A crise dos direitos fundamentais sociais diante dos indices de mortalidade infantil indígena em Mato Grosso do Sul
A CRISE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS SOCIAIS DIANTE DOS ÍNDICES DE MORTALIDADE INFANTIL INDÍGENA EM MATO GROSSO DO SUL *
Eliotério Fachin Dias [1]
Resumo:A grave crise de insegurança alimentar e nutricional vivida, nos últimos anos, pelo povo indígena Guarani-Kaiowá, em reservas de Mato Grosso do Sul, causaram a morte de dezenas de crianças por desnutrição e fome, demonstrando a crise de eficácia e de efetividade dos direitos sociais: direito à vida, à saúde e alimentação, asseguradas na Carta Magna de 1988, na Declaração Universal de Direitos Humanos e no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, de 1966. Diante de tal quadro, constata-se que os instrumentos de tutela dos menos favorecidos não tiveram, até aqui, a eficácia necessária aos direitos fundamentais sociais, sendo considerados de ‘papel’, e meramente simbólicos.
Palavras-chave: Fome e Desnutrição; Mortalidade Infantil; Direitos Fundamentais Sociais; Direitos à Vida e à Saúde.
A desnutrição, a fome, e a mortalidade infantil indígena
Nos últimos anos, a desnutrição e a fome[2]causaram a morte de dezenas crianças indígenas[3], nas reservas de Mato Grosso do Sul. Em 2004, o índice de mortalidade infantil aumentou 15% nas aldeias de Dourados, passando a 64,33 por mil nascidos vivos, quando a média nacional era de 24 por mil, segundo o Ministério da Saúde[4]. A situação era ainda mais grave nas aldeias guaranis e caiuás, localizadas ao sul do Estado.
Em 2005, na reserva indígena de Dourados, 12% dos índios menores de cinco anos de idade encontravam-se desnutridas, e 19% estavam abaixo do peso considerado normal. Em Amambai, Mato Grosso do Sul, 331 crianças (19% da aldeia) estavam desnutridas, e outras 306 (18%), em risco nutricional. A mortalidade infantil chegava, naquele período, a 96,47 por mil nascidos vivos. Em 2007, essas ocorrências voltaram a ocorrer, porém, numa escala menor, causando comoção nacional e internacional.
O elevado número de mortes de crianças indígenas por desnutrição e fome, nas aldeias de Mato Grosso de Sul, nos anos de 2004, 2005 a 2007 provocou a realização de várias audiências públicas e a abertura de 03 (três) CPI’s; uma, em nível estadual – a CPI da Desnutrição Indígena, relatada pela Deputada Estadual Bela Barros; e, 02 (duas) em nível federal: a primeira, instalada em 2005, através de comissão mista do Senado e Câmara de Deputados constituída para apurar a morte de crianças indígenas em Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, e relatada pela Deputada Federal Perpétua Almeida; e, outra, em 2007, a CPI da subnutrição infantil de crianças indígenas, relatada pelo Deputado Federal Vicentinho Alves, encerrada em maio de 2008.
A população indígena de Mato Grosso do Sul, que vive em condições subumanas, distantes de rios e córregos, em barracos de sapé, expostos ao calor e às chuvas, sem acesso à água e com escassez de alimentos, pedindo pão e comida nas ruas, recorrem a lixões para sobreviver. Essas condições precárias, em que vive essa população têm levado crianças e adultos à desnutrição e à fome, elevando os índices de mortalidade infantil indígena. A mortalidade infantil, a desnutrição e fome são elementos da tragédia coletiva a que se habituou chamar de miséria, afirma Marcelo Aguiar[5].
Os Direitos Sociais, à Vida e à Saúde na Constituição e na Declaração Universal dos Direitos Humanos
A Constituição Federal de 1988 estabelece como objetivos fundamentais para a República, o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III), e, no art. 6°, como direitos sociais, dentre outros, àsaúde, à segurança, à proteção à maternidade e à infância, e à assistência aos desamparados.
