Concurso público: controle das provas discursivas pelo Poder Judiciário


Porwilliammoura- Postado em 27 maio 2013

Autores: 
DANTAS, Alessandro

 

Havendo erro na correção da questão de prova de concurso público ou inobservância às regras previstas no edital, é possível a intervenção do Poder Judiciário, sendo necessária a produção de prova pericial.

1 Considerações iniciais

Questão controvertida é a que diz respeito à possibilidade do Poder Judiciário realizar controle de provas em concursos públicos, especialmente de provas discursivas. Isso nos parece muito estranho, pois enquanto a doutrina e a jurisprudência são categóricas em afirmar que é necessária a objetividade, a motivação, a razoabilidade e o exercício do contraditório e da ampla defesa em todas as fases do concurso, há segmento do Judiciário que adota o posicionamento de que as provas estariam abrangidas pelo “mérito” do ato administrativo, sendo vedado ao Judiciário intervir nos atos da Banca Examinadora.

Esse entendimento tem como equivocado argumento o de que o Estado-Juiz ao realizar a prestação da tutela jurisdicional não deve extrapolar os limites impostos pelo art. 2º da Constituição Federal. Por isso, se fosse permitido ao juiz analisar as provas e como os critérios de correção das mesmas foram utilizados haveria invasão da esfera de discricionariedade típica do administrador público e, consequentemente, ocorreria violação ao princípio da tripartição dos poderes.

No entanto, esse posicionamento não nos parece correto e está cada vez mais sendo rejeitado, pois nenhuma atividade administrativa goza de liberdade absoluta e o art. 2º, da Constituição não veda a apreciação dos atos da Administração pelo Poder Judiciário, ao contrário, pois o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal, prevê que a lei não pode afastar da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Nesse sentido, cabe ao Judiciário a análise da legalidade e constitucionalidade dos atos dos três poderes e, constatando mácula no ato impugnado, deve afastar a sua aplicação[1].

Ademais, ao corrigir a prova discursiva a Banca Examinadora deverá motivar a nota atribuída ao candidato. Segundo a teoria dos motivos determinantes os fatos que servirem de suporte à decisão administrativa integram a validade do ato. Logo, enunciados os motivos que ensejaram a atribuição daquela nota, esta só será válida se as justificativas tiverem procedência[2]. Isso quer dizer que o padrão de resposta deve refletir com precisão os conceitos consolidados das disciplinas avaliadas, não cabe a Banca Examinadora determinar o que é certo ou errado, mudando a realidade das coisas.

É certo que a realização de concursos públicos muitas vezes submete-se, de forma indevida, ao estrito arbítrio dos administradores. A legislação pátria contém pouquíssimas regras destinadas a tolher abusos e o resultado são certames marcados por diversas demandas judiciais, muitas vezes com expressivo atraso na consecução dos objetivos visados pela Administração Pública.

Nesse cenário, diversas ilegalidades são praticadas e protegidas pelo “manto” da discricionariedade e muitas vezes nada tem sido feito para corrigi-las sob o argumento de que é vedado ao Poder Judiciário se imiscuir no mérito administrativo. A doutrina mais moderna e atenta à realidade fática e social sustenta, corretamente, a alteração desse entendimento ultrapassado. O movimento destinado a promover essa alteração não está limitado apenas ao campo teórico e entre os doutrinadores e julgadores, os nossos legisladores também aderiram a ele dando origem a diversos projetos de leis destinados a controlar a atuação da Administração Pública nos concurso públicos, dentre eles, se destacam os Projetos de Leis 252/2003, 985/2007, 1009/2007, Projeto de Lei do Senado n.º 74/2010 – Projeto Substitutivo,Projeto de Lei do Senado nº 30/2012 , que dentre outras questões, a elaboração, correção e controle jurisdicional das provas discursivas.


2 Redução da discricionariedade a zero na correção das provas discursivas

Na avaliação de provas discursivas pode até ser uma tarefa árdua, senão impossível, reduzir de forma absoluta qualquer interferência subjetiva do examinador, mas essa circunstância não autoriza que a correção desse tipo de prova seja feita sem critérios objetivos previamente definidos que estejam de acordo com os conceitos adotados na disciplina avaliada, e muito menos desobriga a Banca do dever de motivar a correção e de atribuir ao candidato a nota que corresponda ao conhecimento que demonstrou na avaliação.

Mesmo ciente dessas considerações, a jurisprudência caminha em sentido oposto ao atribuir aos critérios adotados pela Banca o caráter de ato discricionário e, portanto, insuscetível de controle judicial.

