A criminologia crítica para além da crise


Pormarianajones- Postado em 23 maio 2019

Autores: 
Jackson da Silva Leal
Fernando Vechi

Sistema Penal & Violência Revista Eletrônica da Faculdade de Direito Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS Porto Alegre • Volume 8 – Número 2 – p. 231-242 – julho-dezembro 2016 Violência, Crime e Segurança Pública A criminologia crítica para além da crise Um estudo sobre a suposta crise da criminologia e suas transformações no período neoliberal The critical criminology beyond the crisis A study about the supose criminology crises and its transformations in the neoliberal period Jackson da Silva Leal Fernando Vechi Editor-Chefe José Carlos Moreira da Silva Filho Organização de Rogerio Dultra dos Santos Este artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que a publicação original seja corretamente citada. http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR ISSN 2177-6784 http://dx.doi.org/10.15448/2177-6784.2016.2.24283 Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 232 Violência, Crime e Segurança Pública Violence, Crime and Public Safety

A criminologia crítica para além da crise

Um estudo sobre a suposta crise da criminologia e suas transformações no período neoliberal

The critical criminology beyond the crisis

A study about the supose criminology crises and its transformations in the neoliberal period

Jackson da Silva Leala

Fernando Vechib

Resumo

O presente artigo tem como foco central o que se postulou como sendo a crise da criminologia crítica na década de 80 do século XX. Analisa-se em que contexto se insere essa suposta crise, e o debate travado entre importantes teóricos como Massimo Pavarini e Alessandro Baratta, tendo-se ainda a contribuição de Elena Larrauri. Tem-se como objetivo o aprofundamento teórico e reflexão sobre as funções que desempenha a criminologia em meio a sociedade da virada do século XX para o XXI e suas transformações sociais. Trabalha-se com o marco teórico proporcionado pelas últimas décadas de desenvolvimento analítico e empírico da criminologia crítica, tendo-se como ponto de partida uma visão desde a região latino-americana.

Palavras-chave: criminologia critica; neoliberalismo; crise.

Abstract This article focuses on what was posited as the crisis of critical criminology in the 1980s. It analyzes in which context this supposed crisis is inserted, and the debate hampered between important theorists like Massimo Pavarini and Alessandro Baratta, has also the contribution of Elena Larrauri. As goal, it has the theoretical deepening and reflexion about the functions that criminology performs between the turn of twentieth-century society for the XXI and its social transformations. It works with the theoretical milestone proportioned by the last decades of analytical and empirical development of critical criminology; Having as its starting point a view from the Latin American region.

Keywords: critical criminology; neoliberalism; crisis.

a Advogado (OAB), Graduado em Direito pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel), mestre em Política Social (UCPel); Doutor em Direito (UFSC); membro do projeto Universidade sem Muros (UsM-UFSC); pesquisador na linha controle social, sistema penal e criminologia crítica. b Graduado em Direito (UNESC); bolsista de iniciação científica (UNESC); membro do grupo Criminologia Crítica Latino-americana (UNESC.) Leal, J.S.; Vechi, F. A criminologia crítica para além da crise Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 233

Introdução

Num primeiro momento, apresenta-se um panorama do que foi o surgimento da criminologia e seu processo histórico, aliado a formação dos Estados europeus e suas políticas sociopenais gestadas para o controle social das massas subalternizadas e do combate ao crime que, posteriormente, foram exportadas para o Novo mundo e para territórios ao sul do globo. Deve-se destacar que, a obra História dos pensamentos criminológicos (2008), escrita por Gabriel Ignacio Anitua, esmiúça o processo histórico criminológico. Este artigo utiliza-a com frequência, como se fosse uma espécie de fio de Ariadne, com o objetivo de guiar o leitor entre os períodos destacados. No entanto, ainda que posto isto, achou-se necessário fazer uma exposição resumida das escolas no decurso de seu desenvolvimento, pois como David Garland (2008) coloca, ao citar Michel Foucault, nenhuma escola criminológica teve um limiar absoluto ao longo do tempo, isto é, elas se entrelaçaram em (des)continuidades e formataram seus saberes umas sobre as outras, assim como cada artigo reflete a visão de mundo de seu escritor, em tempo e espaço determinados. Far-se-á um resgate do importante debate em torno de uma suposta e anunciada crise de criminologia critica na década de 80 do século XX. Inicialmente proposta por Elena Larrauri, e depois analisada e comentada por Dario Melossi, e Alessandro Baratta, a discussão contém uma fecunda contribuição para o desenvolvimento da teoria criminológica contemporânea. O trabalho se constitui de análise teórica e pesquisa bibliográfica em fontes primárias (periódicos, e publicações científicas) analisado como estudo de discurso e de conteúdo, tendo em vista que existem importantes questões contextuais por traz dos discursos que não revelam toda a sua materialidade. O trabalho tem o objetivo de contribuir com a análise da criminologia, sobretudo, no momento atual de refluxo conservador no plano da análise da questão criminal e a importante função que pode exercer o acúmulo teórico da criminologia crítica. A hipótese central é da criminologia para além da crise, sobretudo da criminologia latino-americana que a partir da criminologia crítica central, voltou-se para a realidade da própria região e suas particularidades, constituindo-se em saber autêntico.