No campo da ordem social, este papel ativo do Estado é mais uma vez evidenciado. Assim, o art. 194, que dispõe acerca da seguridade social como um “conjunto integrado de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade”; bem como os arts. 196, 205 e 215, dispondo, respectivamente, acerca dos deveres do Estado de garantir acesso universal à saúde, à educação e à cultura.
Preceitua ainda, no art. nº. 227, que:
[...] é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, [...] o direito à vida, à saúde, à alimentação, [...], além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
A Constituição Federal, através de diversos dispositivos, para além de seu artigo 6°, consagrou os direitos humanos sociais como, por exemplo, o direito ao trabalho, à alimentação, à saúde, etc., como direitos fundamentais estabelecendo instrumentos e instituições para sua tutela.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos trouxe uma contribuição histórica para a humanidade ao afirmar que direitos humanos são os direitos que todos os seres humanos possuem, indistintamente, pelo simples fato de terem nascido e fazerem parte da espécie humana, na condição de sujeitos de direitos e sujeitos com direito a uma vida digna.[6]
A Declaração Universal dos Direitos Humanos apregoa em seu artigo XXII:
Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento de sua personalidade.
E o artigo XXV complementa:
Todo homem tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar, a si e à sua família, saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis e o direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência em circunstancias fora de seu controle.
O Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966, assim dispõe:
Artigo 11: [...]
§1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio e para sua família, inclusive à alimentação, vestimenta e moradia adequadas, assim como uma melhoria contínua de suas condições de vida. Os Estados-partes tomarão medidas apropriadas para assegurar a consecução desse direito, reconhecendo, nesse sentido, a importância essencial da cooperação internacional fundada no livre consentimento.
§2. Os Estados-partes no presente Pacto, reconhecendo o direito fundamental de toda pessoa de estar protegida contra a fome, adotarão, individualmente e mediante cooperação internacional [...].
Artigo 12: [...]
§1. Os Estados-partes no presente Pacto reconhecem o direito de toda pessoa de desfrutar o mais elevado nível de saúde física e mental.
§2. As medidas que os Estados-partes no presente Pacto deverão adotar, com o fim de assegurar o pleno exercício desse direito, incluirão as medidas que se façam necessárias para assegurar:
1. A diminuição da mortinatalidade e da mortalidade infantil, bem como o desenvolvimento são das crianças.
No que tange à efetiva proteção dos direitos à vida, saúde e alimentação, etc., assegurados constitucionalmente; assim como na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu art. 25; e, no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC, de 1966, em seu arts. 11 e 12, não vêm sendo cumpridos, especialmente, em relação às crianças das comunidades indígenas das aldeias guarani-kaiowá de Dourados e região, acometidas por desnutrição e fome.
Assim, ressalta Valéria Torres Amaral Burity:
[...] para que as normas que dispõem sobre esse tipo de direito sejam efetivas, isto é, passem a produzir efeitos concretos no mundo fático, é fundamental garantir que os titulares desses direitos, notadamente os grupos sociais mais vulneráveis, tenham acesso a mecanismos de exigibilidade e, assim, possam fazer frente àqueles que têm interesses contrários à garantia dos direitos sociais e que, muitas vezes, exercem influência sobre os órgãos estatais.[7]
Do Direito à Vida
A vida se identifica com a simples existência biológica e o direito à vida é essencial, tem como objeto um bem muito elevado. Trata-se de um direito inato, adquirido no nascimento, portanto, intransmissível, irrenunciável e indisponível, afirma Adriano De Cupis[8].
Assevera, ainda, sobre tutela privada e pública do direito à vida, que o direito aos alimentos é uma tutela complementar da vida, sendo diferente do direito à vida, pois não é a vida o seu objeto, mas um bem material para garantir a conservação da vida.
