Comparativo da união estável e as relações homoafetivas como instituição familiar


Porjeanmattos- Postado em 28 setembro 2012

Autores: 
SANTOS, Anna Claudia Lucas dos

 

Por mais que as uniões homoafetivas tenham sido alvo de muitos preconceitos, a luta pela aplicação dos direitos humanos tem se mostrado vitoriosa e os tribunais vem reconhecendo alguns direitos, a partir da convivência em comum

 

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem a pretensão de analisar as relações homoafetivas à luz da Constituição Federal de 1988, mormente em confronto, com o princípio da igualdade, insculpido no art. 5º, Caput,da Magna Carta, através de comparativo com a união estável formada entre um homem e uma mulher.  

O tema possui importância ímpar, considerando-se que a união familiar funda-se precipuamente, em sentimentos nobres, como o amor, a fidelidade, o respeito e a proteção recíproca a seus membros. Atualmente, a tarefa de conceituar família tornou-se árdua, em função das mudanças institucionais familiares, na sociedade.

Para o desenvolvimento deste trabalho, foram levantados os seguintes problemas: Levando-se em consideração os aspectos legais, que envolvem a família, como aquisição de patrimônio comum, obrigação alimentar e a adoção de filhos, a união homoafetiva duradoura é uma forma de instituição familiar? Em caso do rompimento da união homoafetiva, seja pela separação ou pela morte de um dos conviventes, é possível a partilha de bens adquiridos por ambos na constância da união? É possível o aperfeiçoamento do registro de filhos adotados pelo casal homoafetivo?

Tem como objetivo geral demonstrar que as uniões homoafetivas são uma realidade no Brasil, e necessitam da mesma proteção estatal, que as instituições familiares seculares gozam, com fundamento na Carta Magna, que destaca a pessoa humana, em privilegiado patamar.

Os objetivos específicos são: analisar os princípios da digninidade da pessoa humana e da igualdade, insculpidos na Magna Carta; o estudo do conceito amplo de instituição familiar, abrangendo as uniões homoafetivas, como modalidade de família; a análise da possibilidade de adoção de crianças, por pares homoafetivos, apresentando um caso concreto.

Por se tratar de pesquisa bibliográfica, foram consultados autores polêmicos e de vanguarda, tais como Maria Berenice Dias, que cunhou o neologismo “homoafetividade”, e Paulo Roberto Vecchiatti, Carla de Castro Abreu, Vinícius Marçal Vieira e Liliane Jaime Mendonça de Araújo, dentre outros, bem como jurisprudências pátrias relacionadas ao tema.

Em razão da problemática levantada, será primeiramente traçado, no segundo capítulo, um relato histórico acerca da homossexualidade, que data de séculos.

A partir do cristianismo, as relações entre pessoas do mesmo sexo deixaram de ser admitidas pela sociedade, que, em sua evolução, caminhando ao lado da religiosidade, atribuiu a tais relações a pecha de pecaminosa e abominada por Deus. As pessoas que nutriam sentimento por outras de mesmo sexo, passaram a sentir-se discriminadas pela sociedade, ou mantinham seus sentimentos na clandestinidade, visando manter o amor de seus familiares e o respeito da sociedade.

O terceiro capítulo fará uma análise da homoafetividade em conformidade com a Constituição Federal de 1988, que, com o seu advento, teve início o processo de redemocratização da nação brasileira, como sendo um Estado laico. A igualdade entre as pessoas, sem distinção alguma, adquiriu statusconstitucional, e a família passou a gozar de especial proteção pelo Estado.

As discriminações e os preconceitos em relação à cor da pele, sexo, idade, preferências religiosa e sexual são severamente abominados pela Constituição Federal.

O quarto capítulo fará um estudo acerca da homoafetividade como instituição familiar, mediante a apresentação do conceito constitucional de instituição familiar, culminando, com um parâmetro, entre união estável e união homoafetiva.

Como extensão ao capítulo anterior, o quinto capítulo estuda a possibilidade de adoção por pares homoafetivos.

O trabalho monográfico se encerra com o silêncio da lei em confronto com o avanço jurisprudencial. Nos últimos vinte anos, várias foram as Leis promulgadas com escopo exclusivo de atender aos anseios da nação brasileira e amoldar-se com o texto constitucional. O arcaico Código Civil de 1916 deixou de existir, para dar lugar ao novo Código Civil, mais humanitário, que modificou profundamente o Livro que trata do direito de família, em atendimento ao alargamento do conceito de instituição familiar, contido no bojo da Lei Maior. Entretanto, não existem no cenário nacional leis regulamentadoras da união homoafetiva, a despeito das intensas modificações no conceito de família.

2 A HOMOSSEXUALIDADE: ORIGENS HISTÓRICAS

2.1 A homossexualidade no curso na história

As relações homoafetivas existem há séculos, conforme vários relatos históricos, onde os primeiros filósofos célebres da história, dentre eles Platão, dizia-se homossexual.

Na antiguidade, as relações homoafetivas eram comuns entre os homens, e o matrimônio visava essencialmente à perpetuação da espécie.

O amor, a intimidade sexual de caráter prazeiroso acontecia com seus companheiros, com quem tinham momentos de absoluto prazer e alegria.

Lacerda Neto (2007a, p. 1), assim preleciona:

A antigüidade grega, a que pertenceu Platão, caracterizava-se pelo politeísmo, crença em inúmeros deuses, a cada um atribuindo-se a responsabilidade por certos fenômenos, como o deus Amor, responsável pelo sentimento de afeição entre as pessoas; assinalava-se, ainda, pela bissexualidade masculina, em que aceitavam-se as relações sexuais de homens com mulheres e com homens, e pela pederastia, relacionamento entre o erastes e o erômenos: aquele, mais velho de 25 anos, procurava um moço de entre 12 e 15 anos (o erômenos), a quem, sob a aprovação dos respectivos pais, servia de amigo e educador até os seus 18 anos, quando a relação passava a ser de amizade, exclusivamente, sem conteúdo sexual que, de resto, não compreendia penetração anal e sim o coito interfemural (fricção do pênis entre as coxas, junto da genitália). A assim chamada homossexualidade grega encarnava um costume altamente moral de finalidade educadora; a intimidade física entre o erastes e o erômenos verificava-se no âmbito de uma relação, antes de tudo, formadora do caráter do mais moço, em que o mais velho desempenhava um papel significativo na transmissão de valores.

