Crimes eleitorais e transação penal


Porwilliammoura- Postado em 23 novembro 2012

Autores: 
DECOMAIN, Pedro Roberto

Crimes eleitorais e transação penal

 

 

A recente Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, em vigor a partir de 27 de setembro daquele ano, trouxe uma série de inovações no Direito e no Processo Penal Brasileiros.

De modo geral, inovações de excelente qualidade, as quais, em relação aos crimes de menor gravidade, alvo daquela legislação, tornaram a respectiva apuração, processamento e punição muito mais ágeis e prontos.

Dentre elas ressalta a figura da Transação Penal.

 

Impossível, na sistemática anterior à lei, qualquer alternativa à instauração do processo penal, ao menos em tema de infrações apuradas mediante ação penal pública, e que constituiam, como ainda constituem, a franca maioria dos ilícitos penais. A ação penal privada, com efeito, e em relação à qual vige o princípio da disponibilidade, surge como exceção.

Pois bem.

Na sistemática vigente antes da mencionada lei, o príncipio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pelo Ministério Público (titular exclusivo daquela modalidade de ação, no atual quadro constitucional) era absoluto.

Com aquela lei, ao menos no tocante às infrações penais que admitem a transação penal, passou referido princípio a ser mitigado.

Hoje, quando se cuide de infrações daquelas que admitem a aplicação do instituto da transação penal, possui o Ministério Público, em se cuidando de ilícitos penais de ação penal pública, da alternativa da transação penal.

Efetivamente, alternativa ao exercício da ação penal é do que se cuida.

Daí porque inarredável a conclusão, inclusive já enfatizada pela Confederação Nacional do Ministério Público, de que a transação penal não pode ser proposta ao autor do fato por qualquer outra autoridade, que não o próprio Ministério Público.

Restou dito que a transação penal é alternativa ao execício da ação penal, nos ilícitos que a admitem .

Quais são esses ilícitos?

Essa a temática resumidamente discutida a seguir.

A transação penal vem prevista no artigo 76 da Lei nº 9.099/95. De acordo com aquele dispositivo, havendo representação, ou tratando-se de crime de ação penal pública incondicionada, não sendo caso de arquivamento, o Ministério Público poderá propor a aplicação imediata de pena restritiva de direitos ou multas, a ser especificada na proposta. O parágrafo 2º daquele artigo elenca os casos em que a transação é inadmissível.

Essa regra tem a sua aplicação condicionada a que se cuide de infração penal de menor potencial ofensivo.

De conceituar tais infrações cuida, a seu turno, o artigo 61 da mesma lei. Aquele dispositivo as define do seguinte modo:

Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial.

O que resulta aparentemente do dispositivo é que não serão considerados ilícitos penais de menor potencial ofensivo, os crimes a serem apurados através de procedimento especial.

Baseando-se o intéprete nesse primeiro entendimento, estariam excluídos da possibilidade da transação penal todos aqueles crimes que, embora apenados com pena máxima não superior a um ano, tivessem a sua apuração realizada através de procedimento diverso do procedimento comum, ordinário ou sumário, previsto pelo Código de Processo Penal.

Dentre os crimes que, a utilizar-se essa exegese, ficariam excluídos da transação penal, estariam, por exemplo, os crimes eleitorais, eis que o procedimento para sua apuração, previsto nos artigos 355 a 364 do Código Eleitoral, é diverso tanto do procedimento ordinário, quanto do procedimento sumário, ambos espécies do gênero "procedimento comum", do CPP.

Deve-se ressaltar, porém, que a Lei nº 9.099/95 tem seu fundamento no inciso I do artigo 98 da Constituição Federal, que diz o seguinte:

Art. 98. A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão:

I - juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

Bem de ver, portanto, que é de central importância, nessa matéria, o conceito de infração penal de menor potencial ofensivo.

Qual o critério atavés do qual se pode afirmar que uma infração é de menor potencial ofensivo?

O único critério juridicamente válido para tanto, quer-me parecer, é o da pena abstratamente cominada pelo legislador à infração.

O legislador é livre para cominar penas aos ilícitos penais que cria, assim como é livre para definir qual o limite de pena abaixo do qual a infração será considerada de menor potencial ofensivo.

Outro critério, porém, qualquer que seja ele, que se pretenda utilizar para definir o que é uma infração dessa natureza, terá sabor de nítida inconstitucionalidade, por ofensa ao princípio do tratamento isonômico, insculpido no próprio caput do artigo 5º da Constituição Federal.

Ocorre que a Lei nº 9.099/95 aparentemente excluiu do rol das infrações penais de menor potencial ofensivo, os crimes apurados através de procedimento especial.

De indagar-se então se tal regra, de definição do maior ou menor potencial ofensivo, através do procedimento destinado à sua apuração em juízo, é ou não logicamente correlata com a maior ou menor gravidade da infração, de sorte a validar-se como critério aceitável de discriminação entre umas e outras.

Como já se salientou, a pena é o instrumento para se avaliar se uma infração penal tem maior ou menor potencial ofensivo.

O único critério constitucional aceitável para separar essas categorias de infrações, de tal sorte a permitir para elas tratamento penal diferenciado, é o do montante da pena abstratamente cominada.

A propósito, relembre-se o ensinamento de Celso Antônio Bandeira de Mello, assim versado:

O ponto modular para exame da correção de uma regra em face do princípio isonômico reside na existência ou não de correlação lógica entre o fator erigido em critério de discrimen e a discriminação legal decidida em função dele.

E acrescenta, logo depois:

Com efeito, há espontâneo e até inconsciente reconhecimento da juridicidade de uma norma diferençadora quando é perceptível a congruência entre a distinção de regimes estabelecida e a desigualdade de situações correspondentes.

