Como o Bitcoin e os Smart Contracts estão transformando os modelos de negócios


Porcarlos2017- Postado em 05 novembro 2017

Autores: 
GABRIEL ALEIXO

Lançado com a autoria de Satoshi Nakamoto, ao que se sabe um pseudônimo por trás da pessoa ou do grupo envolvido na criação desta tecnologia, o artigo Bitcoin: a Peer-to-Peer Electronic Cash System, veio à tona em Outubro de 2008 em fóruns e listas de discussão digitais, especialmente voltados ao de debate de criptografia e do poder transformador de novas tecnologias. Por meio de ideias rigorosamente construídas e também algumas linhas de código computacional, citando ainda trabalhos que o inspiraram (o b-Money de Wei Dai e o Hashcash de Adam Back), Nakamoto finaliza o trabalho afirmando ter encontrado uma tecnologia efetiva de moeda digital.

Nela, seria possível realizar trocas de informações (no caso, tendo transações financeiras como objetivo inicial), sem que as partes tivessem que compartilhar confiança entre si (NAKAMOTO, 2008). O sistema, tal qual desenhado por Nakamoto, tornaria a noção de intermediação obsoleta para alguns setores, como o de trocas financeiras. Isso porque, ao contrário dos métodos tradicionais nos quais há um intermediário que atribui segurança a negociações feitas entre partes que não se conhecem ou não confiam uma na outra, no Bitcoin bastaria delegar essa função ao código computacional que regula o funcionamento do sistema.

Em Janeiro de 2009, é lançada, também por Satoshi Nakamoto, a implementação em software do Bitcoin. Todo o código no qual eram baseadas as aplicações foi publicado abertamente, a fim de que pudesse ser analisado e revisado por qualquer parte interessada. Tratava-se de um marco na história da ciência da computação, pois a solução proposta por Nakamoto dava fim a um problema que perdurava por duas décadas no campo (LAMPORT, PEASE, SHOSTAK, 1982), o qual fazia com que muitos acreditassem ser impossível que as diferentes partes ligadas a uma rede distribuída pudessem estabelecer um consenso entre si a respeito da totalidade das informações que a compreende.

Basicamente, o que até então era uma proposta teórica, tornava-se um protocolo real capaz de sustentar a existência de moedas digitais e a troca de informações referentes às transações delas entre os usuários da rede, sem que um intermediário como um banco se mostrasse necessário. Apresentando casos de uso limitados nos 4 primeiros anos de existência, foi em 2013, a partir de uma soma de fatores envolvendo economia, política e uma grande repercussão midiática da tecnologia, que o Bitcoin atingiu sua ascensão ao mainstream. O que vem se expandindo, marcado pelo interesse e a pesquisa de grandes empresas, instituições financeiras e fundos de investimento focados em startups voltadas a aprimorar o ecossistema do Bitcoin e criar serviços inovadores ou mesmo plataformas inteiras baseados na tecnologia por trás dele, a qual ficou conhecida como blockchain.

Vale lembrar que ao longo dos últimos 20 anos, a expansão da internet comercial trouxe transformações estruturais na forma como a humanidade se relaciona, especialmente nos aspectos social e comercial. O que se observa, a partir da tecnologia blockchain, é o potencial para que uma segunda onda de inovações se desenvolva na atualidade, trazendo consigo a possibilidade de descentralizar radicalmente as interações de consumo e colaboração, a partir de grandes redes abertas baseadas na tecnologia blockchain, como o Bitcoin e a Ethereum. Apontado como um dos principais desdobramentos do advento da blockchain, o estabelecimento da tecnologia de contratos inteligentes (basicamente, conjuntos de regras contratuais auto-reguláveis por meio de software) carrega consigo grandes questões a respeito do impacto que pode ter sobre modelos de negócios e sobre as organizações como um todo.

A tecnologia blockchain

tecnologia blockchain está voltada primordialmente à manutenção de consenso entre usuários quaisquer interligados por meio de uma rede descentralizada. Em termos práticos, esse consenso significa que há uma base comum de dados à qual todos eles podem enviar alterações e propagá-las entre si. O grande trunfo dessa tecnologia é ser construída a partir de um intrincado mecanismo que, baseado em computação e incentivos econômicos, torna muito caras as tentativas de burlar o sistema. Basicamente, não há intermediários responsáveis por garantir a integridade ou a veracidade dos dados, uma vez que toda essa sistemática é regulada por software voluntariamente executado por usuários de qualquer parte do globo conectada à internet.

