A (in) constitucionalidade da imposição do regime da separação de bens às pessoas com idade superior a setenta anos


Pormarina.cordeiro- Postado em 09 abril 2012

Autores: 
FIGUEIREDO, Ramon Gama
CABRAL, Hildeliza Lacerda Tinoco Boechat

RESUMO
O presente artigo objetivou analisar a constitucionalidade do dispositivo do Código Civil que
impõe o regime da separação de bens às pessoas que contraem casamento em idade superior a
setenta anos. Teve ainda por escopo discutir a violação aos princípios da dignidade da pessoa
humana e da liberdade. Discutiu ainda a incapacidade estabelecida pelo Livro de Família e
inexistente na Teoria Geral do Direito Civil e no texto constitucional. Esses e outros
questionamentos foram realizados através de estudo doutrinário e jurisprudencial a fim de se
avaliar ainda a validade de um dispositivo proteger os idosos com uma tutela desnecessária
que, por um lado lhes impõe o regime da separação de bens, e por outro, cerceia-lhes a
liberdade de escolha, restringindo-lhes a autodeterminação.

Palavras-chave: regime de bens obrigatório; princípio da dignidade da pessoa humana;
princípio da igualdade; incapacidade; inconstitucionalidade

RESUMEN
El presente artículo objetivó analizar la constitucionalidad del dispositivo del Código Civil
que impone El régimen de Le separación de bienes a las personas que contraen casamiento en
edad superior a setenta años. Tuvo aun por escopo discutir la violación a los principios de la
dignidad de la persona humana e de la libertad. Discutió aun la incapacidad establecida Poe el
Libro de Familia y no existente en le Teoría General del Derecho Civil y en el texto
constitucional. Eses y otros cuestionamientos fueron hechos a través de estudio doctrinario y
jurisprudencial con fines de se evaluar aun La validad de un dispositivo proteger los viejos
con una tutela desnecesaria que, por u lado les impone el régimen de la separación de bienes,
y por otro, les cercea la libertad de escoja, restringí la autodeterminación

Palabras-llave: régimen de bienes obligatorio; principio de la dignidad de la persona
humana; principio de la igualdad; incapacidad; inconstitucionalidad

SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO. 2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 2.1 O Prestígio à
Autonomia da Vontade no Ordenamento Jurídico e a Autodeterminação da Pessoa; 2.2 A Importância da
Vontade para a Realização do Casamento; 2.3 O Princípio da Liberdade que norteia o Regime de Bens. 3 A
ATUAL PERSPECTIVA DO CASAMENTO NO DIREITO DE FAMÍLIA. 3.1 A Importância do Afeto
como Direito da Personalidade; 3.2 O Caráter de Direito Existencial do Vínculo Matrimonial e da Eleição do
Regime de Bens; 3.3 O Casamento e o Caráter Instrumental da Família. 4 A INCONSTITUCIONALIDADE
DA LIMITAÇÃO IMPOSTA AOS CONTRAENTES COM IDADE SUPERIOR A 70 ANOS. 4.1 A
Incapacidade em Razão da Idade Instituída pelo Livro de Família do CC; 4.2 A Natureza Existencial da livre
escolha do nubente e do Regime de Bens do Casamento e a Igualdade Substancial Constitucionalmente
Protegida. 5 CONCLUSÃO. REFERÊNCIAS.
LISTA DE ABREVIAÇÕES
CC – Código Civil Brasileiro – Lei nº 10.406 de 10 de Janeiro de 2002
CF – Constituição Federal da República
IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família
STF – Supremo Tribunal Federal
STJ – Superior Tribunal de Justiça
TJSP – Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo

1 INTRODUÇÃO
A Constituição Federal - CF/88 é suprema no ordenamento jurídico brasileiro,
impondo princípios que devem ser observados para a elaboração de outras leis de inferior
hierarquia e dela decorrentes. Diante disso, tem-se como inconstitucional qualquer norma que
venha ferir parâmetros determinados por sua normatização ou delineados pela principiologia
por ela ditada.
O presente artigo propõe a temática da inconstitucionalidade da imposição do regime
da separação de bens às pessoas com idade superior a 70 anos, determinada pelo artigo 1.641,
II do Código Civil Brasileiro, tendo como base o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
previsto no artigo 1º, III da Constituição Federal, além de outros como, o da igualdade
substancial e o da autodeterminação da pessoa, cumprindo observar ainda o paralelo envolto
no tema, entre a autonomia da vontade do cidadão e a proteção patrimonial, em que o
legislador civilista resguardou a questão de direitos disponíveis, deixando de observar direitos
fundamentais aludidos na Carta Magna brasileira.
O Código Civil de 2002 instituiu o regime da separação de bens obrigatório para
maiores de 60 anos e, tal dispositivo, foi alterado pela Lei nº 12.344 de 9 de dezembro de
2010, majorado para 70 anos, idade a partir da qual se torna obrigatório o regime da separação
de bens no casamento.
Será discutida a imposição do regime da separação de bens às pessoas com idade
superior a 70 anos, analisando-se os diferentes posicionamentos doutrinários a respeito do
tema, que serão citados a fim de se estabelecer uma abordagem comparativa. Para tal, serão
abordados alguns princípios constitucionais inerentes à pessoa, bem como os princípios
relevantes no ramo do Direito de Família, como os que regem o casamento e o regime de
bens.
2 O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A Constituição Federal de 1988 consagrou o Princípio da Dignidade da Pessoa
Humana, no artigo 1º, III, como norteador, sendo este basilar, do qual decorrem todos os
demais. Importância evidenciada nas palavras de Maria Berenice Dias (2010, p. 62) ao se
posicionar sobre tal dispositivo:
É o princípio maior, fundante do Estado Democrático de Direito, sendo afirmado no
primeiro artigo da Constituição Federal. A Preocupação com a promoção dos
direitos humanos e da justiça social levou o constituinte a consagrar a dignidade da
pessoa humana como valor nuclear da ordem constitucional. (grifo dos autores)
Essa importância atribuída ao Princípio da Dignidade da Pessoa Humana não pode ser
considerada recente, tendo em vista que a Declaração Universal dos Direitos Humanos de
1948 enfatizava a pessoa humana como o centro do ordenamento jurídico, conferindo-lhe
dignidade e igualdade de direitos, logo no artigo 1º. No período pós-guerra, então, tornou-se
imperativa a necessidade de se resguardar os direitos humanos, em face do clamor social
alimentado pelas atrocidades ocorridas na II Guerra Mundial, que tornava aquele momento
histórico propício à criação de normas de amparo e proteção à pessoa humana.