Os homens, naquela época, não conseguiam compreender a natureza feminina. Mensalmente, durante o período menstrual, eram consideradas impuras e não eram tocadas por seus maridos.

A dificuldade em compreender o feminino, suas peculiaridades relacionadas à sua própria natureza, favoreciam as relações homoafetivas entre os homens, bem como sua aceitação social.

O portal História do Mundo (s.d) traz um relato histórico interessante acerca da história da homossexualidade, sem atribuir a autoria do texto que, a despeito de tal fato, vale ser colacionado no presente trabalho monográfico.

Recuando para os tempos antigos poderíamos nos deparar com uma visão bastante peculiar ao notarmos que afeto e prática sexual não se distinguiam naquele período. As relações sexuais não eram hierarquizadas por meio de uma distinção daqueles que praticam optavam pelos hábitos homo ou heterossexuais. Na Grécia, por exemplo, o envolvimento entre pessoas do mesmo sexo chegava, em certos casos, a ter uma função pedagógica.  Na cidade-Estado de Atenas, os filósofos colocavam o envolvimento sexual com seus aprendizes como um importante instrumento pelo qual se estreitavam as afinidades afetivas e intelectuais de ambos. Entre os 12 e os 18 anos de idade o aprendiz tinha relações com seu tutor, desde que ele e os pais do menino consentissem com tal ato. Já em Roma, havia distinções onde a pederastia era encarada com bons olhos, enquanto a passividade de um parceiro mais velho era motivo de reprovação.

Relatos históricos revelam que 3.000 anos antes de Cristo até os primórdios da era cristã, a homossexualidade integrava as culturas antigas, sem nenhuma repressão ou preconceito, sendo livre e aberta a prática da homossexualidade.

No Egito e na Índia, especialmente neste último, relações homossexuais eram alçadas à categoria de divindade. Vários deuses indianos eram homossexuais ou bissexuais.

Lacerda Neto (2007b, p.1), narra:

Na Índia, os deuses eram afetiva e sexualmente bissexuais, o que influenciou a população indiana, em igual sentido, até o advento da ocupação britânica, responsável por uma alteração das mentalidades e dos comportamentos, o que resultou, na atualidade, em uma certa renegação da homossexualidade e a sua atribuição à influência do Ocidente. Na Índia, os casamentos correspondiam a vinculações voltadas a constituir ou a fortalecer laços entre famílias, por meio da geração de filhos, fora do pressuposto (ocidental) da afetividade entre os cônjuges, livres, assim, para amar a terceiros e manter atividade sexual com eles. Os textos hindus mais antigos, designados como literatura védica (cerca de 200 antes de Cristo a 800 depois de Cristo), contém a narrativa relacionada com Crixna, um deus que assume formas humanas, e Ardjuna, simultaneamente divino e humano: tratava-se de amigos que se amavam.

Na China antiga, os relacionamentos homossexuais eram comuns. Os chineses casavam-se visando a procriação, entretanto eram livres para manterem relacionamentos extraconjugais, sem nenhuma restrição.

Lacerda Neto (2007b, p.1) afirma que:

Na China, anteriormente à era cristã,  havia atração sexual e amor romântico dos homens por ambos os sexos. Por norma, os homens casavam-se e procriavam, porém, geralmente, sem conotação afetiva: a exemplo de outras culturas antigas, os membros do casal eram livres para realizar-se afetivamente em outras relações, independentemente do sexo do terceiro. 

O marco histórico da proibição da prática homossexual surgiu a partir do cristianismo, consequentemente, no poder de persuasão, que a Igreja exercia sobre os fiéis. Entre os judeus, a prática era também repudiada.

2.1.1 A homossexualidade na Antiguidade

Conforme já narrado alhures, a homossexualidade é tão antiga quanto à heterossexualidade, afirmação esta atribuída a Goethe, segundo informa Vechiatti (2008a, p. 40).

Nas sociedades primitivas, o relacionamento sexual entre homens era prática constante e aceitável.

O relacionamento homossexual entre um homem mais velho e outro mais novo relacionava-se à mitologia e conjunto de lendas, que permeavam as tribos antigas.

Acreditava-se que, através de tal relacionamento, o menino atingiria a masculinidade, através da exclusão do contato com a mãe, visando a aprendizagem dos costumes masculinos de seu povo (VECHIATTI, 2008a, p. 41).

Outras crenças fundavam a aceitação do relacionamento homossexual masculino, que somente com essa prática se alcançaria a fertilidade para futura procriação.

Imperioso ressaltar que o conceito de identidade homossexual atual diverge do que existia em tempos antigos, sendo que nessa época, as pessoas não se preocupavam com isso, apenas com a sexualidade (VECHIATTI, 2008a, p. 42).

Os registros históricos referem-se apenas à homossexualidade masculina, deixando de lado a feminina. Ocorre que na antiguidade, a mulher era desprezada, servia apenas, para a procriação e perpetuação da espécie, reinando grande preconceito em relação ao feminino nesse tempo. Os relacionamentos homoafetivos femininos não mereceram registro por essa razão, o que não significa que não existiam na antiguidade.

Os povos considerados mais tolerantes à homossexualidade foram os gregos e romanos, porém não eram os únicos.

Segundo Dias (2009, p. 35):

Na Grécia, o livre exercício da sexualidade fazia parte do cotidiano de deuses, reis e heróis. O mais famoso casal da mitologia grega era formado por Zeus e Ganimede. Lendas falam do amor de Aquiles por Pátroclo e dos constantes raptos de jovens por Apolo. Até hoje se indaga sobre o caráter e a importância de tais práticas, se perversão admitida, instituição pedagógica ou ritual iniciatório, sendo questionado se tais hipóteses serias excludentes entre si. A bisexxualidade estava inserida no contexto social, e a heterossexualidade aparecida como preferência de certo modo inferior e reservada à procriação. Vista como uma necessidade natural, a homossexualidade restringia-se a ambientes cultos, como manifestação legítima da libido, verdadeiro privilégio dos bem-nascidos. Não era considerada uma degradação moral, um acidente ou um vício. Todo indivíduo poderia ser homossexual ou heterossexual, dois termos, por sinal, desconhecidos na língua grega. Nas Olimpíadas, os atletas competiam nus, exibindo sua beleza física. Era vedada a presença das mulheres nas arenas, por não terem capacidade para apreciar o belo. Também nas representações teatrais, os papéis femininos eram desempenhados por homens travestidos ou mediante o uso de máscaras.

