Certeza e verdade no processo penal (militar ou comum)


Porwilliammoura- Postado em 29 abril 2013

Autores: 
GORRILHAS, Luciano Moreira

 

O processo penal (comum ou militar), conquanto seja o principal instrumento para solucionar conflitos de interesses, não dispõe de mecanismos precisos para trazer à tona a verdade real sobre um fato criminoso, impossibilitando, na maioria das vezes, a justa aplicação jurisdicional penal.

Sumário: 1-Introdução.2-A verdade na fase anterior ao processo.3-A verdade na fase processual.4-Conclusão.


1-Introdução.

A pesquisa da verdade em relação à autoria de um fato, criminoso ou não, constitui-se em uma das tarefas mais árduas para o ser humano. Com efeito, é comum, por variadas razões, o descortino relativo ao verdadeiro desenrolar de um episódio ficar restrito somente ao conhecimento divino e ao do próprio protagonista do ato.

No direito processual penal brasileiro (comum ou militar), afora a hipótese de prisão em flagrante próprio (quando o agente está cometendo o delito), na qual a verdade emerge de uma relativa certeza visual, uma vez que a visibilidade do crime é detectada pela percepção dos órgãos sensoriais humanos, o que se tem, na maioria esmagadora das vezes, é a verdade processual (aquela oriunda das provas constantes dos autos) ou, na linguagem de Ferrajoli, a verdade alcançável.

Aliás, não se tem como fugir da constatação de que a verdade proveniente dos autos de um processo penal no Brasil possui variados matizes, principalmente porque decorre das certezas individuais, nem sempre coincidentes, de cada um dos sujeitos processuais (acusador, defensor e julgador).

Desse modo, o órgão de acusação, em regra, apresenta sua tese lastreada em uma certeza pautada em fatos constantes em peças informativas (inquérito policial e auto de prisão em flagrante). A defesa, por sua vez, em geral, contesta a tese deflagrada pela acusação apresentando uma antítese com base na certeza de que a versão do imputado é verdadeira (geralmente: negativa de autoria, excludentes de crime ou de culpa) e, por fim, o julgador, de acordo com sua convicção, profere uma decisão com respaldo nas provas dos autos, ou seja, aquelas que foram produzidas pelas partes ou, de outro modo, as que foram colacionadas pelo próprio juiz no escopo de buscar a verdade real. Nesse contexto, vale observar que, em consonância com o sistema penal acusatório, não deve o julgador substituir-se a uma das partes, notadamente ao responsável pela acusação.

 

No que concerne ao binômio: certeza e verdade, assim leciona Malatesta:

Certeza e verdade nem sempre coincidem: por vezes, tem-se a certeza do que objetivamente é falso; por vezes, duvida-se do que objetivamente é verdadeiro. E a mesma verdade que parece certa a uns, a outros parece duvidosa, e, por vezes, até mesmo falsa.

Assinale-se que, nem mesmo o exame de DNA, outrora considerado infalível na demonstração da certeza de um fato, hoje se revela um meio probatório também  suscetível de erro no campo criminal. Com efeito, até  recentemente a literatura especializada considerava o resultado dos exames de DNA, para fins de paternidade e maternidade ou para comprovação de autoria de delitos criminosos, como infalíveis quanto à sua negativação. A questão, todavia,  modificou-se de forma radical com a descoberta da existência de seres humanos híbridos, denominados quimeras (possuidores de dois DNA diferentes).

Na mesma esteira acerca da falibilidade do resultado de exame de DNA, pesquisadores de Israel mostraram ser possível forjar amostras genéticas em laboratórios (revista ¨Forensic Science International: Genetics”).

Na aludida experiência, os autores do estudo colheram amostras de sangue de uma mulher e as centrifugaram para remover as células brancas, que contêm DNA. Em seguida, adicionaram células remanescentes do DNA que havia sido amplificado a partir do fio de cabelo de um homem. Uma vez que as células vermelhas não têm DNA, o resultado de todo o material genético encontrado na amostra pertencia ao homem.