1 Os caminhos do pensamento criminológico na modernidade

Organiza-se como um dos primeiros passos da criminologia como se a conhece atualmente, o que foi denominado de escola liberal clássica, a qual detinha seu foco sobre o delito e via no delinquente uma figura que possuía o livre arbítrio para escolher cometer ou não uma infração, sem causas patológicas envolvidas, tendo, dessa forma, igual responsabilidade e liberdade de um indivíduo normal (BARATTA, 2002). As teorias da Escola Clássica foram claramente influenciadas pelos filósofos iluministas, através da concepção contratualista de organização social: O contrato social está na base da autoridade do Estado e das leis; sua função, que deriva da necessidade de defender a coexistência dos interesses individualizados no estado civil, constitui também o limite lógico de todo legítimo sacrifício da liberdade individual mediante a ação do Estado e, em particular, do exercício do poder punitivo pelo próprio Estado (BARATTA, 2002, p. 33). Em princípios do século XVIII, em alguns territórios europeus, o antigo regime começa a ser duramente criticado, pois mantinha penas desumanas para os condenados e, portanto, a ideologia liberal burguesa nascente deste período, muda a forma de castigo, criando a prisão para manter a ordem social e desestimulando as influências que criavam o delito na comunidade (OLMO, 2004). Os saberes teóricos começam a ser modulados e uma nova reflexão é gestada sobre as prisões, as penas e o próprio direito penal. Dentre alguns países que se destacam com seus teóricos da Escola Clássica: Leal, J.S.; Vechi, F. A criminologia crítica para além da crise Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 234 Faz-se referência, particularmente à obra de Jeremy Bentham na Inglaterra, de Anselm Von Feuerach na Alemanha, de Cesare Beccaria e da escola clássica de direito penal na Itália. Quando se fala da criminologia positivista como a primeira fase de desenvolvimento da criminologia, entendida como disciplina autônoma, se faz referência a teorias desenvolvidas na Europa entre o final do século XIX e o começo do século XX, no âmbito da filosofia e da sociologia do positivismo naturalista. Com isso se alude, em particular, à escola sociológica francesa (Gabriel Tarde) e à ‘Escola social’ na Alemanha (Frantz von Liszt), mas especialmente à ‘Escola positiva’ na Itália (Cesare Lombroso, Enrico Ferri, Raffaele Garofalo) (BARATTA, 2002, p. 32). No final no século XIX, com a onda cientificista, a criminologia nasce como ciência e propõe dentre suas reflexões a ordem e o progresso do positivismo comtiano, ou seja, pauta-se em valores conservadores que, por sua vez, advém dos postulados de ordem e progresso burguês capitalista. Ela surge para dar respostas ao aumento das populações e ao crescimento das desigualdades sociais. “Os pobres eram pobres porque biologicamente eram inferiores e o delinquente era assim porque pertencia a uma linhagem humana distinta e inferior” (OLMO, 2004, p. 89). O cenário paradigmático da ciência criminológica positivista embasaria sua definição em padrões causais-explicativos da criminalidade, naturalizando a pobreza, o homem delinquente e os demais fenômenos que constavam nas estatísticas criminais (ANDRADE, 1995). Como bem salientou Gabriel Ignácio Anitua em sua obra História dos pensamentos criminológicos: Mediante a observação daqueles pobres homens que eram mandados para os calabouços, o positivismo realiza a síntese do delito e do delinquente. Daí surgirá a ciência do homem criminoso ou criminologia, desde suas origens muito mais ligada ao pensamento conservador ou reacionário do que ao progressista, muito embora poderão ser encontrados positivistas que inspirem tanto as ideias de direito quanto as de esquerda (ANITUA, 2008, p. 299). Inspirado por tais ideias e com a influência da medicina frenológica/eugenista do começo do século XIX, o médico alienista italiano Cesare Lombroso escreveu O homem delinquente (1876) obra que dá o marco da tal ciência do crime e que, ao contrário do que fazia a Escola Clássica, desvia o objeto de estudo do delito para o delinquente. Afirma-se que o comportamento do gênero humano era determinado pelos caracteres físicos, explica-se, pela fisionomia do indivíduo (ZAFFARONI, 2013; OLMO, 2004). As convicções em que Lombroso chegou, bem como seus seguidores Ferri e Garofalo, somado aos demais médicos-criminólogos-higienistas, foram a base daquilo que será o pensamento criminológico do século XX. Os saberes positivistas se disseminaram para o novo mundo, inclusive para países como o Brasil, a Argentina e o México. Dentre os seguidores de Lombroso, destaca-se no caso brasileiro, o médico legista Nina Rodrigues (1862-1903) “que proporia uma avaliação antropométrica e psiquiátrica de todos os acusados de delito para determinar, cientificamente, o melhor tratamento penal que conviria aplicar” (ANITUA, 2008, p. 353). É encontrado nas obras de Raimundo Nina Rodrigues um profundo racismo contra os negros