O direito fundamental à vida compreende o direito de todo ser humano de não ser privado de sua vida (direito à vida) e o direito de todo ser humano de dispor dos meios apropriados de subsistência e de um padrão de vida decente (preservação da vida, direito de viver), ensina Antonio Augusto Cançado Trindade[9].
Esclarece, nas palavras de Desch, que alguns membros do Comitê de Direitos Humanos têm expressado o ponto de vista de que o artigo 6 do Pacto de Direitos Civis e Políticos das Nações Unidas requer que o Estado “tome medidas positivas para assegurar o direito à vida, inclusive providências para reduzir o índice de mortalidade infantil”[10].Tomando os requisitos essenciais do direito de viver como um corolário do direito à vida, Desch[11]argumenta que a distribuição não-equitativa de alimentos ou medicamentos pelas autoridades públicas, ou mesmo a tolerância da sub-nutrição ou a não-redução da mortalidade infantil constituiriam violações do artigo 6 do Pacto se acarretassem uma privação arbitrária da vida.
Trindade explica ainda, que
[...] mesmo os que insistem em encarar o direito à vida estritamente como um direito civil (civil right) não podem deixar de admitir que, em última análise, sem um padrão de vida adequado, como reconhecido, {e.g., nos artigos 11-12 do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas, na linha do artigo 25 (I) da Declaração Universal de 1948), possivelmente o direito à vida não se poderia realizar em seu sentido pleno[12], (e.g., em suas intimas relações com o direito à saúde e assistência médica, o direito à alimentação, e o direito à habitação)[13].
Ressalta, ainda que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos tem estado atenta ao voltar-se às exigências da sobrevivência como componente do direito à vida: e, nesse entendimento, o direito à vida compreende ou requer não somente a proteção na forma de medidas preventivas contra todas as formas de maus-tratos e ameaças à vida e à saúde[14], mas também a realização das “aspirações econômicas e sociais” de todos os povos ao buscar diretrizes que dêem prioridade às “necessidades básicas da saúde, nutrição e educação”; nas palavras da Comissão, “a prioridade dos ‘direitos de sobrevivência’ e das ‘necessidades básicas’ é uma conseqüência natural do direito à segurança pessoal”[15], detendo-se à exigência de sobrevivência cultural de populações indígenas como um componente do direito à vida.
Questiona, ainda: “de que vale o direito à vida sem o provimento de condições mínimas de uma existência digna, se não de sobrevivência (alimentação, moradia, vestuário)?[16]”
Do Direito à Saúde
A Constituição Federal de 1988 reservou um lugar de destaque para a saúde, tratando-a, de modo inédito no Constitucionalismo pátrio, como um verdadeiro direito fundamental. No Título VIII da Ordem Social, no Capítulo II – da Seguridade Social e na Seção II da Saúde, se insere o artigo 196, que assim reza:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Ana Cristina Brener afirma que: “O direito à saúde, caracterizado como direito social, é corolário do direito à vida e da proteção da dignidade da pessoa humana”[17].
Assim como o direito à vida (direito de viver), o direito à saúde acarreta obrigações negativas assim como positivas. Com efeito, o direito à saúde encontra-se inelutavelmente interligado como o próprio direito à vida, e constitui uma pré-condição para o exercício da liberdade.
O direito à saúde implica a obrigação negativa de não praticar qualquer ato que possa pôr em risco a saúde de cada um, ligando assim este direito básico ao direito à integridade física e mental e à proibição da tortura e de tratamento cruel, desumano ou degradante. Como obrigação positiva, Romer esclarece que,
Pertencendo, como o direito à vida, ao domínio dos direitos básicos ou fundamentais, o direito à saúde é um direito individual no sentido de que requer a proteção da integridade física e mental do individuo e de sua dignidade; e é também um direito social no sentido de que impõe ao Estado e à sociedade a responsabilidade coletiva pela proteção da saúde dos cidadãos e à sociedade a responsabilidade coletiva pela proteção da saúde dos cidadãos e pela prevenção e tratamento das doenças[18].