Ainda no terreno da falibilidade da prova científica, especialistas do Innocense Project alertaram que diversos motivos  podem levar a uma conclusão científica errada. De fato,  levantamentos mostraram que, desde 2009, falhas em exames forenses levaram pelo menos 116 inocentes à cadeia nos Estados Unidos (Correio Brasiliense, Brasília, terça-feira, 21 de agosto de 2012). Vejamos um caso:

Josiah Sutton

·   Acusação: estupro

·   Sentença: 25 anos

·   Ano de condenação: 1999

·   Ano da exoneração: 14/5/2004

·   Sentença cumprida: 4,5 anos

·   Real autor encontrado?: Não

Em 1998, no Estado do Texas, a vítima foi abordada por dois homens, estuprada e despejada em um terreno próximo. Ela identificou Sutton e um amigo como seus possíveis atacantes. Os adolescentes deram amostras de sangue e saliva à polícia para comparar com dados recolhidos da vítima e de seu carro. O laboratório alegou que a amostra de sêmen do banco de trás continha dois perfis: o de Sutton e de outro homem  não identificado. Sutton acabou condenado. Anos depois, responsáveis por um novo exame descreveram as análises como cientificamente tão sólidas quanto um projeto de ciência de ensino médio e mostraram que Sutton não era culpado. O Laboratório de Polícia do Departamento de Crimes de Houston, responsável pelo primeiro exame, foi fechado e, desde então, tem sido submetido a uma investigação que revelou um grande número de problemas, como pessoal não treinado e contaminação de provas.


3 - A verdade na fase anterior ao processo.

É sabido que a apuração, na fase pré-processual, de crime comum é feita por delegado de Polícia, profissional detentor de conhecimentos jurídicos.

É cediço que a falta de estrutura nos órgãos de Polícia (quantidade insuficientes de policiais, laboratórios de análises modernas, centro de perícias modernizados, números de peritos e investigadores adequados e outras deficiências estruturais) dificultam sobremaneira  o atuar da polícia no desvelamento da autoria e materialidade de crimes comuns (ou seja, a busca da verdade).

No que tange à condução de inquérito policial militar, não obstante tal atribuição não constar expressamente na Constituição Federal, como estabelecido no art. 144, inciso IV, § 4º, em relação à Polícia Federal e a Polícia Civil, o mister de apurar autoria de infração penal militar está afeto, por lei infraconstitucional, aos Comandos e as Direções Militares (art. 7º do CPPM).

Dessa forma, em regra, a atividade de Polícia Judiciária Militar (art. 7º do CPPM), por delegação, recai sobre os oficiais da ativa das Forças Armadas (art. 7º, § 1º do CPPM).

Sucede que os militares em questão não possuem os mesmos conhecimentos jurídicos e conhecimentos de técnicas de investigação adquiridos na formação profissional da Polícia Judiciária Federal e da Polícia Judiciária Civil. Esse diferencial representa, sem dúvida, um obstáculo para Polícia Judiciária Militar na busca da verdade de crimes militares de maior complexidade.

De fato, releva destacar que as legislações penal e processual penal militar apresentam peculiaridades que em muito dificultam o atuar dos oficiais das Forças Armadas, Encarregados de Inquéritos Policiais Militares, a começar pela tipificação do crime militar.

Nesse particular, enfatize-se que a tipicidade de um crime militar deve ser aferida  em dois estágios: em primeiro lugar, verifica-se se o fato vem descrito na parte especial do Código Penal Militar (princípio da reserva legal); em seguida, se há adequação a uma das hipóteses elencadas no art. 9º e incisos do referido ordenamento legal.

Vale observar que há expressões contidas no art. 9º do Código Penal Militar (CPM) com conotações amplas e subjetivas, suscitando interpretações diversas até mesmo pela doutrina e pelos tribunais superiores.

O seguinte episódio real retrata a dimensão da dificuldade com que a Polícia Judiciária Militar pode se deparar, no seu cotidiano, para identificar um crime militar:

¨Em certa ocasião, aportou, em uma auditoria militar do Rio de Janeiro, um inquérito policial, instaurado em delegacia policial, para apurar uma ocorrência envolvendo um capitão da ativa e um tenente da ativa. Tal fato chegou à auditoria em razão de a justiça comum ter se declarado incompetente para apreciar episódio envolvendo dois militares da ativa (art. 9º,II,CPM). A descrição fática retratava que o capitão alugara um apartamento, de sua propriedade, a um tenente da ativa. Em razão do não pagamento de três meses de alugueres pelo tenente,o aludido capitão, aproveitando-se de uma viagem a serviço do tenente,  ingressou e retirou do mencionado imóvel aparelhos eletrônicos, cujos valores equivaliam aos alugueres devidos pelo tenente¨.