recém-libertados, acreditando que estes teriam uma insuperável incapacidade mental de adaptarem-se em sociedade e, dessa forma, o castigo corporal seria a única forma de os manter sob controle, não colocando em perigo o desenvolvimento social do país (ANITUA, 2008). Interessante analisar o caso Latinoamericano, pois predominava uma heterogeneidade da população, principalmente com a mistura de raças e culturas, tornando a identificação dos indivíduos incuráveis como alvos fáceis das agências estatais de punição. Leal, J.S.; Vechi, F. A criminologia crítica para além da crise Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 235 Vale lembrar que a política econômica que estava sendo gestada pelos Estados-nações europeus em meio a turbulência das invenções do final do século XIX e começo do século XX era o liberalismo. Com a circulação livre do capital nas mãos burguesas, a ordem social racional era a de intervenção mínima estatal e a supervalorização da propriedade privada. “Os empresários tomavam suas decisões segundo máximas de lucro [...] Incrementou-se, portanto, a exploração da mão-de-obra, substituída, quando possível, pela máquina, criando-se grandes massas de desempregados” (OLMO, 2004, p. 43). Portanto, a transformação do sistema penal não foi explicada como algo isolado do sistema econômico, toda mudança para combater ao crime foi aliada ao sistema de produção, e, consequentemente, este buscou a melhor forma de punir para manter e legitimar a ordem social dominante (RUSCHE e KIRCHHEIMER, 2004). “A chamada delinquência convencional varia, em consequência, de acordo com o tipo de sistema de produção; mas também segundo o grau de desenvolvimento cultural e de evolução socioeconômica” (CASTRO, 1983, p. 26). Quando a filosofia liberal começa a ser questionada pelo positivismo jurídico dos recentes estados-nação que se fortaleceram com suas políticas imperialistas e neocolonizadoras, o direito penal vai se tornando cada vez mais autoritário a ponto de permitir que o cientificismo seja usado para concretizar políticas eugenistas, no marco teórico do darwinismo social, de eliminação em massa de grupos étnicos (ANITUA, 2008). A primeira grande guerra marcou a derrota dos impérios centrais e iniciou o processo do nacionalismo alemão que acabaria desencadeando o que foi o Estado nacional-socialista. Nesse ponto começa uma trágica história da humanidade, com base nas doutrinas e estudos antropológicos lombrosianos: O nacional-socialismo alemão não inventou ideologicamente quase nada sobre a questão criminal, e sim usou o que outros haviam inventado; tampouco teve um discurso criminológico original, pois, para encobrir seus massacres, valeu-se do que dominava havia muito tempo [...] O aniquilamento de todas as raças inferiores e incômodas é um corolário quase necessário desse ponto de partida. Também o é que não vale a pena manter presos os fracassados internos que causam problemas aos aparatos mais aperfeiçoados. A eliminação dos que custam muitíssimo dinheiros nos manicômios e asilos não é menos coerente. Mas ainda. Explicam-se essas consequências quando esses recursos são considerados necessários para sustentar os perfeitos que oferecem sua vida nas trincheiras após a conquista do planeta (ZAFFARONI, 2013, p. 96). A partir do século XX com o início da grande imigração, e tendo em vista que a Europa se encontrava arrasada após a Grande Guerra, ocorre a reformulação do pensamento criminológico baseado em uma nova ciência. “Foi então que apareceu a sociologia, e com ela o novo modelo de especialista que dominaria o saber sobre essa questão: o sociólogo substituiria o médico, o jurista, o filosofo e o teólogo” (ANITUA, 2008, p. 405). Destacam-se, neste contexto europeu figuras como Emile Durkheim e Gabriel Tarde da escola francesa, Max Weber e Georg Simmel da escola alemã. Eles dariam uma nova luminosidade as teorias criminais, desvinculando-as do biologismo reducionista, como fez Durkheim, por exemplo, pensando o delito como algo normal na sociedade. Na contramão desse pensamento que desencadearia o genocídio da Segunda Guerra Mundial, o novo mundo já se destacava economicamente em seu processo de industrialização com relação aos países europeus e em suas novas concepções de controle criminal. Nas palavras de Rosa del Olmo (2004) os norte-americanos foram hegemônicos no capitalismo global, e desse modo, difundiram através de seus especialistas o novo paradigma que se criara para países da América Latina de capitalismo dependente. Os Estados Unidos como maiores beneficiados das duas grandes guerras, segundo ANITUA (2008) apresentaram no ambiente Leal, J.S.; Vechi, F. A criminologia crítica para além da crise Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 236 acadêmico a chamada Escola de Chicago, revelando uma sociologia contextualizada no momento histórico e desenvolvimentista norte-americano de suas necessidades de controle social dentro das cidades diante do intenso processo de urbanização e industrialização que vivenciava.