A saúde humana é um direito fundamental reconhecido e positivado no âmbito do direito constitucional dos Estados. É também direito humano, no sentido de que seu titular será o ser humano ainda que representado por entes coletivos. A expressão direitos humanos tem relação direta com os textos de direito internacional, pois reconhece o ser humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinado Estado, tem aspiração à validade universal, para todos os povos e tempos.[19]
O direito à saúde é reconhecido pelo sistema jurídico brasileiro atual como parte integrante dos direitos sociais, pois tem como inspiração o valor da igualdade entre as pessoas. A preocupação com o bem-estar das pessoas é tutelada, desde os princípios fundamentais norteadores da República brasileira, como a cidadania e a dignidade, assim como construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza e a marginalização, promover o bem de todos, etc.
Além de direito fundamental, a saúde é tratada no âmbito da seguridade social, pois esta acolhe um conjunto integrado de ações que deve assegurar, além da saúde, também a assistência e previdência social. Compreendendo a saúde como direito fundamental social, conforme o art. 5º, § 1º, suas normas são auto-aplicáveis. Qualquer pessoa pode e deve exigir as prestações asseguradas nas normas definidoras de direitos fundamentais sociais. Entretanto, tais direitos se encontram sob uma reserva do possível, ou seja, vinculado às decisões políticas quanto à destinação de recursos públicos. Aí reside o problema da eficácia dos direitos sociais na sua dimensão prestacional.[20]
Mesmo que o poder público tente alegar que o direito à saúde foi positivado como norma de eficácia limitada e que pela falta de recursos e pela incompetência dos órgãos judiciários para decidirem sobre a destinação de recursos públicos, esta seja a solução viável, ao contrário, deve levar em consideração que o que está sendo decidido é a preservação do bem maior da vida humana.
Assim, é dever político-constitucional do Estado assegurar a todos, proteção à saúde que, associado a um imperativo de solidariedade social, impõe-se ao Poder Público, qualquer que seja o ente federativo. Segundo Mello,
[...] Dar primazia aos interesses financeiros do Estado negando o preceito da inviolabilidade do direito à vida e à saúde impõe ao julgador somente uma opção, por razões ético-juridicas, privilegiar o respeito à vida e à saúde humana, especificamente aqueles que têm acesso, ao programa de distribuição gratuita de medicamentos, instituído em favor de pessoas carentes.[21]
A Constituição de 1988 é incisiva ao conceber a ordem econômica sujeita aos ditames da justiça social para o fim de assegurar a todos, existência digna. No, entanto, “não conseguimosgarantir o acesso de todas as crianças e adolescentes aos serviços médicos e de saúde, reduzir os índices de mortalidade infantil, assegurar às mães a adequada assistência pré-natal e pós-natal, desenvolver a assistência médica preventiva, combater a desnutrição”[22].
Como aludem Asbjorn Eide e Allá Rosas:
Levar os direitos econômicos, sociais e culturais a sério implica, ao mesmo tempo, um compromisso com a integração social, a solidariedade e a igualdade, incluindo a questão da distribuição de renda. Os direitos sociais, econômicos e culturais incluem como preocupação central, a proteção aos grupos vulneráveis. [...] As necessidades fundamentais não devem ficar condicionadas à caridade de programas e políticas estatais, mas devem ser definidas como direitos.[23]
A pobreza, a violação dos direitos sociais e a cidadania de papel
A pobreza carrega consigo a fome, a doença, a morte, a mendicância, a venda do corpo, a escravidão, a anulação frente ao ser humano mais forte, e fulmina as condições mínimas necessárias para realizar o primado da dignidade do ser humano. Resta indubitável, ressalta Adriana Estigara[24], que alternativas capazes de erradicá-la ou ao menos amenizá-la devem ser consideradas no elenco de direitos humanos, já que direitos humanos são aqueles voltados a patrocinar o mínimo existencial ao ser humano.