A pessoa humana caracteriza-se por sentimentos e emoções em busca do seu bemestar
individual, familiar e social. O direito de família está diretamente ligado a este princípio.
A doutrina de família, em sua grande maioria, aborda a temática do Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana, demonstrado nos ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves (2010, p.22) ao
dizer que “O direito de família é o mais humano de todos os ramos do direito.” Ratificando a
ligação entre as disciplinas, Maria Berenice Dias (2010, p. 73) afirma em sua obra que “A
dignidade da pessoa humana encontra na família o solo apropriado para florescer.” Por meio
dessa fusão disciplinar, se evidenciam as condições e possibilidades para que as pessoas
realizem reciprocamente suas dignidades como pais, filhos, companheiros, cônjuges, crianças
e idosos ainda que a realidade de vida dificulte esse objetivo.
Mostra-se então necessária a formação da família de maneira digna, recebendo,
qualquer forma de entidade familiar, tratamento igualitário quanto à sua forma de
constituição, permitindo o desenvolvimento pessoal e social a cada membro da família.
Eis a manifestação de Immanuel Kant (1986, p. 77) acerca da dignidade:
No reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem
preço, pode-se pôr em vez dela qualquer outra como equivalente; mas quando uma
coisa está acima de todo preço, e, portanto, não permite equivalente, então tem ela
dignidade.
Kant valorizava a dignidade, justificando a adoção do princípio da dignidade da
pessoa humana como norteador, pelas constituições de vários países, ressaltando a
impossibilidade de substituição desse princípio, alicerce também, da CF/88.
A discussão acerca da inconstitucionalidade da norma, por ora, afeta diretamente o
princípio da dignidade da pessoa humana, além de ferir outros princípios dele decorrentes,
conforme salienta o constitucionalista Alexandre de Moraes (2002, p. 129):
A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que
se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria
vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas,
constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve
assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao
exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária
estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos.
É de se observar a questão da autodeterminação pessoal, que será tratada no decorrer
do trabalho. Ainda nas palavras de Alexandre de Moraes (2002, p. 129), restam demonstradas
duas concepções do princípio consagrado pela vigente CF:
O princípio fundamental consagrado pela Constituição Federal da dignidade da
pessoa humana apresenta-se em uma dupla concepção. Primeiramente, prevê um
direito individual protetivo, seja em relação ao próprio Estado, seja em relação aos
demais indivíduos. Em segundo lugar, estabelece verdadeiro dever fundamental de
tratamento igualitário dos próprios semelhantes.
Se mostra evidenciada a busca pela concretização do princípio da dignidade da pessoa
humana, no plano legislativo, jurisprudencial e, como exposto acima, no âmbito doutrinário.
Apesar das dificuldades matérias e socioculturais, nunca se deve desistir de tornar tal
princípio plenamente efetivo.
A dignidade da pessoa humana é, pois, o núcleo dos direitos da personalidade,
devendo ser prestigiado e resguardado de quaisquer violações que venham a agredir a pessoa
e os direitos inerentes à sua dignidade.
2.1 O Prestígio à Autonomia da Vontade no Ordenamento Jurídico e à
Autodeterminação da Pessoa
Como destacado, no período pós-guerra, iniciou-se o movimento de repersonalização
(BOECHAT CABRAL, 2011b, p. 28), com a busca pela valorização da pessoa humana, com
maior observância a sua dignidade. Consubstanciados no princípio da dignidade da pessoa
humana, estão os direitos inerentes à personalidade, dos quais esta não pode dispor. Direitos
da personalidade, além de indisponíveis são inalienáveis, impenhoráveis, imprescritíveis,
irrenunciáveis, inatos, ou seja, adquiridos com o nascimento, absolutos, necessários e
vitalícios (BORGES, 2007, p. 33).
A constante evolução do direito enfatiza essa categoria de direitos dos seres humanos.
Com esta valorização, torna-se necessária a criação de meios de viabilização de garantias aos
direitos existenciais que constituem a dignidade da pessoa humana.
Nesse sentido, os direitos fundamentais ganham força nas relações entre pessoas,
seguindo os ideais da constitucionalização do direito civil. Por consequência dessa evolução
do direito, amplia-se o poder de decisão da pessoa, nascendo a possibilidade de escolher o que
julgar melhor para sua vida, elegendo seu futuro, ganhando autonomia para decisões que
possibilitam o exercício da liberdade.
Assim, entende-se que limitações à vontade da pessoa perderam força frente à
constitucionalização do direito civil, que, por influência dos direitos fundamentais, impedem a
imposição de qualquer outra norma que não privilegie a pessoa humana, bem como sua
vontade e autodeterminação.
Como é de se observar, o direito caminha no sentido de assegurar a vontade da pessoa,
privilegiando-a frente a outras questões, inclusive de caráter patrimonial, como é o caso do
regime de bens ao qual se refere o presente estudo.
Resta evidenciada a incongruência entre os idéias insculpidos na CF para a autonomia
da vontade, bem como a autodeterminação da pessoa como direito existencial, ou seja, como
direito inerente à personalidade, e a injustificada limitação à vontade da pessoa com idade
superior a 70 anos imposta pelo Código Civil.
2.2 A Importância da Vontade para a Realização do Casamento
A ampla liberdade de escolha é a primeira característica do casamento, sendo certo
que tal escolha é um interesse fundamental da pessoa. Diante disso, a vontade de casar deve
ser manifestada exclusivamente pelo interessado, que se tiver idade entre dezesseis e dezoito
anos incompletos, a lei exige a autorização dos pais (DIAS, 2010, p. 135).
Não há como substituir o consentimento dos contraentes, que devem ter capacidade
para a manifestação da vontade pessoalmente ou através de procuração, outorgando a terceiro
poderes especiais. Não deve haver restrição à decisão pessoal de casar, pois se refere a um
direito à liberdade nupcial, não admitindo cláusulas que possam limitar essa escolha.
O artigo 1.514 do Código Civil destaca a importância da vontade para a realização do
casamento, como se pode observar, “O casamento se realiza no momento em que o homem e
a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os
declara casados.”