1.1 A criminologia crítica e o ápice da razão radical

É moldada uma nova mudança de paradigma/ruptura epistemológica que abandona o paradigma etiológico-determinista, inclusive alterando seu objeto criminológico – passando do criminoso para o criminalizado – e neste novo paradigma, um dos pontos nevrálgicos de seu objeto seriam as condições de criminalização, dando a base para o que, no futuro, denominar-se-á Criminologia Crítica. Outrossim, quando se refere a esta ruptura, não se trata de uma mudança de curta duração, mas, subentende-se uma mudança estrutural que altera o discurso criminológico ao longo do tempo (GARLAND, 2008), tornando-o, de certa forma, dominante e, por conseguinte, um verdadeiro ato de poder (ANITUA, 2008). Diferentemente da naturalização feita pelo positivismo criminológico, a nova ruptura vê o sistema penal como aquele que constitui seu aparelho repressor sobre determinada população não porque estes têm maior tendência a delinquir, mas justamente porque as chances de serem criminalizados é muito maior (ANDRADE, 1995). O labelling approach é designado na literatura, alternativa e sinonimamente, por enfoque (perspectiva ou teoria) do interacionismo simbólico, etiquetamento, rotulação ou ainda por paradigma da ‘reação social’ (social reation approach), do ‘controle’ ou da ‘definição’. Ele surge nos Estados Unidos da América em finais da década de 50 e inícios da década de 60 com os trabalhos de autores como H. Garfinkel, E. Gofmann, K. Ericson, A. Cicourel, H. Becker, E. Schur, T. Scheff, Lemert, Kitsuse entre outros, pertencentes à ‘Nova Escola de Chicago’ com o questionamento do paradigma funcional até o momento dominante dentro da Sociologia norte-americana. Considera-se H. Becker, sobretudo através de seu já clássico Outsiders (publicado em 1963) o fundador deste paradigma criminológico. E na verdade, Outsiders persiste ainda como a obra central do labelling, a primeira onde esta nova perspectiva aparece consolidada e sistematizada e onde se encontra definitivamente formulada a sua tese central (ANDRADE, 1995, p. 27). Não cabe mencionar neste trabalho todas as teorias desenvolvidas pela então nascente Escola de Chicago: as escolas-teorias do consenso e do conflito, da anomia, da desorganização social e das subculturas, o estudo dos crimes de colarinho branco; apesar das inúmeras teorias, o foco principal se dará na teoria que será base para o que, posteriormente, se denominará de criminologia crítica, ou seja, a teoria do labelling approach – o novo paradigma criminológico, ou enfoque da reação social no acerto de Alessandro Baratta (2002), passando de uma criminologia etiológica para uma rotulacionista. A ideologia da defesa social, modelo que legitima a ciência penal e o sistema jurídico burguês, explica através de uma série de princípios citados por Alessandro Baratta (2002) (legitimidade, do bem e do mal, finalidade, igualdade, interesse social) como certificar políticas que estavam sendo dirigidas do modelo de Estado liberal clássico absenteísta para o social intervencionista. Neste novo paradigma supracitado, a reação social passa a considerar não apenas a criminalidade como fator causa do desvio, mas, especialmente, como as agências formais e informais definem o que é crime e a quem é dado o status de criminoso (BARATTA, 2002). A partir das teorias criticas, se entendeu e sedimentou a ideia do Crime e criminoso são construções. O primeiro é definido pelas agencias estatais, o segundo pela mudança de identidade social, introduzindo-se um status de desviante. Uma das consequências destacadas nos resultados da intervenção penal sob esse status Leal, J.S.; Vechi, F. A criminologia crítica para além da crise Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 237 atribuído ao criminoso (tornando ele um criminalizado), é a fragilidade das ideias do sistema reeducativo aplicado entre os reclusos, onde, na maior parte dos casos, consolidam uma identidade desviante e uma carreira criminosa (BARATTA, 2002). Dessa forma, “a maneira pela qual as sociedades e suas instituições reagem diante de um fato é mais determinante para defini-lo como delitivo ou desviado do que a própria natureza do fato, como ensinava o positivismo” (ANITUA, 2008, p. 588). No exemplo de Massimo Pavarini: “Si un sujeto es socialmente definido como violento, y por consecuencia tratado como tal, según este modelo interpretativo terminará por creerse realmente violento y por comportarse de modo violento” (PAVARINI, 1988, p. 128). Não obstante, a principal crítica ao modelo do labeling, dada por Massimo Pavarini (1988) foi a de que esta teoria negava a realidade estrutural do problema criminal (social, política e econômica) na explicação do comportamento desviado, isto é, “afirmando que criminal es sólo quien ha sufrido un proceso de criminalización se termina por perder de vista que la acción desviada es en primer lugar expresión de un malestar social, de un conflicto social” (PAVARINI, 1988, p. 130). Não dar a devida atenção ao aspecto político da criminalização acabaria por “legitimar una hipótesis neoliberista, una práctica de lassair-faire en el sector social, esto es una invitación a abstenerse de toda intervención dirigida a la superación de las contradicciones socioeconómicas” (PAVARINI, 1988 p. 131). Além do mais, os ‘materialistas’ criticariam o descuido ou não-importância devida ao ‘desvio primário’, que fazia com que o enfoque do etiquetamento não fosse ao fundo desses problemas