Controle preventivo de constitucionalidade sobre projeto de lei?


Porwilliammoura- Postado em 27 maio 2013

Autores: 
COSTA NETO, João

 

Medidas eleitorais casuísticas podem exorbitar da competência legislativa do Congresso Nacional e macular o devido processo legislativo. Qual o sentido, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, de admitir que se obste a tramitação de uma emenda e não a de uma lei ordinária?

 

Recentemente, Virgílio Afonso da Silva publicou artigo[1] em que critica a decisão liminar que suspendeu a tramitação do projeto de lei de n. 14/2013, cuja casa iniciadora é a Câmara dos Deputados e que se encontra atualmente no Senado Federal. O projeto prevê que “(...) a migração partidária que ocorrer durante a legislatura não importará na transferência dos recursos do fundo partidário e do horário de propaganda eleitoral no rádio e na televisão.” A decisão foi proferida monocraticamente pelo Ministro Gilmar Ferreira Mendes no mandado de segurança de n. 32.033.

 

Afonso da Silva, que é Professor Titular de Direito Constitucional na Universidade de São Paulo (USP), afirma que, na decisão proferida, não se conseguiu “(...) apontar absolutamente nenhum problema procedimental, nenhum desrespeito ao processo legislativo por parte do Senado.” Não acredito que esse seja o caso.

 

A regra em uma democracia é que a maioria decida, por meio de lei, todo tipo de problema que surgir. Quais as regras de trânsito? O que deve ser crime no país? Quais as regras jurídicas que devem ser observadas na celebração de um contrato de compra e venda? Todas essas perguntas são respondidas por meio de lei, ou seja, por meio de ato normativo infraconstitucional. Isso significa que a maioria sempre tem uma ampla margem de apreciação e um vasto poder de escolha e disposição sobre essas questões.

 

Constituições são feitas, ao menos em tese, para tratar de questões essenciais, isto é, de questões consideradas tão cruciais que não devem ser alteradas por uma simples maioria. Nem tudo está à disposição das maiorias transitórias. Na verdade, a motivação por trás disso é bastante intuitiva.

 

 

Suponha-se que um partido obtenha a maior parte dos votos em uma eleição e torne-se majoritário. A partir daí, se tudo fosse alterável por meio de lei ordinária, o partido poderia alterar várias leis nacionais, de modo a acabar com os direitos e garantias fundamentais e instituir uma ditadura partidária. Um partido majoritário poderia, por exemplo, extinguir todos os demais partidos ou acabar com liberdade de expressão e com o direito ao voto. As minorias perderiam a chance de tornar-se maioria[2] e o fair play democrático chegaria ao fim.

 

Nesse contexto, parece-me que medidas eleitorais casuísticas podem, sim, exorbitar da competência legislativa do Congresso Nacional e macular, por conseguinte, o devido processo legislativo.

 

Quando a Constituição exige uma maioria mais elevada para a alteração de seu texto, esse fato implica que certas questões fundamentais apenas podem ser resolvidas com a participação da minoria. Em outras palavras, uma maioria simples ou qualificada não tem - ao menos em algumas matérias - o direito de impor sua vontade às minorias, independentemente do tipo de minoria de que se trate.[3]

 

Isso não se aplica a minorias diminutas, insulares ou excessivamente apartadas e circunscritas[4], porquanto se a minoria for muito pequena ela não conseguirá impedir a aprovação de uma emenda. Presumidamente, essa é uma razão que levou várias Constituições a adotar cláusulas de eternidade ou cláusulas pétreas (Ewigkeitsklauseln; eternal clauses), as quais não podem ser abolidas por mais numerosa que seja a maioria.

 

No que concerne às cláusulas pétreas, o caso brasileiro é muito peculiar, como já foi observado por autores internacionais.[5] Ele difere completamente de países como Alemanha, Áustria, Estados Unidos, Índia, Irlanda, Israel e Turquia. Dentre outros motivos, porque o parágrafo 4º do art. 60 da Constituição Federal diz que sequer será “objeto de deliberação” o projeto de emenda à Constituição (PEC) tendente a abolir uma das cláusulas pétreas.