Tomando como exemplo a implementação da tecnologia blockchain tal qual originalmente feita por Satoshi Nakamoto no Bitcoin (NAKAMOTO, 2008), entende-se que essa base comum de dados representa um registro público contabilizando permanentemente quantos bitcoins (as unidades digitais de valor do sistema) estão sob posse de cada usuário do sistema em um dado momento. Nos meios convencionais, a rigor há uma ou mais instituições, em geral consideradas intermediários, responsáveis por cuidar dessa atualização permanente.

https://www.astarlabs.com/wp-content/uploads/2017/08/square-blocks-outli... 150w, https://www.astarlabs.com/wp-content/uploads/2017/08/square-blocks-outli... 512w" style="box-sizing: border-box; outline: 0px; border: 0px; vertical-align: middle; max-width: 100%; height: auto; display: block; margin: 10px auto; font-size: 13.12px; line-height: 10px; clear: none; padding: 10px 0px;" title="blockchain" width="80" />

Em sistemas baseados na tecnologia blockchain, o processo é operacionalizado assegurando que a rede esteja atualizada somente pelos usuários que a integram, sendo eles os responsáveis únicos por adicionar as informações que dão conta de novas trocas sendo feitas e das consequentes alterações que devem ser lançadas à base comum de dados, referente aos saldos em conta de bitcoins. Ademais, há um mecanismo baseado em criptografia de chaves públicas e privadas (NAKAMOTO, 2008) garantindo que, grosso modo, apenas o próprio usuário possa alterar as informações concernentes a ele na rede.

Ou seja, somente o detentor daquele saldo em bitcoins pode propagar à rede a informação de que devem ser transferidos a outra pessoa, uma vez que qualquer outra tentativa maliciosa será rejeitada pelo código que regula o sistema. A partir disso, o consenso entre as partes é mantido mesmo numa esfera de grande dinamismo, dado que essa base comum de dados (comumente chamada também de blockchain) cresce a cada momento, sempre que novas trocas de informações (como transações de bitcoins) são realizadas. Em síntese, o que a blockchain propicia está baseado em:

1. “Provas de trabalho”: o que significa resolver um problema matemático que demanda esforço computacional para, então, poder adicionar informação à base de dados que constitui uma blockchain por si.

2. Encriptação: esse processo é baseado em funções criptográficas, assegurando um traço importante do sistema: as informações, bem como suas autenticidade e autoria, são de fácil verificação, mas é praticamente impossível fraudá-las com a computação atual.

3. Auditoria: uma vez validadas pelo código do sistema e propagadas ao longo da rede, essas informações têm sua validade auditada por todos os nós que a compõem, a partir da data e hora em que foram lançadas e da consistência de dados anteriormente mencionada

É por conta desse rigor técnico e das possibilidades abertas que se torna possível entender a tecnologia blockchain como algo de grande potencial transformador, especialmente pelo que permite através de contratos inteligentes, como é analisado nas próximas seções. Novos usos para a tecnologia blockchain, cujo código ou as motivações devem muito à implementação original lançada no Bitcoin, começam no campo financeiro mas se estendem pelos mais variados campos nos quais antes a intermediação era uma necessidade absoluta:

O potencial da tecnologia blockchain reside em sua capacidade de oferecer serviços transparentes, livres de censura ou discriminação de uma maneira descentralizada para finalidades amplas; a partir do acesso mais equânime a um conjunto de instituições digitais (que permitem realizar votações, pagamentos, contratos, etc.)

Contratos Inteligentes e a lex cryptographia

Para os pesquisadores Aaron Wright e Primavera De Filippi (2015), a mudança de paradigma trazida pela difusão da blockchain, seguida pela crescente implementação de sistemas descentralizados nela baseados, conduzirão à ascensão da Lex Cryptographia (DE FILIPPI, WRIGHT, 2015), regras administradas através de contratos inteligentes auto-executáveis. Se no lugar de dados correspondentes a números ou informações financeiras, a exemplo do que ocorre na rede Bitcoin, uma base construída e gerada a partir da tecnologia blockchain armazena dados de outras naturezas, é possível manter uma vasta gama de novos serviços, muito mais ampla do que aqueles estritamente monetários. Tudo isso com as mesmas qualidades do Bitcoin: inviolável, irreversível, seguro, independente e descentralizado.