sociais, o que revelaria a existência de causas estruturais. O etiquetamento também seria criticado, a partir da esquerda, por cair num novo determinismo que nega a vontade do agente. Esta vez o comportamento estaria determinado ou provocado pela imposição da etiqueta (ANITUA, 2008, p. 598). A crítica feita por Massimo Pavarini é pontual, pois demonstra que não existia, nesta teoria, uma perspectiva histórica e crítica que demonstrasse ser o problema criminal de origem estrutural, ou seja, o objeto (o desviado) não é posto dentro da totalidade do sistema (CASTRO, 1983) com suas contradições de classes, desigualdade política, e todas as formas de atuação da ideologia dominante pautada no modelo burguês capitalista. Quanto a economia, cabe destacar que, o modelo capitalista passaria por uma crise, começando nos Estados Unidos, e logo após a disseminar-se para o resto dos países europeus. A grande depressão no ano de 1929 se prolongou até o final da Segunda Guerra Mundial, dando início, após este período, a instalação de modernos sistemas assistenciais, mostra disto, seria a atitude tomada pelo então presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt ao coordenar os programas do New Deal para salvar a economia e, no ano de 1935, estabelecer dentre seus planos, o Social Security Act no país (HOBSBAWM, 1994). Neste período, pós Segunda Guerra Mundial, começa a tradição crítica/historicista/marxista dentro da Criminologia, contando com muitos cientistas sociais que, após desencadeada a tomada de poder político na Europa pelo governo nazista, fugiram e instalaram-se nas universidades norte-americanas. Além disso, emergem movimentos sociais que ganham força e reconhecimento mundial, como o feminismo, o anarquismo (e dentro dele os chamados punks), o pacifismo (dentro dele os chamados hippies), atuando em lutas políticas e sociais que culminaram no movimento de maio de 1968 (ANITUA, 2008). Há uma nova mudança de paradigma/ruptura epistemológica, e esta veio para se distanciar daqueles enfoques tecnocráticos e dependentes do direito penal e avançar na multidisciplinariedade dando enfoque, principalmente, as questões políticas e de governabilidade (ANITUA, 2008). Leal, J.S.; Vechi, F. A criminologia crítica para além da crise Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 238 Na perspectiva da criminologia crítica a criminalidade não é mais uma qualidade ontológica de determinados comportamentos e de determinados indivíduos, mas se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais; em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas. A criminalidade é – segundo uma interessante perspectiva já indicada nas páginas anteriores – um ‘bem negativo’, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema sócioeconômico e conforme a desigualdade social entre os indivíduos [...] o direito penal tende a privilegiar os interesses das classes dominantes, e a imunizar do processo de criminalização comportamentos socialmente danosos típicos dos indivíduos a elas pertencentes, e ligados funcionalmente à existência da acumulação capitalista, e tende a dirigir o processo de criminalização, principalmente, para formas de desvio típicas das classes subalternas (BARATTA, p. 161-165, 2002). Floresce a Criminologia Crítica, advinda para reformular a reação social utilizando principalmente a crítica marxista e os saberes dos autores da Escola de Frankfurt, tomando como exemplo o livro The New Criminology de Taylor, Walton e Young escrito em 1973. A criminologia radical, para os autores, não deve atuar da mesma forma que a ciência conservadora e liberal, o qual tomava a única missão de descrever e prescrever seus saberes. Essa nova criminologia deve ser pautada, sobretudo, na práxis, ou seja, “uma teoria revolucionária... somente ganhará aceitação se a natureza das relações sociais incorporadas na teoria são realizadas no mundo real” (HARVEY, 1973, apud TAYLOR; WALTON e YOUNG, 1980, p. 26). Escreve Alessandro Baratta: la nueva criminología ha dejado de ser interno, y en este sentido auxiliar, al sistema, pasando a ser externo al mismo: esto significa que las definiciones del comportamiento criminal producidas por las instancias del sistema (legislación, dogmática, jurisprudencia, policía y sentido común), no son asumidas como punto de partida, sino como problema y objeto de averiguación y son estudiadas en el contexto más general de la teoría, de la historia y del análisis contemporáneo de la estructura social (BARATTA, 2004, p. 145). No começo dos 60 do século passado, os EUA já possuíam uma política de bem-estar social assentada sob as bases da democracia social, e saiu, após a Segunda Guerra Mundial, como o país mais beneficiado economicamente dentre os envolvidos, como já mencionado. Isto fez com que, espelhados na economia norte-americana, “outros países tentassem sistematicamente imitar os EUA, um processo que acelerou o desenvolvimento econômico, uma vez que sempre é mais fácil adaptar-se a uma tecnologia existente do que inventar uma nova” (HOBSBAWM, 1994, p. 211). Assim, além de estabelecerem os parâmetros de governabilidade capitalista made in USA, suas políticas criminais seguiram o mesmo caminho. Até a década supramencionada, os índices criminais se mantiveram estáveis e a população continuava com a crença de que o Estado, historicamente situado com seu modelo de welfare no pós guerra, era quem deveria adotar medidas para solucionar os problemas da criminalidade (GARLAND, 2008).

