Direito à saúde como direito de cidadania


Pormarina.cordeiro- Postado em 09 abril 2012

Autores: 
TURRA, Marcelo Dealtry
LOPES, Carlos Côrtes Vieira

INTRODUÇÃO

O DIREITO À SAÚDE

            A saúde é um direito constitucionalmente assegurado a todos, inerente à vida, bem maior do homem, portanto o Estado tem o dever de prover condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

            Segundo César Luiz Pasold [01], "O direito à saúde é um dos direitos fundamentais cujo reconhecimento a nível de norma positivada nem sempre se faz." (sic)

            A Constituição Federal de 1988 foi a primeira constituição brasileira a positivar o direito a saúde como direito fundamental.

            A Organização Mundial de Saúde (OMS) já havia declarado, antes do advento da Constituição Federal de 1988, que o direito à saúde é um direito fundamental do homem. [02]

            O art. 196 de nossa Constituição em vigor preceitua que "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação."

            No Brasil é aplicada a dimensão positiva do Direito fundamental à saúde, ou seja, este direito é um direito subjetivo do cidadão, que poderia exigir da União Federal, dos estados e dos municípios, solidariamente, por meio de uma ação judicial, o fornecimento de um determinado tratamento médico, um exame laboratorial, uma internação hospitalar, uma cirurgia ou mesmo o fornecimento de um medicamento ou qualquer outro meio para proteger a sua saúde.

            Tal direito está previsto no art. 6º da Constituição Federal, de forma genérica, onde estão descritos os direitos sociais do cidadão, estando este artigo inserto no Titulo II do Capítulo II que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais do Homem. Portanto, conclui-se que todo e qualquer direito social é também direito fundamental do homem, devendo aplicar-se de imediato, por aplicação do parágrafo 1º do art. 5º da Carta Magna.

A jurisprudência, não apenas dos tribunais superiores como também do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro tem se manifestado no sentido de que o Direito à saúde é um direito subjetivo do cidadão, in verbis:




            "PACIENTE COM HIV/AIDS - PESSOA DESTITUÍDA DE RECURSOS FINANCEIROS - DIREITO À VIDA E À SAÚDE - FORNECIMENTO GRATUITO DE MEDICAMENTOS - DEVER CONSTITUCIONAL DO PODER PÚBLICO (CF, ARTS. 5º, CAPUT, E 196) - PRECEDENTES (STF) - RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO. O DIREITO À SAÚDE REPRESENTA CONSEQÜÊNCIA CONSTITUCIONAL INDISSOCIÁVEL DO DIREITO À VIDA. - O direito Público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular - e implementar - políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. - O direito à saúde - além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas - representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A INTERPRETAÇÃO DA NORMA PROGRAMÁTICA NÃO PODE TRANSFORMÁ-LA EM PROMESSA CONSTITUCIONAL INCONSEQÜENTE. - O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política - que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro - não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado. DISTRIBUIÇÃO GRATUITA DE MEDICAMENTOS A PESSOAS CARENTES. - O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF. (AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO - RE 271286 AgR / RS - Órgão Julgador: Segunda Turma do STF - Min. CELSO DE MELLO - Julgamento: 12/09/2000)"

            "TRATAMENTO MÉDICO. HIPOSSUFICIÊNCIA DEVER DO ESTADO E MUNICÍPIO. SOLIDARIEDADE. 1- Incumbe ao Estado e ao Município, solidariamente, garantirem tratamento médico e os medicamentos necessários àqueles hipossuficientes. 2- Obrigação constitucional que não cede ante a alegação de que o art 196 da Carta Magna é mera norma programática. Ao contrário, a norma é auto-aplicável. 3-Desinfluente a alegação de falta de recursos orçamentários. Os Apelantes têm o dever ele promover políticas públicas, com verbas orçamentárias próprias, destinadas a garantir a saúde dos cidadãos carentes, que por força desta condição não dispõe de recursos para a aquisição dos medicamentos. 3- Jurisprudência pacificada neste sentido. 4- Multa cominatória que se reduz por considerá-la excessiva. Recurso do Estado improvido e do Município provido, parcialmente, tudo nos termos do voto do Desembargador Relator. (APELAÇÃO CÍVEL - 2003.001.17324 - Órgão Julgador: SÉTIMA CÂMARA CÍVEL - DES. RICARDO RODRIGUES CARDOZO - Julgado em 30/9/2003)"