Assim sendo, embora envolvendo dois militares da ativa(art.9º,II, do CPM), a tipicidade correta revela que o aludido capitão praticara, em tese, o crime de exercício arbitrário das próprias razões, tipo penal inexistente no Código Penal Militar.

Desse modo, o Superior Tribunal de Justiça, apreciando o conflito negativo de competência, à época suscitado, declarou ser a justiça comum competente para  julgar o caso.

Demais disso, assinale-se que outro fator complicador para o Encarregado de IPM, diz respeito ao fato de o CPM contemplar, dentre os seus tipos penais, um rol de condutas similares às existentes nos Regulamentos Disciplinares Militares. Dessa forma,  ocorrem sucessivas interpretações equivocadas pela Polícia Judiciária Militar que, com certa frequência, apura o fato como se fosse transgressão disciplinar, aplicando punições administrativas diante de condutas que, na realidade, em tese, configuram crimes militares (a respeito, vide nosso artigo: Conflito aparente de normas entre transgressões disciplinares e crimes militares e o necessário controle externo da atividade policial militar (Disponível em <http://jus.com.br/revista/texto/18917/conflito-aparente-de-normas-entre-transgressoes-disciplinares-e-crimes-militares-e-o-necessario-controle-externo-da-atividade-policial-militar>). De consequência, só por mera casualidade a ocorrência dos ditos crimes militares chega ao conhecimento do Ministério Público Militar e da Justiça Militar (a verdade acerca do crime militar fica, por vezes, encoberta em sindicância).

Na seara do processual penal militar, geralmente, o Encarregado de IPM, por ausência de conhecimentos jurídicos, norteia suas investigações exclusivamente com base em dispositivos processuais contidos no Título III, Capítulo Único, Do Inquérito Policial Militar (art. 9º usque art. 26) do Código Processual Penal Militar (CPPM). Acontece que o artigo 301 do CPPM determina expressamente que serão observadas no inquérito as disposições referentes às testemunhas e sua acareação, ao reconhecimento de pessoas e coisas, aos atos periciais e documentais, bem como outras que tenham pertinência  com a apuração do ato delituoso e sua autoria.

Nesse contexto, infelizmente, algumas providências relevantes deixam de ser observadas pelo Encarregado de IPM, dentre as quais destacamos: a formulação de quesitos em perícia pelo indiciado (art. 316 do CPPM).

De notar-se que o CPPM, no supracitado artigo, consagrou, de forma direta,o contraditório em IPM (  na legislação processual penal comum o contraditório é diferido na prova pericial realizada em inquérito).

Em outra vereda, algumas medidas cautelares consagradas pela lei processual castrense, costumeiramente, passam ao largo do conhecimento da Polícia Judiciária Militar, a saber:  aplicação provisória de medidas de segurança- art.272 do CPPM e . representação pelo  Encarregado de inquérito quanto ao sequestro dos bens adquiridos com os proventos da infração penal (art.201 do CPPM).

Ainda no tocante à prova pericial, impende anotar que inexiste nas Forças Armadas um Centro de Perícia Técnica dotado de equipamentos modernos, sendo ainda notória a insuficiência, nas Organizações Militares, de um quadro de peritos especializados. As aludidas deficiências tendem a inviabilizar a busca da verdade real, uma vez que, em alguns casos, a perícia especializada se constitui no único meio possível para desvendar a autoria e a materialidade de crimes que deixam vestígios.