2 A anunciada crise da criminologia critica

Massimo Pavarini ao final de Control y dominación: Teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico (1988), conclui que os anos de desenvolvimento da criminologia vão de 1940 ao final de 1960 e dá a razão disto a produção de riquezas geradas pelo Estado de bem-estar social e a fé de que os problemas sociais poderiam ser resolvidos por este modelo. No final dos anos 60 do século XX, para o autor, a crise econômica Leal, J.S.; Vechi, F. A criminologia crítica para além da crise Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 239 muda o panorama da criminologia, “Y a medida que la crisis económica prosigue, va diluyéndose precisamente la esperanza de poder conciliar la fase actual del capitalismo con el reformismo social” (PAVARINI, 1988, p. 167). E neste ponto entram as análises Garland (2008) a respeito da cultura do controle. O Estado de bem-estar começa a ruir. A transformação se inicia nos EUA e na Grã-Bretanha ao longo dos anos 70 e marca a passagem ideológica-econômica para o que se denominaria como neoliberalismo1 , isto é, um ideal liberal progressista que, através de novos teóricos, pensadores, politicos, passa a botar em prática teorias mascaradas por um conservadorismo exacerbado, principalmente no âmbito penal. Garland (2008) cita obras deste período, como a de Robert Martinson escrita em 1974 e intitulada What Works in Prison Reform? onde o autor faz uma análise dos casos de presos e chega a conclusão de que a reabilitação não estava mudando a reincidência. Do mesmo modo, em 1975, o conhecido e popular James Q. Wilson escreveu seu best-seller Thinking About Crime o qual zombava dos programas sociais e da melhor distribuição de renda. Para este autor deveriam ser rigorosamente aplicadas penas intimidatórias capazes de desestimularem os potenciais criminosos e, além disso, “suas soluções preferidas eram policiamento mais vigoroso e punições mais severas e certas, isto é, intimidação e controle, em lugar de mais bem-estar” (GARLAND, 2008, p. 153). O trabalho de Wilson encabeçaria a proposta teórico-política do nascente Realismo de Direita (SWAANINGEN, 2005) que propunha um ataque a criminologia crítica, sobretudo em seu seguimento mais radical, isto é, o abolicionismo penal. Completa de forma realista, Rene van Swaaningen, o cenário deste momento: “tanta energia en la lucha contra la inseguridad de la poblacion – y con ello, en la lucha contra los pobres de la ciudad” (2007, p. 8). Perdia-se a dimensão do correcionalismo e da reabilitação e, mergulhava-se, novamente, na punição retributiva e na linha dura do neoconservadorismo. A falência dos Estados de bem-estar não prometia um futuro melhor, e sim a ascensão de posturas conservadoras no centro do capitalismo e uma grande incerteza nas margens, assim como nos países do socialismo real, que não tardariam a serem derrubados como se fossem castelos de cartas (ANITUA, 2008, p. 692) Para professora Elena Larrauri, em sua obra La Herencia de la Criminologia Critica (1991), cujo último capítulo está intitulado La crisis de la Criminologia Crítica, o criticismo criminológico não havia conseguido produzir uma mudança de paradigma, e assim, o que ele continuava fazendo, em certo sentido, era manter a perspectiva da teoria do etiquetamento com algumas mescla de materialismo histórico. Assim como Melossi, quando questiona a existência de uma crise da criminologia crítica em 1984 na Revista La Cuestione Criminale, Larrauri esclarece que alguns autores colocavam o problema nas teorias criminológicas como demasiadamente românticas e idealistas. Uno de los ejemplos más evidentes, es un libro recientemente editado en los Estados Unidos por JAMES A. lNCIARDI llamado Radical Criminology, donde una de las críticas que aún se repiten en 1981, es que la criminología crítica no es más que el romanticismo del delito, su celebración, etc., lo cual no es cierto si uno lee sus obras fundamentales (MELOSSI, 1984, p. 517) 1 Uma nova fase da organização social capitalista que no qual se verifica um novo processo de contração do Estado, mediante a regulamentação da desregulamentação, como forma de permitir novamente que o mercado ocupe espaços que haviam sido povoados pelo Estado, mormente o Estado de Bem-Estar social de providência. Também se verifica mudanças de mercado, na medida em que a reorganização capitalista faz com que se avance para o mercado de serviços (nãos dedicando toda a sua atenção a produção de bens duráveis); sendo essa característica de grande importância e impacto para a questão criminal, na medida em que o próprio direito a segurança, ou mesmo a custodia de indivíduos é constituída em prestação de serviço, além de todo aparato que aponta Nils Christie no A Industria do Controle do Crime: a caminho de Gulags em estilo Ocidental. Leal, J.S.; Vechi, F. A criminologia crítica para além da crise Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 240 Um problema certamente de ordem política, segundo a autora, a criminologia crítica se dividiu em correntes e seu discurso, por conseguinte, ampliou-se, sugerindo para autores como James Q. Wilson que os objetivos diluíram-se, e que “averiguar las causas es un tema excesivamente complejo, son numerosas, hay además un cierto grado de libre opción [...] decir que no se puede hacer nada hasta que no se afecte a las causas es una buena excusa para no hacer nada” (LARRAURI, 2009, p. 201). Com este discurso, legitimava-se o conservadorismo das políticas de lei e ordem. O nome de James Q. Wilson se destacou como representante do que