            "Fornecimento de medicamentos necessários a paciente, carente de recurso, portador de osteoporose. É dever de Estado. imposto constitucionalmente, garantir o direito à saúde a todos os cidadãos. Norma programática, definidora de direito fundamental e dotada de aplicação imediata. São responsáveis solidariamente a União, o Estado e o Município pelo fornecimento de medicamentos. Desprovimento do recurso. (APELAÇÃO CÍVEL - 2003.001.22214 - Órgão Julgador: DÉCIMA QUARTA CÂMARA CÍVEL - DES. MARIA HENRIQUETA LOBO - Julgado em 25/11/2003)"

            Marcos Maselli Gouvêa [03] leciona, baseando-se nos ensinamentos de Canotilho e Ingo Sarlet, que mesmo as normas, a princípio, sendo programáticas, podem ter um núcleo jurídico positivo: "embora não se possa obter do Estado uma prestação determinada, pode-se exigir que ao menos alguma atitude, dentre as eficazes, seja tomada diante de um certo problema de saúde. Existindo apenas uma opção de atuação eficaz, que permita a melhoria das condições de saúde ou a manutenção da vida da pessoa interessada, é esta mesma a conduta que deve ser adotada pelo Poder Público."


AS DEMANDAS JUDICIAIS - LEGITIMIDADE PASSIVA: A RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA UNIÃO FEDERAL, OS ESTADOS, MUNICÍPIOS E O DISTRITO FEDERAL

            Na prática é comum que o Estado não assuma a sua responsabilidade, alegando sempre a ilegitimidade passiva e tentando chamar ao feito outro ente federal, de forma equivocada, alegando ser, por exemplo, a responsabilidade do Município, baseando-se para tanto nos artigos 16, 17 e 18 da Lei 8.080/90, que teria determinado ações específicas para cada ente do Poder Público.

            A divisão de atribuições dada pela Lei 8.080/90, lei esta que constituiu o Sistema Único de Saúde - SUS, não exime os entes federativos de suas responsabilidades garantidas pela Constituição Federal.

            Segundo o §1º do art. 198 da Constituição Federal o SUS será financiado com o orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de outras fontes.

            O art. 196 da Constituição Federal, como já foi visto, deixou claro que é dever do Estado garantir a saúde de todos. O Estado, neste caso, refere-se à todos os entes da Federação: à União Federal, os estados, os municípios e o Distrito Federal.

            O inciso II do art. 23 da Constituição Federal define, outrossim, que é de competência comum da União Federal, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, cuidar da saúde e assistência pública e da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência.

            Não há que se discutir mais nada além da responsabilidade precípua do Estado – quando é este o ente federado acionado judicialmente - em garantir a saúde conforme preceitua o artigo 2° da Lei 8.080/90.

            Segundo preceitua o art 4º da mesma lei, "o conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração Direta e Indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde."

            Neste mesmo sentido o art. 198 da Carta Magna, que prevê o atendimento integral por meio de ações e serviços Públicos de saúde que integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único - o chamado Sistema Único de Saúde.

            Diante disto verificamos que os municípios, estados e a União Federal têm o dever de fornecer a todos os tratamentos de saúde que forem necessários para a manutenção da vida destes, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS).