Em relação à Esparta, esta é a dicção de Vechiatti (2008a, p. 44):

Já na cidade-estado de Esparta, cuja sociedade dava mais ênfase ao desenvolvimento militar do que ao cultural, a visão do amor entre homens tinha um enfoque um pouco diferenciado. Era ela estimulada dentro do exército espartano, para torna-lo ainda mais eficiente. Isso se explica por um simples fato: com a existência constante de relacionamentos homoafetivos dentro do exército, quando este ia para a guerra, o soldado estaria lutando não apenas por sua cidade-estado, mas igualmente para proteger a vida de seu amado, o que, obviamente, aumentaria o grau de dedicação do combatente.

No mesmo sentido, em relação à Roma, ensina Vechiatti (2008a, p. 45):

A sexualidade em Roma manteve, a princípio, o mesmo modelo ‘bissexual’ anterior, no sentido de ser comum o amor de homens mais velhos por meninos-adolescentes, mas com uma diferença, ao mesmo tempo sutil e perceptível: o extremo valor dado pelos romanos à virilidade masculina e àquilo que entendiam por virilidade. O macho romano se via como um dominador agressivo e acreditava que, quando forçava outros a se submeterem, estava lhes proporcionando prazer.

Nesta esteira, verifica-se que a diferença entre as percepções acerca dos relacionamentos homoafetivos entre gregos e romanos consiste no fato de que aqueles cortejavam os meninos, visando a conquista, e estes praticavam o amor homossexual apenas com meninos escravos, vez que a sexualidade era intimamente ligada ao sentido de dominação (DIAS, 2009).

2.1.2 A homossexualidade na Idade Média e o início da homofobia

Enquanto na Antiguidade a homossexualidade era aceita, na Idade Média, com a consolidação da Igreja, surgiram os primeiros sinais de intolerância, contra a prática homossexual, seja masculina ou feminina.

Na Idade Média, o governo administrativo confundia-se com o clero, ambos possuindo grande poder de domínio. A Igreja Católica Apostólica Romana vê o sexo apenas dentro do casamento, com finalidade específica de procriação; o prazer sexual é considerado pecaminoso.

Este pensamento foi consolidado na Idade Média, entretanto, ao invés de coibir as práticas homossexuais, tais continuaram sendo praticadas às escondidas, com muita discrição, para não ser discriminado pela sociedade preconceituosa medieval (VECHIATTI, 2008a).

Havia o pensamento de relacionar o homossexualismo com a feitiçaria, que era de igual forma abominada pela Igreja.

Na dicção de Vechiatti (2008a, p. 55)

[...] a condenação homofóbica continuou cada vez com mais força. A suposta ligação entre a homossexualidade e a feitiçaria e o demonismo fez com que os heterossexuais em geral passassem a ter cada vez menos tolerância contra aqueles que amavam pessoas do mesmo sexo. Essas afirmações ganharam força considerável entre os anos 1348-1350, nos quais a Peste Negra devastou a Europa, dizimando aproximadamente um terço da população. Isso porque os chefes de Estado da época, influenciados por ministros religiosos, ligaram ditos desastres às condutas sexuais tidas por imorais (todas aquelas fora do casamento e sem intuito procriativo) aumentando ainda mais o ódio contra os homossexuais.

O preconceito atravessou a Idade Média, e nos dias hodiernos, é comum a homofobia, embora seja inaceitável. A violência contra os homossexuais se externa de diversas formas, desde o preconceito escondido até práticas violentas, contra o homossexual, pelo simples fato de possuir orientação diferente.

Nos países islâmicos é prevista pena de morte aos homossexuais. No Afeganistão, Arábia Saudita, Sudão e Emirados Árabes ser homossexual é sinônimo de sentença de morte (DIAS, 2009).

Na América do Sul, apenas o Chile criminaliza a prática homossexual.

No Brasil, tramita o Projeto de Lei 5.003/2001, que propõe sanções às pessoas que pratiquem crime de discriminação e preconceito contra homossexuais, em todos os aspectos de sua vida, seja laboral ou social. Sobre o tema, é pertinente trazer à colação o escólio de Dias (2009, p. 79):

De tão singelo, é até difícil sustentar a indipensabilidade de sua aprovação. Simplesmente diz: é crime discriminar por orientação sexual. Ora, é crime discriminar o negro, que também é alvo de crimes de ódio. Mas para eles há a Lei Afonso Arinos. A justificativa de alguns parlamentares é no mínimo bizarra: dizem simplesmente que não poderiam, nos cultos, falar mal dos homossexuais. Este é o fundamento para a lei não ser aprovada.

Embora não pareça crível, os religiosos de plantão no Congresso Nacional, cuja bancada é formada em sua maioria por evangélicos, protestantes e católicos, não permitem a aprovação de projetos de lei, que pretende atribuir direitos aos homossexuais.

Enquanto isso, a homofobia segue seu curso. Valéria Amim (s.d.) retrata bem a homofobia:

Para ilustrar a violência brutal ao homossexual, nos parece exemplar a canção de Chico Buarque de Holanda “Geni e o Zeppelin” do álbum a “Ópera do malandro”, baseado na “Ópera dos Três Vinténs” de Brecht. A Música narra uma pequena história em que o marginalizado é um homossexual, que durante o dia é Genival, e que de noite se transveste em Geni. A cidade é o seu carrasco, excluindo-a e agredindo-a das formas mais perversas, desveladas sob as diversas representações sociais acerca da homossexualidade. Os versos a seguir ilustram essa realidade: “Joga pedra na Geni Joga pedra na Geni Ela é feita pra  apanhar Ela é boa de cuspir Ela dá pra qualquer um Maldita Geni.” A rejeição social à imagem produzida pela personagem Geni foi comentada da seguinte forma pelo autor:  (...) “O que eu ouvi por causa da música Geni e o Zepellin, foi impressionante: desaforos, insultos, fiquei profundamente identificado com as personagens, as pessoas que jogavam pedras na Geni eram as mesmas que reclamavam dela e por conseguinte de mim, que nos agrediam de uma forma implacável” (apud Carvalho, l982). Nesse comentário da música, Chico Buarque conseguiu captar com maestria um fenômeno social: o homossexual vem sendo tratado como o esgoto da sociedade ocidental contemporânea. Segundo Mott (in Velho, 1996), o Brasil é o país campeão de assassinatos de homossexuais, e ainda, entre todas as minorias são os mais odiados. A intolerância à homossexualidade, a hemofobia, tem-se apresentado das formas mais diversas, como: chacotas, agressões simbólicas e físicas, omissão da lei e etc; configurando um quadro de violência que chega a barbárie.

