A codificação jurídica e seus desdobramentos


Porwilliammoura- Postado em 12 novembro 2012

Autores: 
MAIOR, Silvério Souto
SANTOS, João Amadeus Alves dos
SILVA, Eduardo Almeida Pellerin da

A segurança jurídica significa maior previsibilidade e menor arbitrariedade nas decisões judiciais. Uma segurança jurídica garantida pela codificação também contribui para o aperfeiçoamento da coerência do sistema, haja vista que garante seu controle.

1. Prolegômenos

O processo de resolução, isto é, a produção da decisão, não ocorre de forma aleatória, mas, ao contrário, obedece, ou – pelo menos –, deve obedecer a critérios mínimos de organização. Afinal, se assim não fosse, não se trataria de uma experiência jurídica. De modo sintético, é possível afirmar que a problemática não se encontra na resolução ou não dos conflitos em si, mas, sim, no modo como eles são resolvidos. No fundo, toda a discussão se assenta sobre o seguinte questionamento filosófico: qual a melhor maneira de concretizar o direito?  Esta questão está intimamente ligada à outra, de questões sociais misturadas às jurídicas: como resolver um conflito da forma mais eficaz possível? Ora, para alguns, deve prevalecer a confiança na prudência do magistrado; para outros, a criação de procedimentos formais é o melhor caminho.

Com este texto, embasado na concepção teórica de Winfred Hassemer, temos por objetivo a elucidação de um fenômeno jurídico que, a princípio, significou imposição de maior rigor metodológico e processual no momento da resolução de casos concretos; a saber, a criação de códigos jurídicos.


2. Primeiras considerações

O direito pode ser entendido como um conjunto específico de regras utilizado para resolver conflitos humanos, originados a partir de interesses divergentes e discordantes. Dentro desse entendimento, podemos destacar três grupos gerais de elementos, os quais podem ser designados a partir de ênfase dada, primeiro, ao “conjunto específico de regras”, isto é, uma ordenação; segundo, à resolução de conflitos; e, por último, aos interesses, não necessariamente antagônicos, mas discordantes.

Com ênfase na ordem, pode-se aludir à figura de Hans Kelsen, ao dizer que a organização do direito é caracterizada, principalmente, pelo seu caráter coercitivo, para rebater o sociologismo jurídico de Eugen Erlich:

O que distingue a ordem jurídica de todas as outras ordens sociais é o fato de que ela regula as condutas humanas de uma técnica específica. Se ignorarmos esse elemento específico do Direito, se não concebemos o Direito como uma técnica social específica, se definirmos o Direito simplesmente como ordem ou organização, e não como ordem coercitiva, então perdemos a possibilidade de diferenciar o Direito de outros fenômenos sociais; identificamos o Direito com a sociedade e a sociologia do Direito com a sociologia geral.[1]

Ademais, sintetizando a concepção kelsianana, o que diferencia as normas jurídicas de outras (morais, religiosas, de etiqueta) é o fato de estas terem o Estado como assegurador de seu adimplemento. Para Kelsen, o cerne do direito está na sanção legítima e organizada imposta pelo Estado. Toda norma jurídica possui sanção, mesmo as que não possuem explicitamente (normas secundárias), ligar-se-iam a normas primárias (são as que contêm a sanção). Assim, as verdadeiras normas jurídicas são as primárias, e o direito é caracterizado essencialmente do ponto de vista coercitivo e sancianatório.[2]

 Quanto à resolução de conflitos, este é o escopo máximo da dogmática jurídica, que, ao final da atividade jurídica, é a materialização do mais importante aspecto jurídico, a dirimição de conflitos e a proibição do non liquet (o juiz não pode se escusar, tendo a obrigatoriedade de decidir diante da querela) [3]. No que concerne à dogmática jurídica, vem à baila a asserção de João Maurício Adeodato:

[...] a dogmática precisa decidir sempre a respeito dos fatos que ela mesma tenha considerado relevantes para a esfera jurídica; não pode eximir-se da decisão sob qualquer que seja a alegação, como a falta de elementos para decidir tanto pró quanto contra determinado réu.[4]           

Já agora tratando, por último, da divergência de interesses, a qual origina o conflito tratado, geralmente, em última instância – no sentido de esgotamento dos outros artifícios dirimentes de conflitos espalhados pela sociedade, como o bom senso, por exemplo –, pelo direito, trazemos à tona a contribuição de Imannuel Kant, quem, apesar parte de sua obra possuir viés jusnaturalista, contribui grandemente para o positivismo ao considerar a disparidade de arbítrios próprios de cada indivíduo, isto é, “o direito é o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode entrar em acordo com o arbítrio de outro[...]” [5]. Pois bem, tal acordo, para fins atuais, não deve ser encarado com concordância voluntária, mas sim como conformação, sendo sempre, em maior ou menor grau, forçada.

