Breves reflexões sobre a eutanásia


PorThais Silveira- Postado em 03 maio 2012

Autores: 
Felipe Quintella Machado De Carvalho
André Frederico de Sena Horta

Breves reflexões sobre a eutanásia

Felipe Quintella Machado De Carvalho, André Frederico de Sena Horta

Resumo: A eutanásia é um dos tema que merece maior atenção dos estudiosos do biodireito, sobretudo no que concerne às implicações penais. Há que se sopesar, à luz da dignidade humana, o exercício dos direitos à liberdade e à vida com o interesse do Estado na criminalização de certas condutas.

Palavras-chave: Biodireito. Eutanásia. Crime. Consentimento. Liberdade. Vida. Dor.

Sumário: Introdução; 1. Os princípios norteadores do biodireito; 2. Modalidades de eutanásia; 3. Eutanásia indireta; 4. Eutanásia passiva; 5. Eutanásia ativa; Conclusão; Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Pensar em biodireito importa pensar em vida, morte e liberdade. E, ao se pensar em vida, morte e liberdade, não há como escapar da discussão acerca da eutanásia.

Desde já é preciso esclarecer que se entende eutanásia, para fins deste artigo, de maneira ampla, como todas as formas de encurtamento da vida. Não haverá preocupação, portanto, em distingui-la da ortotanásia ou da distanásia, pois não se considera fértil, dentro do escopo deste trabalho, uma discussão que gire em torno de questões terminológicas. A preocupação é com as repercussões jurídicas das variadas formas de eutanásia.

Pois bem. Falar em eutanásia é falar em dor.

Nas palavras da poetisa Emily Dickinson, a “dor tem um elemento de vazio/ não se consegue lembrar/ quando começou, ou se houve/ um dia em que não existiu”.[1]

Há um discurso, infelizmente frequente, que busca legitimar o dogma de que a vida seria absolutamente inviolável, sendo possível evoluir e aprender com a dor. Segundo essa teoria, a experiência da dor deve ser vivida, assim como as demais. Contudo, é possível identificar nesse dogma um caráter pretensiosamente humanitário, e que, no fundo, traduz o que há de mais cruel no ser humano.

Considerando-se que o tema é debatido calorosamente não apenas por juristas como também por teólogos, filósofos e médicos, são oportunas as palavras de Cesare Beccaria no prefácio que acrescentou ao seu Dos delitos e das penas, após ter recebido críticas ácidas dos nobres e religiosos por suas idéias humanistas e contramajoritárias:

“Quem (...) desejar honrar-me com críticas, não comece, portanto, supondo em mim a existência de princípios destruidores da virtude ou da religião (...); ao invés de achar-me incrédulo ou sedicioso, procure ver, em mim, um mau lógico ou um político despreparado; não trema a cada proposta que apóie os interesses da humanidade; convença-me da inutilidade ou do dano político que poderia resultar dos meus princípios; mostre-me a vantagem das práticas recebidas.”[2]

1. OS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO BIODIREITO

O Direito não pode desprezar as demandas que surgem no seio da Medicina, vendando-se para a realidade como se bastasse em si mesmo. Urge reconhecer a transdisciplinaridade entre esses dois ramos do saber humano, podendo-se definir, simploriamente, Biodireito como o ramo jurídico que incorpora os princípios bioéticos. Nas palavras de Maria Elisa Villas-Bôas, o Biodireito é “a face jurídica que espelha a reflexão bioética”.[3]   

VILLAS-BÔAS faz alusão a quatro princípios da Bioética[4], cuja principal corrente é o principialismo, o qual ganhou vida com a obra “Principles of Biomedical Ethics”, de Tom Beauchamp e James Childress. Cuida-se dos princípios da beneficência, da não-maleficência, da autonomia e da justiça, considerados fundamentais na abordagem médica de um paciente e muito úteis para a resolução de casos concretos, inclusive a eutanásia. Do mesmo modo como os demais princípios jurídicos, a aplicação de um não exclui a do outro, devendo haver uma ponderação entre eles para que se determine qual a melhor solução[5].