Segundo o dispositivo em análise, para ser válido, o casamento depende de dois
requisitos, quais sejam: a manifestação da vontade do casal em estabelecer o vínculo conjugal
e a declaração da autoridade competente. Logicamente os nubentes deverão ser plenamente
capazes ou com idade núbil, neste ultimo caso, desde que autorizados pelos pais.
Por fim, conclui-se que é livre ao cidadão escolher, bem como manifestar sua vontade
de casar, não impondo o sistema jurídico brasileiro, limitação a essa vontade, tornando o
casamento possível a todos, desde que presentes os requisitos legais e, não recaindo
impedimento sobre uma ou ambas as partes.
2.3 O Princípio da Liberdade que norteia o Regime de Bens
O regime de bens do casamento tem a finalidade de regular a administração do
patrimônio do casal, observando, conjuntamente ou por apenas um dos cônjuges, a aquisição
ou perda de propriedade, bem como a responsabilidade por dívidas e a disponibilidade dos
bens.
Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010. P. 238) apresentam o conceito
do referido instituto, qual seja: “regime de bens é o estatuto que disciplina os interesses
econômicos, ativos e passivos, de um casamento, regulando as consequências em relação aos
nubentes e a terceiros, desde a celebração até a dissolução do casamento, em vida ou por
morte.”
Mostra-se livre no ordenamento jurídico brasileiro, a escolha do Regime de Bens para
o casamento, dependendo de cada casal a configuração e consequências do regime a ser
escolhido. Aduz o artigo 1.639 do Código Civil: “é lícito aos nubentes, antes de celebrado o
casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.”
Ainda se pode observar nos termos do artigo 1.640, parágrafo único, do mesmo
dispositivo legal que: “Poderão os nubentes, no processo de habilitação, optar por qualquer
dos regimes que este Código regula. Quanto à forma, reduzir-se-á a termo a opção pela
comunhão parcial, fazendo-se o pacto antenupcial por escritura pública, nas demais escolhas”
Tais previsões ratificam a liberdade de escolha do regime de bens para o casamento. O
princípio da liberdade pode ser encontrado em todas as nuances do casamento, assegurando o
direito de constituir uma união estável, bem como extingui-la, podendo ocorrer o mesmo no
casamento. Outra evidência do princípio da liberdade na legislação brasileira é a possibilidade
de alteração do regime de bens na vigência do casamento, prevista do artigo 1.639,§ 2º do
Código Civil.
Além disso, ressalte-se, trata-se de direito disponível, estando ainda mais
compreensível o caráter essencialmente patrimonial do regime de bens, daí a possibilidade da
livre disposição pelos nubentes.
Resta evidenciada que a liberdade rege a situação dos bens do casal, sendo-lhe
permitido optar pelo regime que melhor atender aos interesses de ambos.
Se assim o é em relação aos nubentes das demais faixas etárias, sendo-lhes facultada a
livre escolha do regime de bens, por que motivo obrigar ao idoso casar-se por um regime
escolhido segundo a vontade do legislador?
3 A ATUAL PERSPECTIVA DO CASAMENTO NO DIREITO DE FAMÍLIA
O casamento agrega valores e tradições que vêm variando com o passar do tempo.
Maria Helena Diniz (2010, p. 37) define casamento como sendo “o vínculo jurídico entre o
homem e a mulher que visa o auxílio mútuo material e espiritual, de modo que haja uma
integração fisiopsíquica e a constituição de uma família.”
São inúmeros os conceitos de casamento apresentados pela doutrina moderna, Carlos
Roberto Gonçalves (2010. P. 37) colaciona sua obra, no contexto histórico, um conceito do
século III, qual seja: “Nuptiae sunt conjunctio maris et feminae, consortium omnis vitae,
divini et humani juris communicatio, ou seja, casamento é a conjunção do homem e da
mulher, que se unem para toda a vida, a comunhão do direito divino e do direito humano.”
Destaca ainda o aludido autor que “esta noção um tanto grandiosa e sacramental desfigurou-se
com o tempo e com a evolução dos costumes.” Apesar das inúmeras definições acerca do
casamento, é pacífico o entendimento sobre sua origem religiosa.
Com o passar do tempo, faz-se necessária a alteração dos diversos conceitos, pois a
evolução da humanidade impõe novas formas de sociedade conjugal, nas famílias,
provocando a queda de alguns conceitos. Antes da existência do instituto do divórcio era
cabível no conceito de casamento uma referência sobre indissolubilidade, hoje não mais
aplicável.
Não se pode afastar o vínculo entre o casamento e o Direito de Família, sendo aquele a
base deste. Silvio de Salvo Venosa (2001, p. 40) destaca essa ligação:
O casamento é o centro do direito de família. Dele irradiam suas normas
fundamentais. Sua importância, como negócio jurídico formal, vai desde as
formalidades que antecedem sua celebração, passando pelo ato material de
conclusão até os efeitos do negócio que deságuam das relações entre os cônjuges, os
deveres recíprocos, a criação e assistência material e espiritual recíproca e da prole
etc.
Há três diferentes correntes sobre a natureza jurídica do casamento (FARIAS;
ROSENVALD, 2010, 115,116). Vale ressaltar que o casamento possui uma característica
contratual, que é indiscutível na doutrina, que condiciona sua validade e eficácia à vontade
das partes, aplicando-se ao casamento as regras comuns aos contratos. Existe também, acerca
da natureza jurídica do casamento, o entendimento institucionalista, que sustenta o casamento
como uma grande instituição social, a ela aderindo os que se casam. Há uma terceira corrente,
que se põe como a fusão das anteriores, considerando o casamento um contrato especial do
direito de família, pelo qual os nubentes aderem a uma instituição pré-organizada, alcançando
o estado matrimonial.
Observa-se que atualmente, a função econômica, política e religiosa do casamento,
ganharam valor secundário, privilegiando-se a realização pessoal, através do convívio, da
afetividade e da solidariedade.
3.1 A Importância do Afeto como Direito da Personalidade
Com a finalidade de promover o bem-estar de todos os membros da família, bem
como a igualdade de tratamento e respeitando as diferenças individuais, passam a existir
novos meios de convívio social, sendo observados novos instrumentos que visam resguardar o
interesse familiar.