seria uma criminologia administrativa (YOUNG, 1986 apud LARRAURI, 2009) pautada em reprimir os crimes de rua, principalmente nos governos republicanos dos EUA, como forma de atender a uma política teórica de militância de War on Crime2 (SIMON, 2007) usando a fórmula perfeita para angariar votos, criar uma cultura do medo e, ainda assim, alcançar o prestígio da população. Para Baratta (2004), em ¿Tiene futuro la criminología crítica? a partir do paradigma da reação social, a sociologia criminal deixou de ser uma ciência auxiliar da dogmática penal e da política criminal para se converter em um saber que se utiliza da dogmática e da política como seus objetos de estudo. A nova criminologia passa a ser externa ao sistema, tornando as definições produzidas pelas instâncias do sistema (legislação, dogmática, jurisprudência, polícia) alvo de problematização com a história e a estrutura social econômica. A interdisciplinariedade como sendo o método que busca ultrapassar amarras e separações entre as disciplinas, através da conjunção de saberes e ferramentas analíticas para melhor compreender uma relação social faz parte de um saber jurídico-integrado na dimensão da definição ou reação social. E para o autor, o atual problema da criminologia crítica está em sua base epistemológica que se encontra numa crise, onde a dimensão da definição ou da reação social passa a considerar a dimensão comportamental. Na dimensão comportamental, o objeto de discurso da criminologia se refere de forma mais geral, a “las situaciones problemáticas relacionables con el comportamiento de sujetos individuales” (BARATTA, 2004, p. 148), logo os objetos da criminologia (tanto tradicional quanto crítica) acabam não tendo limites, tampouco uma homogeneidade estável. Não se pode comparar os crimes tradicionais, como lesões patrimoniais, físicas ou contra honra com os crimes novos, aqueles de uma sociedade pós-industrial (crimes ambientais, crimes organizados, tráfico de drogas etc). Sostengo que no existe futuro para una disciplina, la criminología, que pretenda encerrar dentro de su propia gramática todas las dimensiones comportamentales de la "cuestión criminal", es decir, todas las situaciones de violencia y de violaciones de los derechos, de problemas y conflictos sociales que se refieren a ella (BARATTA, 2004, p. 150) A criminologia não pode se manter isolada das outras disciplinas jurídicas, psicológicas, políticas. A debandada da criminologia a que se refere Zaffaroni (2013), e que foi utilizada por teóricos conservadores para legitimar seus discursos e teorias (broken windows theory), em realidade, aprofundou-se em diversas direções, e para o autor, isto foi saudável. Uma vez que a brutal virada repressiva que se instalou logo após a ruína dos 2 Formula eleitoreira que se pode expressar no fragmento da obra que se apresenta como a síntese desse movimento: “Em Janelas quebradas: a polícia e a sociedade nos bairros, eles defendiam, com veemência, a necessidade de punir mesmo as menores incivilidades de rua, uma vez que estas representariam o ponto de partida de uma deterioração maior nos bairros. Os autores usavam como exemplo a metáfora das janelas quebradas: se uma janela de um edifício está quebrada e se ela não é consertada, as demais janelas em pouco tempo estarão quebradas também, porque uma janela sem conserto é sinal de que ninguém se preocupa com ela e, portanto, quebrar as demais janelas não teria custo algum. Um edifício com todas as janelas quebradas traduz a ideia de que ninguém se importa com o que acontece nas ruas e logo outros edifícios estarão danificados. Isso terá efeitos negativos, pois só os jovens, os criminosos ou os temerários mantem alguma atividade numa avenida sem proteção, e, por conseguinte, cada vez mais cidadãos abandonarão a rua. Com essa explicação, Wilson e Kelling deixam claro quem eles consideram como cidadãos” (ANITUA, 2008. p. 783-784). Leal, J.S.; Vechi, F. A criminologia crítica para além da crise Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 241 Estados de bem-estar social, motivou este discurso falso de que a criminologia crítica estava em crise. Esta passagem se assemelha ao que ocorreu entre criminologia clássica e criminologia positivista. Apresenta-se um discurso de que as coisas como estão, não estão fazendo efeito ou estudar as causas, é uma boa desculpa para não se fazer nada, nos dizeres de James Q. Wilson (LARRAURI, 2009). O novo poder punitivo, ou neopunitivismo, atua das mais variadas formas e, portanto, os objetos e instrumentos devem ser alterados para alcançar maior êxito em uma criminologia crítica. Os novos saberes como a criminologia feminista, a vitimologia, o abolicionismo penal com a justiça restaurativa, a criminologia midiática e genocida, devem ser abordados dentro da criminologia crítica, e esta deve estar aliada com outras disciplinas. A criminologia crítica não ruiu, tampouco desapareceu, mas “se diversificou para se aprofundar” (ZAFFARONI, 2013, p. 162) frente as urgências que se passam no atual panorama punitivo. Como Melossi (1984) esclarece ao finalizar seu artigo, “Si se está pensando en una crisis letal de la criminología crítica, como lo sugieren o lo esperan algunos de los críticos, yo lo excluyo” (MELOSSI, 1984, p. 519). Não se pode falar de crise quando existem múltiplos ambientes que disseminam o poder punitivo, seja o midiático, seja o político. Em cada um deles, é preciso uma interação crítica aliada a estrutura social e produtiva em “un esfuerzo por dejar la adolescencia y convertirse en adulto” (MELOSSI, 1984, p. 519).