O princípio da beneficência determina que o médico deve sempre buscar promover o bem do paciente. A regra para a identificação de qual é esse bem é o de promoção da cura e da vida, e não da manutenção de um mal.

Algumas questões polêmicas podem surgir, tal qual o impedimento de um suicida que se encontrava profundamente angustiado, sendo-lhe mais penoso viver, e que estava à beira de se jogar de um prédio.

O princípio da não-maleficência tem raízes no juramento de Hipócrates de “primum non nocere”, isto é, antes de tudo não se deve causar mal. Quando não for mais possível levar benefício para o paciente, normalmente terminal, o médico não deve empreender novas tentativas de cura que lhe causem dores.

O princípio da autonomia privilegia a vontade do paciente, corolário de sua própria dignidade. É importante que as decisões tomadas pelo paciente sejam informadas e conscientes, mas isso não deixa de ser um consectário lógico da vontade, uma vez que não se pode querer algo que não se conhece.

Finalmente, o princípio da justiça determina uma igualdade – entendida como uma moeda cujos lados são a isonomia e a diferença – na distribuição dos recursos de saúde, assegurando que as pessoas tenham acesso aos meios que lhe possibilitarão a cura ou, ao menos, a diminuição da dor.     

2. MODALIDADES DE EUTANÁSIA

Antes de proceder à análise da adequabilidade do tratamento da eutanásia no sistema jurídico pátrio, convém tecer algumas considerações na tentativa de tornar um pouco mais claras as turvas águas que cobrem esse polêmico tema.

Na definição de Claus Roxin, eutanásia é a “ajuda prestada a uma pessoa gravemente doente, a seu pedido ou pelo menos em consideração à sua vontade presumida, no intuito de lhe possibilitar uma morte compatível com a sua concepção de dignidade humana”.[6]

Alguns autores[7] fazem a distinção entre eutanásia terapêutica, eliminadora e econômica. Afastamos, de plano, as duas últimas hipóteses, evidentemente atentatórias à dignidade humana. A eutanásia eliminadora, também chamada de selecionadora, muito utilizada na Alemanha nazista, visa a “melhorar” a espécie humana erradicando todos aqueles que portam distúrbios biológicos ou sociológicos indesejáveis. É a conhecida “eliminação das vidas indignas de viver”. A econômica busca disponibilizar os recursos destinados a pacientes terminais, tidos como irrecuperáveis, para outros enfermos, privilegiando-se os interesses coletivos em detrimento de um interesse particular (como se o interesse da sociedade prescindisse do interesse de proteger os seus membros individualmente, sendo paradoxal dizer que o corpo social é mais importante do que o indivíduo; violando-se o indivíduo, viola-se a sociedade).

Tanto a eutanásia eliminadora quanto a econômica estão fora do que aqui se entende por eutanásia. Neste trabalho, cogita-se apenas da eutanásia terapêutica.

Pois bem. Claus Roxin[8] distingue quatro espécies de eutanásia: a “pura”, a indireta, a passiva e a ativa. A eutanásia “pura” ocorre quando se ministra ao paciente meios que irão apenas reduzir a dor, sem que dos anestésicos decorra qualquer risco de morte. Na indireta, diminui-se a dor com determinadas substâncias que criam um risco à vida do paciente, isto é, a morte ou o encurtamento da vida podem figurar como um dos efeitos colaterais. Já a eutanásia passiva se configura quando o paciente é mantido vivo por aparelhos, quaisquer que sejam, sem os quais a morte seria um fim inexorável, e tal tratamento é suspendido, sobrevindo-lhe, portanto, o fatal destino. Finalmente, a eutanásia ativa é a morte que ocorre atendendo-se à vontade de quem se encontra nos últimos estágios da vida, e engloba o auxílio ao suicídio.

Quanto à primeira hipótese, dificilmente se poderá vislumbrar alguma ilicitude ou desaprovação social na conduta daquele que diminui a dor alheia. Em seara penal a punição é devida apenas nos casos em que alguém se recusa a aliviar o sofrimento do paciente, conduta que facilmente se amolda no tipo do art. 135 do Código Penal ou mesmo no do art. 129, se quem omite a ajuda for o garantidor. Da mesma forma, se os anestésicos forem ministrados contra a vontade do paciente não se estará diante de uma conduta lícita, eis que se trata de uma intervenção não autorizada no organismo do paciente.