Ao serem as uniões estáveis, reconhecidas como merecedora da tutela jurídica, como
entidade familiar, restou demonstrada o reconhecimento e a inserção da afetividade no
sistema jurídico brasileiro. Dá-se mais importância ao afeto e à realização individual na
família, a partir da constitucionalização das relações familiares.
Pode-se observar também, o desprendimento moderno aos laços biológicos para a
formação familiar. “Funda-se, portando, a família pós-moderna em sua feição jurídica e
sociológica, no afeto, na ética, na solidariedade recíproca entre os seus membros e na
preservação da dignidade deles.” (FARIAS; ROSENVALD, 2010, p. 5)
Na mesma linha de intelecção, salienta Boechat Cabral (2011a):
Para se entender a afetividade sob a ótica da família constitucionalizada e
democrática, nos padrões em que hoje se apresenta em sua real dimensão e no
cumprimento de seu papel mais elevado, que é efetivar a dignidade da pessoa
humana, torna-se necessária a compreensão de sua inter-relação com outros valores:
a afetividade é uma nascente da qual fluem, em uma relação de consequência
natural, a solidariedade, o respeito e o cuidado.
Significa dizer que toda relação familiar está assentada sobre o afeto como vínculo
indispensável aos relacionamentos.
Vale destacar ainda que, com a igualdade de filiação houve a consagração do afeto
como direito fundamental, inexistindo qualquer meio de desigualdade entre filiação biológica
e socioafetiva. Relevantes se mostram os laços de solidariedade e afeto, que decorrem da
convivência familiar, independentemente da consanguinidade. Envolve o afeto, sentimentos e
emoções, humanizando as famílias. Observa-se a aquisição de direitos por meio desses
sentimentos cultivados pelo convívio familiar, conforme comenta Dias (2010, p. 71) “Assim,
a posse do estado de filho nada mais é do que o reconhecimento jurídico do afeto, com o claro
objetivo de garantir a felicidade, como um direito a ser alcançado.” Completa a autora:
“Talvez nada mais seja necessário dizer para evidenciar que o princípio norteador do direito
das famílias é o princípio da afetividade.” (2010, p. 72)
Atualmente as relações familiares vêm se diversificando, em decorrência disso a
afetividade ganha espaço nas discussões jurídicas, buscando atender às relações familiares
modernas. O afeto passou a ter valor jurídico.
3.2 O Caráter de Direito Existencial do Vínculo Matrimonial e da Eleição do Regime de
Bens
Os direitos existenciais, como já comentado, são aqueles inerentes à personalidade,
“absolutamente essenciais ao desenvolvimento da pessoa” (BOECHAT CABRAL, 2011b,
p.30) sendo estes fundamentais para se viver de forma digna. Esses direitos que a compõem,
além de outros preceitos, como o princípio da dignidade da pessoa humana.
Durante muito tempo o vínculo matrimonial foi visto como único meio de formação
familiar, sendo certo que a CF foi a primeira constituição brasileira a recepcionar a proteção a
outras formas de entidades familiares. Conforme se pode observar, devido à constante
evolução da sociedade, se faz necessária a criação de normas que se adéquem ao anseio
social. Pode-se constatar esta evolução através das recentes discussões acerca do
reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo. O privilégio, à vontade da
pessoa tem motivado mudanças normativas que visam atender a estas necessidades sociais e
satisfazer cada novo meio de instituição familiar.
Nesse sentido, tendo-se a vontade como um dos direitos existenciais, cabe caracterizar
a livre escolha de casar-se e de escolher o regime de bens que irá regular as relações
patrimoniais decorrentes das núpcias, dentro desse núcleo de direitos que formam o conceito
de dignidade da pessoa humana.
3.3 O Casamento e o Caráter Instrumental da Família
Através do amparo constitucional e da atual visão da família, surge à equidade entre
seus membros. A cada dia mais os vínculos afetivos vêm ganhando a merecida importância no
âmbito judicial. O poder da família se sobrepõe, não existindo mais a figura de um líder,
havendo respeito mútuo entre os familiares. Neste sentido se pode encontrar no caráter
instrumental da família, a busca do bem-estar da pessoa, visando à cooperação e a
solidariedade de cada um dos seus integrantes, que se desenvolvem e formam um alicerce
para superar os eventuais problemas da vida.
Esclarecem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2010, p. 9):
Com o passar dos tempos, porém, o conceito de família mudou significativamente
até que, nos dias de hoje, assume uma concepção múltipla, plural, podendo dizer
respeito a um ou mais indivíduos, ligados por traços biológicos ou sócio-psíquicos,
com intenção de estabelecer, eticamente, o desenvolvimento da personalidade de
cada um.
Impende destacar que a família tem sua função essencial à sociedade, sofrendo
alterações e adquirindo novos valores com o passar do tempo. Assim os aprendizados, as
tradições, os costumes e experiências humanas vão passando de geração em geração. Nesse
sentido, vê-se a importância da família como instituição social, sendo relevante nas relações
entre pessoas e nas relações sociais, independente de sexo e com o objetivo de contribuir para
a realização de cada um que a compõe.
Assim, a proteção ao núcleo familiar objetiva tutelar a pessoa humana, não cabendo
violações à dignidade homem. Ainda nas palavras de Cristiano Chaves de Farias e Nelson
Rosenvald (2010, p. 11):
É simples, assim, afirmar a evolução da idéia de família-instituição, com proteção
justificada por si mesmo, importando não raro violação dos interesses das pessoas
nela compreendidas, para o conceito de família-instrumento do desenvolvimento da
pessoa humana, evitando qualquer interferência que viole os interesses dos seus
membros, tutelada na medida em que promova a dignidade das pessoas de seus
membros, com igualdade substancial e solidariedade entra eles (arts. 1º e 3º da
CF/88).
O casamento como meio de constituição familiar, é o solo apropriado para florescer o
afeto e a solidariedade, pois, a efetivação desses princípios é componente fundamental para o
desenvolvimento de cada pessoa que forma uma determinada família.
Houve tempo em que a família era uma instituição protegida pelo Estado, com fim em
si mesma, e com objetivo de se resguardar o núcleo familiar enquanto grupo, sem se
preocupar com as pessoas individualmente.
Por outro giro, a família hoje possui um caráter instrumental, que visa ao atendimento
a cada um de seus membros, conforme salienta Boechat Cabral (2011a):
Eis o caráter instrumental da família: meio pelo qual as pessoas se desenvolvem,
formam sua personalidade e se revestem de forças para enfrentarem as diversas e
adversas situações de vida. Na dinâmica da família é que se manifestam os
sentimentos mais puros, mais valiosos e, por vezes, os odiosos, embora não sejam
esses últimos os ansiados e buscados pelos ideais a pautar o Direito de Família
contemporâneo.