A regulamentação de sanções para coibir a homofobia é medida que se impõe. Não se pode admitir manifestações homofóbicas, por estar em desacordo com a Constituição Federal, que veda qualquer tipo de preconceito às minorias.

Ressalte-se que o homossexual é a maior vítima de preconceito, dentre as demais minorias, posto que o negro encontra amparo em sua família e com outros negros; os portadores de doenças especiais, no mesmo sentido. Entretanto, o homossexual sofre preconceito no seio de sua própria família, que o abomina e sente vergonha da orientação sexual deste.

2.1.3 A homossexualidade e o cristianismo

 

Uma das indagações que muitas pessoas fazem quando param para refletir sobre a condição da homossexualidade, repousa na idéia de ser a mesma uma característica exclusiva do ser humano ou não.

Na verdade, a homossexualidade está presente não somente entre os homens, mas entre as inúmeras espécies de animais, sendo este um acontecimento que se dá desde os tempos mais remotos da história da humanidade.

Portanto, a sociedade em geral entende, que a homossexualidade é algo que está intimamente ligado, com os seres humanos e com todos os animais, não sendo possível ser varrida para debaixo do tapete,precisando ser regulamentada urgentemente.

O cristianismo apresenta-se entre outros movimentos religiosos ligados à moral e aos bons costumes, que combatem radicalmente os relacionamentos homoafetivos.

A Bíblia Sagrada não traz a palavra homossexual, mas é possível encontrar uma passagem que demonstra exatamente o tema. No Antigo Testamento, em Levítico 18:22, lê-se, "com o homem não te deitarás, como se fosse mulher; É abominação”.  Nesse sentido, a igreja entende que a homossexualidade é contrária a lei divina (BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA, 1999, p. 145).

Mas, quando se fala em textos bíblicos, não se pode olvidar que a doutrina bíblica que condena a homossexualidade, condena também, o julgamento feito por qualquer pessoa, conforme a célebre passagem de João 8:7, " [...] aquele dentre vós que está sem pecado que lhe atire uma pedra” (BÍBLIA DE ESTUDO ALMEIDA, 1999, p. 151).

Sendo assim, segundo a doutrina apresentada por Jesus Cristo, somente Deus pode julgar os seres humanos.

É complexo e delicado o caminho entre o Direito e a Religião, por se tratarem de teorias e valores diferenciados. Como exemplos, cita-se o divórcio e a independência da mulher, questões contrárias a Bíblia e a religião, mas que não acompanham a evolução da sociedade, sendo que o direito tem dever de regularizar tais fenômenos, em razão da evolução da sociedade.

Enéas Castilho Chiarini Júnior (2004, p.7) assim se posiciona

[...] não se deve misturar Direito e Religião, pois são coisas diferentes. Bem andou o legislador ao contrariar alguns escritos bíblicos, como por exemplo este trecho que manda à mulher obedecer ao marido: "Vós, mulheres, submetei-vos a vossos maridos, como ao Senhor; porque o marido é a cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja, sendo ele próprio o Salvador do corpo. Mas, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as mulheres o sejam em tudo a seus maridos." (Efésios 5:22-24). Quem, em pleno século XXI, seria capaz de afirmar que o homem é superior à mulher, e que portanto esta deve submeter-se àquele? Hoje em dia já está consagrado no mundo jurídico o princípio de igualdade entre os sexos.   Deve-se lembrar ainda, que o Direito não está submisso à Religião, tanto é verdade que o Direito, mais uma vez, contraria os ensinamentos da Bíblia ao autorizar o divórcio, pois, conforme Marcos 10:7-9: "Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e unir-se-á a sua mulher. E serão os dois uma só carne: e assim já não serão dois, mas uma só carne. Portanto o que Deus ajuntou não separe o homem.

Na atualidade, a sociedade e os valores familiares mudaram e clama pela igualdade entre os povos, ao passo que a doutrina bíblica é a mesma, que leva fatalmente ao conflito de idéias e princípios.

A Igreja se mostra inflexível em suas idéias, mantendo até os tempos atuais a vinculação da família, com a perpetuação da espécie.

Com o advento da Constituição Federal em 1988, a família deixou de representar a instituição nuclear, formada pelo pai (chefe de família e mantenedor do lar), mãe (submissa e dona de casa) e filhos que se desenvolvem sob o olhar protetivo materno.

A mulher contribui efetivamente com o seu esforço para a manutenção do lar, os filhos crescem sob os cuidados de babás ou em creches. Outrossim, várias famílias são formadas sem filhos, por opção do casal. Ou ainda, casais descasados se unem levando consigo suas respectivas proles, formando uma família ímpar.

2.1.4 A patologização da homossexualidade

A partir do século XIX, através da evolução do pensamento humano, o homem foi gradativamente valorizando a racionalidade, e deixando de lado a religiosidade exacerbada.

A busca para explicações científicas para fenômenos aparentemente sem explicação passaram a pautar a conduta do homem desse tempo, assim, “isso levou a que, a partir do século XIX, ganhasse força a posição de que a homossexualidade não deveria ser vista como um pecado contra Deus, mas como uma doença a ser tratada” (VECHIATTI, 2008a, p. 59).

O Professor de Medicina Legal Hélio Gomes, afirmava que o “homossexualismo” traduzia-se em forma de perversão sexual, passível de fazer com que os indivíduos sentissem atração por outros do mesmo sexo, com repulsa absoluta ou relativa para as pessoas do sexo oposto (GOMES, 1985).