3. EUTANÁSIA INDIRETA

A eutanásia indireta, por sua vez, traz à tona discussões um pouco mais complicadas de serem resolvidas e, por isso, merece maior ponderação. A medicina não dispõe de todos os meios de cura, tanto que a obrigação do médico não é de resultado, mas de meio. Cuida-se de situações, portanto, em que não é mais possível romper o nexo entre a doença e a morte. Ocorre que durante o lapso temporal entre uma e outra o paciente sofre de intensas dores. Para reduzi-las, ministram-se a ele substâncias que, porém, criam um risco – desnecessário distinguir o risco concreto do abstrato – de morte ou encurtamento da vida. Nesses casos é possível se vislumbrar um dolo eventual de homicídio, o que, com os demais elementos do tipo do art. 121, tornariam punível a conduta do sujeito que fornece ao paciente a substância que cria o risco. Quem se posiciona nesse sentido defende, portanto, que haveria homicídio, tentado ou consumado, conforme a concretização do risco.

Neste trabalho, rejeita-se esse posicionamento. Diferentemente do que se passa na eutanásia “pura”, não há um dever de aliviar a dor como disposto na norma do art. 135 ou pela norma do art. 13, § 2º, c/c a do art. 129, ou mesmo, quem sabe, com a do art. 121. Isso porque o risco de morte produzido colateralmente pela substância permite a imputação do resultado ou da tentativa ao seu fornecedor. Porém, não se pode desconsiderar que a importância da diminuição da dor pode ser tão grande que o possível encurtamento da vida passa a não ter significado, assim como não se pode interpretar a legislação tomando-se por base artigos isolados.

É de se indagar: é possível, no ordenamento pátrio, encontrar uma brecha pela qual se poderia sustentar a impunibilidade da conduta consubstanciada na eutanásia indireta?

Parece que sim, por meio da ideia de consentimento do ofendido, tomado aqui não como aquele que opera dentro do tipo penal, configurando-o (aborto consentido pela gestante, por exemplo), mas sim do que afasta a tipicidade da conduta.

Nessa tentativa, rejeita-se a tradicional corrente que vislumbra no consentimento do ofendido a natureza jurídica, em alguns casos, de causa de justificação supralegal. O que se adota, neste estudo, é a doutrina elaborada por Zaffaroni, que, afora os casos em que o consentimento constitui elementar típica, ora entende afastar a tipicidade objetiva sistemática, ora a tipicidade objetiva conglobante. Em suas palavras, a “eficácia eximente da aquiescência tem base constitucional: não há lesividade quando uma conduta não afeta, por dano ou por perigo, o bem jurídico, nem quando o sujeito consente certas condutas que podem ser perigosas ou lesivas”.[9]

Assim, se o paciente exteriorizar o seu consentimento sério de que deseja receber os medicamentos que lhe aliviarão a dor – com a concriação do risco de morte – e a pessoa que os ministra tiver a finalidade de proceder conforme tal consentimento, não haveria conduta típica. Respeita-se, assim, a autonomia da vontade do paciente concomitantemente ao princípio da não-maleficência.

Além disso, para se imputar objetivamente um resultado a alguém como obra sua é preciso que o agente tenha dominabilidade da ação,[10] principalmente em se tratando de crimes dolosos. No caso da pessoa que ministra as substâncias ao paciente é difícil argumentar que ela teria a dominabilidade do fato.

Ocorre que, com a não-configuração do dolo, poder-se-ia pensar em conduta culposa. Afastá-la também não constitui tarefa simples, diante da convergência entre a conduta querida e a praticada, além da falta de imprudência ou de negligência.

4. EUTANÁSIA PASSIVA

No caso da eutanásia passiva, a morte é um resultado certo e decorrente da suspensão de um tratamento sem o qual a vida não seria possível. Se o agente, por exemplo, desligar os aparelhos que mantêm a respiração do paciente, não haverá criação de risco de morte, pois essa sobrevirá como decorrência direta e certa da falta daquele elemento responsável pela vida.

