Lessig, criador das licenças Creative Commons e que tem estudado os impactos das legislações de copyright sobre a criatividade, alertou: Copyright pode ser propriedade, mas, como toda propriedade, também é uma forma de regulamentação. É uma regulamentação que beneficia a alguns e causa danos a outros. Quando feita corretamente, beneficia criadores e causa danos a parasitas. Quando feita erroneamente, é uma norma da qual poderosos se utilizam para derrotar a concorrência. [...] A super-regulação barra a criatividade. Asfixia a inovação. Dá aos dinossauros poder de veto sobre o futuro. Desperdiça a extraordinária oportunidade do desenvolvimento de uma criatividade democrática que a tecnologia digital possibilita (Lessig, 2005, p. 200-205). O cálculo dos prejuízos realizados pela indústria do copyright para justificar o enrijecimento da legislação e das ações de criminaliza- ção do compartilhamento é baseado em suposições difíceis de ser comprovadas. A lógica dos intermediários é a seguinte: multiplicase o número de arquivos MP3 compartilhados em redes P2P por um valor médio da música comercializada em um CD. O resultado indica uma cifra bilionária. Todavia, é notório que os jovens que descarregam músicas em seus computadores não ouvem mais do que uma vez a maioria das mesmas. Grande parte dessas músicas nem mesmo é ouvida por completo uma única vez. Se não existisse a possibilidade de download livre e gratuito, dificilmente esses jovens pagariam por elas. O grande compartilhamento de arquivos digitais acaba incentivando a diversidade cultural, abre espaço para grupos e artistas fora do esquema das gravadoras e assegura que artistas se comuniquem diretamente com seus fãs, arejando os negócios da música. Colaborando para tal hipótese, o jornal britânico The Independent divulgou, em novembro de 2009, uma pesquisa que demonstra que as pessoas que fizeram download ilegal de músicas desembolsaram 77 libras esterlinas (R$ 220,00) anuais com produtos da indústria fonográfica, 33 libras esterlinas (R$ 94,00) a mais do que as pessoas que alegam nunca ter adquirido arquivos musicais de modo indevido.1 A história das artes norte-americanas no século XXI poderia ser contada como a história do ressurgimento público da criatividade popular, à medida que as pessoas aproveitam as novas tecnologias para arquivar, comentar, apropriar-se e voltar a pôr em circulação os conteúdos midiáticos. Provavelmente começou com a fotocópia e a editoração eletrônica, talvez começou com a revolução do videocassete, que forneceu ao público acesso a ferramentas para a produção de filmes e possibilitou a cada família ter o seu próprio acervo de filmes. Mas essa revolução criativa alcançou o auge, até agora, com a web. A criatividade é muito mais divertida e significativa se podemos compartilhá-la com os outros (Jenkins, 2008, p. 186). O enrijecimento das legislações de copyright e a expansão da criminalização são contraposições às inúmeras possibilidades de compartilhamento de conhecimento e bens culturais que as tecnologias da informação asseguram. Há fortes indícios de que as tecnologias que apostam no reforço do compartilhamento digital se afirmam mais rapidamente. Elas, por sua vez, reforçam antigas práticas sociais solidárias. Tal observação reforça a hipótese lançada por John Perry Barlow, letrista da banda Grateful Dead, de que em uma economia das ideias a propriedade é menos importante que o relacionamento.

A fonte da criação e o mito da originalidade

Os defensores da aplicação do modelo de direito do autor construído no mundo industrial argumentam que a fonte da inventividade e da criatividade é o direito de propriedade. Outros pesquisadores, como Yochai Benkler (2006), Lawrence Lessig (2005) e Joost Smiers (2006), pensam que tal fonte está na liberdade e na possibilidade de compartilhamento de todos os bens culturais, pois a matéria-prima da cultura é a própria cultura. Sem dúvida, para a construção de uma indústria cultural foi necessário disseminar a ideia de que a fonte da criação estava na genialidade de um indivíduo, e não no terreno comum em que se produz uma cultura. Imprimir un libro requiere una inversión considerable de capital y trabajo y la necesidad de proteger esta inversión contribuye a las nociones de propiedad intelectual. Pero estas nociones no podrían existir si no fuera por el aislamiento físico permanente del texto impreso. Así como la necesidad de financiar la impresión de los libros llevó a una búsqueda de públicos cada vez más amplios, lo que, a su vez, facilitó el triunfo definitivo de la expresión vernácula y de la ortografía normalizada, el carácter permanente del texto aislado hizo posible la idea de que cada autor produce algo único que se puede identificar como propiedad suya (Landow, 1995, p. 122). Para os pesquisadores australianos Peter Drahos e John Braithwaite, a origem do processo criativo estaria na articulação dos commons com a diversidade cultural: A razão mais fundamental para a preeminência dos Estados Unidos como fonte da invenção no século XX não está em suas leis de propriedade intelectual. [...] os E.U. realmente foram das últimas democracias capitalistas a alargar o escopo da propriedade intelectual. O mais importante manancial de inovação norte-americana do século XX foi a predominância de suas universidades. [...] A segunda razão, conectada à anterior, foi sua abertura desde cedo para o multiculturalismo. Isto também foi para os Estados Unidos, no século XX, fonte de grande inova- ção na música, jazz, blues, soul, com a sua posterior influência sobre swing, rock, rap e nas mais emergentes formas musicais contemporâneas. Não obstante o racismo, a abertura à inova- ção multicultural de Nova Iorque e Chicago foi responsável pela difusão e criação de um mercado para o jazz e blues (Drahos; Braithwaite, p. 211-212). Joost Smiers, professor e pesquisador holandês da propriedade intelectual, afirma categoricamente que, no domínio digital, os artistas estão fazendo o que Bach, Shakespeare e milhares de artistas em todas as culturas sempre fizeram: eles inspiram-se em partes do trabalho dos outros para suas novas criações; artifício estritamente proibido em nosso atual sistema de autor (Smiers, 2006, p. 329). O ideal da originalidade é mais um mito e uma construção histórica que foi funcional à indústria do copyright do que uma evidência. A indústria do copyright advoga que poucos seriam os criadores geniais e que estes deveriam ser elevados à condição de celebridades. Essa escassez induzida de autores considerados de grande qualidade artística reforçava o sistema baseado na originalidade e justificava o sistema de intermediação que deveria arrecadar o suficiente para manter a criatividade. Entretanto, é preciso considerar seriamente a hipótese de Smiers (2006, p. 329): “Os artistas não deixariam de criar se o copyright, existente há 200 anos, fosse abolido. A maioria dos artistas, atualmente, não espera ganhar nada com o direito do autor”. Na sociedade em rede, é sempre bom lembrar a afirmação de Willian Gibson, ficcionista criador do termo “ciberespaço”: “The remix is the very nature of the digital".

Referências bibliográficas

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