O relatório Blockchain Technology and Legal Implications of ‘Crypto 2.0’ da Bloomberg BNA de março de 2015 não apenas sinaliza essa tendência, a qual ficou conhecida como blockchain 2.0, como também chega a listar com detalhes algumas das principais indústrias que já são ou serão afetadas por ela:

  • Registros de propriedades;
  • Comprovações de autoria e propriedade intelectual;
  • Digitalização e automação de contratos;
  • Remessas internacionais de valor;
  • Emissão de títulos privados;
  • Mecanismos para o controle descentralizado de instituições;
  • Armazenamento remoto e distribuído de dados na nuvem;
  • Produtos financeiros diversos.

Esses são apenas alguns dos principais campos a serem transformados ou abertos, segundo o relatório. A lógica por trás dessas novas tecnologias baseadas na blockchain, além de ser a responsável por torná-las operacionais em grande parte dos casos, está baseada na existência de contratos inteligentes. Em diferentes casos e momentos na próxima década, devem ser eles os responsáveis pelo rompimento com certos processos até então realizados de forma ineficiente ou, eventualmente, pela assimilação de tecnologias e instituições tradicionais capazes de resistir à obsolescência a partir da adaptação e da atualização.

Nick Szabo (1997), em Formalizing and Securing Relationships on Public Networks lança a ideia seminal do que poderiam se tornar os contratos inteligentes. Com o surgimento da Ethereum, rede descentralizada que opera baseada na tecnologia blockchain como uma espécie de computador global cujo processamento de contratos inteligentes é conjuntamente feito por todos os usuários conectados a ela, passou-se da mera visão a uma construção efetiva de implementação prática. Uma relação entre duas mentes (SZABO, 1997), bem como sua formalização, é definidor para o conceito de contrato. Trata-se do estabelecimento prático de ações e de eventuais critérios aplicáveis sobre elas, capazes de regular um comum acordo entre duas ou mais partes.

Nesse caso, adicionar “inteligência”, no sentido computacional, aos contratos consiste na capacidade de torná-los digitais, mais automatizados e baseados em hardware e software comuns (SZABO, 1997). Isso poderia diminuir significativamente algumas possibilidades de falha humana, além de tornar menos custosos os protocolos de controle existentes em torno dos contratos, criados justamente para avaliar se determinadas cláusulas foram ou não cumpridas. Em um ambiente digital marcado por grande automação, procedimentos de controle como uma auditoria, por exemplo, demandariam muito menos tempo e recursos financeiros do que opções tradicionais.

O que abriria, inclusive, espaço para a “auto-execução” dos contratos digitais, a principal marca de um contrato inteligente, sempre que a validação de suas cláusulas fosse automaticamente processada. Como apontado por De Filippi e Wright, a blockchain está intimamente relacionada à implementação dos contratos inteligentes, por ser a responsável por torná-los uma realidade na prática:

Using a distributed database, like the blockchain, parties can confirm that an event or condition has in fact occurred without the need for a third party. As a result, the technology has breathed life into a theoretical concept first formulated in 1997: digital, computable contracts where the performance and enforcement of contractual conditions occur automatically, without the need for human intervention […] In some cases, smart contracts represent the implementation of a contractual agreement, whose legal provisions have been formalized into source code. Contracting parties can thus structure their relationships more efficiently, in a self-executing manner and without the ambiguity of words. Reliance on source code enables willing parties to model contractual performance and simulate the agreement’s performance before execution. In other cases, smart contracts introduce new codified relationships that are both defined and automatically enforced by code, but which are not linked to any underlying contractual rights or obligations. To the extent that a blockchain allows for the implementation of self-executing transactions, parties can freely transact with one another, without the technical need to enter into a standard contractual arrangement (DE FILIPPI, WRIGHT, 2015).