Não se pode confundir esta modalidade de eutanásia com a ativa. O fato de a suspensão do tratamento depender de uma ação como, por exemplo, apertar o botão de liga/desliga da aparelhagem, não caracteriza a modalidade ativa, porquanto não é dessa ação que a morte decorre, mas, sim, da omissão de um tratamento.

Por um lado, há o dever de prolongar a vida (princípio da beneficência). Mas é preciso, antes, fazer a seguinte pergunta: do prolongamento da agonia se pode retirar algum sentido para o paciente? Frise-se que, nesta modalidade de eutanásia, não se trata mais tão-somente de aliviar a dor física, mas também, possivelmente, de um tipo de sofrimento moral, que pode surgir da completa falta de esperança e do profundo pesar de se levar uma vida dependente de uma máquina.

Na Alemanha, a prática da eutanásia passiva é permitida, em razão do princípio, também aplicável aos demais casos, de que impera a vontade do paciente, não havendo um direito de titularidade do médico de lhe impor um tratamento ou cirurgia não desejado. Segundo Claus Roxin, essa “solução é deduzida, corretamente, da autonomia da personalidade do paciente, que pode decidir a respeito do alcance e da duração de seu tratamento”.[11] O Tribunal alemão abre, porém, uma exceção, relativa aos pacientes suicidas, os quais, se chegarem vivos ao hospital, após frustrado o derradeiro ato, devem se submeter aos tratamentos indicados, mesmo que tenham expressamente se manifestado anteriormente por escrito em sentido contrário. Tal entendimento, contudo, é bastante criticado pela doutrina.

Há uma questão que merece ser ponderada, principalmente em sede de suspensão de tratamento (não se exclui, por essa razão, que o que segue seja eventualmente adequado para as outras modalidades de eutanásia): trata-se do consentimento presumido.

Há situações em que o paciente está impossibilitado de se manifestar, seja porque sofreu uma lesão muito grave que lhe tirou a consciência indefinidamente, seja porque uma doença ou síndrome o acomete a ponto de lhe retirar a capacidade de se auto-determinar, como acontece na síndrome da descerebração. Em se tratando de eutanásia, com criação de um perigo de morte ou mesmo com a certeza de que um determinado procedimento a produzirá, todo cuidado é pouco, pois a disposição da própria vida cabe ao paciente, e não às demais pessoas que, a princípio, não têm condições de decidir por ela.

A regra da presunção do consentimento é a de que o paciente deseja prolongar a própria vida, sendo elidida, apenas, em casos excepcionais, de modo a não se cair na hipótese – jurídica e eticamente combatida por nós – de eutanásia econômica, uma vez que o se deve levar em consideração para a presunção do consentimento favorável à eutanásia é, apenas, a ponderação acerca da continuidade de um tratamento que pode, ou não, prolongar ou intensificar os sofrimentos do paciente, e não aspectos de ordem econômica.

Quando for possível chegar à conclusão medicamente bem fundamentada de que o paciente nunca retornará à consciência, pois ele apenas se mantém vivo por aparelhos e em estado absolutamente vegetativo, acredita-se ser possível a presunção pela exceção, isto é, pela realização da eutanásia, valorizando-se o princípio da não-maleficência, eis que nenhum bem poderia surgir do prolongamento sem sentido de uma vida fadada não apenas à morte, como também às trevas da inconsciência. Para torná-la segura, seria recomendável que uma equipe de médicos realizasse o diagnóstico e o Poder Judiciário fosse ativado para um Juiz se manifestar sobre o caso, concedendo a permissão, fundamentando a sua decisão no laudo médico, obviamente.

Se houver qualquer dúvida quanto à possibilidade de o paciente retomar a consciência, a presunção do consentimento não pode fugir à regra, suspendendo-se quaisquer procedimentos que pudessem vir a colocar em risco a vida do paciente.