Ressalta-se que o pensamento do autor é relativamente recente, posto que externado em pleno século XX, na Idade Contemporânea. Em sua obra “Medicina Legal”, de 1985, Gomes faz assertivas extremamente alheias à realidade, permeadas de homofobia.

De forma extremamente didática, mencionado autor fazia a distinção entre homossexualismo masculino e feminino, da seguinte forma (GOMES, 1985, p. 412):

O homossexualismo masculino é também chamado uranismo (congênito) e pederastia embora este último termo rigorosamente signifique amor pelas crianças. Todavia, o uso emprega a palavra pederasta para traduzir o coito anal entre homens. Sodomia ou pedicação é o coito anal com mulher. A distinção entre pederastas ativos e passivos não é obrigatória. A regra é que as práticas sejam alternadas. Muitos pederastas não chegam ao coito anal; limitam-se ao perienal, à masturbação recíproca, a carinho no leito. (...) O homossexualismo feminino comporta tripartição didática: ou as honossexuais se atritam os órgãos sexuais em práticas recíprocas (tribadismo); ou praticam a sucção do clitóris, alternativamente (safismo ou lesbismo); ou se masturbam reciprocamente. A palavra lesbismo deriva de Lesbos, ilha onde antigamente viva um grupo de mulheres homossexuais chefiado pela poetisa SAFO, que deu origem ao outro nome da perversão – safismo.

Em razão da patologização da homossexualidade, diferenciados tratamentos extremamente desumanos foram impingidos a homossexuais, à vista do Estado, e sem qualquer punição deste, visando a cura da pseudo patologia, dentre eles: terapias de choques convulsivos, lobotomia e terapias por aversão (VECHIATTI, 2008a). ervers " visando a adequaçalquer puniçentos extremamente desumanos foram impingidos a homossexuais, ado pela poetisa SAFO, que

A patologia do homossexualismo perdurou até o ano de 1992, quando foi excluído o sufixo “ismo” (doença), por “dade” (modo de ser). Chiarini Júnior (2003, p. 1), elaborou um estudo acerca do tema, aduzindo que:

Em decorrência da não caracterização da homossexualidade como doença, o termo homossexualismo deixou de constar nos diagnósticos da CID-10, pois, o sufixo "ismo" que significa doença, foi substituído por "dade" que designa modo de ser. Segundo os médicos o homossexualismo não pode mais ser “... sustentado enquanto diagnóstico médico. Isto porque os transtornos dos homossexuais realmente decorrem muito mais de sua discriminação e repressão social derivados do preconceito do seu desvio sexual. Desde 1991, a Anistia Internacional considera violação aos direitos humanos a proibição da homossexualidade.

Entrementes, a despeito da despatologização recente da homossexualidade, a mesma continua sendo um desafio aos profissionais da psicanálise, em sua tentativa de compreender o psiquismo humano (DIAS, 2009).

Visando coibir o preconceito, através do uso de práticas terapêuticas para “cura” do homossexual, o Conselho Federal de Psicologia baixou a Resolução 1/1999, e o Conselho Federal de Serviço Social editou a Resolução 489/2006, que vedam condutas discriminatórias, por parte de psicólogos e assistentes sociais, em função da orientação social, no exercício de suas respectivas funções (DIAS, 2009).

2.2 A história da homossexualidade no Brasil

Relatos históricos remontam que a homossexualidade existe no Brasil desde antes da colonização, através de relacionamentos bissexuais ou homossexuais entre os índios nativos.

A homossexualidade indígena foi considerada pelos cristãos colonizadores como sendo consequência, de seus costumes pagãos, fato que os levaram a catequizar os nativos, visando a adequação dos costumes.

Neste norte, pode-se dizer que a sexualidade dos nativos brasileiros seguia o que ocorria na Antiguidade Clássica européia, com algumas variantes de tribos para tribos, conforme seus costumes e suas lendas. Foi, também aqui, somente com a chegada da moral judaico-cristã que se começou a perseguição à prática homossexual no Brasil, que passou a trazer punições desumanas e sádicas aos homossexuais (VECHIATTI, 2008a, p. 64).

Em relação às punições, vale trazer à colação o seguinte relato de Trevisan (2004) apud  Vechiatti (2008a, p. 64):

Na Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII, não apenas a Espanha, Portugal, França e Itália católicas, mas também a Inglaterra, Suíça e Holanda protestantes puniam severamente a sodomia. Seus praticantes eram condenados a punições capazes de desafiar as mais sádicas imaginações, variando historicamente desde multas, prisão, confisco de bens, banimento da cidade ou do país, trabalho forçado (nas galés ou não), passando por marca de ferro em brasa, execração e açoite público e até castração, amputação das orelhas, morte na forca, morte na fogueira, empalamento e afogamento.

Verifica-se que as leis possuíam cunho implacável, visando extirpar de modo definitivo a homossexualidade da vida humana, através de penas de fogueira, confisco de bens e infâmia previstas nas Ordenações Afonsinas, Manoelinas e Filipinas, a última aplicável até o advento do Código Civil em 1916 (VECHIATTI, 2008a).

As decisões eram chocantes, proferidas com requintes de crueldade e sadismo, e executadas do mesmo modo, visando a instauração da moral e dos bons costumes cristãos.

Oportuno transcrever uma sentença proferida pelo Santo Ofício da Inquisição, conforme a lavra de Vechiatti (2008a, p. 65-66):

Decide o Visitador do Santo Ofício que vistos os Autos, declarações das testemunhas e a confissão que fez depois de preso o sodomita Salvador Romeiro, (...) o qual confessou que já foi preso Olha de São Tomé e mandado para Portugal preso onde andou remando nas galés por fazer as torpezas de pecado de molície (masturbação) e outrossim mostra-se que depois disso o réu fez e efetivou muitas e diversas vezes o horrendo e nefando crime de sodomia, sendo umas vezes agente e outras vezes paciente, com pouco temor de Deus e esquecido da salvação de sua alma. E outrossim mostra-se o réu muito notado e infamado de sodomítico e cometedor de tais torpezas, no qual caso as leis e Ordenações do Reino mandam que qualquer modo que o fizesse, seja queimado e feito por fogo em pó, para que de seu corpo e sepultura nunca mais haja memória e todos os seus bens sejam confiscados pela Coroa Real posto que descendentes ou ascendentes, e que seus filhos e descendentes fiquem ináveis e infames como os daqueles que cometem o crime de lesa-majestade. Vendo porém como réu de misericórdia, a qual ele pediu confessando sua culpa depois de preso, com muitas provas de arrependimento, condenam o réu Salvador Romeiro que vá ao Ato Público descalço, em corpo, com a cabeça descoberta, cingido com uma corda e com uma vela acesa na mão, e seja açoitado publicamente por esta vila e vá degregado para as galés do Reino por oito anos, para onde será embarcado na forma ordinária, nas quais servirá os dito oito anos ao Reino, remando sem soldo, fazendo penitência de tão horrendas e nefandas culpas, e pague as custas do processo. Olinda, Capitania de Pernambuco, 4 de agosto de 1594. Heitor Furtado de Mendonça, Visitador.