Seguindo essa linha de intelecção, a família deste novo tempo é instrumento de
promoção da personalidade humana, é meio através do qual as pessoas de uma família
desenvolvem suas potencialidades, em busca da realização, da autoestima e da capacidade de
lidar com novas situações de vida.
4 A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DA LIMITAÇÃO IMPOSTA AOS
CONTRAENTES COM IDADE SUPERIOR A SETENTA ANOS
O Código Civil de 1.916, em seu artigo 258, II, previa a separação obrigatória de bens
em função da idade dos contraentes, porém, fazia distinção da idade pelo sexo, impondo o
regime de bens para o homem com mais de 60 e para a mulher com mais de 50 anos.
Compreendeu o legislador que, nessa fase da vida, na qual se presume a estabilidade de
patrimônio de um ou de ambos os nubentes, e quando a juventude já não se faz presente, o
conteúdo patrimonial deve ser terminantemente afastado da relação do matrimônio.
Mostra-se de forma clara que a norma tinha objetivo de afastar o casamento fundado
em motivação patrimonial, de uma pessoa jovem com outra mais idosa. Fundando ainda no
Código Civil vigente à época, Silvo Rodrigues (1996, p. 165) se posiciona contra o
dispositivo. Dizia:
Aliás, talvez se possa dizer que uma das vantagens da fortuna consiste em aumentar
os atrativos matrimoniais de quem a detém. Não há inconveniente social de qualquer
espécie em permitir que um sexagenário ou uma quinquagenaria ricos se casem pelo
regime da comunhão, se assim lhes aprouver.
O Código Civil de 2002 manteve a restrição, porém, equiparou o homem à mulher, no
que tange à idade, convencionando 60 anos em relação a ambos os sexos, para fins de
imposição do regime patrimonial da separação obrigatória de bens.
Como citado anteriormente, a escolha do regime de bens disciplina a situação
patrimonial do casal e tem grande relevância na hipótese de dissolução do matrimônio.
Contudo, existem exceções à autonomia dessa escolha, nas quais a lei impõe o regime da
separação de bens e, das quais, destaca-se, como tema do presente trabalho, a hipótese do
artigo 1.641, II, do Código Civil.
Trata o disposto no inciso II do artigo 1.641 do Código Civil, recém-alterado pela Lei
nº 12.344 de 9 de dezembro de 2010, da limitação à vontade da pessoa maior de 70 anos,
expressando o seguinte: art. “1.641, caput: É obrigatório o regime da separação de bens no
casamento: II - da pessoa maior de 70 (setenta) anos”, dispositivo que impõe à pessoa maior
de 70 anos o regime da separação de bens.
Diante de tal norma, passa-se a analisar o entendimento atual sobre o dispositivo,
sendo certo que alguns doutrinadores reputam-na inconstitucional, enquanto uma minoria
prefere entender válida a proteção ao patrimônio do idoso.
No primeiro sentido, posicionam-se Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald (2010, p.
244, 245):
[...] nítida violação aos princípios constitucionais. Efetivamente, trata-se de
dispositivo legal inconstitucional, às escâncaras, ferindo frontalmente o fundamental
princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) por reduzir a sua
autonomia como pessoa e constrangê-lo pessoal e socialmente, impondo uma
restrição que a norma constitucional não previu.
Cumpre ressaltar também que o fato da idade para a imposição do regime da separação
obrigatória ter sido dilatada de 60 para 70 anos, demonstra uma evolução e certa flexibilidade
no entendimento do legislador.
Vale aduzir que a citada majoração na idade através da qual se impôs o regime da
separação de bens é recente, não havendo, portanto, citação doutrinária acerca da supracitada
modificação. É importante destacar que a majoração da idade para imposição do regime de
bens, não torna a norma “mais constitucional”. Os diversos posicionamentos doutrinários
acerca do tema não criticam a questão quantitativa, se 60 ou 70 anos, e sim, a determinação de
uma limitação da vontade de forma injustificada e desigual imposta ao cidadão, tendo em
vista que o Código Civil prevê um início para a capacidade civil, em razão da idade. Não
estabelecendo, por certo, uma idade para cessar tal capacidade.
Nota-se que “no entendimento do IBDFAM, a lei diminuiu as restrições, mas
continua a desconsiderar a autonomia da vontade, a liberdade e a autodeterminação das
pessoas.”(IBDFAM, 2011. p 117, v. 10)
Diante do exposto, a imposição do regime da separação de bens às pessoas maiores de
70 anos é tida como inconstitucional pela maioria dos autores e pelo IBDFAM. Compartilha
do mesmo entendimento Maria Berenice Dias (2010, p. 65) ao afirmar em sua obra que “é
inconstitucional, por afrontar o princípio da liberdade, a imposição coacta do regime de
separação de bens aos maiores de 60 anos [...]”.E ainda (DIAS: 2010, p. 247)
Das várias previsões que visam a suspender a realização do casamento, nenhuma
delas justifica o risco de gerar enriquecimento sem causa. Porém, das hipóteses em
que a lei determina o regime de separação obrigatória de bens, a mais desarrazoada é
a que impõe tal sanção aos nubentes maiores de 60 anos [...]
Permite-se entender também que o legislador civilista demonstrou um caráter protetivo
ao septuagenário, com o propósito de afastar o casamento exclusivamente com interesse
econômico, contudo, a norma apresenta tratamento distinto a pessoas que objetivam o mesmo
fim, tendo insucesso motivado pela referida previsão legal, que por sua vez, fere princípios
constitucionais.
Paulo Lôbo (2010, p. 323) tece as seguintes considerações sobre o tema:
Entendemos que essa hipótese é atentatória do princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana, por reduzir sua autonomia como pessoa e constrangê-lo a tutela
reducionista, além de estabelecer restrição à liberdade de contrair matrimônio, que a
Constituição não faz. Consequentemente é inconstitucional esse ônus.