Nesse sentido, adite-se que, nos dias atuais, torna-se imprescindível que tanto as Forças Armadas, como a Polícia Civil e a Polícia Federal estabeleçam convênios com outras instituições técnicas, a fim de suprir suas necessidades de pesquisa, quer para ações preventivas, quer para atuações repressivas. À guisa de exemplo, destaca-se convênio firmado entre a Polícia Federal e a UNICAMP com o escopo de apurar as áreas de consumo de drogas no Distrito Federal. Neste sentido, vale observar que, após  o consumo de cocaína, o organismo humano expele,pela urina, um composto chamado benzoilecgomina.

Assim, nos dias 16/17 de março e 1º/2 de julho de 2010, a Polícia Federal de Brasília e a UNICAMP coletaram amostras na estações de tratamento de 70% dos esgotos do Distrito Federal.

Como resultado da pequisa, apurou-se, aproximadamente, o consumo anual de duas toneladas de cocaína pura em toda a capital federal, ensejando, por parte da Polícia Federal e da Civil, um direcionamento investigativo em algumas cidades satélites da capital da República (obs: só é possível essa pesquisa nos locais onde há esgotos tratados).

Por fim, outro obstáculo marcante na busca da verdade, quase sempre, presente na fase pré-processual, consiste na ausência do emprego de metodologia de investigação por parte dos Encarregados de IPM. Tal fato decorre da falta do ensinamento dessa disciplina nos cursos de formação  profissional dos oficiais das Forças Armadas, nos mesmos moldes das que são ministradas nas Academias de Polícia Civil e Polícia Federal. Dessa forma, fica, quase sempre, fadada ao insucesso a descoberta da autoria e da materialidade dos crimes militares que  exijam uma técnica investigativa mais apurada, como exemplo, os cometidos por organizações criminosas (traficantes de drogas) que, por vezes, ingressam em Organizações Militares com objetivo de roubar armamentos e equipamentos militares.


3- A verdade na fase processual.

Iniciada a instrução probatória, compete ao Juiz criminal (na Justiça Comum) e aos Conselhos de Justiça (Conselho Especial e Conselho Permanente), na Justiça Militar, a admissão, produção e valoração das provas apresentadas pelas partes (Ministério Público e defesa).

Dessa forma, os Juízes criminais e os Conselhos de Justiça (um juiz-auditor e quatro oficiais das Forças Armadas) exercem um papel preponderante na busca da verdade, uma vez que, de forma direta, possuem a incumbência de procederem à colheita das provas orais: interrogatório, oitiva de ofendido e oitiva de testemunhas (princípio da oralidade).

Embora, à primeira vista, pareça simples perscrutar a verdade em relação ao  supracitado meio de obtenção de prova, só haverá êxito em tal mister caso haja prudência, humildade, objetividade, boa memória e alguns conhecimentos de psicologia por parte do Juiz.

Nesse sentido, é de prestimosa valia a adoção, no processo penal, de técnicas preconizadas pela entrevista, aplicadas à atividade de inteligência. Essas técnicas consistem na eliminação de ruídos que possam vir a obstruir a comunicação entre os interlocutores, por ocasião de uma entrevista. No caso do juiz, esses obstáculos podem ocorrer durante as audiências, oportunidade em que são ouvidos: réus /testemunhas /ofendidos (princípio da oralidade). Com efeito, o fato de alguém sentar-se à frente de um juiz para prestar depoimento, seja em que condição for, gera, normalmente, apreensão para a maioria dos cidadãos. A tensão é redobrada quando ocorre esse fato diante de um Conselho de Justiça (na presença de cinco juízes).

A situação tende a agravar-se, contudo, quando o juiz, ao invés de empregar uma linguagem simples e acessível ao homem comum, utiliza-se de expressões eruditas ou abusa do "juridiquês" no ato de inquirir. Esse proceder, por parte do magistrado, fulmina a comunicação bloqueando, por completo, a espontaneidade e, de consequente, a possível boa vontade em colaborar do inquirido (réu, testemunha ou ofendido). Esse ruído de comunicação pode pulverizar a coleta de um relevante elemento de prova (testemunhal ou confissão do réu), prejudicando assim o alcance da verdade.

A técnica de entrevista adota os seguintes princípios básicos que, se utilizados pelos juízes, em muito auxiliariam na busca da verdade. São eles: ouvir com atenção, perguntar corretamente e registrar adequadamente.