            A opinião de MARCOS MASELLI GOUVÊA [04], Promotor de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, seria a mais correta, in verbis:




            "Acerca da legitimidade passiva já houve ocasião de se discorrer de modo exaustivo: do ponto de vista da divisão interna de tarefas, União e Estados possuem funções subsidiárias em relação ao Município, notadamente em relação àqueles que já tiveram a Gestão Plena da atividade-fim do SUS reconhecida através de portaria do Ministério da Saúde. Esta divisão, porém, não serve de óbice para que o cidadão possa pleitear solidariamente, de qualquer dos entes, os medicamentos necessários ao seu tratamento: posteriormente, já garantida a entrega do medicamento, poderiam União, Estados e Municípios equacionar os dispêndios havidos com a aquisição dos remédios, compensando-se os gastos havidos pelos dois primeiros com os repasses que seriam encaminhados aos Municípios."

            A solidariedade é um instituto previsto nos artigos 265 e seguintes do Código Civil de 2002, que dispõe sobre a faculdade do credor em escolher qual dos devedores pretende acionar. Diante disto, observamos que cabe ao autor da demanda escolher em face de quem irá propor a ação - União, Estado ou Município - de nada adiantando as alegações de ilegitimidade e o chamamento ao processo, feitas por algum ente federado acionado individualmente.

            Sobre solidariedade passiva Ruy Stoco [05] faz a seguinte observação:




            "Em face da solidariedade passiva, a vítima do dano não está obrigada a acionar este ou aquele credor. É obvia a vantagem que isto representa para ela, que, podendo escolher a quem demandar, naturalmente se dirigirá contra quem ofereça melhores probabilidades de satisfazer o dano."

            O entendimento abaixo transcrito deixa bem clara esta discussão:




            "AÇÃO ORDINÁRIA - FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS - DEVER DO PODER PÚBLICO DECORRENTE DE NORMA CONSTITUCIONAL - UNIÃO, ESTADO E MUNICÍPIO SOLIDARIEDADE. É dever do Estado, imposto constitucionalmente, garantir o direito à saúde a todos os cidadãos. São responsáveis solidariamente pelo fornecimento gratuito de medicamentos essenciais à sobrevivência de paciente a União, o Estado e o Município. A destinação de recursos para tais fins é de responsabilidade da Administração Pública nos âmbitos federal, estadual e municipal. Recurso improvido e sentença confirmada em reexame necessário. (APELAÇÃO CÍVEL - 2003.001.18958 - Órgão Julgador: DÉCIMA SÉTIMA CÂMARA CÍVEL - DES. JOSE GERALDO ANTONIO - Julgado em 17/09/2003)"


A DISPONIBILIZAÇÃO DE TODO E QUALQUER MEDICAMENTO PELO PODER PÚBLICO

            Por diversas vezes nas demandas judiciais propostas o Poder Público – seja União, estado ou município – alega em sua defesa que não há como efetuar o fornecimento de determinados medicamentos necessários ao tratamento do autor da demanda uma vez que a prescrição dos mesmos feriria os critérios adotados pelo Ministério da Saúde, mais especificamente no que diz respeito ao CONSENSO DE TERAPÊUTICA ANTIRETROVIRAL EM ADULTOS (conforme preceitua a Lei 9.313/96 que dispõe sobre o fornecimento gratuito de medicamentos aos portadores de HIV e aos doentes de AIDS, de acordo com uma padronização definida pelo Ministério da Saúde), e em especial a Portaria nº 21 do Secretário de Assistência à Saúde do Ministério da Saúde.

            De maneira alguma teria, o referenciado Consenso de Terapêutica Antiretroviral em Adultos (a padronização definida pela lei 9.313), muito menos a famigerada Portaria o condão de obrigar, impor, ordenar aos profissionais de saúde a prescrição de determinado medicamento em detrimento de outro, mesmo porque existiriam, obviamente, exceções, uma vez que terapêuticas alternativas podem, devem e muitas vezes têm que ser prescritas, tendo em vista ser a única saída, diferentemente das limitações impostas pelo referido Consenso.