 É exatamente esse o entendimento acolhido no seguinte julgado:

Recurso extraordinário. Concurso público.  Também esta Corte já firmou o entendimento de que não cabe ao Poder Judiciário, no controle jurisdicional da legalidade, que é o compatível com ele, do concurso público, substituir-se à banca examinadora nos critérios de correção de provas e de atribuição de notas a elas (assim no MS 21176, Plenário, e RE 140.242, 2ª. Turma). Pela mesma razão, ou seja, por não se tratar de exame de legalidade, não compete ao Poder Judiciário examinar o conteúdo das questões formuladas para, em face da interpretação dos temas que integram o programa do concurso, aferir, a seu critério, a compatibilidade, ou não, deles, para anular as formulações que não lhe parecerem corretas em face desse exame. Inexiste, pois, ofensa ao artigo 5º, XXXV, da Constituição. Recurso extraordinário não conhecido[3].

Não só a jurisprudência, mas também doutrinadores como JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO[4], entendem que “esses critérios não podem ser reavaliados no Judiciário, pois que, além de serem privativos da Administração, sua reapreciação implicaria ofensa ao princípio da separação dos Poderes”.

Data máxima vênia, discordamos dessa orientação jurisprudencial e doutrinária. O concurso público é um procedimento composto tanto de atos discricionários como de atos vinculados e em qualquer das duas espécies de atos a Administração deve observar todos os aspectos de legalidade e de constitucionalidade. A discricionariedade está presente na elaboração das provas e escolha do local e data para sua aplicação, mas a formulação do gabarito, correção e atribuição de pontos é ato vinculado. A discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. O examinador não pode exigir como a correta, resposta flagrantemente errada, pois estaria violando o princípio da legalidade e, por conseguinte, o edital, daí porque, neste caso, o Judiciário não invade a discrição do examinador, mas o reconduz aos trilhos da lei e do edital.

Pensar de modo contrário seria atribuir a Administração um poder ilimitado para correção das provas discursivas, pois ela poderia criar um gabarito sem nenhuma relação com as disciplinas avaliadas e isso ninguém poderia questionar, uma vez que o ato de formulação do gabarito é classificado como ato discricionário. Entender de forma irrestrita que os critérios de correção estão abrangidos pela discricionariedade e, por conseguinte, são insuscetíveis de controle judicial, é o mesmo que conferir o caráter de verdade absoluta a qualquer afirmação que esteja no gabarito que orientará a correção das provas discursivas. A discricionariedade administrativa não pode significar que a Administração tem a liberdade de escolher qual a resposta para determinada questão da prova discursiva, pois só existe uma escolha possível, que é aquela que corresponde à realidade, não cabe a Banca definir o que é certo ou errado.

Nesse sentido, vale citar ALMIRO DE COUTO SILVA[5], para quem “o concurso público para admissão nos serviços do Estado é um procedimento sério de seleção de candidatos, no qual deverá existir, em linha de princípio, a possibilidade de controle – não apenas administrativo, pelos caminhos dos recursos pertinentes – mas também de caráter jurisdicional, dos critérios de correção das provas, sob pena de poder transformar-se em fraude e burla dos interesses dos competidores. Já foi anteriormente ressaltado que a Administração Pública não tem o poder incontrastável de reputar como certo o que bem lhe parecer, pois isso seria arbítrio”.

Neste contexto, é pertinente destacar a teoria da “redução da discricionariedade a zero”, que é adotada no Direito Alemão e Espanhol e, ainda que de forma minoritário, vem ganhando espaço no Direito Brasileiro.

A respeito dessa teoria, o Professor HARTMUT MAURER[6] da Universidade de Konstanz, na Alemanha, ensina que o “poder discricionário significa que a administração pode escolher entre alternativas diferentes. No caso particular, pode ela, todavia, reduzir a possibilidade de escolha a uma alternativa, se todas as outras alternativas fossem de exercício do poder discricionário vicioso. A autoridade está, então, obrigada a ‘escolher’ a única decisão ainda restante para ela. Fala-se, nesses casos, de ‘redução do poder discricionário a zero’ ou de concentração do poder discricionário”.

Aplicando essa teoria inovadora às provas discursivas de concursos públicos, será que para determinada pergunta que se satisfaz apenas com uma única resposta, diversa da que foi adotada pela Banca Examinadora, não poderia o Poder Judiciário, respaldado por perícia ou qualquer outro meio probatório igualmente eficaz, anular o gabarito incorreto e indicar a única resposta correta?