Uma solução interessante consiste na determinação, por escrito e regularmente atualizada, de uma pessoa que, baseada em previsões, oferece diretrizes de como deseja ser tratada caso venha a se encontrar em determinado quadro clínico e incapacitada de manifestar a sua vontade.

5. EUTANÁSIA ATIVA

Por fim, a última hipótese de eutanásia, a ativa, possivelmente a mais controvertida, consiste em o agente matar, comissivamente, uma pessoa que deseja profundamente morrer, mas não dispõe da coragem ou da capacidade necessária para, por exemplo, injetar em si, com as suas próprias mãos, um veneno, recorrendo, então, a outrem, que satisfaz a sua vontade. O auxílio ao suicídio que, em nosso direito, está tipificado no art. 122 do CP, também pode ser visto sob a ótica da eutanásia ativa.

Na Alemanha, excepcionalmente, não se pune o auxílio à morte. Há um tipo específico cuja rubrica é “homicídio a pedido” (§216): “(1) Se o autor foi determinado a realizar o homicídio por pedido expresso e sério de quem foi morto, será imposta pena privativa de liberdade de seis meses a cinco anos. (2) A tentativa é punível”. Segundo parte da doutrina,[12] o critério para diferenciar o auxílio, impunível, do homicídio a pedido é a dominabilidade do ato final que causa a morte. Assim, uma pessoa que prepara uma injeção letal e coloca a seringa nas mãos do suicida, deixando que este aplique a dose em si próprio, não teve o controle do ato final, pois toda a responsabilidade era de quem retirou a própria vida. A participação do terceiro é impune. No Brasil, contudo, a solução seria diferente, nos termos do art. 122 do CP.

Caso diverso é o da pessoa que deseja profundamente morrer e não tem coragem de dar um tiro na cabeça, pedindo a um amigo íntimo que o faça. Como disparar o revólver foi o último ato, quem tinha a dominabilidade era o amigo, que responderia por homicídio a pedido. No Direito brasileiro sua conduta se enquadraria, na melhor das hipóteses, no § 1º do art. 121.

Ainda sobre o suicídio, podemos levantar a hipótese de a conduta do terceiro auxiliador ser quase que contemporânea à do suicida. Roxin[13] narra o caso de um médico, idoso e doente, que decidiu, de modo responsável, injetar em si um veneno. Temendo não ser suficiente e visando garantir a morte, pediu ajuda a seu sobrinho. No dia combinado, o médico se auto-envenenou e adormeceu, e o sobrinho, buscando assegurar que a vontade final de seu tio se realizasse, aplicou nova dose. O médico veio a falecer duas horas depois. Descoberto o evento, realizou-se perícia e ficou constatado que, não fosse o reforço do sobrinho, o médico teria morrido não duas, mas uma hora depois do auto-envenenamento. O Tribunal Federal condenou o sobrinho por homicídio a pedido ao fundamento de que apesar de a morte de seu tio ter sido inexorável, o sobrinho retirou-lhe uma hora de vida. A doutrina minoritária, incluindo Roxin, criticou a decisão do Tribunal Federal argumentando que a conduta do sobrinho não alterou o resultado final, tendo apenas tido a força de causar pequenas modificações no curso causal.

Na Holanda, um texto legislativo de 2001, que entrou em vigor em 2002, legalizou a eutanásia ativa. Conta Walburg de Jong, da “Associação para a eutanásia voluntária”, que “discutiu-se o assunto por 30 anos antes da lei ser aprovada. A discussão teve início com os cidadãos e acabou na política”.

Os médicos holandeses refletiram sobre o fato de que manter, a qualquer custo, a vida de pessoas que sofrem intensamente seria, na prática, torturar quem mais necessita de morrer rapidamente e sem dor. A partir de então eles passaram a contar com o apoio do Poder Judiciário, que tolerava a prática. Entretanto, por carecer de uma regulamentação expressa, as portas à clandestinidade estavam abertas, dando lugar a abusos, sendo relatados, inclusive, casos de eutanásia realizada sem o consentimento do paciente.[14]