A ausência de liberdades substantivas relaciona-se diretamente com a pobreza econômica, que rouba das pessoas a liberdade de saciar a fome, de obter uma nutrição satisfatória ou remédios para doenças tratáveis, a oportunidade de vestir-se ou moral de modo apropriado, de ter acesso a água tratada ou saneamento básico, como ressalta Amartya Sen:
[...] a privação de liberdade vincula-se estreitamente à carência de serviços públicos e assistência social, como por exemplo a ausência de programas epidemiológicos, de um sistema bem planejado de assistência médica e educação ou de instituições eficazes para a manutenção da paz e da ordem locais. Em outros casos, a violação da liberdade resulta diretamente de uma negação de liberdades políticos e civis por regimes autoritários e de restrições impostas à liberdade de participar da vida social, política e econômica da comunidade[25].
A denegação ou violação dos direitos econômicos, sociais e culturais, materializada na pobreza extrema, afeta os seres humanos em todas as esferas de suas vidas, Antonio Augusto Cançado Trindade insiste em que a pobreza extrema constitui, em última análise, a negação de todos os direitos humanos:
Como falar de direito de livre expressão sem o direito à educação? Como conceber o direito de ir e vir (liberdade de movimento) sem o direito à moradia? Como contemplar o direito de participação na vida pública sem o direito à alimentação? Como referir-se ao direito à assistência judiciária sem ao mesmo tempo ter presente o direito à saúde? E os exemplos se multiplicam. Em definitivo, todos experimentamos a indivisibilidade dos direitos humanos no quotidiano de nossas vidas: é esta uma realidade inescapável. Já não há lugar para compartimentalizações, impõe-se uma visão integrada de todos os direitos humanos. [26]
Viver não é ter a existência a salvo das ameaças violentas, afirma Roberto A. R. de Aguiar, viver, essencialmente, significa sobreviver, isto é, possuir um mínimo que possibilite a nutrição, o bem-estar e a saúde, e complementa:
[...] Um Estado que não distribui de modo razoável sua renda é um Estado homicida que, mercê de sua concentração de renda, aumenta a sobrevida de poucos e diminui a sobrevida de muitos. A fome e o abandono é a arma que mata e o homicida é quem, por sua omissão, ou ação, permite e até mesmo incentiva essa situação[27].
No mesmo tom, Osvaldo de Alencar Rocha[28]afirma que “é simplesmente estarrecedora a impotência do Estado para cumprir um de seus deveres primários, a distribuição eqüitativa de Justiça”.
E, ainda acrescenta,
[...] a não prestação de serviço público ou a prestação deficiente acaba agravando o problema da perversa distribuição da renda, com a pobreza chegando a níveis jamais vistos, sem contar com a súbita elevação da curva da miséria absoluta, e que, “além do que essa precariedade é, na prática, uma recusa, uma inadimplência contratual no Grande Pacto Social em que se funda o Estado moderno.[29]
Tomás de Aquino[30]afirmava que a justiça é a virtude que estabelece a igualdade na relação com o outro, e assim sendo a diversidade e a proporcionalidade caracteriza uma justiça entre duas pessoas (justiça comutativa), ou uma justiça entre indivíduos e a comunidade (justiça distributiva). E, ainda, que: “[...] a justiça comutativa consiste no fato de dar algo a alguém e, ao contrário, a distributiva, no fato de dar algo a muitos”.
Roberto Lyra Filho discorria que não é mais possível o funcionamento de “dar a cada um, o que é seu”, como princípio jurídico,
[...] porque se a justiça consiste em dar a cada um o que é seu, dê-se ao pobre a pobreza, ao miserável a miséria, ao desgraçado a desgraça, que é isso o que é deles [...]. A regra da Justiça deve ser a cada um segundo o seu trabalho, como resulta da sentença de São Paulo na carta aos Tessalonicenses, enquanto não se atinge o princípio de a cada um segundo a sua necessidade[31].