Conclusões

Em termos de conclusão, primeiramente este trabalho se propôs a trazer a reflexão sobre essa discussão travada por importantes teóricos da criminologia crítica sobre a sua suposta crise, e tampouco tem a pretensão de exaurir o tema ou mesmo de apresentar uma resposta definitiva. Pensa-se que talvez a veredito de crise, que tampouco era uníssono, e que gerou resposta quase imediata do professor Alessandro Baratta, p.ex.; e que de qualquer forma foi o start para um importante diálogo e reavaliação crítica sobre as funções da criminologia inserida em dada estrutura social. A conclusão central a que se pode aportar neste momento é pelo entendimento não de uma crise, mas sim de um repensar das atividades ligadas a criminologia crítica, tanto em termos de produção de conhecimento quanto em termos de resultados efetivos desse pensar. Entende-se pela inexistência de crise porque ao tempo em que a criminologia chega a seu ápice teóricointelectual, ou mesmo sua radicalidade teórica e ideológica, era o momento em que o mundo como um todo, e, sobretudo, a região latino-americana (enquanto região marginal) passava por importantes transformações de ordem social, cultural, política, econômica (re-democratização, neoliberalismo, crise do welfare-state...); e tampouco a criminologia mais crítica e radical chegou as instâncias de poder para se poder fazer essa análise de incapacidade de resolver o problema da criminalidade – o que por sua vez se apresenta impensável uma sociedade sem conflitos sociais. A questão é o trato a que se vai dar a essas situações-problema (para utilizar uma denominação houlsmaniana), e sobre isso a criminologia aporta importantes, e ainda não utilizados mecanismos. Nesse sentido, parece que a grande lição extraída dessa discussão e dessa suposta crise, primeiro é a sua inexistência, mas também a necessidade imperiosa de repensar algumas estratégias para a disciplina em seu porvir, sendo uma delas, e talvez uma das mais urgentes, forma de inserção e efetivação de políticas alternativas, como meio de colocar em prática todo o lastro e arcabouço teórico e empírico acumulado nas últimas décadas de pesquisa, que em alguma medida se pode, sim, acusar de terem ficado encerradas nas torres de marfim acadêmicas. Por fim, em uma última avaliação, parece que a criminologia no auge da sua radicalidade de repudiar toda e qualquer estratégia de mudança como sendo de índole burguesa ou meramente reformista ou Leal, J.S.; Vechi, F. A criminologia crítica para além da crise Sistema Penal & Violência, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 231-242, jul.-dez. 2016 242 re-legitimadora do sistema afasta-se da importante bandeira dos Direitos Humanos que podem ser uma importante estratégia de contenção da violência estatal, e mecanismo de efetivação de algumas pautas criminológicas críticas e alternativas; e, dessa forma uma dinâmica de luta popular pela diminuição da violência estrutural e institucional, além de permitir a criminologia sair de seu encerramento e isolacionismo acadêmico – constituição da criminologia em práxis transformadora. Em síntese, repensar da criminologia crítica para o século XXI passa por resgatar a sua função de desvelamento e conscientização em relação ao funcionamento do sistema penal, e, sobretudo, a sua capacidade de interferir nele e transformar todo seu arcabouço teórico e acúmulo empírico em obstáculo para a violência institucional e quiçá uma ferramenta contra a violência estrutural; mormente em um momento histórico de exacerbação dos problemas sociais, e violências, que tem nos indivíduos marginalizados seus principais alvos e o sistema penal nos indivíduos marginalizados sua principal clientela.

Referências

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