 

Vários manuais jurídicos[6] consignam expressamente a possibilidade de haver controle prévio de constitucionalidade nessa hipótese.

 

Como visto, o próprio texto constitucional corrobora solidamente a existência de tal controle prévio. Porém, Afonso da Silva diz que “[o]s precedentes do STF e as obras de autores brasileiros e estrangeiros que o ministro cita não têm relação com o que ele de fato decidiu.”

Esclareça-se, entretanto, que já é antiga e consolidada a orientação do STF no sentido de que qualquer parlamentar pode impetrar mandado de segurança contra PEC que viole cláusula pétrea (cf. MS 24.642, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 18.6.2004; MS 20.452/DF, Rel. Min. Aldir Passarinho, RTJ, 116 (1)/47; MS 21.642/DF, Rel. Min. Celso de Mello, RDA, 191/200; MS 24.645/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 15.9.2003; MS 24.593/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, DJ de 8.8.2003; MS 24.576/DF, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 12.9.2003; MS 24.356/ DF, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 12.9.2003).

 

Se é assim no caso de proposta de emenda à Constituição - que se tornará ato normativo com legitimidade democrática muito maior do que a de uma lei ordinária -, por que não seria também com um projeto de lei ordinária?[7] Essa é a única novidade da decisão proferida. Insista-se: Qual o sentido, dentro do ordenamento jurídico brasileiro, de admitir que se obste a tramitação de uma emenda e não a de uma lei ordinária?

 

Toda a questão, portanto, resume-se a aferir, se o projeto cuja tramitação foi suspensa tende, ou não, a abolir cláusula pétrea. Essa indagação, todavia, não apenas foge da devida abrangência deste texto, como sequer foi suscitada por Afonso da Silva. Em outras palavras, a decisão proferida liminarmente no mandado de segurança de n. 32.033 pode até ser questionável e discutível, mas não pelos motivos apontados pelo professor paulista.


 

Notas

 

[1] Afonso da Silva, Virgílio. A emenda e o Supremo. Valor Econômico, São Paulo, p. A18, 03 maio 2013.

 

[2] Hesse, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20.Auf. München: C.F. Müller, 1999. p. 69

 

[3] Kelsen, Hans (1929). Wesen und Entwicklung der Staatsgerichtsbarkeit (VVDStL, 5). Berlin u. Leipzig: Walter de Gruyter, 1929. pp. 80ss.

 

[4] United States v. Carolene Products Company, 304 U.S. 144 (1938), nota de rodapé n. 4.

 

[5] cf. Barak, Aharon. “Unconstitutional Constitutional Amendments.” Israel Law Review, vol. 44 (3), pp. 321-341

 

[6] cf., dentre outros, Sarlet, Ingo Wolfgang; Marinoni, Luiz Guilherme; Mitidiero, Daniel. Curso de Direito Constitucional. 2ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. pp. 852ss.; Ramos Tavares, André. Curso de Direito Constitucional. 13ªed. São Paulo: Saraiva, 2013. pp. 328-9; Novelino, Marcelo. Direito Constitucional. 8ªed. São Paulo: Método, 2013. p. 235; Lenza, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 17ªed. São Paulo: Saraiva, 2013. pp. 276ss. Ferreira Mendes, Gilmar; Branco, Paulo G. G. Curso de Direito Constitucional. 7ªed. São Paulo: Saraiva, 2012. pp. 1125ss.; Nery Jr., Nelson; Nery, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal Comentada. 4ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. pp. 550ss. Ferreira Filho, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 38ªed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 62

 

[7] Perceba-se, inclusive, que o processo legislativo da lei ordinária é muito simplificado, sobretudo pela vantagem da casa iniciadora, que pode aprová-lo do seu jeito, sem a inteira concordância da outra casa legislativa (art. 65, CF). Lembre-se, igualmente, que um projeto de lei pode ser aprovado em caráter terminativo e em plenário com a anuência de meros 21 senadores e 79 deputados, que corresponde ao menor quorum possível de aprovação de uma lei por maioria relativa, já que o quorum de instauração da sessão deliberativa é a própria maioria absoluta.




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