Ao que parece, a grande maioria dos doutrinadores se posicionam a favor da
inconstitucionalidade da norma. Eis o parecer de Guilherme Calmon Nogueira da Gama
(2008, p.222), “[...] a circunstância de a pessoa ter mais 60 anos (sessenta) anos de idade não a
torna incapaz de praticar atos da vida civil, mormente aqueles que dizem respeito à sua esfera
existencial, como é o ato de se casar [...]”
O ministro do Supremo Tribunal Federal Cezar Peluso, quando ainda era
desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, proferiu importante voto
acerca do tema na AC nº 007. 512-4/2-00 – 2ª CDPriv – de 18 de agosto de 1998.
Lei que, com o propósito racional de guardar o patrimônio dalgumas pessoas contra
as fraquezas da submissão amorosa, priva-as a todas de exercitarem a liberdade
jurídica de dispor sobre seus bens e de pautarem suas ações por razões íntimas,
ressente-se de nexo de proporção entre o objetivo legítimo, que está na tutela dos
casos particulares de debilidade senil, e o resultado prático exorbitante, que é, no
fundo, a incapacitação da ampla classe das pessoas válidas na mesma faixa etária.
Ou seja, inabilita e deprecia quase todos, por salvar uns poucos, que, aliás, têm
outros meios jurídicos para se redimir dos enganos das paixões crepusculares. [...] O
alcance irracional e injusto da mesma norma vulnera ainda princípios
constitucionais, até com gravidade maior, sob outro ponto de vista, que é o da
mutilação da “dignidade” da pessoa humana em situação jurídica de casamento,
porque, desconsiderando-lhe, de modo absoluto e sem nenhum apoio na observação
da realidade humana, o poder de autodeterminação, sacrifica, em nome de interesses
sociais limitados e subalternos o direito fundamental do cônjuge de decidir quanto à
sorte de seu patrimônio disponível, que, não ofendendo direito subjetivo alheio nem
a função social da propriedade, é tema pertinente ao reduto inviolável de sua
consciência. É muito curta a razão normativa para a invasão tamanha. A lei, aqui, é
modo exemplar de intrusão estatal lesiva do direito à intimidade (right of privacy, ou
, como se usa dizer, direito à privacidade), enquanto dimensão substancial da pessoa
humana e objeto de tutela constitucional explicitam (art. 5º, X, da Constituição
Federal) e implícita (art. 5º, LIV).
Em contrapartida aos posicionamentos até aqui aludidos, verifica-se a defesa da
aplicação do artigo 1.641, II do CC por Washington de Barros Monteiro (2007, p. 215),
doutrinador para o qual o regime da separação de bens se apresenta da seguinte forma: “Eis o
regime em que cada cônjuge conserva exclusivamente para si os bens que possuía quando
casou, sendo também incomunicáveis os bens que cada um deles veio a adquirir na constância
do casamento”.
Ao falar especificamente sobre o regime da separação legal, Washington de Barros
Monteiro destaca a proteção patrimonial, aduzindo que tal limitação a vontade da pessoa tem
o objetivo de zelar pelos interesses do próprio idoso e de seus familiares provenientes de
relacionamentos passados. A afirmação de Monteiro (2007, p. 218) sobre tal dispositivo se
confronta com o que defende Silvio Rodrigues, Maria Berenice Dias e os demais
doutrinadores acima citados, conforme se observa, com ênfase na parte final, in verbis:
[...] é preciso lembrar que o direito à liberdade, tutelado na Lei Maior, em vários
incisos de seu art. 5., é o poder de fazer tudo o que se quer, nos limites resultantes do
ordenamento jurídico. Portanto, os limites à liberdade individual existem em várias
regras desse ordenamento, especialmente do direito de família, que vão dos
impedimentos matrimoniais (art. 1.521, I a VII), que vedam o casamento de certas
pessoas, até a fidelidade, que limita a liberdade sexual fora do casamento
(art.1.566,I). É de salientar-se que não pode o direito de família aceitar que, se
reconhecidos os maiores atrativos de quem tem fortuna, um casamento seja
realizado por meros interesses financeiros, em prejuízo do cônjuge idoso e de
seus familiares de sangue. (negrito inexistente no original)
Monteiro destaca os riscos de cunho patrimonial na constituição de relacionamento do
idoso, tendo em vista a sua situação de fragilidade no aspecto afetivo, defendo o caráter
protetivo do dispositivo, que visa impedir o que é popularmente conhecido como “golpe do
baú”, corroborando o entendimento de Josaphat Marinho (MONTEIRO, 2007, p. 218):
Como bem justificou o Senador Josaphat Marinho na manutenção do art. 1.641, II,
do atual Código Civil, trata-se de prudência legislativa em favor das pessoas e de
suas famílias, considerando a idade dos nubentes. É de lembrar que, conforme os
anos passam, a idade avançada acarreta maiores carências afetivas e, portanto,
maiores riscos corre aquele que tem mais de sessenta anos de sujeitar-se a um
casamento em que o outro nubente tenha em vista somente vantagens financeiras.
Possibilitar, por exemplo, a opção do regime da comunhão universal de bens, num
casamento assim celebrado, pode acarretar conseqüências desastrosas ao cônjuge
idoso, numa dissolução inter vivos de sua sociedade conjugal, ou mesmo a seus
filhos, numa dissolução causa mortis do casamento.
Vale observar que os entendimentos a favor da imposição prevista no CC, firmados na
proteção patrimonial, apoiam-se na hipótese de interesse estritamente patrimonial de uma
pessoa que se casa com outra com idade superior a 70 anos e, também, na suposta
vulnerabilidade afetiva que as pessoas dessa faixa etária se encontram. De acordo com Pontes
de Miranda (2001, p. 219):
[...] para evitar explorações, consistentes em levar ao casamento, para fins de
comunhão de bens, mulheres em idade vulnerável, ou homens em fase de crise
afetiva, a lei cortou cerce a possibilidade das estipulações convencionais de ordem
matrimonial e excluiu o regime comum. É cogente o da separação de bens.
Clóvis Beviláqua (1945, p. 169) já defendia o regime legal da separação de bens,
afirmando a situação afetiva do septuagenário:
[...] essas pessoas já passaram da idade em que o casamento se realiza por impulso
afetivo. Por isso, o legislador, receando que interesses subalternos, ou especulações
pouco escrupulosas, arrastassem os mais velhos a casamentos inadequados ou
inconvenientes, pôs entraves a essas ambições com o regime da separação de bens
obrigatório.