A grande questão que permeia tal trabalho aqui exposto é: de onde vêm a ordem, a resolução de conflitos e conformação de arbítrios divergentes? Ou melhor, de que forma o direito se organizou para que pudesse abarcar tais elementos? A era das grandes codificações muito contribuiu para nortear e organizar o procedimentalismo da decisão.


2. Função da codificação no sistema jurídico

Iniciemos com uma breve contextualização histórica e filosófica. Com a derrocada da Idade Média e surgimento da Idade Moderna, há uma recrudescimento da crença, quase cega, na razão, na ciência e na técnica, que possibilitariam o domínio da natureza pelo homem. O período moderno se caracteriza pela crise do teocentrismo medieval, e a ascensão do antropocentrismo. Tudo relativo ao homem é enaltecido, principalmente o que o diferencia do resto dos animais, a saber, a razão. Ilustra bem este culto ao racionalismo a máxima atribuída a Descartes: “penso, logo existo.” Ou seja, eu existo por mim mesmo, na medida em que penso (tenho o dom da razão), e não por vontade divina.

O racionalismo, o empirismo e o cientificismo, no século XIX, tomaram tamanho vulto que influenciaram em muito a literatura, em especial o movimento Realista e Naturalista[6], na prosa e, principalmente, o Parnasianismo, no verso. Em alguns poemas[7] de Olavo Billac e Alberto de Oliveira (parnasianos), a poesia se reduz excessivamente ao apego à forma e à simetria, ao descrever objetos com o máximo de objetividade, desprezando o lado subjetivo e emotivo. Objetividade esta tão exigida pelo cientificismo.

Sem maiores delongas, agora adentrando na seara jurídica, no século XIX, a ciência do direito é dominada pela concepção racional, empirista, legalista da Escola da Exegese francesa. A Escola da Exegese considerava que a totalidade do direito positivo se resume à lei escrita. Destarte, a função do jurista seria se ater tão somente ao texto legal e revelar precisamente seu sentido.Assim, o estudo do direito deveria reduzir-se a mera exegese dos códigos.Nas palavras de Maria Helena Diniz:

A lei e o direito constituem uma mesma realidade, pois a única fonte do direito é a lei e tudo o que estiver estabelecido na lei é direito.[...]Durante a época da codificação do direito civil francês e[...] da promulgação do Código de Napoleão, os juristas entenderam que deviam fazer apenas a exegese do texto legal,ficando, assim a ciência do direito reduzida a mera tarefa de exegetas.[8]

Na época, as grandes codificações eram recentes, e por isso, houve uma crença cega na lei, idolatrada (fetichismo da lei) e tida como completa e acabada[9]·. ”O racionalismo buscava a simetria, a construção lógica perfeita, o que o levou à utopia. [...] Daí o reinado, em França, do dogma absoluto da ominisciência, da ominicompreensão e da onipotência das leis.” [10] Os códigos nada deixavam ao arbítrio dos intérpretes, pois o direito está feito e não há mais incerteza. Os juízes e juristas são títeres da lei e devem tão somente explicar a vontade do legislador. Destarte, só havia a interpretação literal.

O final do século XIX e o início do século XX correspondem a um momento de grande efervescência discursiva acerca das problemáticas metodológicas do Direito, dentre as quais ganharam destaque aquelas referentes à atividade judicial. Nesse período, iniciou-se um processo de ruptura com concepções teóricas então vigentes, que já se demonstravam defasadas e incapazes, em termos de eficácia prática do Poder Judiciário, de satisfazer às novas exigências oriundas de uma crescente complexidade sócio-cognitiva.