Diante de tal quadro de miséria, de pobreza, de falta de moradia, e de mortalidade infantil por desnutrição e fome, José Adércio Leite Sampaio[32]indaga: “[...] Por que os direitos sociais estão fadados a ser ineficazes ou, em muitos casos, feitos de papéis?”. E, questionando sobre a eficácia dos direitos sociais, afirma: “quem sabe [...] os direitos sociais deixem de ser meramente simbólicos, [...] de modo a se converterem em direitos de participação na vida plena da comunidade[33]”.
Como bem evidencia Norberto Bobbio, quanto à efetiva proteção dos direitos sociais, o problema grave de nosso tempo, não é o de justificá-los, mas o de protegê-los, esclarecendo que:
[...] o problema que temos diante de nós não é filosófico, mas jurídico e, num sentido mais amplo, político. Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes declarações, eles sejam continuamente violados.[34]
Nesse mesmo sentido, Gilberto Dimenstein[35]escreve que a “verdadeira democracia, aquela que implica o total respeito aos Direitos Humanos, está bem longe do Brasil. Ela existe apenas no papel. O cidadão brasileiro na realidade usufrui uma cidadania aparente, uma cidadania de papel”. E, ainda, acrescenta:
[...] como funciona o motor de uma sociedade que produz crianças de rua. É uma viagem pelas engrenagens do colapso social, onde a infância é a maior vítima e a violência, uma conseqüência natural. [...] A descoberta das engrenagens é a descoberta do desemprego, da falta de escola, da inflação, da migração, da desnutrição, do desrespeito sistemáticos aos direitos humanos. Com essa comparação, vamos observar como é a cidadania brasileira, que é garantida nos papéis, mas não existe de verdade. É a cidadania de papel[36].
Assegurar a todos uma dada prestação apenas ‘no papel’, sem que haja meios materiais para sua realização, ressalta Gustavo Amaral[37], é frustrar o comando constitucional ainda mais do que negar a efetividade atual do comando prescritivo da prestação.
Canotilho esclarece, em sua tese de doutoramento, sobre: “o que deve (e pode) uma constituição ordenar aos órgãos legiferantes e o que deve (como e quando deve) fazer o legislador para cumprir, de forma regular, adequada e oportuna, as imposições constitucionais[38]”, e que o livre desenvolvimento da personalidade e a defesa da pessoa humana postulam ética e juridicamente a positivação dos chamados ‘direitos sociais’, mas:
[...] uma coisa é recortar juridicamente um catálogo de direitos da terceira geração e, outra, fazer acompanhar a positivação dos direitos de um complexo de imposições constitucionais tendencialmente conformadoras de políticas públicas de direitos econômicos, sociais e culturais[39].
Com relação às declarações de direitos, Pietro Barcellona[40]escreve que: “[...] o reconhecimento dos direitos sociais, como instrumentos de tutela dos menos favorecidos não teve, até aqui, a eficácia necessária para reequilibrar a posição de inferioridade que lhes impede o efetivo exercício das liberdades garantidas”.
No mesmo sentido, Carlos Frederico Marés Souza Filho[41]ressalta que a Constituição Federal chamada de “cidadã, verde, plurisocial, índia, democrática”, apesar de assegurar direitos aos índios sobre os seus direitos originários, “o Estado tem sido atuante e eficiente em diminuí-los, re-interpretá-los ou solenemente não aplicá-los”.
Um regime democrático de justiça social não aceita as profundas desigualdades, a pobreza e a miséria. O reconhecimento dos direitos sociais, como instrumentos de tutela dos menos favorecidos, não tem tido a eficácia necessária para re-equilibrar a posição da inferioridade que lhe impede o efetivo exercício das liberdades garantidas.