Através do teor da decisão supra, verifica-se que a Igreja Católica possuía rigor extremado para exterminar aqueles que ousavam viver a vida de modo diverso de sua pregação moralista e ritualística.

Paulatinamente, a homossexualidade foi deixando o caráter de crime e passando a ter contornos de enfermidade, conforme já narrado alhures, época na qual os criminalistas passaram a defender a internação dos homossexuais, como forma de cura da pseudo-patologia.

Entretanto, a despeito das tentativas de extirpar a homossexualidade da sociedade, nenhuma logrou êxito. A homossexualidade era retratada por vários autores, dentre eles Gregório de Matos, Álvares de Azevedo, Aluísio de Azevedo, Adolfo Caminha, João Guimarães Rosa, Olavo Bilac, Mário de Andrade, dentre outros (VECHIATTI, 2008a).

A repressão à homossexualidade prevaleceu forte no Brasil até o século XX, em especial a partir da década de 1990, quando foi despatologizada.

Entretanto, a homofobia permanece no seio da sociedade brasileira. O absoluto silêncio do legislador constituinte e ordinário demonstra de forma clara e inequívoca a inadmissível omissão estatal, em relação aos pares homoafetivos.

Não existe uma lei sequer que ampare essa minoria, discriminada em toda sociedade, inclusive pela própria família. Apenas a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha refere-se ao termo orientação sexual, em seus artigos 2º e 5º (DIAS, 2009).

Vários projetos de lei relacionados a homoafetividade foram apresentados, no Congresso Nacional, entretanto, o exacerbado preconceito e visível homofobia dos parlamentares impedem o conhecimento das matérias deduzidas nos projetos.

Nesse sentido, é o posicionamento de Dias (2009, p. 75-76):

A omissão covarde do legislador infraconstitucional em assegurar direitos aos homossexuais e reconhecer seus relacionamentos, ao invés de sinalizar neutralidade, encobre grande preconceito. O receio de ser rotulado de homossexual, o medo de desagradar o eleitorado e comprometer sua reeleição inibe a aprovação de qualquer norma que assegure direitos à parcela minoritária da população, que é alvo da discriminação. (...) De forma pra lá de injustificável, a evidenciar postura discriminatória e preconceituosa, enorme é a resistência em aprovar qualquer projeto de lei que enlace as uniões de pessoas do mesmo sexo no sistema jurídico. Há um fato surpreendente para o qual não se encontra qualquer explicação. Forças conservadoras tomaram conta do Congresso Nacional. Lideram bancadas fundamentalistas de natureza religiosa que são cada vez mais numerosas. As igrejas evangélicas se juntam com os católicos, os protestantes e com conservadores de plantão. Assim, não há a mínima chance de ser assegurado aos homossexuais o direito de serem respeitados e de verem seus vínculos reconhecidos como entidade familiar. Mas ninguém, muito menos um representante do povo, pode se deixar levar pelo discurso religioso, o que afronta a Constituição Federal, a qual assegura a liberdade de credo. (...) Este panorama permite afirmar que a sociedade brasileira é marcada pela discriminação aos desiguais.

A despeito da omissão estatal, vários direitos tem sido assegurados aos pares homoafetivos, seja através da via administrativa, ou pela via judicial.

Administrativamente, são concedidos o Seguro DPVAT, em decorrência de decisão liminar proferida pela Justiça Federal de São Paulo, em ação civil pública promovida pelo Ministério Público, que ensejou a edição pela SUSEP, da Circular 257/2004 (DIAS, 2009).

Outros direitos, como o visto de permanência; pensão por morte no âmbito da Justiça Federal; financiamento habitacional no Estado de São Paulo; condição de dependente, por força da Resolução 39/2007, do CNJ – Conselho Nacional de Justiça, dentre outros.

Na esfera judicial, as decisões são diversificadas, dependendo se o magistrado possui ou não o preconceito em relação ao tema; havendo, extingue o feito por impossibilidade jurídica do pedido.

Em sendo o magistrado agente político de vanguarda, não se eximirá em dizer o direito ao caso concreto, em razão da omissão legislativa, valendo-se da analogia, dos costumes e dos princípios gerais do direito, para a efetiva prestação da tutela jurisdicional.

3 ANÁLISE DA HOMOAFETIVIDADE EM CONFORMIDADE COM OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Para analisar com segurança as relações homoafetivas, é necessário que sejam estudados os princípios constitucionais, que tratam da proteção à família, dentre eles, a dignidade da pessoa humana e igualdade.

A Constituição Federal afirma, em seu art. 226, §§ 1º, 2º, 3º e 4º, que a entidade familiar é formada pelo casamento, a união estável e família monoparental, descrevendo, destarte, o pluralismo familiar.

Neste sentido, ensina Dias (2010, p. 40-41):

Raras vezes uma constituição consegue produzir tão significativas transformações na sociedade e na própria vida das pessoas como fez a atual Constituição Federal. [...] A supremacia da dignidade da pessoa humana está lastreada no princípio da igualdade e da liberdade, grandes artífices de um novo Estado Democrático de Direito que foi implantado no País. [...] O alargamento conceitual das relações interpessoais deitando reflexos na conformação da família, que não possui mais um significado singular. A mudança da sociedade e a evolução dos costumes levaram a uma verdadeira reconfiguração, quer da conjugalidade, quer da parentalidade. Assim, expressões como ilegítima, espúria, adulterina, informal, impura estão banidas do vocabulário jurídico. [...] O pluralismo das relações familiares – outro vértice da nova ordem jurídica – ocasionou mudanças na própria estrutura da sociedade. Rompeu-se o aprisionamento da família nos moldes restritos do casamento, mudando profundamente o conceito de família. A consagração da igualdade, o reconhecimento da existência de outras estruturas de convívio, a liberdade de reconhecer filhos havidos fora do casamento operaram verdadeira transformação na família.