Na origem da codificação, no sentido moderno, está uma polêmica entre dois grandes juristas: Thibaut e Savigny. Aquele dizia que a Alemanha precisava centralizar sua codificação civil em torno de um único documento imediatamente, pois seus estatutos civis apenas tinham alcance local e não serviam aos fins da Federação[11]. Já o professor da Universade de Berlim atreveu-se a contradizer o senso patriótico comum. Ele primeiro refutou a ideia de ser a lei única fonte do direito, e que é impossível livrar a produção legislativa da história do seu povo, a qual é responsável pelas peculiaridades jurídicas de cada comunidade. Então, antes de haver uma codificação, dizia Savigny, é necessária uma ciência jurídica unificada e voltada a identificar o direito da nação, pois, já dizia no Da Vocação de Nosso Tempo para Legislação e Jurisprudência:

Esforçaremo-nos para mostrar determinados traços gerais desse período no qual o direito, bem como a linguagem, existe na consciência das pessoas.[12]

O mérito de Savigny foi o de isolar a ciência do direito (jurisprudência) das demais, através da identificação de três elementos: o formal e necessário (norma), o material e contingente (as relações de fato) e outro inédito, a valoração jurídica (valores) [13].

Oitenta anos depois dessa polêmica, após a Guerra Franco-prussiana e a unificação do Império, entra em vigor o Código Civil alemão em 1º de Janeiro de 1900, provando a imposição da tese de Savigny sobre a Thibaut. A partir daí, a obra de Savigny teve grandes continuadores, o mais famoso deles é Georg Friedrich Puchta, cuja contribuição mais importante foi objetivar o “espírito do povo” ­­– conceito introduzido por Savigny – e separá-lo do consciente das pessoas. Mas, por outro lado, na França, a ciência jurídica se constituiu posteriormente e de outra forma, com a prevalência da lei na Escola da Exegese, cuja metodologia mais tarde iria ser aperfeiçoada pela Jurisprudência dos Conceitos[14].

No âmbito judicial, uma das heranças teóricas deixadas pelo Legalismo jurídico foi a ideologia da subsunção, uma aplicação jurídica do silogismo apofântico aristotélico. Até a consolidação do processo de revisão e questionamento de métodos, mencionado nos parágrafos anteriores, predominava entre os juristas a ideia de que a sentença seria uma dedução lógico-linguística de uma norma legal, ou seja, acreditava-se que a resposta para resolução de qualquer caso concreto encontraria - ainda que, muitas vezes, de forma obscura e não aparente -, sempre potencialmente subsumida em uma norma integrante do ordenamento. Ainda segundo esse pensamento, a finalidade da sentença é, unicamente, a concretização do conteúdo intrínseco às leis, através da verificação, por parte do juiz, de sua pertinência ao caso particular e da consequente concretização concentrada de conteúdo normativo. A codificação jurídica ganhou, assim, grande relevância frente à eficácia do Direito, porquanto passou a ser tida como a origem de toda fonte do direito – afinal, para essa concepção teórica, a extensão do conceito de fonte jurídica restringe-se, apenas, à lei, cuja origem é estatal, e não há que se falar em separação entre texto legal e norma jurídica.

Esse pensamento reducionista ignorava o caráter axiológico da interpretação do direito, defendendo que a produção de uma sentença resumir-se-ia a um silogismo: a norma legal (premissa maior) e o relato dos fatos (premissa menor, na qual as singularidades do caso concreto estão contidas) determinam, de modo inequívoco, a norma de decisão(conclusão)[15].

Nas palavras de Maria Helena Diniz:

A lei deve ser a única fonte das decisões jurídicas, logo toda solução jurídica não pode ser mais do que a conclusão de um silogismo, em que a premissa maior é a lei e a menor, o enunciado de um fato concreto[16], sendo a decisão a conclusão.

Destarte, até o final do século XIX, predominava a ideia de que a codificação jurídica e a aplicabilidade de uma rigorosa metodologia judicial, capaz de estabelecer regras precisas de transferência de conteúdos normativos para a sentença, seriam fatores suficientes para a garantia de uma jurisprudência “correta”, regular, uniforme e, consequentemente, previsível. O ideal da segurança e certeza jurídica estaria, assim, supostamente garantido.