            Isto – o limitar a disponibilização de medicamentos ao rol do Consenso - obviamente, faria com que o princípio maior da ISONOMIA fosse ferido, permitindo que somente aqueles que tivessem prescritos medicamentos integrantes do rol do ‘Consenso’ do Ministério da Saúde tivessem acesso gratuito aos mesmos.

            A proteção constitucional ao deficiente constitui direito fundamental de aplicabilidade imediata ao teor do disposto no parágrafo 1º do art. 5º da Constituição Federal, norma topograficamente mal posicionada, porque abrange qualquer direito constitucional como ressaltou o plenário do Supremo Tribunal Federal - STF na Ação Direta de Constitucionalidade de Lei - ADCL nº 1/93. Não se pode extrair de normas infraconstitucionais interpretação que eventualmente vá restringir a eficácia de norma que desfruta de supremacia, nem se poderia interpretar disposto no parágrafo 2º do art. 1º da Lei nº 9.313/96 de forma a pretarifar os medicamentos porque individual e concretamente o paciente deverá ser tratado adequada e proporcionalmente as suas necessidades apuradas pelo médico de acordo com as condições existentes no momento do mesmo tratamento. Cuida-se, assim, de uma interpretação conforme a Constituição que não poderia ignorar a hermenêutica proporcional e razoável que o juiz deve dar as normas.

            Não se poder admitir a limitação do fornecimento dos medicamentos ao rol constante do Consenso, porquanto cada paciente é avaliado individualmente e, conforme o seu estado clínico, é medicado de acordo com essa decisão médica, ou seja, com as condições existentes no momento de seu tratamento. Ademais, se a combinação de medicamentos pela autoridade da chancela médica que a prescreve é o melhor para o tratamento de determinado paciente não pode, o fornecimento desses medicamentos, ficar limitado ao convencionado pelo Ministério da Saúde, a pretexto de não estar comprovada a sua eficácia.

            O mérito se circunscreve, portanto, ao fornecimento de alguns remédios específicos que não constam do tratamento padronizado pelo SUS.

            Neste aspecto deve ser atentado para o fato de que a não submissão ao tratamento padronizado não decorre da vontade do paciente, autor da demanda, mas de sua intolerância ao medicamento padrão; logo, não decorre de sua vontade ou opção daqueles que orientam o tratamento, mas de impossibilidade física de submeter-se, na íntegra, ao tratamento padronizado.

            Não cabe aqui discutir este ou aquele tratamento, o sucesso ou insucesso de técnicas que são ou deixam de ser utilizadas. A discussão é afeta ao campo da medicina e a decisão que se quer obter é jurídica.

            Chegar ao equilíbrio entre a determinação médica, o que é justo, sob a visão exclusivamente ética e individual e o que é juridicamente possível, é uma proeza de equilíbrio, de que resultará uma decisão, sem dúvida, prejudicial a um ou a muitos. Não adianta se falar em insensibilidade, temos uma realidade, com aspectos quase insolúveis.

            Inequívoco que a Administração Pública vive de um orçamento, é este um princípio básico para a administração das finanças públicas. A entrada, chamada arrecadação é, em todas as entidades federativas, deficitária. O orçamento é anual e insuficiente. Por conta disto dá-se preferência ao atendimento geral em detrimento do individual.

            Nunca é demais lembrarmos decisões proferidas pela 1ª e 9ª Câmaras Cíveis deste E. Tribunal de Justiça no Rio de Janeiro, de forma alguma limitando a aquisição dos medicamentos a qualquer listagem, relação, consenso ou coisa que o valha.

            Em brilhante decisão, a E. 9ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (AC. Nº 3.926/98, Des. Relator Marcus Tullius Alves) decidiu "manter íntegra a Douta decisão recorrida", decisão esta que "condenou o poder público a fornecer os medicamentos necessários ao tratamento da moléstia dos autores conforme as vicissitudes da doença."