Entrementes, permanece de modo nefasto, a idéia taxativa de que família é constituída pela união de um homem e uma mulher, desconsiderando de forma inequívoca, as uniões homoafetivas, formadas, pelo amor entre pessoas do mesmo sexo.

O casamento e a união estável têm como fundamento a pluralidade de sexos, divergindo um e outro apenas em aspectos formais. O casamento enseja formalidade procedimental, através de processo de habilitação, publicação de proclamas dentre outros, e a união estável dispensa todas as solenidades previstas, ao matrimônio.

A família monoparental é constituída pela entidade familiar formada por qualquer um dos pais e seus descendentes.

Dias (2006, p. 37) apud Vieira e Araújo (2007, p. 59-60), assim preleciona:

A Constituição Federal, rastreando os fatos da vida, viu a necessidade de ser reconhecida a existência de outras entidades familiares, além das constituídas pelo casamento. Assim, enlaçou no conceito de família e emprestou especial proteção à união estável (CF 226 § 3º) e à comunidade formada por qualquer dos pais com seus descendentes (CF 226 § 4º), que começou a ser chamada de família monoparental. No entanto, os tipos familiares explicitados são meramente exemplificativos, sem embargo de serem os mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. Mas não só nesse limitado universo flagra-se a presença de uma família. Não se pode deixar de ver como família a universalidade dos filhos que não contam com a presença dos pais. Dentro desse espectro mais amplo, não cabe excluir os relacionamentos de pessoas do mesmo sexo, que mantêm entre si relação pontificada pelo afeto a ponto de merecerem a denominação de uniões homoafetivas. Dita flexibilização conceitual vem permitindo que os relacionamentos, antes clandestinos e marginalizados, adquiram visibilidade, o que acaba conduzindo a sociedade à aceitação de todas as formas que as pessoas encontram para buscar a felicidade.

Não existe ordenamento legal para amparar as uniões homoafetivas, a despeito de tramitarem no congresso projetos de lei acerca do tema, que não são transformados em lei, pela atuação da Igreja Católica e dos segmentos evangélicos, embora o Brasil seja um Estado laico.

Os fenômenos sociais ensejam a criação de leis para os regularem, essa é uma regra padrão para o surgimento das leis. A despeito desta máxima, em relação aos companheiros de uniões homossexuais, o legislador mantém os olhos fechados.

A única referência legal vigente é discreta, e está contida na Lei 11.340/2006, (Brasil, 2010, p. 2505).  também denominada Lei Maria da Penha, em seus artigos 2º e 5º, verbis:

Art. 2º Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

[...]

Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual.

Embora de maneira tímida, a lei em comento tutela os interesses da mulher vítima de violência doméstica, ressaltando que as garantias contidas na lei independem da orientação sexual.

Nos outros sentidos, restam apenas fragmentos constitucionais, para ampararem os direitos destas famílias diferenciadas, que devem ser reconhecidas, pelo ordenamento jurídico e respeitadas à luz da dignidade da pessoa humana.

3.1 Princípio da igualdade

O princípio da igualdade encontra amparo no art. 5º Caput, e inciso I, da Constituição Federal, que afirma serem todas as pessoas iguais perante a lei, sem distinção alguma. Este princípio é deveras amplo, e seu estudo será restrito ao objeto do presente trabalho monográfico.

O princípio da igualdade possui aspecto duplo, sendo um formal e outro material. O aspecto formal estabelece a igualdade de todos perante a lei, e o aspecto material se consubstancia no fato de que todas as pessoas devem ter tratamento igualitário pela lei, com observância a situação, em que se encontram. Vale trazer à colação o entendimento de Motta (2006, p. 77):

O Princípio da Isonomia ou Igualdade pontua as cadeiras do Direito, norteando todas as relações jurídicas. Há que se distinguir a isonomia formal da isonomia material. A isonomia formal (caput) pugna pela igualdade de todos perante a lei, que não pode impedir que ocorram as desigualdades de fato, provenientes da diferença das aptidões e oportunidades que o meio social e econômico permite a cada um. Já a igualdade material, ou seja, aquela que postula um tratamento uniforme de todos os homens perante a vida com dignidade, é quase utópico, visto que nenhum Estado logrou alcança-la efetivamente. Segundo Montesquieu, ‘a verdadeira igualdade consiste em tratar de forma desigual os desiguais’, conferindo àqueles menos favorecidos economicamente um patrimônio jurídico inalienável mais amplo.

Há que se considerar entre os desiguais as minorias, dentre elas, as famílias formadas com base no homoafeto.

Ora, se a Constituição Federal afirma que todos são iguais perante a lei, em relação às uniões homoafetivas prevalece a discriminação odiosa da lei, externada através do silêncio absoluto do legislador em relação ao tema.

Verifica-se o posicionamento de Vieira e Araújo (2007, p. 69):

Diante desse quadro, apesar de algumas poucas propostas legislativas no sentido de conferir juridicidade às uniões homoafetivas, a nuvem escura que ainda paira sobre nós é a da omissão inconstitucional do legislador que, mesmo diante deste fato social de tão importante relevância, furta-se ao dever de promover (por meio da lei) o bem de todos (heterossexuais e homossexuais) artigo 3º, IV, da Constituição Federal de 1988 – e atropela preconceituosa e discriminatoriamente, através de um abominável silêncio, parcela expressiva de cidadãos brasileiros, deixando-os órfãos de reconhecimento legal, pois, ‘é mais fácil acreditar que aquilo que não se ouve, que não se vê, não existe’.