Neste sentido, criticando a estrutura legalista do direito, no Brasil moderno, o grande historiador brasileiro Caio Prado Júnior assevera, com pertinência ainda atual:

Como resultado, as leis não só eram uniformemente aplicadas no tempo e no espaço, como frequentemente se desprezavam inteiramente, havendo sempre, caso fosse necessário, um ou outro motivo justificado para a desobediência. E daí, a relação que encontramos entre aquilo que lemos nos textos legais e o que efetivamente se pratica é muitas vezes remota e vaga, se não redondamente contraditória.[17]

Apesar de as desconfianças e as descrenças por parte de juristas em relação a tal concepção teórica de cunho legalista serem bastante antigas, apenas, no século XX, consolidou-se a tendência segundo a qual a norma codificada é, necessariamente, incapaz de promover respostas adequadas, em absoluto, aos casos concretos únicos, singulares irrepetíveis. Em outras palavras, a norma codificada é por si só incompatível com o conflito real, pleno em detalhes únicos, de maneira que sua complementação deve ser efetivada pelo juiz por meio de uma adequação interpretativa (hermenêutica).

A tendência juspositivista responsável pela consolidação dessa nova concepção foi o Normativismo ou Racionalismo Dogmático, sucessor do Legalismo. O auge teórico desse pensamento foi atingido pelo seu principal representante, Hans Kelsen, segundo o qual o ato de aplicação do direito significa a produção de uma norma de escalão inferior a partir de outra de escalão superior. Esse processo sempre apresenta certo grau de indeterminação entre a limitação abstrata imposta pela norma geral (moldura) e as várias possíveis escolhas de soluções corretas percebidas somente diante do caso concreto. O preenchimento da moldura, portanto, deve ser efetivado através de um ato de execução, responsável pela escolha de uma dessas decisões e pela concretização/aplicação do direito[18].

Segundo a teoria kelseniana, o conteúdo do direito não importa. Isto porque, segundo Machado Neto[19], essa teoria, fruto da época denominada “racionalização do poder”, deveria reconhecer a existência de ordens jurídicas de conteúdo político, diverso do liberal ou social-democrata, existente nos povos europeus ocidentais. Deveria erigir uma teoria do direito que tivesse, conceitualmente, condições para admitir a existência, ao lado do direito democrático-liberal, um direito soviético, fascista, nazista. Outrossim, sua vocação de mais absoluta neutralidade, em face do conteúdo político, ético, religioso, das normas jurídica[20].

A letra da norma codificada passou a ser vista como um instrumento de limitação do processo interpretativo. O texto normativo constitui o núcleo conceitual da norma jurídica, ao passo que a auréola conceitual é abstrata e só pode ser obtida pelo ato interpretativo. Uma teoria da atividade jurisprudencial deve, portanto, desenvolver regras de interpretação e mecanismos de argumentação para embasar, justificar, identificar o liame conceitual plausível.

 Ademais, a codificação do direito passou a ser tida, por diversas escolas jurídicas, como insuficiente para a promoção da univocidade interpretativa, o que, aliás, mostrou-se, por meio dos estudos da Semiótica e da Semiologia, uma utopia. Essa insatisfação surgiu no momento de transição em que a concepção da interpretação literal ou exegética (in claris non fit interpretatio) perdia força e novos métodos hermenêuticos eram criados.  A imprecisão da linguagem está entre os motivos pelos quais Robert Alexy acredita haver, na atualidade, uma unanimidade entre os juristas a respeito da impossibilidade da simples subsunção das normas individuais (caso concreto) às premissas maiores previamente positivadas[21].

Para a obtenção desse consenso, muito contribuíram as teorias filosóficas da linguagem, dentre as quais se destaca a Semiologia de Ferdinand Saussure. Para esse pensador, a linguagem constitui um sistema de múltiplos signos articulados, sendo o signo, por sua vez, um elemento cultural de natureza bifásica (composto por um plano conceitual concreto ou material e outro abstrato, de conteúdo) [22]. Ora, palavras são uma das formas assumidas pelos signos e, portanto, por mais claras que sejam, sempre são passíveis de serem interpretadas, pois representam elementos cognitivos, apreendidos pela mente.

É importante observar, entretanto, que ambas as tendências – Normativismo e Legalismo – admitiam uma relação entre lei e decisão jurídica. Esta é, enfim, a função pela qual um sistema codificado se presta: a criação de vínculos entre o juiz e a norma codificada. A estrutura funcional desse sistema é dotada de reciprocidade vinculativa complexa, na qual a existência de codificações interfere de forma decisiva na atividade jurisprudencial.