Em termos de grandes redes abertas baseadas na tecnologia blockchain hoje, os grandes destaques são a do Bitcoin e a da plataforma Ethereum. De formas distintas mas igualmente válidas, ambas permitem a implementação de contratos inteligentes.

Ethereum permite que qualquer usuário construa e opere contratos inteligentes a partir de sua base comum de dados (blockchain) associada a uma linguagem de programação própria, voltada a fazer com que todo esse processo seja o mais direto possível. Embora cada projeto operando a tecnologia blockchain possua vantagens e limitações em particular, é de especial importância enfatizar que a Ethereum foi a primeira a ser criada explicitamente com o intuito de manter uma blockchain em cima da qual seja fácil criar, operar e manter contratos inteligentes. A rede da Ethereum mantém, em suma, uma blockchain melhorada e otimizada para usos gerais. O trecho de abertura do artigo original que descreve o projeto, inclusive, abarca pontos de especial interesse:

Commonly cited alternative applications of blockchain technology include using on-blockchain digital assets to represent custom currencies and financial instruments (“colored coins”), the ownership of an underlying physical device (“smart property”), non-fungible assets such as domain names (“Namecoin”), as well as more complex applications involving having digital assets being directly controlled by a piece of code implementing arbitrary rules (“smart contracts”) […] What Ethereum intends to provide is a blockchain with a built-in fully fledged Turing-complete programming language that can be used to create “contracts” that can be used to encode arbitrary state transition functions, allowing users to create any of the systems described above, as well as many others that we have not yet imagined, simply by writing up the logic in a few lines of code. (https://ethereum.org)

Indo além da plataforma Ethereum em si, dado que ela opera como uma espécie de backbone em cima do qual projetos arrojados possam ser construídos, novas aplicações já começam a afetar mercados antes dominados por poucos players. Merecem destaque junto às áreas que impactam as iniciativas: Etherparty (contratos inteligentes), Adept (internet das coisas, fruto de parceria entre IBM e Samsung), Augur e Gnosis (mercados futuros descentralizados), Airlock e Slock.it (contratos de propriedade e objetos inteligentes operados via blockchain), Maker (moedas digitais inovadoras e serviços bancários autônomos), Boardroom (mecanismos de governança corporativa e votações descentralizados), HitFin (derivativos e outros produtos financeiros) e WeiFund (crowdfunding).

Descentralização, blockchain e modelos de negócios

Um modelo de negócio pode ser compreendido como o conjunto ordenado de ações práticas capaz de transformar uma ideia ou conceito em um negócio eficaz, compreendendo o racional a partir do qual uma organização torna possível criar, entregar e capturar valor (OSTERWALDER, PIGNEUR, 2010, p.14). De forma sintética, tomando como base a estrutura apresentada na obra Business Model Generation, pode-se dizer que um modelo de negócios envolve nove dimensões, a saber: segmentação de mercado, relacionamento com os clientes, proposição de valor, canais de distribuição, fontes de receita, recursos-chave, atividades-chave, parcerias-chave e estrutura de custos (OSTERWALDER, PIGNEUR, 2010, p.17). Logo, uma oportunidade de negócio pode ser entendida como uma nova forma de criar, entregar e/ou capturar valor que é vislumbrada por um empreendedor ou empresário a partir da capacidade que este enxerga de inovar em práticas referentes a uma dessas nove dimensões.

Essas variáveis afetam diretamente o cotidiano de empresas nascentes (startups) e de negócios estabelecidos com uma intensidade crescente, uma vez que o fluxo de inovações das últimas décadas vem se acelerando. Em boa medida, isso é fruto da revolução trazida pela economia digital a partir da difusão em larga escala do acesso à internet comercial. O uso de computadores pessoais e, mais recentemente, de smartphones tornou viáveis novas formas de agregação de valor, propiciando tanto a melhoria de serviços tradicionais quanto a emergência de modelos até então inexistentes, a exemplo do conteúdo multimídia vendido por assinaturas e oferecido via streaming ou de uma maior desintermediação propiciada por serviços de carona compartilhada e comércio eletrônico direto.

