Da normatização do aborto e suas externalidades


Pormarianajones- Postado em 23 maio 2019

Autores: 
Bruno Martins da Costa Silva

DIREITO & JUSTIÇA A revista da Escola de Direito da PUCRS e-ISSN: 1984-7718 DIREITO DE FAMÍLIA | BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 300

Da normatização do aborto e suas externalidades

Rulling about abortion and its externalities

Bruno Martins da Costa Silva 

DOI: 10.15448/1984-7718.2016.2.32833

RESUMO: No Brasil o debate acadêmico sobre os aspectos legais do aborto se dá por uma busca da fixação do “início da vida”. Tenta-se estabelecer quando a vida passa a ser uma vida humana e as implicações legais dessa transição. Mas afinal, o que é a vida humana? Uma condição biológica notada até mesmo nos embriões? A capacidade de sentir dor? Certo grau de atividade neurológica? Certo grau de consciência? É a capacidade de sobreviver fora do útero? Trata-se de uma perspectiva problemática e contraproducente, uma vez que visa encontrar resposta para um dilema existencial da própria humanidade. A proposta neste artigo é evitar tal controvérsia e se ater nas consequências práticas de uma legislação do tema do aborto.

Palavras-chave: Aborto; Desigualdade; Eugenia; Direitos Fundamentais.

ABSTRACT: ABSTRACT: In Brazil the legal aspects of abortion are commonly studied from a “beginning of life” perspective. Efforts are driven to establish when life becomes a human life and the legal implications of this transition. The problem with this unfruitful perspective is that it aims to find an answer to a deeply controversial existential question: what is life? Is it a biological condition noted even in embryos? Is it the capacity to feel pain? Is it some degree of neurologic activity? Is it some degree of consciousness? Is it the capacity to survive outside the uterus? The proposition here is to avoid these controversial questions and take a pragmatic direction by focusing on the consequences of pro-life and pro-choice norms for society.

Keywords: Abortion; Inequalities; Eugenics; Fundamental Rights.

INTRODUÇÃO

Propõe-se um exercício reflexivo: para discutir os problemas de uma relação afetiva é condição sine qua non definir o conceito de amor primeiro? Lançado o desafio de conceituar “amor”, haveria esperança de se solucionar com alguma brevidade os problemas que motivam a discussão?  Doutorando em Filosofia e Mestre em Direito pela PUCRS. Advogado. Contato: bruno.costa@gmail.com. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 301 Por analogia: para discutir os problemas decorrentes da normatização do aborto, é condição sine qua non definir o conceito de (início da) vida (humana) primeiro? Lançado o desafio de conceituar “vida”, haveria esperança de se solucionar com alguma brevidade os problemas que motivam a discussão? Talvez seja pouco razoável exigir o enfrentamento de temas de tão difícil acordo semântico para somente após sua resolução enfrentar problemas concretos, e muitas vezes urgentes, entretanto, o (pouco) debate sobre os aspectos legais do aborto no Brasil parece estar centrado nesta questão. O intento deste artigo é justamente ir contra essa tendência, primeiramente mostrando as dificuldades práticas de se fixar um marco inicial da vida humana, para então propor uma análise de consequências práticas da normatização do aborto - seja ela pró-vida ou pró-escolha.1