            Da mesma forma a E. 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro entendeu que, in verbis:




            "Assim, como se vê, o Estado está obrigado pelo artigo antecedente a fornecer à população, de um modo geral, os medicamentos básicos que constem na lista padronizada, mas, tal obrigação não afasta aquela de fornecer outros medicamentos, que não constem daquela lista e que precisem ser adquiridos na rede privada, se necessário for, (...)" (AC. nº 1.158/98, Des. Relatora Valéria Maron)

            A medicina avança cada vez na luta pela descoberta de novos tratamentos para esta doença, uma doença que até a presente data não têm cura. Seria insensato o corte dos medicamentos somente pelo fato dos mesmos não estarem presentes em uma lista padronizada pelo Sistema Único de Saúde, que demora aproximadamente um ano para ser atualizada, enquanto a medicina avança a cada dia.

            É inadmissível limitar o direito dos pacientes de tão grave enfermidade. A doença fatal e inexorável não pode ser tratada apenas com as prescrições estabelecidas pela burocracia estatal. Se os novos medicamentos vierem a ser indicados, eles devem ser entregues de imediato, não sendo admissível esperar os trâmites burocráticos que, como se sabe, são lentos e complicados. Não primam pela eficiência e nem pela lucidez. Aliás, o próprio Poder Público, nos três níveis, assim o proclamam quando pretendem privatizar os seus serviços.

            É evidente que se o autor da demanda judicial vier a pedir medicamentos que não sejam aqueles constantes dos esquemas estatais, estará agindo motivado por prescrições do médico de sua confiança, não sendo de se supor que ele não saiba quais os melhores remédios que seu paciente deve usar.

            Seria absurdo que uma sentença judicial fosse utilizada para prescrever tratamentos médicos, como é pretendido pelo Poder Público.

            O Superior Tribunal de Justiça - STJ já se manifestou acerca do afastamento da delimitação constante na Lei 9.313/96, da seguinte forma:




            "Recurso Especial nº 325.337 – RJ (2001/0067327-4)

            Relator: Ministro José Delgado

            Recorrente: Estado do Rio de Janeiro

            Procurador: Waldemar Deccache e outros

            Recorrido: Claudilene Coutinho de Macedo e outros

            Advogado: Patrícia Diez Rios

            EMENTA

            ADMINISTRATIVO. MEDICAMENTOS PARA TRATAMENTO DA AIDS. FORNECIMENTO PELO ESTADO. OBRIGATORIEDADE. AFASTAMENTO DA DELIMITAÇÃO CONSTANTE NA LEI Nº 9.313/96. DEVER CONSTITUCIONAL. PRECEDENTES.

            1. Recurso Especial interposto contra v. Acórdão que entendeu ser obrigatoriedade do Estado o fornecimento de medicamentos para portadores do vírus HIV.

            2. No tocante à responsabilidade estatal no fornecimento gratuito de medicamentos no combate à AIDS, é conjunta e solidária com a da União e do Município. Como a Lei nº 9.313/96 atribui à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o dever de fornecer medicamentos de forma gratuita para o tratamento de tal doença, é possível a imediata imposição para tal fornecimento, em vista da urgência e conseqüências acarretadas pela doença.

            3. É dever constitucional da União, do Estado, do Distrito Federal e dos Municípios o fornecimento gratuito e imediato de medicamentos para portadores do vírus HIV e para tratamento da AIDS.

            4. Pela peculiaridade de cada caso e em face da sua urgência, há que se afastar a delimitação no fornecimento de medicamentos constante na Lei nº 9.313/96.

            5. A decisão que ordena que a Administração Pública forneça aos doentes os remédios ao combate da doença que sejam indicados por prescrição médica, não padece de ilegalidade.