Esses casos tomados como exemplo demonstram precisamente que os negócios do ramo, por aproximar tomadores e provedores de serviços, encurtando a dimensão do canal de distribuição e simplificando a dimensão de relacionamento com o cliente, encontraram uma nova forma de agregar valor ao que oferecem e por isso se tornaram bem-sucedidos ao tirar proveito de uma oportunidade comercial para transformá-la em efetivo modelo estruturado de negócio.

Por trás de muitas dessas mudanças promovidas esteve a emergência das tecnologias P2P (peer-to-peer, em tradução livre: ponto-a-ponto) entre o final dos anos 90 e o começo dos anos 2000. Constituindo uma arquitetura de rede diferenciada, na qual os usuários conseguem se conectar diretamente às máquinas uns dos outros, sem a necessidade de um grande agente/servidor centralizado a cargo da troca de informações entre as partes, as tecnologias P2P ganharam adesão principalmente a partir do surgimento do Napstersoftware que permitia o livre compartilhamento de arquivos entre quaisquer pessoas que se conectassem ao sistema.

Com o passar dos anos, de 2000 em diante, uma maior descentralização mostrou-se primordial para a resiliência dessas tecnologias. Serviços como o Napster, os quais mesmo descentralizados ainda possuíam uma grande figura/empresa central como co-responsável, acabaram sendo integralmente encerrados como consequência de batalhas legais envolvendo direitos autorais ou outras questões. Alguns desses serviços foram parados independente da natureza do conteúdo compartilhado, prejudicando até então toda a gama de usuários, inclusive os que faziam uso legal deles. Entretanto, alternativas sucessoras, foram criadas com foco em maior descentralização, propiciando a conexão direta entre os usuários sem a necessidade de grandes pontos centrais propícios a falhas, tornando ferramentas como a rede Gnutella “imparáveis” de uma perspectiva tecnológica, embora o uso ilegal dessas e outras redes seja devidamente combatido na esfera tradicional.

Por fim, quanto à evolução das redes P2P dos anos 2000 em diante, é importante reconhecer o permanente legado que tais sistemas deixaram no universo da economia digital. Ao propor mudanças de um modo que ficou conhecido como “inovação sem permissão”, pequenos empreendedores ou gurus anônimos da computação estabeleciam certa oposição à forma como certos negócios eram tradicionalmente conduzidos. Seja pela ineficiência dos modelos nos quais eram baseados, frente aos gloriosos e abundantes frutos da digitalização ou por questões ideológicas que propunham maior democratização do acesso à cultura e à informação. O acelerado ciclo de inovações que marca a trajetória e o crescimento da internet na última década e suas consequências são, em boa medida, os grandes responsáveis por uma inevitável assimilação de algumas mudanças por parte do mainstream.

O anseio por novidades constantes por parte dos usuários combinado aos desafios impostos, de forma justa ou não, sobre as tecnologias descentralizadas obrigou grandes negócios a adaptarem seus modelos e práticas por completo. Assim, pode-se afirmar que o novo modelo de streaming de conteúdos multimídia como músicas e filmes pago por meio de assinatura mensal, conforme proposto por empresas formalizadas como Spotify ou Netflix, foi uma resposta amplamente influenciada pela assimilação de mudanças recentes no consumo desses bens digitais e seu impacto sobre as demandas de mercado.

Ou, pontuando de forma clara: sem a polêmica transformação iniciada pelo Napster, é provável que, mesmo com o advento da internet, o mercado ainda estivesse preso a modelos antiquados para a negociação de conteúdo multimídia, emulando o mundo analógico no universo digital, e sem tirar todo o proveito possível das vantagens trazidas por esse último. Assim, mesmo com a alternância de empresas ou projetos como líderes ou referenciais de mercado, a descentralização e seu impacto sobre os modelos de negócio se configuram como tendências em crescimento. A mais forte onda e a nova fronteira desse fenômeno no momento estão precisamente na difusão de serviços baseados na tecnologia blockchain, diante do impacto substancialmente mais amplo que pode gerar em um amplo escopo.