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* - Artigo apresentado nos Anais do I Encontro Cientifico do Curso de Direito da UEMS Navirai MS 20 Anos Constituição Federal - ISBN: 978-85-99880-21-0; Org. Drª. Fátima de Lourdes Ferreira Liutti, CD/Rom, Dourados MS, 2008.
[1]Especialista em Direito das Obrigações. Docente Efetivo da UEMS.
[2] Informe nº 695. Criança morre após despejo [...]. Disponível em:
<www.cimi.org.br/?system=news&action=read&id=1629&eid=274 Acesso em 24.fev.2006, 15:40hs.
[3]Plataforma DhESCA Brasil.Relatório da Missão da Relatoria Nacional para os Direitos Humanos à Alimentação Adequada, à Água e à Terra Rural sobre denúncias de violações dos Direitos Humanos do Povo Indígena Guarani-Kaiowá da Região Sul do Mato Grosso do Sul. 16 a 18 de maio de 2006. Brasília: DHESCBRASIL. 2006. Disponível em www.dhescbrasil.org.br. Acesso em 23.nov.2006, às 11:51 hs, p. 3.
[4]CORREA, Hudson. Fome mata mais uma criança índia em MS.Folhade São Paulo. 22.2.2005.Disponível em http://clipping.planejamento.gov.br/Noticias.asp?NOTCod=179543Acesso em 06.nov.2006, às 23:39hs.
[5]AGUIAR, Marcelo; ARAUJO, Carlos Henrique. Bolsa-Escola: Educação para enfrentar a pobreza. Brasília: UNESCO, 2002, p.15.
[6]CONTI, Irio Luiz. In PIOVESAN, Flávia. CONTI, Irio Luiz (Coord.) Direito Humano à Alimentação AdequadaRio de Janeiro: Lúmen Júris Editora, 2007, p. 7.
[7]BURITY, Valéria Torres Amaral. Exigibilidade Administrativa do Direito Humano à Alimentação Adequada: Experiência do Projeto Piloto Realizado pela Abrandh no Piauí In PIOVESAN, Flávia & CONTI, Irio Luiz (Coord.) Ibidem, p. 216
[8]DE CUPIS, Adriano. Os Direitos de Personalidade. Lisboa: Livraria Morais Editora, 1.961, Apud ROBERTO, Luciana Mendes Pereira. O Direito à Vida. Disponível: <http://www2.uel.br/cesa/direito/doc/estado/artigos/constitucional/Artigo_Direito_%C3%A0_Vida.pdf> Acesso em 06.set.2008, às 14:22 hs.
[9]TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio-Ambiente. Paralelo dos Sistemas de Proteção Internacional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1993, p. 73
[10]DESCH, The Concept and Dimensions of the Tight lo Life (As Defined in International Standards and in International and Comparativ Jurisprudence. p. 101. apud TRINDADE, Ibidem, p. 73
[11]Ibidem, p. 101. apud TRINDADE, Ibidem, p. 73
[12]VAN BOVEN, Ipeople Matter – Viés on Intenational Human Rights Policy. Amsterdam, Meulenhoff, 1982, p. 77. apud TRINDADE, Ibidem, p. 74
[13]LECKIE, “The U.N. Committee on Economic,. Social and Cultural Rights and the Right to Adequate Housing: Towards an Appropriate Approach”, 11 Human Rights Quaterly (1989) pp. 522-560. apud TRINDADE, Ibidem, p. 74
[14]Comisión Interamaericana de Derechos Humanos. Diez Años de Actividades – 1971-1981. Washington, Secretaria General de la OEA, 1982, pp. 338-339. apud TRINDADE, Ibidem, p. 78
[15]TRINDADE, Ibidem, p. 78
[16]TRINDADE, Ibidem, p. 210-211
[17]BRENNER, Ana Cristina. O direito à saúde em sua dimensão prestacional (positiva): Limites fáticos e jurídicos a serem considerados pelo poder judiciário para garantir o acesso universal e igualitário aos potenciais beneficiários desse direito. Disponível em <http://www.tex.pro.br/wwwroot/05de2005/odireito_anacristinabrenner.htm> Acesso em 06.set.2008, às 14:16 hs.