A partir de 2002, a nova lei trouxe alterações ao Código Penal holandês.[15] Alguns requisitos devem, porém, ser satisfeitos. O médico deve: (1) ter chegado ao convencimento de que o pedido do paciente é voluntário e pensado; (2) ter chegado ao convencimento de que o padecimento do paciente é insuportável e sem esperanças de melhora; (3) ter informado ao paciente a situação em que se encontra e as suas perspectivas de futuro; (4) ter chegado ao convencimento junto ao paciente de que não existe nenhuma outra solução razoável para a situação em que este se encontra; (5) ter consultado ao menos um médico independente que tenha visto o paciente e tenha emitido o seu parecer por escrito sobre o cumprimento dos requisitos de cuidado acima delimitados; (6) ter levado ao fim a morte do paciente ou ao auxílio ao suicídio com o máximo cuidado e esmero profissional possíveis.

Essa iniciativa holandesa denota que a eutanásia ativa deve, no mínimo, ser regulamentada em lei, pois não se pode mais sustentar, mesmo entre os que defendem a punibilidade irrestrita da eutanásia ativa, que as peculiaridades do tema não exigem uma diferenciação do homicídio privilegiado, que é, por enquanto, a melhor descrição típica do CP brasileiro para que o Direito Penal não gere mais violência do que a eutanásia em si – desde que, como se sustenta, valorize-se a vontade do paciente e se entenda a eutanásia como um meio válido para uma morte consentânea com o conceito de dignidade desse paciente.

Cabe, aqui, invocar a lição de Zaffaroni sobre o tema do consentimento do ofendido, a disponibilidade de um direito pelo seu titular e o poder punitivo (com a ressalva, porém, de que o trecho a seguir não se encontra inserido em um contexto em que o autor defende a eutanásia ativa):

“A intervenção punitiva alcança um grau intolerável de irracionalidade quando pretende que o sujeito use o bem jurídico apenas de certo modo; esta pretensão é própria de um direito que não respeita a autonomia moral da pessoa e pretende submeter o humano a metas transcendentes de sua humanidade, ou seja, idolátricas (...). A pretensa tutela de um bem jurídico que se arrogue predominar sobre a vontade de seu titular constitui um pretexto para criminalizar um pragma não conflitivo.”[16]

CONCLUSÃO

Por tudo o que foi exposto, conclui-se que a eutanásia deve ser a ultima ratio em termos de medidas a serem adotadas pelas pessoas que estejam sofrendo, física ou moralmente.

Uma reforma da lei penal, não obstante, seria bem-vinda, desde que o legislador não pecasse pelo rigor ou por uma redação lacônica que mais traria prejuízos do que vantagens, que é o que se almeja alcançar por meio da flexibilização da suposta indisponibilidade do direito à vida e do maior grau de autonomia do paciente.

O correto dimensionamento da realidade nos tipos penais pelo legislador, ainda que a missão não seja fácil, já seria um importante passo para um Direito Penal brasileiro adequado às modificações sociais – que foram muitas desde a década de 1940 – e aos princípios da bioética, reconhecendo-se a sua força jurídica.

Concomitantemente a tais medidas, é aconselhável o desenvolvimento de programas de assessoramento e acompanhamento às pessoas atormentadas, não só com o objetivo de, quem sabe, desmotivá-las de sua decisão pela morte, como também de diminuição do sofrimento, possibilitando maior contato humano, pois, não raro, isso é o essencial.

Ressalte-se, porém, que no Brasil as desigualdades sociais são severas e as condições dos hospitais públicos, que atendem ou deveriam atender de forma eficaz a grande maioria da população, são deploráveis.  Nesse contexto, a eutanásia poderia ser uma ponte dourada entre a vida e a morte para diversas pessoas que não têm os seus direitos fundamentais assegurados na prática, em um fenômeno que por alguns é denominado de “mistanásia”, que significa morte infeliz, miserável, “transcendendo o contexto médico-hospitalar para atingir aqueles que nem sequer chegam a ter um atendimento médico adequado, por carência social”,[17] tornando-se, para essas pessoas, uma opção preferencial diante da inapetência do Estado em dirimir questões de saúde pública e sócio-econômicas, o que é inaceitável.