            6. Prejuízos iriam ter os recorridos se não lhes for procedente a ação em tela, haja vista que estarão sendo usurpados no direito constitucional à saúde, com a cumplicidade do Poder Judiciário. A busca pela entrega da prestação jurisdicional deve ser prestigiada pelo magistrado, de modo que o cidadão tenha, cada vez mais facilitada, com a contribuição do Poder Judiciário, a sua atuação em sociedade, quer nas relações jurídicas de direito privado, quer nas de direito público.

            7. Precedentes da 1ª Turma desta Corte Superior.

            8. Recurso improvido."

OS EFEITOS COLATERAIS DE DETERMINADOS MENDICAMENTOS E A NECESSIDADE DE TRATAMENTO MÉDICO E/OU INTERVENÇÃO CIRÚRGICA

            Com o advento de novas drogas para o controle da progressão do HIV surgiram problemas no que diz respeito aos efeitos colaterais das mesmas, em que pese a real qualidade de vida que passou a ter o paciente de AIDS.

            Caso do medicamento CRIXIVAN, anti-retroviral indispensável para o controle do HIV que apresenta, em grande número de pacientes, sério efeito colateral, que se caracteriza por grave degeneração muscular.

            Os efeitos desta degeneração podem ser percebidos no corpo e na face dos pacientes, que sofrem sérias deformações, desfigurando sua aparência.

            Muitas das vezes estes pacientes ganham a vida exercendo profissões que levam em conta a aparência física, uma vez que o contato pessoal com pessoas pode se dar diariamente. Em determinadas outras situações atividades sociais tornam-se impraticáveis.

            Diante disto cirurgias plásticas restauradoras se fazem necessárias esbarrando tal necessidade na negativa de planos e seguros saúde no que diz respeito a sua cobertura.

            Entendem eles que tais cirurgias de maneira alguma se classificariam como restauradores e/ou funcionais e sim embelezadores e estéticas, caso em que não poderiam ser garantidas.

            Ocorre que estes efeitos colaterais advindos da medicação dos pacientes com AIDS causam uma hipotrofia da musculatura com flacidez destas estruturas. Estes efeitos colaterais acarretam, muitas das vezes, a desfiguração do paciente, tanto corporal como facial, lhe causando doença social e psicológica. Tal patologia resulta, outras vezes, em tumorações extensas em região posterior do torso, na região anterior do pescoço e no abdomen, o que pode trazer incômodo funcional de postura, decúbito e sobrecarga na coluna. Para tanto é indicado tratamento cirúrgico reparador.

É uma patologia nova na ciência médica uma vez que tais medicações e seus efeitos colaterais existem há 07 anos na terapêutica médica mundial. As deformidades sofridas pelo paciente têm seus tratamentos em caráter REPARADOR e sob forma alguma cabe uma conotação estética para o caso.

            Vale lembrar que os custos desta cirurgia restauradora são altíssimos.

            Acionadas, as empresas de medicina de grupo e seguradoras de saúde foram instadas a efetuar a cobertura destas intervenções cirúrgicas.

            Nesse sentido, acórdão unânime proferido pela Quinta Câmara Cível de Porto Alegre, no qual a Exma. Desembargadora Ana Maria Nedel Scalzilli foi a Relatora:

            "...há de se atentar ao teor da Cláusula 28.0 do contrato de cobertura de custos de serviços médicos e hospitalares que assegura, ao beneficiário, o direito à cirurgia plástica restauradora. Por evidente, leonina a cláusula 28.1 que prevê este procedimento, apenas, para restauração de funções em órgãos, membros e regiões que tenham sido afetados em decorrência de acidentes pessoais ocorridos na vigência do pacto. Salientado pelo julgador, cuidando-se de intervenção vital para a segurada, não se há de limitar seu direito ao caráter genérico da denominação - que assim é inserido no contrato a permitir estas infindáveis discussões judiciais - quando comprovadamente não houve intenção de correção estética.

            Feitas estas considerações, nego provimento à apelação.

            É o voto."