1 A PERGUNTA SEM RESPOSTA

Afinal, quando a vida se torna uma vida humana? No momento da concepção? No momento de sua individualização embrionária?2 No momento em que o coração começa a bater? No momento em que a atividade cerebral humana típica inicia?3 No momento em que o feto começa a sentir dor?4 No momento em que o feto está apto a sobreviver fora do útero? No momento do nascimento? Talvez a primeira razão para se evitar buscar a verdade sobre o início da vida seja a absoluta falta de consenso sobre o tema. Nem mesmo na história cristã se 1 Os adeptos de movimentos pró-escolha (pro-choice) criticam o nome pró-vida afirmando que ele passa a ideia da oposição ser contrária à vida, o que seria absurdo. Assim, preferem se referir a esse grupo como anti-escolha (anti-choice). Por sua vez, os adeptos de movimentos pró-vida (prolife) criticam o nome pró-escolha afirmando que ele ignora a vulnerabilidade do feto, ao qual não é concedida a possibilidade de escolha. Assim, preferem se referir a esse grupo em outros termos, como pró-aborto (pro-abortion). 2 Trata-se do fim da etapa onde a segmentação ainda era possível, momento a partir do qual o embrião está finalmente individualizado, não sendo mais possível ele se dividir em mais pessoas. 3 JONES, Gareth. The problematic symmetry between brain birth and brain death. In: Journal of Medical Ethics, vol. 24, Issue 2. Londres: BMJ, 1998, p237-42: “Different writers have placed brain birth at numerous points: 25-40 days, eight weeks, 22-24 weeks, and 32-36 weeks gestation”. 4 MANNINEN, Bertha A. Rethinking Roe v. Wade: Defending the Abortion Right in the Face of Contemporary Opposition. In: The American Journal of Bioethics, vol 10, Issue 12. Abingdon, UK: Routledge, 2010, p33: “On April 13, 2010, Nebraska lawmakers enacted one of the boldest challenges to Roe v. Wade since 1973. The law, entitled the “Pain Capable Unborn Child Protection Act,” bans abortion after 20 weeks gestational age on the grounds that, after this point in pregnancy, a fetus is capable of feeling pain […] Many pain specialists, however, argue that fetal sentience is not possible until mid or late second trimester”. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 302 encontra consenso.5 A posição atual da Igreja Católica - e da vasta maioria das igrejas protestantes - de que a vida começa na concepção só foi pacificada em 1869 por Pio IX.6 Na Idade Média, alguns cristãos defendiam uma lógica próxima da lógica de estoicos7 e judeus8 , acreditando na pneuma, ou seja, que a vida começa quando o ar enche os pulmões pela primeira vez.9 Santo Agostinho e São Tomás de Aquino acreditavam que o feto ganhava alma em torno do quadragésimo dia após a concepção.10 Faz-se importante aclarar que se trata aqui apenas da percepção de um marco do início da vida humana pela Igreja Católica, cujos recortes apresentados são amplamente admitidos entre acadêmicos de diversas áreas. A hipótese de tais entendimentos abrirem espaço para uma tolerância ao aborto é algo bastante improvável,11 São Tomás de Aquino, por exemplo, entendia que a contracepção era um crime contra a humanidade,12 logo, não parece correto afirmar que a sua concepção sobre o início da vida autorizaria o aborto. 5 LOOMIS, William F. Life As It Is: biology for the public sphere. Berkeley, CA-USA: University of California Press, 2008, p89: “For most of its history, the Catholic Church had no objection to abortion before ‘quickening’ - that is, when, at about twenty weeks of gestation, the mother could feel the child move within her. Until recently, for the first few months a woman had little idea if she was pregnant or not. Only when she was surprised by small butterfly flutterings in her belly would she conclude that the recent missed periods might indicate that she was with child. If the pregnancy was unwanted, such as might be the case if her husband had been away for a few months, women resorted to herbal potions and drugs much like the morning-after pill RU486, which induces miscarriages”. 6 LOOMIS. 2008, p89: “In 1869 the Catholic Church came out against all abortions at the request of Napoleon III of France, where the population was declining. Pope Pious IX declared that life begins at conception and had to be protected thereafter”. 7 BRENNAN, Tad. The Stoic Life: Emotions, Duties & Fate. Nova Iorque, NY-USA: Oxford University Press, 2005, p155: “A human fetus also begins with a plant-like ‘nature’ in the womb, acquires an animal soul at birth, and then at the age of fourteen has its nature transformed a second time into reason, or a rational soul”. 8 LOOMIS. 2008, p89: “In the Jewish tradition the fetus is part of the mother until thirty days after birth, and she can do as she wishes; however, there are passages in the scriptures that consider the first breath as the start of life. In either case, abortion is a private matter for the mother”. 9 Genesis 2:7 “E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente”. 10 WALTERS, Leroy. An Intercultural Perspective on Human Embryonic Stem Cell Research. In: ØSTNOR, Lars (org.). Stem Cells, Human Embryos and Ethics: Interdisciplinary Perspectives. Springer, 2008, p106. 11 KENNY, Anthony. The Beginning of Individual Human Life. In: ØSTNOR, Lars (org.). Stem Cells, Human Embryos and Ethics: Interdisciplinary Perspectives. Springer, 2008, p170: “There was no agreement whether early abortion was homicide. However those who deny that it was still regarded it as wrong because it was the destruction of a potential, if not an actual, human individual”. 12 KENNY, p168: “Aquinas, in the Summa contra gentiles, in a chapter on ‘the disordered emission of COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 303 O intento aqui é meramente mostrar a ausência de consenso sobre o marco de início da vida humana, um consenso que não se deu historicamente, tampouco se dá hoje na comunidade global. A normatização do aborto difere tanto entre os países que sequer é possível apontar uma tendência ao consenso. Nos Estados Unidos o aborto por escolha da mulher foi descriminalizado através de decisão da Suprema Corte. No caso Roe v. Wade13 o aborto foi considerado, com base na constituição norte-americana, um direito fundamental relacionado com a autonomia da mulher e o livre exercício da medicina, tornando inconstitucionais todas as disposições em contrário. A decisão por maioria (7 a 2) relatada pelo Justice Blackmun foi fundamentada no direito à privacidade - o qual está contido na nona e na décimaquarta emendas -, rejeitando o argumento do “direito à vida” por parte embrião/feto. O direito da mulher de interromper a sua gravidez só seria limitado por uma preponderância maior de dois outros legítimos interesses estatais: a integridade física da própria mulher e o potencial de vida humana. Por essa razão, foi estabelecido um sistema de trimestres. No primeiro trimestre o direito fundamental ao aborto seria absoluto e a decisão caberia inteiramente à mulher e seu médico. No segundo semestre o Estado deveria regular o aborto respeitando e privilegiando a integridade física da mulher. No terceiro semestre o Estado deveria regular o aborto respeitando e privilegiando a viabilidade fetal, exceto quando esta estivesse contraposta à integridade física da mulher. Por viabilidade fetal se deve entender o potencial de sobrevivência “natural” de um feto fora do útero. Além do potencial variar entre fetos em condições análogas de tempo e amparo, ele também apresenta variações por região e classe social, impossibilitando estabelecer um marco temporal universal de viabilidade fetal. Não obstante, há debate sobre o nível de assistência médica que seria aceitável para se afirmar que a viabilidade fetal é concreta, “natural”. semen’ treats both masturbation and contraception as a crime against humanity, second only to homicide”. 