Quanto ao direito à vida, inviolável nos termos do caput do art. 5º da CR, valem as palavras de Alexandre de Moraes, segundo o qual cabe ao “Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência”.[18] A partir da redefinição do direito à vida seria, então, possível sustentar que ele engloba a dignidade, permitindo que, diante de um conflito entre os direitos à vida e à liberdade, caberia ao titular de ambos optar por aquilo que considerasse mais adequado à sua noção de dignidade, ainda que envolvendo a disposição de sua vida.

Prolongamentos artificiais e desnecessários da vida e paternalismo médico são fatos que devem ser encarados à luz desta nova definição, bem como a eutanásia deve ser contraposta à morte lenta e cruel, a qual não pode ser acobertada pela Constituição da República.

Como disse Miguel Reale, a morte faz parte da “esfera do que é mais íntimo e intocável na pessoa humana (...) como elemento essencial de sua vida, e, mais ainda, de sua hora de morrer”.[19] Ao que se poderia acrescentar – sem dor, sem sofrimento. Em paz.

 

Referências bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução J. Cretella Jr. E Agnes Cretella. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2010.
REALE, Miguel. O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992.
ROXIN, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.
VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
ZAFFARONI, Raúl Eugénio; BATISTA, Nilo. Direito Penal brasileiro. V. 2. Teoria do delito: introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
http://www.imagina.org/archivos/archivos_vi/Termin_vida.pdf
 
Notas:
[1] No original: “Pain has an element of blank/ It cannot recollect/ When it began, or if there were/ A day when it was not”.
[2] Beccaria, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução J. Cretella Jr. e Agnes Cretella. 5. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. P. 26.
[3] Villas-Bôas, Maria Elisa. Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos na disciplina jurídico-penal do final de vida. Rio de Janeiro: Forense, 2005. P. 115.
[4] Villas-Bôas, Maria Elisa. Op. cit. P. 115-124.
[5] Alexy, Robert. Teoria de Los Derechos Fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1997.
[6] Roxin, Claus. Estudos de Direito Penal. Tradução de Luís Greco. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. P. 189.
[7] Asúa, Luis Jimenez de. Apud Villas-Bôas, Maria Elisa. Op. Cit. P. 87.
[8] Roxin, Claus. Op. Cit. P. 189 e ss.
[9] Zaffaroni, Raúl Eugénio; Batista, Nilo. Direito Penal brasileiro. V. 2. Teoria do delito: introdução histórica e metodológica, ação e tipicidade. 2. Ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010. P. 237.
[10] Zaffaroni, Raúl Eugénio; Batista, Nilo. Op. Cit. P. 238.
[11] Roxin, Claus. Op. Cit. P. 179.
[12] Cf. Roxin, Claus. Op cit., p. 221-224.
[13] Cf. Roxin, Claus. Op cit., p. 223-224.
[14] “La cuestión era porqué torturarlos, si justamente lo que ellos necesitaban era morir rápidamente y sin dolor. A partir de este razonamiento los médicos holandeses empezaron a usar inyecciones letales, contando con el apoyo del poder judicial que cautelosamente toleró esta práctica. Así, datos oficiales dan cuenta que ya en 1986 los médicos practicaron la eutanasia en número de pacientes que osciló entre los 5000 a 20.000 sobre un total de 120.000 muertes. Sin embargo, al ser esta una práctica clandestina, en definitiva, realizada a la sombra de la ley, dio lugar a abusos. Algunos médicos denunciaron casos de eutanasia activa ajena a la voluntad de los pacientes sobre los que se practicaba, por lo menos en ocho hospitales”. Ver http://www.gracielamedina.com/assets/Uploads/derecho-comparado/comentario-ley-holandesa-de-eutanasia.pdf. Acessado em 04/09/2011.
[15] Para uma leitura completa: http://www.imagina.org/archivos/archivos_vi/Termin_vida.pdf
[16] Zaffaroni, Raúl Eugénio; Batista, Nilo. Op. Cit. P. 237.
[17] Villas-Bôas, Maria Elisa. Op. Cit. P. 75.
[18] Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2010. P. 36
[19] Reale, Miguel. O Direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1992. P. 283.

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