            (Apelação cível; n° 70003549201, Apelante GOLDEN CROSS SEGURADORA S/A, 21 de fevereiro de 2002)

            Relevante trazer a colação decisão que deferiu antecipação de tutela em semelhante situação (proc. 2002.001.122133-4), decisão esta da lavra do E. Juíz Titular da 15ª Vara Cível do Rio de Janeiro, Renato Ricardo Barbosa, nos seguintes termos:

            "Trata-se de ação ordinária com tutela antecipada em que o autor alega, em síntese, que celebrou contrato com a ré de plano de saúde, sempre cumpriu com as suas obrigações e que, em decorrência do uso de medicamento, indispensável para o controle de sua doença, apresentou sérios efeitos colaterais, com a degeneração muscular, causando-lhe deformidade no rosto, barriga, e braços, o que o impossibilita de exercer sua função, já que trabalha como agente de viagens.

            Ocorre que a ré se nega a efetuar as cirurgias reparadoras, previstas em seu contrato, por entender que o autor não necessita de cirurgia reparadora. Requer a antecipação da tutela para que a ré custeie as cirurgias necessárias ao tratamento da condição apresentada pelo requerente.

            Admite o Código de Processo Civil a antecipação da tutela pretendida quando, havendo prova inequívoca, existe convencimento da verossimilhança da alegação e haja fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação, ou fique caracterizado o abuso de direito de defesa ou manifesto propósito protelatório do réu, nos termos do art. 273 do Código de Processo Civil.

            Dentre as várias repercussões da dupla natureza jurídica da antecipação da tutela do art. 273 do Código de Processo Civil a mais relevante, sob o ponto de vista procedimental é, indubitavelmente, a que diz respeito ao momento da sua outorga. Quando ao pedido de antecipação de tutela tem fundamento no periculum in mora admite-se o seu deferimento liminar. A liminar pode ser concedida com ou sem a oitiva da parte contrária, devendo proceder da segunda maneira quando a citação do réu possa tornar ineficaz a medida ou quando a urgência indicar necessidade de concessão imediata da tutela, o que não constitui ofensa, mas sim limitação imanente do contraditório, que fica deferido para momento posterior do procedimento. Neste sentido MARINONI afirma que "o próprio artigo não poderia vedar a concessão da tutela antes da ouvida do réu, pois, nenhuma norma tem o condão de controlar as situações de perigo. A tutela de urgência, sem dúvida, não pode ser eliminada onde é necessária para evitar um prejuízo irreparável." (in Antecipação de Tutela na Reforma do Processo Civil, p. 60).

            Por outro turno, ocorrendo receio de dano pela demora a antecipação se impõe.

            OVÍDIO BATISTA leciona que "sempre que por uma modificação no mundo exterior produzida por força do homem ou por fato natural, que se cria uma situação perigosa, que ameaça fazer periclitar um determinado bem jurídico criando um sério risco de dano, justifica-se a tutela cautelar".

            A apreciação do pressuposto do periculum in mora, segundo a célebre lição de LIEBMAN, é feita através de um juízo de probabilidade do dano ao provável direito a ser pedido.

            A lesão há de ser provável, não bastando a mera possibilidade ou eventualidade. Deve haver plausibilidade do perigo. Do contrário a medida jamais poderia ser outorgada, ante uma cognição sumária e superficial e muitas vezes unilateral como nos casos das liminares sem audiência da parte contrária.

            A verossimilhança é avaliada através da presença do fumus boni iures, que se evidencia com a demonstração apriorística, pelos fatos narrados na exordial, da evidência do direito alicerçando a necessidade da medida emergencial.

            Claro está na hipótese dos autos que o indeferimento da medida pode resultar com grande probabilidade em gravíssima lesão ou dano do autor.