Ouvir com atenção é ser paciente e tolerante. Perguntar e registrar corretamente significa, para a citada técnica, além da utilização do vocabulário acessível ao inquirido, não interromper o raciocínio do entrevistado quando este se dispõe a falar. Sugere-se, assim, que, num exercício de memorização, o juiz consigne  as respostas dos inquiridos somente ao final das inquirições e não, como geralmente acontece, após a cada pergunta.

Outro dado que merece atenção por parte do magistrado, no ato de inquirir, se relaciona com as idiossincrasias inerentes aos seres humanos, notadamente às diferenças entre o homem e a mulher.

A esse respeito, merece ser trazido à colação as seguintes diferenças traçadas pelo psicólogo Mário Fedeli(Temperamento, personalidade- ponto de vista médico e psicológico. São Paulo: Paulus,1997).

Homem- Mais racional (esquece mais rápido);

Fornece um quadro mais unitário do que viu.

Mulher-   Influenciada e condicionada pela emoção (guarda mais na memória);

Mais impulsiva (mais instável);

  Inteligência mais analítica (capta particularidade, mas tem dificuldade de    ordenar o que captou);

Em crimes passionais em geral, sexuais e contra honra, descreve melhor os fatos.

Importa, ainda, com referência a prova testemunhal, salientar que esta modalidade de  prova se constitui no meio mais utilizado no processo penal (comum ou militar).

Assim sendo, o cuidado deve ser redobrado durante as oitivas das testemunhas,   notadamente em razão das possíveis contaminações que podem advir de uma informação enganosa, conforme ensina DI GESU, verbis:

Uma informação enganosa tem o potencial de criar uma memória falsa, afetando nossa recordação, e isso pode ocorrer até mesmo quando somos interrogados sugestivamente ou quando lemos e assistimos a diversas notícias sobre fato ou evento de que tenhamos participado ou experimentado.

Segundo a autora, professora de psicanálise e direito, a experiência de LOFTUS, abaixo colecionada, retrata bem a afirmativa supra:

-        Foi realizada  uma pesquisa com um grupo de 24 indivíduos cujas idades variavam de 16 a 53 anos, com objetivo de tentarem recordar eventos da infância que teriam sidos contados aos pesquisadores pelos pais, irmãos e parentes do citado grupo.

Os pesquisadores construíram um falso evento sobre um passeio ao shopping, onde o participante teria ficado perdido durante períodos prolongados, incluindo choro, medo e o auxílio de uma mulher idosa. Ao final da experiência, 29% dos participantes lembraram-se tanto parcialmente como totalmente do falso evento construído para eles.

Quando trata da fragilidade da prova testemunhal, LEVENE, R. , em seu livro El Delito de falso testimonio, relata que existem inúmeros fatores que influenciam na verdade da prova testemunhal, a saber: sensação transmitida do fato pelos órgãos dos sentidos; percepção dos fatos (situação climática do local, luminosidade e fatores orgânicos da testemunha, por exemplo); fixação na memória do fato presenciado ( atenção e o tempo decorrido) e exteriorização do fato no momento de relatá-lo, verbalmente ou por escrito.            Prosseguindo em suas asseverações,  Levene anota que a reprodução de um fato memorizado se reduz com o passar dos tempos nas seguintes proporções: 1,5 % após cinco dias do fato; 4,3% depois de 14 dias e 6% passados 21 dias. O que se dirá dessa lembrança passados alguns anos?

Não é por outra razão que já se disse que a prova testemunhal é como água das correntezas : quanto mais se afasta de suas fontes, mas se altera.

De fato, como é sabido e consabido, via de regra, é longo o lapso temporal decorrido entre o momento do fato presenciado  pela testemunha e o momento em que esta presta depoimento em juízo.            

Consoante ainda à prova oral, distorções podem ocorrer, até mesmo, no momento em que os depoimentos (réu, testemunhas e ofendidos) são reduzidos a termo pelo escrivão, após serem ditados pelo juiz. 

Com efeito, a mudança na pontuação de uma frase pode mudar todo o seu sentido.