Em artigo intitulado Why Business Schools Need to Teach About the Blockchain, o pesquisador Kariappa Bheemaiah (2015) expõe com clareza os pilares que fazem da tecnologia blockchain um grande trunfo para a inovação nos negócios, tanto pelo que traz de inédito quanto pelo poder que possui de acelerar e ampliar os efeitos positivos de outros arranjos descentralizados que a precederam, conforme anteriormente analisados por Bheemaiah (2015):

[…] the Internet of Everything is increasingly becoming part of business reality. Today businesses and societies are noticing that the line between physical and virtual existence is beginning to blur at an increasing rate. A secondary effect of the internet of everything is that it will also create an economy of everything (Panikkar, 2015), as every device capable of connecting to the internet becomes a point of transaction and economic value generation for consumers and prosumers in a sharing economy. […] the possibilities that are offered by the Blockchain technology begin to make economic sense. […] In addition, decentralized architectures offer better cost benefits to companies as the peer-to-peer sharing of resources in a distributed network removes dependency on a central server, optimizes resource use and reduces costs. […] As distributed networks begin to act as a channel of value-based transactions and in light of the afore mentioned advantages, a new breed of Blockchain based businesses are now beginning to show signs of disruption in various domains of the market. (BHEEMAIAH, 2015, p.12)

À luz das nove dimensões de um modelo de negócios, segundo propostos pela obra Business Model Generation, observa-se na análise de Bheemaiah (2015) que a tecnologia blockchain pode ser encarada como uma força que dá sequência às radicais transformações no âmbito dos canais de distribuição e da estrutura de custos geradas pela difusão das tecnologias P2P.

No entanto, o potencial transformador não está limitado a promover uma maior aproximação, ou em alguns casos a própria fusão, entre as figuras do provedor do serviço e o consumidor do mesmo. Tampouco se limita à enorme economia e consequente simplificação na estrutura de custos de um negócio, viabilizada a partir da eliminação de diversas figuras intermediárias, caros processos de auditoria ou terceirização de serviços correlatos. Ao impactar novas dimensões dos negócios, como o relacionamento com os clientes (a partir de automação via contratos inteligentes), a proposição de valor (viabilizando serviços cuja criação e execução antes era impossível) e as fontes de receita (dada a facilidade com que as moedas digitais podem operar via internet), a tecnologia blockchain já é claramente apontada como uma das principais tendências da atualidade pelo que proporciona de novo em serviços construídos ou em construção, bem como o potencial de melhoria em serviços tradicionais que a assimilem e implementem.

Além de alguns anteriormente citados no presente trabalho, são destacados os seguintes setores nos quais implementações da tecnologia blockchain já são uma realidade em construção (BHEEMAIAH, 2015, p.14):

Finanças

Serviços de carteiras online para armazenamento e utilização de moedas digitais, a exemplo do Bitcoin, associados a ferramentas que propiciam empréstimos peer-to-peer, micropagamentos e remessas internacionais de valor com maior agilidade e menores custos.

Internet das Coisas

blockchain permite a criação e manutenção de moedas digitais que, em essência, funcionam como dinheiro programável. Exemplos práticos da Internet das Coisas começam a ser alvo de experimentos reais e construção de negócios futuros são: uma geladeira ligada a uma carteira de moedas digitais do proprietário capaz de encomendar novos alimentos online com base no orçamento disponível para o usuário e a quantidade de alimentos que armazena, além de poder propiciar a própria interoperabilidade entre entes inteligentes por meio da internet.

Contratos e Seguros

A desintermediação propiciada pela implementação de contratos inteligentes ocorre como consequência da automação de processos nos quais os contratos tradicionais são dependentes de entidades garantidoras, como um terceiro de confiança capaz de assegurar o cumprimento de cláusulas acordadas entre duas partes que, em geral, não se conhecem. Quando implementados sobre uma blockchain, tanto seguros usuais quanto novos produtos financeiros podem ser acionados automaticamente uma vez que determinada condição seja satisfeita.

Organizações Autônomas Descentralizadas (DAOs)

As organizações descentralizadas autônomas1 representam uma das principais tendências na grande área de implementações em construção com base na tecnologia blockchain e no conceito de contratos inteligentes. Aaron Wright e Primavera de Filippi descrevem a operacionalização e algumas das implicações das DAOs da seguinte maneira:

A blockchain’s coordinative power is not solely limited to facilitating the action of machines. It also allows for the execution and interconnection of a variety of smart contracts that interact with one another in a decentralized and distributed manner. Multiple smart contracts can be bound together to form decentralized organizations that operate according to specific rules and procedures defined by smart contracts and code (DE FILIPPI, WRIGHT, 2015, p.15)

As aplicações e os conceitos descritos até aqui não apenas têm profundas implicações sobre os modelos de negócio, algumas das quais inclusive já começam a se materializar, como nos próximos dez anos tendem a se intensificar na medida que o crescimento em escala na adoção da tecnologia de contratos inteligentes levará a maiores campos e contingentes afetados. Espera-se uma assimilação gradual por parte da população, o que deve se refletir no ritmo de desenvolvimento e adoção dessa tecnologia na perspectiva dos negócios. 