13 Case Roe v. Wade, 410 U.S. 113 (1973), que é considerado o grande marco na normatização do aborto, ainda que julgado paralelamente com outro case sobre o tema: Doe v. Balton 410 U.S. 179 (1973). COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 304 Logo, não é de se estranhar que o próprio Justice Blackmun reconheceu que o sistema de trimestres era arbitrário, em especial na transição do segundo para o terceiro trimestre - baseada na viabilidade fetal e, portanto, muito mais imprecisa do que a transição do primeiro para o segundo, a qual se baseia na integridade física da mãe. Faz-se importante apontar que em Roe v. Wade a viabilidade fetal importa em direito de proteção pelo Estado, mas não em titularidade de direitos pelo feto, o qual não seria “uma pessoa como no sentido da décima-quarta emenda”. A construção normativa decorrente de Roe v. Wade foi sofrendo pequenas alterações com o tempo. Em Webster v. Reproductive Health Services14, de 1989, a possibilidade dos estados legislarem proibindo o uso de aparato público para o aborto foi admitida. Em Planned Parenthood v. Casey15, de 1992, foi admitida a possibilidade dos estados legislarem normas que garantam uma decisão informada por parte da mulher; bem como foi esvaziada a vinculação do aborto ao livre exercício da medicina, passando a ser centrado puramente na escolha da mulher; e reforçada a análise de viabilidade fetal no lugar do sistema de trimestres. Mas descabe afirmar que as normas que regulam o aborto nos Estados Unidos tenham acabado por definir a viabilidade fetal como marco legal sobre o início da vida. Ainda que o aborto induzido resulte na morte não natural do feto, o chamado aborto por nascimento parcial (partial-birth abortion) é proibido nos Estados Unidos. O procedimento consiste na partição do feto pelo médico para facilitar a extração, e na prática, a sua proibição não salva nenhuma vida, apenas inibe um procedimento que é mais confortável para a mulher. Ainda assim, no Partial-Birth Abortion Ban Act de 2003 o procedimento é praticamente tratado como infanticídio.16 Ou seja: mesmo inviável e fadado a morrer, o feto não pode ser vítima de um procedimento visto como cruel, que implique diretamente na sua morte, algo contraditório quando se considera que o ordenamento norte-americano atribui proteção apenas ao feto viável. 14 Case Webster v. Reproductive Health Services, 492 U.S. 490 (1989). 15 Case Planned Parenthood v. Casey, 505 U.S. 833 (1992). 16 U.S. Code, Title 18, Part I, Chapter 74, § 1531: “Any physician who, in or affecting interstate or foreign commerce, knowingly performs a partial-birth abortion and thereby kills a human fetus shall be fined under this title or imprisoned not more than 2 years, or both”. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 305 Ainda que o número de abortos realizados após à vigésima semana nos Estados Unidos corresponda a pouco mais de 01% do número total de abortos, em números brutos são quase 20 mil abortos de fetos viáveis ou de viabilidade discutível. Ou seja: mais óbitos por aborto tardio do que por doenças como HIV, as quais mobilizam os agentes públicos de saúde, trazendo algumas contradições legais, bem como dificuldades de justificação pública da liberação do aborto por escolha tardio.17 Na Holanda a construção normativa do aborto se deu pelo legislativo, no ano de 1984, e o critério é a permissão da escolha da mulher, desde que anterior à viabilidade - que lá é estabelecida na 24ª semana. Com isso se poderia concluir que a Holanda tem como marco legal do início da vida a viabilidade? Talvez a partir de 2010, quando se estabeleceu a obrigatoriedade do amparo médico ao prematuro que nasça a partir da 24ª semana. Antes, cabia aos hospitais decidir sobre o amparar, ou não, o prematuro, e a cultura na Holanda era de não amparo, visando evitar paralisia cerebral decorrente de falhas na ventilação induzida dos pulmões. Na Grã-Bretanha o Infant Life (preservation) Act de 1929 criminaliza a deliberada destruição de uma criança apta para nascer viva - viabilidade fetal. Pelo estatuto, todas as crianças no útero acima de 28 semanas seriam presumidas aptas. Em coerência ao estatuto de 1929, o Abortion Act de 1967 estabeleceu que o aborto por escolha da mulher somente poderia ser feito até a 28ª semana de gestação, alcançando assim a primeira quinzena do último trimestre. Em 1990 o aborto por escolha foi restringido à 24ª semana através Human Fertilisation and Embryology Act. Na Noruega a mulher pode abortar mediante aprovação de pedido a uma comissão avaliadora do governo desde 1964. Em 1978 o aborto por escolha foi instituído até a 12ª semana, sendo mantido até a 18ª semana o aborto mediante avaliação. Na Suécia o Estatuto do Aborto de 1974 estabeleceu o aborto por escolha da mulher até a 18ª semana, sendo expressamente proibido o aborto em caso de viabilidade fetal. 17 COLLET, Teresa S. Previability Abortion and the Pain of the Unborn. In: Washington & Lee University Law Review, vol. 71, issue 2. Lexington, VA-USA: Washington & Lee University, 2014, p1229. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 306 Na Rússia o aborto por escolha da mulher atualmente está autorizado somente até a 12ª semana. A União Soviética fora o primeiro país a legalizar o aborto por escolha da mulher, ainda em 1920, e permitindo intervenções em fases avançadas da gravidez. De lá para cá a legislação sofreu avanços e retrações, sendo que as últimas se dão em razão de políticas públicas de expansão populacional propostas entre 1936 e 1955 e na última década. Na França, a loi Veil, como é chamada em homenagem a então ministra da saúde e idealizadora do projeto Simone Veil, alterou o Código de Saúde Pública incluindo a permissão do aborto por livre escolha da mulher até a 10ª semana – desde 2001 o prazo foi estendido até a 12ª semana. O aborto é realizado pelo sistema público de saúde francês desde 1983, e entre os catorze e os dezoito anos os menores não precisam de autorização parental para abortar. Na Itália, desde 1978 o aborto por escolha é permitido durante o primeiro trimestre. Realizado através do sistema de saúde pública, o aborto pode ser requerido na Justiça por menores de dezoito anos quando o tutor legal se recusar a autorizar a terminação da gravidez. Na Espanha o aborto por escolha só é estabelecido em 2010, através da lei orgânica 02 de 2010, que autoriza o procedimento até a 14ª semana. Antes disso, as únicas possibilidades de aborto eram a gravidez decorrente do estupro (até a 12ª semana) e má-formação severa (22ª semana), previstas na lei orgânica 09 de 1985. O risco da mãe possibilita o aborto a qualquer tempo, como geralmente o é em todos os países. A escolha da 14ª semana guarda uma curiosidade, pois é