Para que fique mais clara a compreensão dessa teoria de origem europeia, iremos repetir o caso real que citamos anteriormente. Em determinado concurso público, organizado por uma das mais conceituadas Bancas Examinadoras do Brasil, determinado candidato ao receber o resultado da sua prova discursiva interpôs recurso visando à alteração da nota, pois a Banca afirmou que havia um erro de grafia na linha 25 da sua prova discursiva. Como o candidato não localizou o erro ele transcreveu no recurso a linha 25 da forma como havia escrito na redação. Para sua surpresa a Banca Examinadora indeferiu o recurso alegando que a palavra “execução” escreve-se com “ss’, ou seja, “execussão”.

Todos sabem que a palavra “execução” não se escreve com “ss”, mas mesmo assim a Banca subtraiu pontos do candidato por ter escrito corretamente a palavra, indicando um erro que não existia. Reformulando o questionamento de acordo com esse caso, poderia o Judiciário, anular a correção da Banca Examinadora e indicar a única solução correta? Poderia o Judiciário dizer que a palavra “execução” não se escreve com “ss”?

Neste caso, só existe uma solução correta, a Banca Examinadora não tem nenhuma margem de liberdade para formular o gabarito e escolher regras de grafia que não existem na língua portuguesa. Como se vê, a discricionariedade encontra-se reduzida à zero, pois só existe uma única escolha para Banca Examinadora, sendo plenamente possível o controle por parte do Judiciário sem que ocorra indevida intromissão no mérito administrativo e violação ao princípio da separação dos poderes.

Novamente, cai como uma luva a brilhante lição de ALMIRO DO COUTO E SILVA[7], que, em artigo especializado sobre o tema, sustenta “o certo ou o errado será aferido pelo confronto da resposta com o estado atual das ciências, da técnica ou das artes, conforme a área de conhecimento em que tais provas se situam. O gabarito oficial deverá espelhar com fidelidade essa situação, indicando como alternativa certa a que assim for considerada pelo estado atual das ciências, da técnica ou das artes”. Isso deixa bem claro que a Banca Examinadora tem discricionariedade somente na elaboração da prova discursiva, mas a elaboração do gabarito não faz parte do mérito administrativo, pois Banca não tem liberdade para escolher a resposta que bem entender, uma vez que a resposta deve corresponder aos conceitos adotas pela ciência ou pela arte. 

Não existe discricionariedade administrativa quando a Banca Examinadora contraria conceitos consolidados de determinada ciência. Nessa hipótese é aceitável o Poder Judiciário interferir na correção da prova discursiva. Como bem observado pela Desembargadora Maria Isabel Galloti Rodrigues, do TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 1ª REGIÃO:

A discricionariedade da banca, contudo, encontra limites nos princípios da legalidade e da razoabilidade, não se justificando critérios objetivamente arbitrários, e nem calendários que impossibilitem o conhecimento, pelo candidato, das razões de indeferimento de seu recurso, antes do início das provas da fase subseqüente. Indeferimento de recurso não acompanhado das razões que o motivaram equivale a não apreciação do recurso. [...].

A Agravante fez juntar ao presente agravo cópia de sua prova de redação, para comprovar a alegação de que lhe teriam sido descontados pontos em razão de práticas consideradas corretas nos livros de gramática portuguesa adotados pela bibliografia do concurso, o que é sinal, ao menos a um primeiro exame, de verossimilhança de sua pretensão. [8]

Portanto, em provas discursivas em que existir apenas uma única resposta para ser validamente adotada pela Banca Examinadora, a discricionariedade encontra-se reduzida à zero, cabendo ao Judiciário anular ou substituir a resposta ofertada pela Administração Pública quando não corresponder ao conhecimento científico avaliado.


3 Resposta tecnicamente sustentável

Assim como a teoria da redução da discricionariedade a zero, a jurisprudência alemã também tem adotado outro posicionamento digno de aplausos, trata-se da “resposta tecnicamente sustentável”que assegura ao candidato o direito de uma margem de resposta, de forma que uma resposta sustentável não pode ser avaliada como falsa, mesmo que aquele não seja o entendimento adotado pela Banca Examinadora. Deste modo, em sendo sustentável a resposta ofertada pelo candidato, desde que apoiada em determinada orientação científica, mesmo que não coincida com a resposta apresentada pela Banca Examinadora do concurso, deverá ser aceita como correta.

Novamente é salutar destacar as precisas palavras de HARTMUT MAURER[9], Professor da Universidade de Konstanz na Alemanha, que esclarece que “o examinador não deve avaliar como errônea uma solução exposta pelo examinando se ela está consequentemente fundamentada e na literatura, em alguma parte, é sustentada seriamente, mesmo que ele próprio a considere errônea. O examinando se manteve dentro do quadro desse espaço de resposta e, por isso, não pode ser avaliada como errônea”.