            Sobre o tema BASÍLIO DE OLIVEIRA, in Medidas Cautelares em Direito de Família ensina que "A APARÊNCIA DO BOM DIREITO TEM SIDO CONDIÇÃO IMPOSTA PELA DOUTRINA ATUAL PARA RECONHECER O DIREITO DE CAUTELA, E TAL ORIENTAÇÃO INSPIROU-SE NA DOUTRINA DO DIREITO OCIDENTAL EUROPEU QUE PREGA A AUTONOMIA DA TUTELA CAUTELAR, COMO TUTELA AO PROCESSO E NÃO AO DIREITO OBJETO DA AÇÃO PRINCIPAL, CONDICIONANDO AQUELA À PROBABILIDADE DO AMPARO LEGAL APRIORÍSTICO DO DIREITO MATERIAL, SEGUNDO A SEMPRE LEMBRADA LIÇÃO DE CARNELUTTI."

            Pelo exposto DEFIRO A ANTECIPAÇÃO DA TUTELA PRETENDIDA PARA DETERMINAR que o réu custeie as cirurgias necessárias ao tratamento da condição apresentada pelo requerente, incontinenti, bem assim todo e qualquer procedimento médico-hospitalar adicional que porventura venha a necessitar com o intuito de tratar da sua condição.

            Cite-se e intime-se a ré da decisão, com a advertência de que o seu descumprimento se traduz em crime de desobediência, capitulado no art. 330 do Código Penal.

            Defiro a gratuidade de justiça ao autor.

            Rio de Janeiro, 16 de dezembro de 2002."

CONCLUSÃO

            A Síndrome da Imunodeficiência Adquirida - SIDA/AIDS surge no princípio da década de 80 trazendo em seu bojo uma terrível constatação: o que parecia apenas mais uma doença dentre tantas que atingiam e atingem os seres humanos torna-se o freio da chamada Revolução Sexual, modificando conceitos e valores, aflorando preconceitos, colocando a mostra o retrocesso, até então nunca admitido, na aplicação das conquistas relacionadas com os Direitos e Garantias Fundamentais explicitadas na Constituição Federal de 1988.

            Verdadeiramente não se pode esquecer que instrumentos jurídicos existem para a garantia destes básicos direitos. Caberá a nós, não meros espectadores, mas participantes diretos, torná-los viáveis e efetivos, com sua utilização freqüente e vulgar.

            LEONARDO GRECO, professor de Direito, coordenador do curso de Doutorado da Universidade Gama Filho e advogado no Rio de Janeiro afirmou que antigamente, o dever da Justiça era o de reparar a lesão do Direito, pouco importando o tempo que isto demorasse. Hoje, a consciência jurídica dos cidadãos exige que esta reparação seja imediata. [06]

            Por outro lado, não poderemos menosprezar a natural resistência que a prática dos juízes, serventuários e advogados oferecerá a mudanças profundas.

            Este será um dos obstáculos, dentre muitos - diga-se logo - que aqueles que escolheram para si a defesa dos direitos dos descobertos portadores do HIV e doentes de AIDS encontrarão pela frente.

            Rio de Janeiro, junho de 2004.

NOTAS

            01 PASOLD, Cesar Luiz. Direito à saúde. Seqüência: Estudos Jurídicos e Políticos, n.15. Florianópolis, dez. 1987. p. 51-5

            02 Resolução WHA 23-41

            03 GOUVÊA, Marcos Maselli, "O direito ao fornecimento estatal de medicamentos", acessível em 22/02/2004 em http://www.nagib.net/texto/varied_16.doc

            04 GOUVÊA, Marcos Maselli, "O direito ao fornecimento estatal de medicamentos", acessível em 22/02/2004 em http://www.nagib.net/texto/varied_16.doc

            05 STOCO, Ruy. Responsabilidade Civil e sua interpretação jurisprudencial. 4ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999.

            06 GRECO, Leonardo. "Uma Pauta para a Reforma do Processo de Execução", Revista ‘Legislativo ADCOAS’, junho/95, p. 537/42.