justamente o ponto no qual o aborto começa a exigir intervenção cirúrgica.18 Em Portugal a lei nº. 16 de 2007 autoriza o procedimento até a 10ª semana de gravidez, entretanto se admite que o médico se recuse a realizar o procedimento 18 BOYD, Kevin L. The inevitable collision of sex-determination by cell-free fetal DNA in noninvasive prenatal genetic diagnosis and the continual statewide expansion of abortion regulation based on the sex of the child. In: UMKC Law Review, volume 81, issue 2. Kansas City, MO-USA: University of Missouri-Kansas City, 2012, p430: “On the other hand, surgical abortion - the method that must be used after fourteen weeks of gestation - is commonly performed by using the Dilation and Evacuation ("D&E") method. Surgical abortion requires multiple insertions of cervix dilation devices over a period of twenty-four to forty-eight hours allowing a tube to be inserted into the uterus to suck the fetus out and follow up with curettage in order to scrape the remaining contents. Unlike medical abortion, which may be performed at home, the intrusive nature of D&E requires it to be performed in a hospital setting. Medical abortion is a more physically tolerable option for women”. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 307 em razão de objeção de consciência - no caso a ideia de caber ao indivíduo ter para si o momento inicial da vida e decidir com base no seu próprio marco -, o que dificulta o acesso à assistência médica pelas mulheres que decidem abortar. Na Alemanha o aborto é permitido até o fim do primeiro trimestre. Na antiga Alemanha Oriental a prática foi legalizada em 1972. Na Alemanha Ocidental uma lei equivalente foi promulgada em 1974, mas foi julgada inconstitucional Corte Constitucional em 1975. Em 1976 uma nova lei possibilitando o aborto no primeiro trimestre foi aprovada, a qual previa um acompanhamento rígido e a necessidade de aprovação por dois médicos. Quando da unificação uma nova lei foi feita pelo parlamento alemão, seguindo o modelo mais criterioso da finda Alemanha Ocidental. Questionada pelo chanceler Helmut Kohl, a nova lei foi mantida pela Corte Constitucional, que reafirmou que a constituição alemã protege o feto desde a concepção, mas entendeu que o parlamento em sua discricionariedade pode decidir não punir o aborto no primeiro trimestre - desde que a mulher passasse por um programa de aconselhamento que visa desencorajar a terminação da gravidez. Ou seja: a Alemanha reconhece a proteção do feto desde a fecundação,19 mas não apenas admite o aborto no primeiro trimestre, como o viabiliza através do sistema de saúde pública. No Brasil o aborto é crime. O país adota formalmente uma teoria conceptualista de vida, conceito presente tanto na legislação pátria, quanto no Pacto de San José da Costa Rica, do qual é signatário. As exceções, sempre mediante pedido judicial, são: o risco de óbito por parte da gestante; as gestações oriundas de crimes sexuais; e caso o feto seja anencefálico. Nesses casos o aborto pode ser feito gratuitamente através do Sistema Único de Saúde. Apesar de o sistema brasileiro ser restritivo, ele segue os padrões da América do Sul, onde a maioria dos países afasta a hipótese de aborto por má-formação, e o Chile, por exemplo, proíbe todas as formas de aborto, exceto para a preservação da vida da mãe. 19 KLOEPFER, Michael. Vida e dignidade da pessoa humana. In: SARLET. Ingo W. (org.). Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, 2ª edição, revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p153-4. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 308 Assim como na Alemanha, o Brasil tem contradições em relação ao seu modelo conceptualista. A decisão sobre o feto anencefálico, por sua construção lógica, sairia do conceptualismo para um modelo de percepção de atividade cerebral. Consequentemente, sua fundamentação poderá abrir espaço para deslocar o marco legal de início da vida da concepção para o final do primeiro trimestre, onde a atividade cerebral que caracterizaria um ser humano começa. No mesmo sentido, o Brasil autoriza métodos contraceptivos que atuam para impedir a nidação, ou seja, atuam sobre o embrião já concebido. Percebe-se que o Brasil mistura critérios relacionados à concepção, nidação e atividade cerebral – além de razões sociais, como na exceção para os casos de estupro. Curiosamente, nos países que autorizam o aborto por escolha da mulher, o primeiro trimestre é predominantemente o espaço temporal admitido para o procedimento, entretanto a justificação pública da escolha do prazo não aponta para um argumento acerca da atividade cerebral, mas sim para argumentos relativos à segurança do procedimento e à preservação da integridade física da mulher, uma vez que além deste ponto se faz necessária uma intervenção cirúrgica. Percebe-se a dificuldade de trabalhar com a ideia de fixação de marco legal do início da vida. Independente da opção normativa que o país faz, ela nunca dá conta de atender todas as demandas sustentadas em princípios. Nos Estados Unidos a proibição do aborto por nascimento parcial mostra que a viabilidade é decididamente um marco arbitrário, jamais uma convicção, pois mesmo o feto ainda não viável, portando sem proteção, não pode ser vítima de terminação direta, e quem o faz comete um crime. Na Alemanha e no Brasil, modelos conceptualistas abrem exceções por razões claramente pragmático-humanitárias. Talvez haja uma razão para alguns países não terem esse debate na arena política, pois decisões pragmáticas que visam atender demandas circunstanciais urgentes podem ser problemáticas em relação à concepção de vida adotada no país, ou não se sustentarem em caso de um conflito de princípios. A decisão da Corte Constitucional da Alemanha pode parecer estranha em uma análise superficial, mas é em realidade coerente com a ideia de estado liberal COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 309 social, onde o respeito à liberdade dos indivíduos será limitado pela proteção da sua própria dignidade. Ao estabelecer que o país é conceptualista, mas que seu parlamento ainda assim teria o poder discricionário para estabelecer uma permissão para o aborto por escolha da mulher, a Corte Constitucional da Alemanha claramente entendeu a decisão política como uma norma temporária, destinada a solucionar uma demanda que talvez inexista amanhã. O problema de se buscar a solução ideal - o sistema perfeito - em um tema tão complexo, é que suas consequências não deixam de ocorrer enquanto se espera por tal desvelamento. Em Roe v. Wade, a Suprema Corte americana foi questionada sobre o interesse processual da autora, que ao tempo do julgamento já não estava mais grávida. Justice Blackmun lembrou que a Justiça opera no tempo, e que demandas acerca de uma gestação jamais seriam julgadas em todas as instâncias em meros nove meses, o que geraria uma negação sistemática desse tipo de demanda. A anomalia notada por Blackmun é exatamente o grande desafio que se tem na normatização do aborto. Claramente não há consenso sobre o tema, mas as opções normativas em vigência tem externalidades negativas que precisam ser observadas e atendidas pelo Estado. A busca do ideal não impede o enfrentamento dos problemas atuais, algo que a Corte Constitucional alemã parece ter compreendido.