Ademais, o protagonismo de alguns agentes, notadamente empreendedores do ramo, que serão os responsáveis por acreditar inicialmente nessas tecnologias e possibilidades, aperfeiçoando-as e fazendo com que ganhem a confiança de um público maior. É importante salientar que a tecnologia de contratos inteligentes deve impactar os negócios na próxima década não apenas pelo que permite otimizar, mas também pelo que permite criar de completamente novo quando a organização e colaboração em massa. As oportunidades valem até mesmo no combate à corrupção política ou ao pleno acompanhamento dos fluxos de caixa de companhias de capital aberto que operacionalizem parte dos negócios através da blockchain.

Referências

ALEIXO, G; RADU, R. Blockchain e o futuro da governança. Medium. 2015. Disponível em: <https://medium.com/@ITSriodejaneiro/blockchain-e-o-futuro-da-governança-959265cc4d66>.

Augur. Overview. 2015. Disponível em: <http://docs.augur.net/>.

BHEEMAIAH, K. Why business schools need to teach about the blockchainSSRN. 2015. Disponível em <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2596465>.

Bitcoin P2P e-cash paper. 2008. Satoshi nakamoto institute. Disponível em: <http://satoshi.nakamotoinstitute.org/emails/cryptography/1/>.

CERF, V; D, CLARK; LEINER, M; et al. Brief history of the internet. Internet Society. 2012. Disponível em: <http://www.internetsociety.org/internet/what-internet/history-internet/brief-history-internet#Origins>.

CHAUM, D; FIAT, A; NAOR, M. Untraceable electronic cash. Advances in cryptology, pp.319–327, 1990. Amsterdã, Holanda. Disponível em: <http://bitcoin-class.org/classes/class5/ecash.pdf>.

Coindesk. Bitcoin venture capital. 2015. Disponível em: <http://www.coindesk.com/bitcoin-venture-capital/>.

DE FILIPPI, P; WRIGHT, A. Decentralized blockchain technology and the rise of lex cryptographia. SSRN. 2015. Disponível em: <http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2580664>.

EthereumWhat can i do with the ethereum frontier release?. 2015. Disponível em: <https://ethereum.org>.

LAMPORT, L; PEASE, M; SHOSTAK, R. The byzantine generals problem. SRI International. 1982. Disponível em: <http://research.microsoft.com/en-us/um/people/lamport/pubs/byz.pdf>.

LEE, J; LONG, A; STEINER, J; et al. Blockchain technology and legal implications of ‘crypto 2.0’. BNA’s banking report, n.104. 2015. Disponível em: <www.gibsondunn.com/publications/Documents/Lee-Long-Blockchain-Technology-BNA-Banking-03.31.2015.pdf>.

Microsoft. Ethereum’s blockchain as a service. 2015. Disponível em: <https://azure.microsoft.com/en-us/blog/Ethereumblockchain-as-a-service-now-on-azure/>.

NAKAMOTO, S. Bitcoin: a peer-to-peer electronic cash system. 2008. Disponível em: <https://bitcoin.org/bitcoin.pdf>.

OSTERWALDER, A; PIGNEUR. Y. Business Model Generation. Hoboken, EUA: John Wiley and Sons, ed. 1. 2010.

SZABO, N. Formalizing and securing relationships on public networks. First Monday, vol. 2, n. 9–1, 1997. Disponível em <http://firstmonday.org/ojs/index.php/fm/article/view/548/469>.

Wikipedia. Napster. 2015. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Napster>.

 

Em https://www.astarlabs.com/como-o-bitcoin-e-os-smart-contracts-estao-transformando-os-modelos-de-negocios/