Na lição de Vecchiatti (2008a, p. 130):

Disso resulta que, considerando que o atual entendimento empírico-científico demonstra que a homoafetividade é tão normal e tão digna quanto a heteroafetividade, não podem os casais homoafetivos serem discriminados em relação aos casais heteroafetivos por conta unicamente da homogeneidade de sexos daquele casal, devendo aqueles receberem a mesma proteção jurídica concedida a estes por intermédio das citadas técnicas interpretativas, sendo preconceituoso o entendimento em sentido contrário.

Assim, a Constituição Federal, ao outorgar a proteção do Estado à família, reconhecendo como união estável somente aquela existente entre um homem e uma mulher, ignorando as entidades familiares homoafetivas, infringe a norma, que veda qualquer tipo de discriminação, bem como afronta o fundamental princípio constitucional da igualdade, consagrado em cláusula pétrea.

A Constituição Federal prevê e privilegia a liberdade de escolha, pouco importando o sexo da pessoa eleita, se igual ou diferente do seu. Se um indivíduo nada sofre ao se vincular a uma pessoa do sexo oposto, mas recebe o repúdio social por dirigir seu desejo a alguém do mesmo sexo, está sendo discriminado, em função de sua orientação sexual. Conforme lição de Dias (2010, p. 199):

O compromisso do Estado para com o cidadão sustenta-se no primado da igualdade e da liberdade, estampado já no seu preâmbulo. Ao conceder a proteção a todos, veda discriminação e preconceitos por motivo de origem, raça, sexo ou idade e assegura o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Mais. Ao elencar os direitos e garantias fundamentais, proclama (CF 5º): ‘todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza’. Esses valores implicam dotar os princípios da igualdade e da isonomia de potencialidade transformadora na configuração de todas as relações jurídicas. Fundamento de igualdade jurídica deixa-se fixar, sem dificuldades, como postulado fundamental do Estado de Direito.

A família, nos dias atuais, apresenta como preceito de formação familiar muito mais do que a simples caracterização de sexo, mas de outros valores dignos relativos à natureza humana. 

Sob este enfoque, a escolha do sexo, não pode ensejar tratamento desigualitário em relação à pessoa que escolhe, vez que tal tratamento faz gerar a distinção pelo sexo que possui (DIAS, 2009).

Dito impedimento discriminatório não tem exclusivamente assento constitucional. Está posto na Convenção Internacional Americana de Direitos Humanos e no Pacto de San José, dos quais o Brasil é signatário. Como preceitua o parágrafo segundo do artigo 5º, § 2º, da Constituição Federal, são recepcionados por nosso ordenamento jurídico os tratados e convenções internacionais.

A ONU tem entendido como ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais adultos, seja com base no princípio de respeito à dignidade humana, seja pelo princípio da igualdade. Se todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, aí está incluída a opção sexual que se tenha.

Contraditoriamente, as investidas tímidas do legislador na criação de leis, que amparem os direitos dos casais homoafetivos não saem do papel. Como dito em linhas volvidas, a igreja interfere fortemente contra o tema, que acreditam pecaminoso. Lembrando: o Brasil é um estado laico!

Conforme Vecchiatti (2008a, p. 132-133):

[...] é evidente que o Estado Brasileiro não pode utilizar-se de fundamentações religiosas para justificar discriminações políticas e jurídicas, ante a proibição de manutenção de dependência ou aliança com credos religiosos. Ademais, é uma decorrência lógica do principio da laicidade estatal essa proibição, visto que as religiões baseiam-se em supostas ‘verdades universais’, que não admitem discussão, por mais que toda racionalidade humana aponta para o sentido contrário. Afinal, as religiões baseiam-se em um ponto que lhes é muito cômodo: a fé não necessita comprovação – basta que alguma colocação seja professada e que nela se acredite, ante a afirmação de que seria baseada na ‘palavra de Deus’. Mas, ao contrário, a isonomia exige comprovação lógico-científico-racional, sendo esta a única forma válida de se criarem discriminações jurídicas, o que significa que, além de violar o princípio do Estado Laico, fundamentar uma discriminação jurídica em explicações religiosas afrontam também o princípio da igualdade, que supõe a existência de pelo menos um fundamento lógico-racional que justifique a discriminação pretendida com base no critério discriminador erigido.

A sociedade não concebe a discriminação jurídica, tendo por escopo a religiosidade e seus dogmas, é inconstitucional e extremamente repudiada no Estado Democrático de Direito. 

O fato de não haver previsão legal não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de lei não quer dizer ausência de direito, nem impede que se extraiam efeitos jurídicos de determinada situação fática. A falta de previsão específica nos regramentos legislativos não pode servir de justificativa para negar a prestação jurisdicional ou de motivo para deixar de reconhecer a existência de direito. O silêncio do legislador precisa ser suprido pelo juiz, que cria a lei para o caso que se apresenta a julgamento. Na omissão legal, deve o juiz se socorrer da analogia, costumes e princípios gerais de direito.  Ainda que o preconceito faça com que os relacionamentos homossexuais recebam o repúdio de segmentos conservadores, o movimento libertário que transformou a sociedade acabou por mudar o próprio conceito de família. A homossexualidade existe, sempre existiu e cabe à justiça emprestar-lhe visibilidade. Em nada se diferenciam os vínculos heterossexuais e os homossexuais que tenham o afeto como elemento estruturante (DIAS, 2010a, p. 1).

Para os doutrinadores, as discriminações jurídicas são admissíveis apenas em cumprimento ao princípio da igualdade, que deve ser aplicada de forma isonômica e proporcional. É o caso de leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto do Idoso, haja vista a hipossuficiência da qualidade especial que detém a criança e o adolescente, bem como o idoso. Ambos necessitam de cuidados especiais, e em relação à lei, não poderia ser diferente.

De igual forma, a minoria composta de casais homoafetivos necessitam de proteção estatal especial.

O legislador intimida-se na hora de assegurar direitos às minorias alvo da exclusão social. A omissão da lei dificulta o reconhecimento de direitos, sobretudo frente a situações que se afastam de determinados padrões convencionais, o que faz crescer a responsabilidade da Justiça. Preconceitos e posições pessoais não podem levar o juiz a fazer da sentença meio de punir comportamentos que se afastam dos padrões que ele aceita como normais. Igualmente não cabe invocar o silêncio da lei para negar direitos àquele que escolheu viver fora do padrão imposto pela moral conservadora, mas que não agride a ordem social (DIAS, 2010a, p 2).

 

 

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