2 EXTERNALIDADES EM UM MODELO RESTRITIVO

No debate público entre os grupos identificados como pró-escolha e próvida, alguns argumentos são fundados em inegáveis demandas urgentes, cujo nãoatendimento configura manifesto desrespeito aos direitos fundamentais. Dentre os argumentos pró-escolha, aquele que aparenta ter mais força é o das consequências nefastas de uma norma pró-vida sobre as mulheres pobres.20 Em um reducionismo, poder-se-ia afirmar que tal argumento se baseia no simples fato da proibição não impedir as mulheres mais abastadas de ter acesso ao procedimento em condições médicas ideais – ainda que ilegais – enquanto as 20 GOODWIN, Michele. The Invisible Classes in High Stakes Reproduction. In: Journal of Law, Medicine & Ethics, vol. 43, issue 2. Oxford, UK: Wiley-Blackwell, 2015, p289-92. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 310 mulheres pobres ou estão impedidas, ou expostas a condições médicas não recomendáveis, consequentemente, se tem um tipo de inequidade problemática para um estado democrático de direito. As mulheres mais abastadas dificilmente são impedidas pelo Estado de abortar. Em geral, mesmo em países que criminalizam a prática elas têm acesso a uma boa estrutura médica para a realização do procedimento, e, dificultado este caminho, elas quase sempre têm como alternativa viajar até um local onde o aborto por escolha seja permitido, e assim realizá-lo a despeito da Lei de sua sociedade. Tal comportamento, em razão do problema da jurisdição, geralmente sequer é passível de responsabilização criminal - tal qual é no Brasil - aumentando a inequidade para com aquelas que não têm tal opção. Não bastando, as mulheres mais abastadas têm toda uma rede de amparo e acesso fácil a aconselhamento. Sem o mesmo capital social ou financeiro, as mulheres pobres dificilmente têm uma rede de amparo, quão menos, acesso a aconselhamento. Mesmo em países que disponibilizam tais serviços, a ideia de abandono e a desconfiança em relação ao poder público faz com que mulheres menos instruídas - as que mais precisam - não busquem ajuda. Essas mulheres, obrigadas a ter filhos que não conseguem proteger ou educar adequadamente, acabam por se tornar fornecedoras de material humano para o sistema carcerário. Em um cenário ideal de um Estado que adota uma normatização conceptualista fechada (de poucas exceções), tal como o Brasil, a assistência social seria a solução para tal problema, auxiliando estas mulheres para que tenham conhecimento de métodos contraceptivos e acesso aos mesmos, evitando a gravidez indesejada. Mas enquanto o poder público não consegue cumprir esse papel, é justo o cenário social decorrente da criminalização do aborto? Parece que não. A perpetuação de grupos claramente identificáveis de mulheres - em regra pertencentes a determinados grupos étnicos e religiosos - em estado de abandono e vulnerabilidade é algo inconcebível em um sistema onde a dignidade da pessoa humana é princípio estruturante.21 21 SARLET, Ingo W. A Eficácia dos Direitos Fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional, ed. 11ª. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p111. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 311 Alguma medida de observação de consequências é necessária para se evitar que através de um discurso virtuoso se obtenha um resultado nefasto. Quando considerados os abortos ilegais, a mortalidade infantil decorrente da falta de um correto acompanhamento pré-natal e o destino das crianças nascidas nessas condições, percebe-se que, ao menos no Brasil, a normatização conceptualista não parece alinhada com algo que se possa chamar de pró-vida. Faz-se importante descolar um pouco o argumento que se busca apresentar aqui, da urgência por solução contra o impacto de restrições normativas ao aborto, do argumento que sustenta o procedimento como um ato de plena gerência do próprio corpo, que leva à um confronto entre autonomia e vida alheia, de difícil sustentação no direito. Esse argumento carece de força de justificação, e acaba levando o debate novamente à fixação de “vida”, pois se autonomia não parece ter força para prevalecer ante a vida humana, em tese contra a vida ainda não humana o resultado possa ser diverso. Em suma, a autonomia parece esvaziar o argumento de interesse social amplo e irrestrito, para focar-se numa demanda de grupo. Ou seja, nessa dimensão, não se está mais opondo a autonomia da mulher sobre o próprio corpo contra o direito à vida de outrem, mas sim o direito à vida de dois indivíduos: gestante e feto. Vida em sentido amplo, não apenas de sobrevivência, mas de dignidade para ambos.22 Mas historicamente a demanda pelo direito ao procedimento de aborto é realmente fundada na liberdade e autonomia? Talvez não. Nos vinte anos que antecederam Roe v. Wade, os jornais New York Times, Washington Post, Chicago Tribune e Los Angeles Times publicaram 74 editoriais sobre o aborto, pouco se mencionava autonomia e liberdade das mulheres como argumento, algo que se tornou constante após a decisão da Suprema Corte evocar o direito à privacidade, do qual decorrem, in casu, os princípios de liberdade e autonomia.23 22 SARLET, Ingo W. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: SARLET. Ingo W. (org.). Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, 2ª edição, revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p16-7. 23 VECERA, Vincent. The Supreme Court and the Social Conception of Abortion. In: Law & Society Review, vol. 48, issue 2. Oxford, UK: Wiley-Blackwell, 2014, p345-52. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 312 Antes de Roe v. Wade, a descriminalização do aborto nos Estados Unidos era tratada como um tema de saúde pública e interesse geral.24 O problema apresentado era como salvar as 10.000 mulheres que morriam em abortos ilegais todos os anos, e a solução apontada era transformar o aborto em algo a ser tratado na dimensão da medicina.25 Faz-se importante notar que, se o parlamento norte-americano era - e ainda é - tímido em relação ao tema, o mesmo não se pode dizer das legislaturas estaduais, que vinham aplicando reformas e modificando suas legislações sobre aborto.26 Ainda assim, o aborto por escolha da mulher à época não era bandeira de nenhum partido nos Estados Unidos.27 Em suma, o aborto era mais percebido como um problema social do que como uma demanda de grupo.28 Evidente que não se pretende afirmar que o movimento pro-life não teria existido, afinal, sua bandeira é contra o aborto, e apenas incidentalmente contra o discurso libertário feminista que é utilizado hoje como fundamentação dessa norma. Mas essa mudança de foco de problema social para demanda de grupo sobre 24 VECERA, p352-5. E no sentido da mudança promovida pela decisão, p372: “The justices’ decision in Roe changed the language and criteria with which abortion policy was and continues to be understood and debated”. 25 VECERA, p345: “In 1966, the Los Angeles Times published an editorial typical of how reform advocates talked about abortion policy prior to Roe v. Wade (1973). The editorial was atypical only in its length - 12 paragraphs instead of the usual three or four - and touched on every prominent argument that reform advocates were advancing in the 1960s. It discussed the risks of illegal abortions and how prohibition increased those risks. It described the suffering of women in need of medical care, and the cruelty of prohibiting professional physicians from providing it. It referenced victims of rape and incest, congenital disorders, pregnant teenagers, and unwanted children. And it discussed the nearly 10,000 American women dying each year from illegal, unsafe abortions. The editorial argued that legalizing abortion would be humane, that it would not supplant birth control or promote promiscuity, and that it would save lives (Los Angeles Times, August 1, 1966)”. 26 VECERA, p352: “The liberalization of abortion policy in the United States began in the mid-1960s. The California legislature first debated decriminalization in 1961 and the New York legislature followed in 1966. They were followed by a wave of liberalization efforts in 1967, when 28 states introduced reform bills and Colorado passed the nation’s first. Later that year Governor Reagan signed California’s liberalization bill and North Carolina liberalized its abortion laws. Over the next few years, several other states enacted bills ordering various levels of reform, while national political elites remained largely indifferent or disinclined to engage in the emerging issue”. 27 VECERA, p350: “When Roe was handed down, there was no obvious ideological connection between either of the major parties and abortion policy”. 28 VECERA, p358: “A reality of illegal abortions comes through these texts, a reality that was lost in the metaphysical thicket of the post-Roe discourse. Public health would continue to be referenced, albeit far less prominently, after Roe, but the nature of reference underwent a significant change. It was a change that stemmed from the Court’s declaration that abortion is a civil right, and consequently from the fact that by the end of the decade, illegal, unsanitary abortions seemed to most elites to be more a memory than a reality”. Também p372: “The language of rights adopted by the Court presaged an era of bitter political entrenchment”. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 313 liberdade e autonomia certamente influenciou a forma de se pensar o aborto nos Estados Unidos, algo perfeitamente percebido no caso Planned Parenthood v. Casey, no qual a Suprema Corte esvaziou o papel do médico. Junto do fortalecimento do aborto fundado na autonomia da mulher, surgiu a primeira restrição a tal autonomia: a política informativa baseada na proteção do feto, que determina que o médico (ou alguém capacitado) deve orientar a mulher sobre o procedimento, uma orientação que visa expressamente desestimular a prática do aborto.29 Esse deslocamento não foi mera coincidência. Ao retirar a chancela médica, o aborto por escolha passa a ser uma questão de autonomia sobre o próprio corpo, e consequentemente, pode sofrer mais limitações do que quando percebido como um direito à vida e à dignidade. O argumento da autonomia da mulher sobre o próprio corpo será fraco para aqueles que entendam que o feto é uma vida humana plena, portanto, detentor de direitos iguais ao da mulher que pretende abortar. Em um processo reflexivo fácil, caso se chegasse ao consenso de que o feto é uma vida humana completa, seria insustentável dizer que a mulher pode abortar em nome da sua autonomia, tendo por resultado de tal exercício matar outra pessoa – metade das vezes, outra mulher. Portanto, a dispensa da exigência de certo nível de justificação pela mulher que escolhe abortar, algo antes presumido na norma norteamericana pelo papel de triagem que cabia ao médico, fica fragilizada quando se contrapõem os valores de autonomia e vida humana. Mas observando as consequências: a. Quem perde quando se adota uma perspectiva de observância pela dignidade, contrapondo dois valores de vida humana? A mulher branca, abastada, acima de 30 anos, com nível superior, ocupação profissional estável e estrutura familiar sólida.30 Num cenário onde se contrapõem duas vidas em sentido amplo (feto e mulher), essa mulher talvez careça de justificativa e, portanto, talvez tenha dificuldade de achar um médico que chancele sua escolha. Por outro lado, quem perde quando se adota uma perspectiva 29 BERNSTEIN, Erin B. Disclosure Two Ways. In: Journal of Law, Medicine & Ethics, vol. 43, issue 2. Oxford, UK: Wiley-Blackwell, 2015, p246-7. 30 VECERA, p372: “By recognizing a constitutional right to abortion predicated on privacy, the justices played a significant and unique role in transforming the social conception of abortion. These changes, evident in elite discourse about abortion, have potentially profound implications for democratic theory”. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 314 de aborto por escolha em razão da mera autonomia da mulher? As mulheres que teriam justificativa forte numa contraposição “vida e vida”. Em um cenário extremo, mulheres pobres, sem nenhuma condição de ter e dar uma vida digna. Em um cenário mais brando, mulheres muito jovens, sem estrutura emocional e estabilidade profissional, as quais seriam jogadas numa vida de frustração. Em suma, perdem as mulheres que têm uma justificação mais densa para apresentar, as quais teriam facilidade de obter a chancela médica num sistema cuja norma que regula o aborto por escolha fosse condicionada a justificação, em outras palavras, onde a motivação precisa ser declarada e considerada. Evidente que ainda se pode argumentar que as crianças advindas de tais gestações problemáticas poderiam ser encaminhadas à adoção, da mesma maneira que se pode argumentar sobre o nível questionável de condições dos processos de adoção mesmo em países desenvolvidos. De qualquer forma, a ideia aqui não é encontrar (ou propor) uma linha ideal para a justificação de um aborto por escolha, mas sim mostrar a diferença entre uma norma que condiciona o aborto por escolha à justificação, e uma norma que é fundada puramente na autonomia da mulher sobre o próprio corpo. Deslocar o aborto de uma questão humanitária e de política de saúde para uma demanda por autonomia da mulher é algo que faticamente enfraquece a sustentação política do procedimento.31 Tal qual vem confirmando o processo histórico sobre o tema nos Estados Unidos,32 esse enfraquecimento possibilita a preponderância de certos princípios sobre a autonomia, os quais não teriam força contra a vida. No caso Burwell v. Hobby Lobby, 33 a Suprema Corte entendeu por maioria (5 a 4) que as empresas por razão de objeção de consciência podem se abster de pagar extensões dos planos de saúde de suas funcionárias que julguem ter certo conteúdo abortivo - ainda que não se baseando em critérios científicos. A Justice Ginsburg se manifestou publicamente contra essa decisão, lembrando que seus efeitos práticos 31 VECERA, p370-2. 32 GILETTE, Justin. Pregnant and Prejudiced: the Constitutionality of sex- and race-selective abortion restrictions. In: Washington Law Review, vol. 88, issue 2. Seattle WA-USA: Washington Law Review Association, 2013, p659. 33 Case Burwell v. Hobby Lobby, 573 U.S. ___ (2014). COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 315 se darão sobre as mulheres pobres, pois as abastadas não necessitam de amparo do empregador. O mesmo argumento, por coincidência ou não, está contido no PL nº. 5.069 de 2013, que versa: § 4º Nenhum profissional de saúde ou instituição, em nenhum caso, poderá ser obrigado a aconselhar, receitar ou administrar procedimento ou medicamento que considere abortivo. ] De qualquer forma, todo o argumento aqui tecido no sentido de defender a maior densidade de um argumento pró-escolha baseado em dignidade da pessoa humana, e não em autonomia da mulher, é focar em quem mais sofre num modelo de norma restritiva do procedimento: as mulheres em vulnerabilidade. A externalidade negativa de uma norma restritiva é justamente essa. Existe um problema que vai além da equidade e da efetivação de uma lei restritiva, um problema antropológico de como uma norma que visa uma solução ideal pode acarretar resultado nefasto, e, portanto, se essa norma é sustentável quando se observa o impacto da mesma por uma perspectiva sociológica ou antropológica. Tal movimento parece ser o de se fazer uma legislação de sociedade ideal enquanto se está muito aquém da construção de uma sociedade ideal. Fazer uma opção normativa pela restrição sem dar resposta às demandas de mulheres pobres e vulneráveis é algo complicado mesmo nos países de tradição britânica, com sistemas fundados na liberdade (que demanda certo nível de dignidade). Logo, parece ser impensável que nos países de tradição romanogermânica, com sistemas fundados na dignidade da pessoa humana (que demanda certo nível de liberdade), se possa fazer tal opção.34 3 EXTERNALIDADES EM UM MODELO PERMISSIVO O fato de um modelo restritivo ser problemático, quando observado seu impacto social, não indica que um modelo permissivo seria satisfatório. Ainda que o modelo permissivo incorra em acesso à saúde e amparo por parte de mulheres em 34 MAURER, Béatrice. Notas sobre o respeito da dignidade da pessoa humana... ou pequena fuga incompleta em torno de um tema central. In: SARLET. Ingo W. (org.). Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, 2ª edição, revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p132-6. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 316 estado de vulnerabilidade, ele também acarretará problemas de coerência no sistema e conflitos de princípios. Entre os diversos problemas, pode-se apontar a maior incidência de abortos entre pessoas mais pobres, ou mesmo populações específicas. Nos Estados Unidos certos números apontam que os abortos ocorreriam em maior número entre a população negra, gerando uma situação questionável. Entretanto, tais problemas são discutíveis devido ao aspecto qualitativo de sua coleta de dados, uma vez que as mulheres mais abastadas dificilmente têm seus procedimentos registrados. Mas dentre os possíveis problemas de uma norma permissiva, destaca-se aquele que está fundado em uma realidade inquestionável, e que vai muito além de um problema entre grupos sociais: a eugenia. Nos Estados Unidos, as mulheres estão engravidando cada vez mais tarde. Em tese, um aumento na população com síndrome de Down deveria ser decorrente te tal fato - a possibilidade de gerar uma criança com a síndrome aumenta conforme a idade da gestante -, entretanto, o número de pessoas portadoras da síndrome vem diminuindo em ritmo acelerado. Num país onde o aborto por escolha é desprovido de qualquer exigência de justificação, não é difícil imaginar que um grande número de mulheres faz o aborto quando descobre imperfeições do feto.35 Disso decorrem dois problemas: a. onde desenhar a linha, ou seja, quais problemas justificam um aborto; b. como impedir que um aborto seja realizado em razão de uma escolha eugênica. O primeiro problema é muito importante. Portadores de síndrome de Down quando amparados por uma boa rede de proteção podem desenvolver-se amplamente enquanto indivíduos. Há casos onde eles concluem curso superior e desenvolvem labor complexo; outros onde têm filhos e conduzem a educação de forma absolutamente suficiente para a proteção dos interesses da criança. Logo, torna-se difícil argumentar que a síndrome seria um limitador de desenvolvimento do indivíduo que justificasse sua exclusão do universo humano de possibilidades genéticas. 35 KOCH, Elard. The Epidemiology of Abortion and Its Prevention in Chile. In: Issues in Law & Medicine, volume 30, issue 1. Terre Haute IN-USA: Issues in Law & Medicine, 2015, p78-80. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 317 Poder-se-ia argumentar que sem rede de proteção alguém com a síndrome teria sua dignidade em grande precariedade. Mesmo que se admita tal argumento, dele decorreriam novas interrogações sobre onde desenhar a linha. Uma deficiência num dos quatro membros seria razão? A tendência à homossexualidade seria razão? Cor da pele? Tipo físico? Gênero? As perguntas podem parecer absurdas, mas a fundamentação de todas elas é a mesma utilizada no caso da síndrome de Down: não se desejar um filho que venha enfrentar dificuldades. Importa frisar que os argumentos baseados em conteúdo discriminatório ou de comodidade dos pais, os quais parecem ser mais frágeis, sequer estão sendo avaliados. Busca-se aqui enfrentar um argumento com mais força de justificativa: trata-se do caso no qual os pais não desejam uma criança com tendência homossexual apenas em razão das dificuldades que esta teria em vida. Tal justificativa seria suficiente? Especialmente em países onde o direito é fundado na dignidade da pessoa humana, como Brasil e Alemanha36, tal justificativa seria suficiente? Parece que não. Com essa resposta, o aborto por escolha não condicionado, ou seja, aquele que não precisa de uma justificação, passa a ser problemático. Mais ainda quando se sai da tradição anglo-americana de liberdade como princípio estruturante, para tradição romano-germânica de dignidade como princípio estruturante, na qual se perceberão inevitáveis contradições performativas. Em 2009 a Corte Federal Criminal alemã decidiu pela limitação do diagnóstico pré-implantação de embriões destinados à reprodução assistida em razão da proteção do embrião, entretanto o descarte em razão de determinadas “desvantagens” genéticas levaria a um critério de eugenia, algo absolutamente afastado pela Lei alemã. O artigo 3º da constituição alemã é singelo: “(1) Alle Menschen sind vor dem Gesetz gleich. (2) Männer und Frauen sind gleichberechtigt. Der Staat fördert die tatsächliche Durchsetzung der Gleichberechtigung von Frauen und Männern und wirkt auf die Beseitigung bestehender Nachteile hin. (3) Niemand darf wegen seines Geschlechtes, seiner Abstammung, seiner Rasse, 36 HÄBERLE, Peter. A dignidade humana como fundamento da comunidade estatal. In: SARLET. Ingo W. (org.). Dimensões da Dignidade: Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucional, 2ª edição, revista e ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013, p46-7. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 318 seiner Sprache, seiner Heimat und Herkunft, seines Glaubens, seiner religiösen oder politischen Anschauungen benachteiligt oder bevorzugt werden. Niemand darf wegen seiner Behinderung benachteiligt werden.”37 Infelizmente, a Corte Federal Criminal não realiza controle de constitucionalidade, e tal caso foi então tratado sob uma ótica mais técnica. Em 2011 o parlamento alemão promulgou a lei de regulação do diagnóstico pré-implantação - Gesetz zur Regelung der Präimplantationsdiagnostik -, 38 que em seu primeiro artigo determina: “Wer Zellen eines Embryos in vitro vor seinem intrauterinen Transfer genetisch untersucht (Präimplantationsdiagnostik), wird mit Freiheitsstrafe bis zu einem Jahr oder mit Geldstrafe bestraft”.39 Evidente que a mesma lei vai estabelecer as exceções. Determinadas patologias que afetam a viabilidade fetal e a possibilidade de sucesso da implantação podem ser ligadas tanto ao gênero sexual,40 quanto a determinadas deficiências, logo, há sistemas normativos que autorizam o diagnóstico com base nisso, assim como aqueles que exijam justificativas (suspeita em razão de histórico familiar, por 37 Em tradução livre: “(1) Todas as pessoas são iguais perante a lei. (2) Homens e mulheres têm direitos iguais. O Estado promoverá a realização efetiva da igualdade de direitos das mulheres e dos homens e empenhar-se-á pela eliminação de desvantagens existentes. (3) Ninguém poderá ser prejudicado ou favorecido por causa do seu sexo, da sua descendência, da sua raça, do seu idioma, da sua pátria e origem, da sua crença ou das suas convicções religiosas ou políticas. Ninguém poderá ser prejudicado por causa da sua deficiência”. 38 Bundesgesetzblatt Jahrgang 2011 Teil I Nr. 58, ausgegeben zu Bann am 24. November 2011, também conhecida como Präimplantationsdiagnostikgesetz ou PräimpG, a qual modificou a Embryonenschutzgesetz - em tradução livre “lei de proteção do embrião”. 39 Em tradução livre: “Aquele que examine (diagnóstico genético pré-implantação) as células de um embrião in vitro antes de sua implantação intrauterina será punido com um ano de prisão, ou multa”. 40 BOYD, p421: “Medical reasons for gender selection may include the prevention of genetic disorders or psychological medical reasons. The use of gender selection to prevent a genetic disorder is called ‘medical gender selection’. Some ‘sex-linked’ disorders affect only boys or only girls. For example, hemophilia is transmitted via the X-chromosome. Boys will acquire the disorder if they receive one defective X-chromosome from their mother, but girls will develop the disorder only if they receive defective X-chromosomes from both their mother and their father. A woman who knows she is a carrier who marries a man who does not have the disorder can therefore guarantee that her children will not have the disorders if she has only girls. Genetic disorders in other cases can have their conditions more severely expressed in one gender than in the other gender (e.g., Fragile X syndrome, autism in males). Additionally, there can be psychological medical reasons that motivate the desire for one gender over another. For example, a single female may be better suited to raise a daughter rather than a son, or it may be the case that two parents lost their female child in an accident and now have a strong psychological need for another daughter”. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 319 exemplo). Alternativamente, num sistema que não admita o aborto por escolha não condicionado (livre autonomia) à justificação se poderia atribuir ao médico buscar e trabalhar com tais informações, não sendo necessário passá-las aos pais. Sem dúvida, diferentes motivações podem ambicionar informações sobre o feto,41 mas a ideia aqui contida é de um sistema no qual uma motivação eugênica para seleção reprodutiva é contrária aos princípios que o regem. Portanto, o aborto por escolha que não demande uma justificação irá incorrer numa contradição performativa. A criminalização do diagnóstico pré-implantação visa claramente proteger o embrião,42 logo, há uma contradição quando após a implantação se pode buscar o diagnóstico e com base nele optar por uma terminação motivada por razões eugênicas. No caso alemão, a solução já está no sistema, pois, conforme visto antes, ele prevê a chancela médica e a declaração de motivos para o aborto por escolha. Faz-se importante ressaltar que a maioria dos países não restringe o diagnóstico para deficiências, entretanto, é comum haver restrição relacionada à informação sobre gênero sexual que não for motivada por razões de saúde,43 logo, caso haja previsão para o aborto por escolha não condicionado à justificação, cair-se-á novamente numa contradição performativa, pois após a implantação do embrião se poderá descobrir o gênero sexual do feto e com base nisso se decidir pelo aborto. O perigo de um entendimento sobre a mera proteção do embrião, e não sobre a motivação eugênica de um aborto ou dispensação, é que hoje já se há tecnologia para constatar tais detalhes através de práticas não invasivas ao feto, que usam o plasma da mãe, já nas primeiras semanas, para diagnosticar suas.44 41 BOYD, 2012, p420: “The likely scenarios include: (1) an Asian couple seeking to have a baby boy; (2) a "curious" couple who have already chosen not to have the child; (3) a family with three boys and a thirty-nine year-old mother; and (4) a pregnant woman carrying a fetus with a possible gender-linked genetic disorder”. O presente trecho trata da questão do gênero sexual, mas é um excelente exemplo da variação de motivações que podem impulsionar esse tipo de exame. 42 LANZERATH, Dirk. Präimplantationsdiagnostik - Fakten und Hintergründe. In: Die Politische Meinung, nº. 498. Alemanha: Konrad-Adenauer-Stiftung, 2011, p63: “Aus ethischer Perspektive werden vielfach auch die Folgen der Zulassung der PID diskutiert, sowohl gesamtgesellschaftlich als auch für behinderte und nicht behinderte Individuen. Kritiker befürchten eine zunehmende Diskriminierung kranker und behinderter Menschen”. 43 BOYD, p431-3. 44 BOYD, p426. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 320 Esse não é o caso dos estados norte-americanos de Illinois, Pensilvânia e Oklahoma, os quais têm normas que não admitem a motivação do aborto em razão do gênero sexual, e como não admitem tal motivação, estão indiretamente estabelecendo um modelo normativo de justificação como condição para o procedimento.45 No mesmo sentido de ensejar um modelo de justificação, vale mencionar a restrição de usos não justificáveis medicamente do ultrassom no estado da Califórnia.46 Atendo-se ao problema de uma restrição de diagnóstico pré-implantação nos modelos onde não se exige justificação, percebe-se que a própria ideia de proteção em etapa mais precária seria contrária a toda a lógica dos sistemas aqui pesquisados. Lógica esta, que sempre aponta para a ideia de: quanto maior o tempo de desenvolvimento, maior a densificação de uma identificação enquanto vida humana. Logo, parece problemático atribuir mais proteção ao embrião do que ao feto.