No mesmo sentido se posiciona Zeno Veloso (apud PEREIRA, in ALMEIDA;
RODRIGUES JUNIOR, 2010, p. 191):
De nossa parte, advogados, para o tema, uma solução intermediária. Embora
reconheçamos que as pessoas de idade alta ou avançada não estão destituídas de
impulsos afetivos e da possibilidade de sentirem amor, ternura, pretendendo,
desinteressadamente, unir-se matrimonialmente com outrem, devemos também
concordar que, na prática, será muito difícil acreditar-se que uma jovem de 18, 20
anos, esteja sinceramente apaixonada por um homem maior de 60 anos, nem, muito
menos, que um rapaz de 20 anos venha a sentir amor e pura ou verdadeira atração
por uma senhora de mais de 50 anos. Tirando as honrosas exceções de praxe, na
maioria dos casos, é razoável suspeitar-se de um casamento por interesse. [...]
Achamos, porém, que a regra protetiva – o casamento sob o regime imperativo da
separação – deve ser mantida. Os amores crepusculares tornam as pessoas presas
fáceis de gente esperta e velhaca, que quer enriquecer por via de um casamento de
conveniência, o que na linguagem popular se conhece por “golpe do baú”.
Nota-se então a relevância das análises e confrontações acerca do regime legal da
separação de bens, conforme apresentado. Há a oposição, como se observa, entre o resguardo
patrimonial e a autonomia da vontade consubstanciada no princípio da dignidade da pessoa
humana, o que se buscou discutir no presente capítulo.
4.1 A Incapacidade em Razão da Idade Instituída pelo Livro de Família do vigente CC
Como é de se observar no vigente CC, todo aquele que nasce com vida, adquire
personalidade, estando apto a contrair obrigações e deveres, bem como adquirir diretos.
Ocorre que, nem todas as pessoas têm aptidão para exercer atos da vida civil. Existem
algumas hipóteses nas quais as pessoas sofrem limitações ao exercício da plena capacidade,
gerando assim a incapacidade, que pode ser relativa ou absoluta. Se a incapacidade for
absoluta, a pessoa não poderá praticar atos da vida civil, salvo se for representado por pais ou
representante legais. Já a incapacidade relativa, permite o exercício de atos da vida civil,
desde que assistidos pelos pais ou representante legais.
O CC, na parte destinada à Teoria Geral, elenca no seu artigo 3º e 4º respectivamente a
incapacidade absoluta e a incapacidade relativa. Da seguinte forma:
art. 3ª – São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I – os menores de 16 (dezesseis) anos;
II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiveram o necessário
discernimento para a prática desses atos;
III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
Conforme exposto, a incapacidade relativa elencada no art. 4º.
São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:
I – os maiores de 16 (dezesseis) e menores de 18 (dezoito) anos;
II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os que, por deficiência mental,
tenham o discernimento reduzido;
III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental, tenham o discernimento
reduzido;
IV – os pródigos.
Como se pode observar, tais indivíduos têm sua capacidade limitada, parcial ou
totalmente, seja em decorrência da idade, por enfermidade mental temporária ou definitiva,
podendo ser também por vícios em tóxicos, embriaguez habitual e, por fim, os pródigos.
O fato de não poder praticar atos da vida civil de forma livre, ou seja, dependendo
sempre da representação ou assistência de outra pessoa, condiciona a realização do ato
almejado pelo incapaz à vontade de seu assistente ou representante legal. Tal dependência é
necessária e tem o objetivo resguardar o interesse do incapaz ou relativamente incapaz, os
impedindo de realizar atos que lhes possam ser prejudiciais, tendo em vista sua idade e
consequentemente seu incompleto desenvolvimento intelectual ou sanidade mental debilitada
por vícios, por patologias, seja de forma eventual ou permanente.
Sendo assim, pessoas com idade superior a 70 anos não devem ser consideradas
incapazes em decorrência da idade, não havendo motivo para limitação à vontade da pessoa
nessa faixa etária, constituindo-se essa tutela uma forma paternalista e autoritária,
contrariando a autonomia da vontade dos contraentes.
Destaca-se a situação referente à incapacidade, relativa ou absoluta, em decorrência da
idade. Como se pode observar, as idades 16 e 18 anos, demonstram a evolução rumo à plena
capacidade civil, que se inicia de forma plena aos 18 anos.
Silvio de Salvo Venosa (2010, p. 140) justifica a incapacidade absoluta do menor de
16 anos, esclarecendo: “Ao estabelecer essa idade de 16 anos, o legislador considerou não a
simples aptidão genética, isto é, de procriação, porém o desenvolvimento intelectual que, em
tese, torna o indivíduo planamente apto a reger sua vida.”
Ressalte-se que a capacidade em razão do desenvolvimento intelectual, que, uma vez
adquirido, não mais se perde ao longo dos anos, salvo por motivos descritos nos II e III do art.
3º e II, III e IV do art. 4º, ambos do CC.
A legislação brasileira não estabelece nenhuma maneira de cessar a capacidade civil
da pessoa em razão da idade. Sendo assim, após atingir 18 anos, a pessoa adquire a
capacidade civil, e, se não incidirem as hipóteses citadas nos incisos acima referidos do art. 3º
e 4º do CC, gozará de capacidade até os últimos dias de sua vida.
Com base em tais normas, conclui-se que a imposição do regime da separação de bens
trata-se de uma limitação à vontade da pessoa, na qual o legislador cria uma incapacidade em
razão da idade, suprimindo o direito da pessoa com idade superior a 70 anos de escolher o
regime de bens que julgar melhor para nortear a situação patrimonial de seu casamento. Essa
incapacidade determinada pelo Livro de Família do Código Civil equipara a pessoa com idade
superior a 70 anos à pessoa incapaz da Teoria Geral, pois o limita de exercer um direito e
atribui-lhe tratamento diferenciado perante os demais.
4.2 A Natureza Existencial da Livre Escolha do Nubente e do Regime de Bens do
Casamento e a Igualdade Substancial Constitucionalmente Protegida
O princípio da igualdade de direitos é basilar na CF de 1988, garantindo aos cidadãos
tratamento idêntico perante a lei. Dessa forma, são vedadas as diferenciações arbitrárias e as
discriminações, sendo certo que deve haver tratamento desigual às hipóteses de desiguais, na
medida de sua desigualdade, buscando a equiparação das condições e melhor adequação das
leis às carências sociais. Segundo Alexandre de Moraes (2010, p. 37):
O princípio da igualdade consagrado pela constituição opera em dois planos
distintos. De uma parte, frente ao legislador ou ao próprio executivo, na edição,
respectivamente, de leis, atos normativos e medidas provisórias, impedindo que
possam criar tratamento abusivamente diferenciados a pessoas que encontram-se em
situações jurídicas idênticas.