À guisa de ilustração, segue o seguinte registro feito pela Associação Brasileira de Imprensa, em data comemorativa de seus cem anos:

Um homem rico estava muito mal, agonizando. Pediu papel e caneta e escreveu assim:

Deixo meus bens a minha irmã não a meu sobrinho jamais será paga a conta do padeiro    nada dou aos pobres.

Morreu antes de fazer a pontuação. A quem deixava a fortuna? Eram quatro concorrentes.

O sobrinho fez a seguinte pontuação:

Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho. Jamais será paga a conta do padeiro. Nada dou aos pobres.

A irmã chegou em seguida e pontuou assim:

Deixo meus bens à minha irmã. Não a meu sobrinho. Jamais será paga a conta do padeiro. Nada dou aos pobres.

O padeiro pediu cópia do original e pontuou:

Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do padeiro. Nada dou aos pobres.

Os descamisados da cidade pontuaram:

Deixo meus bens à minha irmã? Não! A meu sobrinho? Jamais! Será paga a conta do padeiro? Nada! Dou aos pobres.

Os referidos equívocos são susceptíveis de acontecer também  nas “degravações” decorrentes de quebras de sigilos telefônicos.


4 – Conclusão.

A verdade alcançável já é consolidada no Direito Criminal brasileiro em alguns institutos, como o da autoria colateral incerta, no qual, não obstante apurada a autoria e a materialidade de um fato criminoso, há o reconhecimento pela doutrina e pela jurisprudência, quanto a impossibilidade de ser alcançada a verdade real. Refiro-me ao caso em que dois agentes, um sem o conhecimento do desígnio do outro, postam-se em espreita a espera de um desafeto comum aos dois. Em determinado momento, ambos atiram contra a vítima, vindo a matá-la  (não foi possível colher os projéteis deflagrados pelas armas, e a perícia constatou que somente um projetil causou a morte da vítima).

Dessa maneira, os dois agentes responderão por tentativa de homicídio embora a vítima tenha morrido, uma vez que, na busca da verdade, só foi possível a descoberta da verdade alcançável, vale dizer, a de que os dois agentes, pelo menos, atentaram contra a vida de uma pessoa.

Há, assim, um consenso doutrinário e jurisprudencial de que a verdade no processo penal, circunscreve-se aos fatos colacionados aos autos pelos sujeitos processuais.

Não é exagero, dessa forma,  afirmar que, na maioria das vezes, vigora no processo penal brasileiro o mesmo princípio da incerteza aplicado à mecânica quântica, formulado por Heisenberg, o qual  estabelece que não é possível ter simultaneamente a certeza da posição e da velocidade de uma partícula e que, quanto maior for a precisão com que se conhece uma delas, menor será a precisão com que se pode conhecer a outra.

Assim, o processo penal (comum ou militar), conquanto seja o principal instrumento para solucionar conflitos de interesses, não dispõe de mecanismos precisos para trazer à tona a verdade real sobre um fato criminoso, impossibilitando, na maioria das vezes, a justa aplicação jurisdicional penal.


Referências:

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Brasília, Diário Oficial [da República Federativa do Brasil] de 5 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituição/constitui%C3A7ao.htm>.  Acesso em 16.set.2011.

BRASIL. Decreto-Lei 1.001, de 21 de outubro de 1969. Código Penal Militar. Brasília, Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1969. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1001.htm>, Acesso em: 14 set.2011.

BRASIL.Decreto-Lei 1.002, de 21 de outubro de 1969. Código de Processo Penal Militar. Brasília, Diário Oficial da União de 21 de outubro de 1969. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del1002.htm>. Acesso em: 10 set. 2011.

DI GESU, Cristina. Prova Penal e Falsas Memórias. Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2010.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y Razón, Teoria del Garantismo Penal. Tradução espanhola de Perfecto ANDRÉS Ibanez et AL. 3 ed. Madrid:Editorial Trotta, 1998.

LEVENE, Ricardo. El delito de falso testimonio, 2ª ed. Buenos Aires: Aveledo-Perrot, 1962

LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal e sua Conformidade com a Constituição Federal: Saraiva, 9ª edição, 2012 .

MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A Lógica das Provas em Matéria Criminal.: Bookseller, 1996, vol. 1.

ROSEGNO, André. Prova no Processo Penal Comparado: Saraiva, 2011. 




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