CONCLUSÃO

O debate sobre o aborto não precisa se perder um “ativismo de confronto”, ou em uma demasiadamente ambiciosa “busca pela solução ideal”. Quando adotados tais caminhos, perde-se o foco dos problemas urgentes decorrentes da normatização do aborto, os quais sempre podem ser amainados com aperfeiçoamentos das políticas públicas. Grande parte das pessoas que apoiam a descriminalização do aborto por escolha da mulher o fazem na crença de que o feto em determinada etapa ainda não é uma pessoa. Ao justificar o aborto por escolha como decorrência da autonomia e da liberdade decorrentes de uma propriedade sobre o próprio corpo, as pessoas que apoiam tal procedimento na crença de não estarem contrapondo uma vida humana à autonomia, mas sim a uma etapa biológica anterior a ela, tornam-se apoiadores circunstanciais, que perante uma nova descoberta científica que densifique essa etapa gestacional anterior - no sentido de ver o feto como uma vida humana -, irão retirar o seu apoio. Não obstante, tal discurso, conforme foi enfrentado, fragiliza as 45 BOYD, p435. 46 BERNSTEIN, p247. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 321 mulheres que mais sofrem com a criminalização do procedimento. Afinal, quando se estabelece uma contraposição da proteção de uma vida e contra a proteção de outra, sempre por uma perspectiva de dignidade, tem-se uma ideia muito mais clara do problema real, e das mazelas sociais que decorrem de uma criminalização do aborto por escolha da mulher. A própria Igreja Católica admite a possibilidade de aborto quando o desenvolvimento de um feto sem perspectiva de nascer vivo irá acarretar na morte da mãe. O fundamento aqui é o mesmo usado para justificar o aborto por uma mãe pobre, ou muito jovem: trata-se de uma questão de preservação da vida, variando apenas no quanto peso se dará à perspectiva da vida digna, e à densificação da percepção de humana do embrião ou feto. Em outras palavras, o que altera a linha de permissão do aborto numa contraposição de direitos à vida é o quanto se observará: a. a vida como plena em razão da dignidade; e b. a vida enquanto humana em razão da etapa de desenvolvimento. A mesma lógica se aplica em favor da urgência e da justificação como critérios para um debate maduro sobre o tema que se aplica para a eugenia. Sistemas que condenam abertamente a eugenia, tendo inclusive medidas que a combatem na esfera de reprodução assistida, evidentemente não podem cair na incoerência de, através da liberalidade de um aborto por escolha da mulher, autorizar que pessoas que não se encontram em vulnerabilidade optem por um aborto com motivação eugênica. Isso então inviabiliza que se tenha uma norma que autorize o aborto por escolha da mulher? Não. Novamente se está numa dimensão de aperfeiçoamento normativo. Para impedir a eugenia basta proibir que certas informações sejam dadas aos pais. Sem dúvida desvios de conduta incorrerão no descumprimentos da norma, mas isso não muda o fato desta construção normativa, num plano ideal, dar conta do problema do uso do aborto por escolha da mulher para a prática da eugenia. A proposta aqui contida, como já salientada antes, é singela: visa deslocar o foco do debate sobre a normatização do aborto para suas externalidades. O resto, (in)felizmente, depende do acesso à saúde e informação, compromissos básicos do Estado que, caso cumpridos, esvaziam grande parte dos problemas aqui expostos. COSTA-SILVA, B. M. – Da normatização do aborto e suas externalidades BIODIREITO Direito & Justiça, Porto Alegre, v. 42, n. 02, jul./dez. 2000. ID 32833. 322

REFERÊNCIAS

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