Cabe à autoridade pública a aplicação da lei de maneira igualitária, não fazendo
diferenciação em razão de classe social, raça, religião, sexo.
Esclarece, ainda, Alexandre de Moraes (2010, p. 37):
A desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou
arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas. Para que as diferenciações
normativas possam ser consideradas não discriminatórias, torna-se indispensável
que exista uma justificativa objetiva e razoável, de acordo com critérios e juízos
valorativos genericamente aceitos, cuja a exigência deve aplicar-se em relação à
finalidade e efeitos da medida considerada, devendo estar presente por isso uma
razoável relação de proporcionalidade entre os meios empregados e a finalidade
perseguida, sempre em conformidade com os direitos e garantias constitucionais
protegidos.
Ressalte-se a relevância da justificativa objetiva e razoável para que as diferenciações
normativas não venham a ferir garantias fundamentais. Tal justificativa motiva a discussão
sobre a livre escolha do nubente com idade superior a 70 anos ao regime de bens que lhe
aprouver. Como demonstrado nos capítulos acima, há posicionamentos doutrinários que não
consideram razoável o impedimento à pessoa com idade superior a 70 anos de eleger o regime
que entender adequado para guiar a situação patrimonial de seu casamento.
Por outro lado, há os que entendem que o resguardo patrimonial é justificativa
razoável para a aplicação da norma do art. 1.641, II do CC.
Ensina Celso Antonio Bandeira de Mello (1993, p. 79): “Os tratados normativos
diferenciados são compatíveis com a Constituição Federal quando verificada a existência de
uma finalidade razoável proporcional ao fim visado.”
Da mesma forma, avaliando-se a razoabilidade do aludido dispositivo legal, as normas
infraconstitucionais devem estar consoantes a proposta da Carta Magna, seguindo a sua
principiologia, sem dela se afastar, sob pena de se ferir os ideais de igualdade, dignidade e
cidadania nela delineados.
5 CONCLUSÃO
O presente artigo objetivou analisar a constitucionalidade da norma prevista no Livro
de Família do Código Civil que institui a incapacidade para a livre escolha do regime de bens,
impondo o da separação às pessoas com idade superior a 70 anos.
A partir da análise da livre estipulação do regime de bens do casamento, que permite
às pessoas elegerem o regime de bens que entenderem melhor e mais adequado para reger a
situação patrimonial do próprio casamento, observa-se que na faixa etária compreendida entre
a idade núbil até 69 anos, este vigora sem nenhum óbice, sendo certo que a partir de 70 anos,
tal liberdade é limitada pelo CC.
Apresentou-se o princípio da dignidade da pessoa humana como alicerce da vigente
CF, sendo este um direito fundamental que deve ser protegido em suas diversas emanações,
entre as quais se encontram a liberdade, a vontade e sua indispensável manifestação no estado
democrático de direito, efetivando os ideais de cidadania insculpidos na Lei Maior.
Buscou-se apresentar a atual perspectiva do direito das famílias, fundado no afeto e na
solidariedade entre os membros da entidade familiar, abordando ainda o caráter instrumental
da família, sendo esta meio através do qual a pessoa se realiza e se desenvolve plenamente.
Discutiu-se ainda a limitação imposta pelo CC, violando as normas referentes à
capacidade civil da pessoa com idade superior a 70 anos, destacando-se que a parte geral do
mesmo CC, não prevê forma de cessar a capacidade da pessoa em razão da idade, visto que,
da análise dos dispositivos referentes ao assunto na Teoria Geral, a outra conclusão não se
pode chegar que diversas dessa são as hipóteses de perda da capacidade.
Analisando diretamente o tema, foram opostos entendimentos doutrinários diversos,
como o entendimento de Washington de Barros Monteiro, além de outros, que se
manifestaram a favor do regime legal da separação de bens, por entenderem vulneráveis
afetivamente, pessoas com idade superior a 70 anos e também julgarem que a norma afasta a
possibilidade do casamento com fim patrimonial, que, de acordo com o caso, lesaria
familiares do nubente dessa faixa etária. Por outro lado, entendem pela inconstitucionalidade
da norma prevista no art. 1.641, II, do CC, defendendo o princípio da dignidade da pessoa
humana e o princípio da igualdade, em sua essência, sendo desarrazoado cercear o idoso do
direito de escolher livremente o regime de bens do próprio casamento e até mesmo de dispor
livremente de seu patrimônio, tratando-o como vulnerável a ponto de enquadrá-lo em uma
categoria de incapazes inexistente na Teoria Geral do CC, sendo esta a doutrina majoritária.
Assim, para aqueles que valorizam a aplicação da principiologia constitucional, o
posicionamento é pela inconstitucionalidade da norma que institui o regime legal da
separação de bens, vislumbrando-se um paternalismo exacerbado da norma contida no Livro
de Família e, ainda, tendo-se em vista ferir a autodeterminação da pessoa, que objetiva
privilegiar dispositivos legais que visam ao interesse pessoal, quais sejam o afeto e a vontade
às normas que resguardam questões meramente patrimoniais.
Por derradeiro, cabe salientar que o vigente CC, na tentativa de abandonar os ideais
patrimonialistas que permearam o revogado diploma de 1916, mostrou-se deficiente quanto à
evolução do direito, caminhando na contramão da principiologia constitucional, notadamente
do princípio da autonomia da vontade e da autodeterminação da pessoa, ao instituir o regime
da separação obrigatória de bens aos nubentes com idade superior a 60 anos, majorando
posteriormente para 70, o que se revela, frise-se, inconstitucional, por privilegiar a tutela de
direito patrimonial, em sua natureza essencialmente disponível em detrimento da tutela da
dignidade da pessoa humana, na qual se inserem a autonomia da vontade, o direito à
autodeterminação e a afetividade, além de se constituir uma discriminação injustificável, qual
seja, a incapacidade do idoso simplesmente em razão da idade, marginalizando-o em relação a
um patrimônio que ele mesmo foi capaz para construir, gerir e preservar até essa idade.
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