De revés, ocorre imediata e intuitiva rejeição de validade à regra que, ao apartar situações, para fins de regulá-las diversamente, calça-se em fatores que não guardam pertinência com a desigualdade de tratamento jurídico dispensado. ( O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade; 1ª ed.; São Paulo; RT; 1978; págs.47/48).

O que se passa no terreno das infrações penais de menor potencial ofensivo é exatamente a situação focada do último parágrafo da lição transcrita. Por incongruente, do ponto de vista lógico, com a disparidade de tratamento disposta na lei, o critério de excluir da transação penal os crimes apurados através de procedimento especial, mesmo quando tenham pena máxima não superior a um ano, é ilógico.

Para que se perceba essa circunstância com maior clareza, basta atentar para crimes eleitorais previstos na Lei nº 9.100/95, que regula as eleições de 1996.

Em seu artigo 67, inciso IX, a lei em questão criminaliza a conduta da distribuição de brindes e outros materiais de propaganda eleitoral no dia da eleição. A pena para tais condutas é exclusivamente de multa.

Já em seu inciso XI, o mesmo artigo pune a conduta de causar ou tentar causar dano à máquina de votação ou a qualquer de seus componentes.

Aí, a pena mínima já passa a ser de detenção de dois anos.

As duas infrações, todavia, serão processadas segundo o mesmo procedimento, previsto no Código Eleitoral.

Alguém, em sã consciência, dirá, porém, que ambas possuem o mesmo potencial ofensivo.

Curial que o potencial de dano da infração consistente na distribuição do material de propaganda, é bem inferior ao da danificação ou destruição da urna eletrônica ou qualquer de suas partes. E essa diferença de gravidade é denunciada imediatamente pela disparidade na pena cominada pelo legislador a ambas as infrações.

Resta claro que o único critério válido de discriminação é a pena. Resta claro, também, que o procedimento, comum ou especial, rigorosamente não interfere com a gravidade da infração.

Aliás, é até logicamente possível a existência de procedimento especial mais abreviado, para apuração de crimes com pena mais severa, e procedimento especial mais abrangente, com maior complexidade, para infrações com pena menor.

Tudo a evidenciar que o critério do procedimento especial fere o princípio da igualdade de tratamento, insculpido na Constituição.

Infrações penais compreendidas dentro de idênticos limites de pena, devem ter o mesmo tratamento, em termos de aplicação dos institutos despenalizadores da Lei nº 9.099/95, pouco importando qual o procedimento pelo qual devam ser apuradas tais infrações.

Em conclusão, qualquer que seja o procedimento destinado à apuração judicial do crime com pena máxima não superior a um ano, a referido crime será aplicável o instituto da transação penal, previsto pelo art. 76 da Lei nº 9.099/95.

Vale registrar que o Tribunal de Justiça de Santa Catarina, em decisão recente, a propósito de crime de abuso de autoridade, o qual, pelo critério da pena privativa de liberdade, admite a suspensão condicional do processo, mas também tem procedimento especial, admitiu a transação. A ementa do acórdão é a seguinte:

Apelação criminal. Abuso de autoridade (arts. 3º, a e j , e 4º, a, b e c, ambos da lei nº 4.898/65. Inteligência do art. 76, da Lei nº 9.099/95.

Norma que, embora de Direito Processual, tem efeito penal. Denúncia recebida antes da entrada em vigor da Lei dos Juizados Especiais Criminais. Possibilidade da transação. Retorno do feito à origem que se impõe, para possibilitar ao Ministério Público a oportunidade para propor a aplicação imediata da pena restritiva de direitos ou multas. Não conhecimento do recurso. (...). (Apelação criminal nº 96.002249-0, da Capital, rel. Des. Jorge Mussi, DJ 22.07.96, pág. 10).

Registre-se que também o Prof. Damásio de Jesus, ao cuidar das infrações para as quais tem cabimento a transação penal, nelas inclui as contravenções e os crimes com pena máxima abstrata não superior a um ano, sem a restrição do procedimento especial (Lei dos Juizados Especiais Criminais Anotada; 1ª ed.; São Paulo; Saraiva; 1995; pág. 64).

O que se deve compreender, no pertinente à cláusula de exclusão do procedimento especial, é não que tal clásula impeça a incidência da transação penal, mas sim que, em sendo infrutífera ou descabida esta por qualquer circunstância, o procedimento para apuração da infração penal, será o procedimento específico, correspondente à natureza da infração de que se cuide.

Nesse caso, a competência para o processo e julgamento de tais infrações, também não será do Juizado Especial Criminal, mas sim do Juízo criminal próprio, de acordo com a natureza da infração. Especificamente em tema de crimes eleitorais, frustrada a transação penal, por qualquer motivo, o processo correrá perante o Juízo Eleitoral, e não perante o Juizado Especial Criminal.

Aliás, a própria discussão da transacão penal não acontecerá perante o Juizado Especial Criminal, mas sim perante o Juízo Eleitoral.

A conclusão, portanto, é de que os crimes eleitorais, assim como quaisquer outros crimes a serem apurados mediante procedimento especial, admitem a transação penal, quando não lhes seja cominada pena privativa de liberdade em limite máximo superior a um ano.

De outra banda, ainda em tema de crimes eleitorais, impossível que se mostre a transação, no caso concreto, por qualquer circunstância, mesmo que se cuide de crime com pena máxima não superior a um ano, o procedimento judicial para apuração do ilícito será o do Código Eleitoral, e não o procedimento sumaríssimo previsto na própria Lei nº 9.099/95.