[18]ROMER, R. “El Derecho a la Atencion de la Salud” in OMS, El Derecho a la Salud em las Americas. Apud TRINDADE, Ibidem, p. 83-84
[19]BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 95, Apud BENETTI, Daniela Vanila Nakalski. Direito à saúde e o acesso aos anti-retrovirais via concessão de licença compulsória. p. 197-216. In Revista de Direito do Cesusc nº2 Jan/Jun 2007 Florianópolis SC: CESUSC, 2007. p. 198-199
[20]BENETTI, Daniela Vanila Nakalski. Direito à saúde e o acesso aos anti-retrovirais via concessão de licença compulsória. p. 197-216. In Revista de Direito do Cesusc nº2 Jan/Jun 2007 Florianópolis SC: CESUSC, 2007. p. 199-200
[21]Voto do Relator Ministro Celso de Melllo em agro no recurso extraordinário n. 271.286-8 RS. apud BENETTI, Ibidem, p. 201
[22]VERONESE, Josiane Rose Petry. Os Direitos da Criança e do Adolescente:Construindo o Conceito de Sujeito-Cidadão. In WOLKMER, Antonio Carlos. LEITE, José Rubens Morato. (Orgs.) Os “Novos” Direitos no Brasil:Natureza e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 40.
[23]EIDES, Asbjorn Eide & ROSAS, Alla. Economic, Social and Cultural Rights: A Universal ChallengeIn.PIOVESAN, Flávia. Proteção dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e do Direito à Alimentação Adequada:Mecanismos Nacionais e Internacionais. In PIOVESAN, Flávia. CONTI, Irio Luiz (Coord.) Ibidem, p.25
[24]ESTIGARA, Adriana. O crédito integra-se ao conjunto de condições necessárias ao patrocínio do mínimo ético existencial. Revista Prática Jurídica – Ano VII, nº 72, de 31 de março de 2008. p. 41
[25]SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como Liberdade. São Paulo, Companhia das Letras, 2000. p. 409. Apud ESTIGARA, Ibidem, p. 41
[26]TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos, v. I. 2. Ed. Porto Alegre, Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 447. Apud ESTIGARA, Ibidem, p. 41-42.
[27]AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1990, p. 162.
[28]ROCHA, Osvaldo de Alencar. In. LARANJEIRA, Raymundo (Coord.) Direito Agrário Brasileiro. São Paulo: LTr, 2000, p. 304
[29]Ibidem, In. LARANJEIRA, Ibidem, p. 304
[30]AQUINO, Tomás. In WOLKMER, Antonio Carlos. Síntese de uma História das Idéias Jurídicas da Antiguidade Clássica à Modernidade. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, p. 66.
[31]LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito. São Paulo: Brasiliense, 2003, p. 21.
[32]SAMPAIO, José Adércio Leite. Qual o significado dos Direitos Sociais hoje? Belo Horizonte MG: Revista Del Rey Jurídica, Agosto a Dezembro de 2007.
[33]SAMPAIO, Ibidem
[34]BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elvisier, 2004, pp. 43-45.
[35]DIMENSTEIN, Gilberto. O cidadão de papel:A infância, a adolescência e os direitos humanos no Brasil.12ª ed. São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 8.
[36]Ibidem,p. 8.
[37]AMARAL, Gustavo. Interpretação dos Direitos Fundamentais e o Conflito entre Poderes. In TORRES, Ricardo Lobo. Teoria dos Direitos Fundamentais.2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 112
[38]CANOTILHO, JJ Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra Editora, 2001, p. 10.
[39]Ibidem, p. XX.
[40]BARCELONA, Pietro. In. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 765-6):
[41]MARÉS SOUZA FILHO, Carlos Frederico. In. LARANJEIRA, Ibidem, p.513
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