Essa teoria é aplicável a provas discursivas sobre assuntos de quaisquer áreas do conhecimento (economia, sociologia, história etc.), desde haja divergência científica e, por isso, exista a possibilidade de mais de uma resposta ser tecnicamente sustentável. Porém, no Direito, ela é mais fácil de ser visualizada.

É cediço que o Direito não é uma ciência exata, sendo que em razão do mar principiológico que banha o Ordenamento Jurídico, a análise de determinados comandos legais podem, e geram muitas vezes, mais uma vertente exegética. Por isso verificamos uma dinâmica das decisões judiciais. Às vezes, o jurisdicionado vence a batalha judicial em primeira instância, perde outra no Tribunal, porém reverte no Superior Tribunal de Justiça ou no Supremo Tribunal Federal. Note que o caso levado a juízo é o mesmo, porém conforme o manejo sistemático, lógico ou literal dos comandos normativos em jogo, o resultado pode ser diferente.

Sabendo disso, quando determinada matéria é cobrada em uma prova discursiva de concurso público, o órgão encarregado de fazer o concurso ou a instituição para quem foi terceirizada a tarefa (Banca Examinadora) deve ter o cuidado de não cobrar matéria cujo entendimento doutrinário ou jurisprudencial seja conturbado, não pacificado. Caso contrário, deve aceitar os entendimentos possíveis, que são fruto da diversidade doutrinária e jurisprudencial.

Isso porque o candidato não tem um “oráculo jurídico” para adivinhar qual o posicionamento doutrinário ou jurisprudencial que a Banca está adotando, além disso, seria no mínimo imoral impor um entendimento unilateral, quando há outros da mesma relevância e de forte reconhecimento no âmbito acadêmico ou da pragmática dos Tribunais Superiores.

Assim, não há dúvida que tal comportamento fere o princípio da moralidade, da segurança jurídica, da razoabilidade, devendo e podendo ser objeto de análise pelo Judiciário, que fazendo ou não uso de prova técnica (perícia) irá verificar se o candidato acertou ou não a questão, mesmo que com tese diferente da adotada pela Banca Examinadora.

O objetivo não é dizer se aquela matéria poderia ser cobrada. Não! O objetivo é: se a matéria cobrada possuir mais de uma resposta sustentável juridicamente, deve o Judiciário fazer valer a mesma, devendo também ser aceita esta alternativa de resposta.

Por mais que a Banca Examinadora possua uma autonomia para avaliar as provas, o fato é que essa autonomia não é absoluta, sendo limitada pelos princípios orientadores da Administração Pública, já que o concurso público por si só é um procedimento administrativo que objetiva a seleção de pessoal para trabalhar em caráter permanente junto ao Poder Público.

Sendo ele realizado pela própria Administração ou por empresas terceirizadas, o regime é exatamente o mesmo. Não há saída: o ato de correção da prova e a atribuição de uma nota em concurso é um ato administrativo, e, por isso, está sujeito a controle de juridicidade pelo Poder Judiciário que, seja pelo conhecimento do magistrado, seja por meio de auxílio de prova pericial, tem condições de verificar se a resposta ofertada está correta ou não, frente ao estado atual da doutrina e da jurisprudência.

Nota-se que isso não se trata de controle de mérito do ato. Não se está pleiteando para que determine a mudança da data da prova, ou que seja retirada do edital certas matérias. O que se quer é um julgamento atento aos princípios que norteiam a atividade administrativa, e a imposição unilateral de um gabarito em uma prova discursiva que envolve matéria divergente, é, sem duvida, aviltante a inúmeros princípios, como moralidade, razoabilidade, segurança jurídica, etc.

O fato de o direito não ser uma ciência exata, como a matemática, física ou estatística, não significa que a mesma seja subjetiva. Não existe ciência subjetiva! Os enunciados formulados pela ciência jurídica possuem caráter descritivo da realidade: as normas jurídicas, estas sim de caráter prescritivo. 

Quando se faz uma avaliação sobre uma ciência de caráter descritivo, como no caso de provas de direito, não há como existir subjetividade, mas julgamento completamente objetivo da avaliação, o qual deve levar em consideração a lei, a doutrina e a jurisprudência, sendo que, se houver divergência entre os institutos, deve ser aceito ambos os posicionamentos.

Portanto, uma vez demonstrado que a Banca Examinadora cobrou na prova discursiva matéria divergente na doutrina ou jurisprudência, o candidato que tenha respondido adotando posicionamento que não coincide com a opção da Banca, deverá ter sua resposta considerada correta, desde que seja tecnicamente sustentável.




Leia mais: http://jus.com.br/revista/texto/24533/concurso-publico-controle-das-provas-discursivas-pelo-poder-judiciario#ixzz2UUpHBkeL