Breves comentários a respeito da natureza jurídica da regra do ônus da prova


Porwilliammoura- Postado em 09 maio 2012

Autores: 
MARTINEZ, Anna Luiza Buchalla

Breves comentários a respeito da natureza jurídica da regra do ônus da prova

Qual a natureza jurídica da regra da inversão do ônus da prova, abordando duas correntes doutrinárias? É uma regra de julgamento ou matéria de instrução?

1.            Introdução

O presente estudo tem por objetivo definir a natureza jurídica da regra contida no art. 333 do Código de Processo Civil, que dispõe a respeito do ônus da prova. Trata-se de regra de julgamento ou matéria de instrução?

Essa questão se torna mais relevante diante da possibilidade de inversão do ônus da prova, prevista no art. 6º, VIII, do Código de Defesa do Consumidor. Neste contexto, deveria o juiz informar às partes que irá inverter o ônus da prova no início da instrução, sob pena de violação do princípio da ampla defesa ou basta no momento da prolação da sentença, ao verificar que o fato não foi devidamente provado, bem como que estão presentes os requisitos autorizadores da inversão do ônus, julgar em desfavor daquele que possuía o ônus de prová-lo e não se desincumbiu.

A seguir, verificaremos as correntes doutrinárias e jurisprudenciais que se formaram sobre o tema para ao final concluir qual seria, em nosso entender, a natureza jurídica da regra do ônus da prova.


2.            Ônus da Prova

Antes de enfrentarmos a questão acima proposta é importante conceituar “ônus da prova”.

O ônus da prova é o encargo imposto ao litigante de provar os fatos relevantes para a causa com a finalidade de obter uma posição de vantagem na relação processual.

A própria lei indica quem deve realizar a produção da prova, orientando as partes a respeito de seus encargos. No entanto, essa regra se dirige principalmente ao juiz nos casos em que o fato litigioso não restar suficientemente provado, já que o nosso sistema não permite o “non liquet”. Nesta situação, portanto, o resultado do processo será desfavorável para a parte que possuía o ônus de provar o fato relevante para o deslinde da causa e não se desincumbiu.


3.            O ônus da prova constitui regra de julgamento

Para os defensores dessa corrente, a regra do ônus da prova somente será utilizada se, ao prolatar a sentença, o julgador constatar que o fato litigioso não foi devidamente provado. Nesta hipótese, deverá ser averiguado a quem incumbia a produção dessa prova e o julgamento será desfavorável para a parte que não se desincumbiu o ônus probatório.

Nesse sentido é o posicionamento de Fredie Didier Jr., Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira:

A expressão ‘ônus da prova’ sintetiza o problema de se saber quem responderá pela ausência de prova de determinado fato. Não se trata de regras que distribuem tarefas processuais (regra de conduta); as regras de ônus da prova ajudam o magistrado na hora de decidir, quando não houver prova do fato que tem de ser examinado (regra de julgamento). Trata-se, pois, de regra de julgamento e de aplicação subsidiária, porquanto somente incidam se não houver prova do fato probando, que se reputa como não ocorrido[1]. (grifado no original)

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery também adotam o referido entendimento:

Não há momento para o juiz fixar o ônus da prova e sua inversão (CDC 6º VIII), porque não se trata de regra de procedimento. O ônus da prova é regra de juízo, isto é, de julgamento, cabendo ao juiz, quando da prolação da sentença, proferir julgamento contrário àquele que tinha o ônus da prova e dele não se desincumbiu. O sistema não determina quem deve fazer a prova, mas sim quem assume o risco caso não se produza[2].

Cabe destacar que José Carlos Barbosa Moreira[3], Cecília Matos[4], Fabio Tabosa[5] e Kazuo Watanabe[6] pertencem a essa corrente de pensamento.

Importante colacionar, por fim, a seguinte manifestação jurisprudencial:

(...) A regra do ônus da prova (art. 333, caput, do CPC) só tem pertinência, como regra de juízo (= regra de decidir), que é, aos casos em que, encerrada a instrução, fique ao julgador dúvida intransponível acerca da existência de fato constitutivo, ou liberatório (...)[7].


4.            O ônus da prova constitui matéria de instrução

A indagação a respeito da natureza da regra do ônus da prova ganha maior relevância nas hipóteses em que é possível a inversão do ônus, conforme verificamos no art. 6º, inc. VIII, do Código de Defesa do Consumidor.

Nesses casos, parte da doutrina defende que, por não ser automática a inversão, inclusive porque para que ela ocorra devem estar presentes ou a verossimilhança da alegação ou a hipossuficiência da parte, deveria haver o reconhecimento expresso do magistrado da presença de um desses requisitos, decidindo sobre a inversão do ônus na fase processual posterior à contestação até o despacho saneador, para que as partes não fossem surpreendidas com a inversão, o que violaria o princípio constitucional da ampla defesa.

Visando ilustrar esse posicionamento, trazemos à lume o pensamento de Cassio Scarpinella Bueno:

A melhor interpretação para o dispositivo é a de que a inversão nele admitida- e a orientação vale para quaisquer outras hipóteses de inversão legal do ônus da prova- deve ser sempre previamente comunicada às partes para que elas possam, adequadamente, desincumbir-se de seu ônus em atenção ao dispositivo legal. Embora o tema renda ensejo a acesa polêmica em sede de doutrina e de jurisprudência, o entendimento aqui sustentado parece se afinar melhor ao ‘modelo constitucional do processo civil’, em especial no que diz respeito ao ‘princípio do contraditório’ (...) que, em última anáise, impõe a criação de amplas oportunidades de participação das partes ao longo do processo[8] (grifado no original).

Como há muita controvérsia a respeito da natureza jurídica da regra do ônus da prova, consultando a jurisprudência, também encontramos decisões nesse sentido, conforme se verifica do aresto abaixo transcrito:

O momento mais adequado para a decisão sobre a inversão do ônus da prova é aquele posterior à contestação e na qual se prepara a fase instrutória, pois só depois de estabelecido o contraditório é que se faz possível delimitar os fatos controvertidos e a natureza de cada um, de modo a possibilitar uma justa distribuição do ônus da prova. Demais disso, cabe ao juiz da causa zelar para que a inversão não prejudique o constitucional direito de defesa da parte demandada, favorecendo injustamente o autor que porventura desfira alegações a esmo, sem a preocupação de ter de comprová-las[9].


5.            Conclusão

Entendemos que norma contida no art. 333 do Código de Processo Civil traduz uma regra de julgamento que será utilizada apenas quando o juiz não conseguir formar seu convencimento em razão das falhas nos elementos probatórios trazidos ao processo. Neste contexto, a demanda será julgada de forma desfavorável para a parte que possuía o ônus de realizar a prova e não se desincumbiu.

Não há dúvidas de que as partes que compõem a relação processual pretendem vencer a demanda. Por essa razão, devem realizar todos os tipos de provas lícitas para demonstrar uma situação jurídica favorável, afastando a pretensão da parte contrária.

Partindo desse pressuposto, não merece prosperar o entendimento de que as partes serão surpreendidas ao final da demanda se o magistrado inverter o ônus da prova, não constituindo essa forma de atuação jurisdicional ofensa ao princípio da ampla defesa, inclusive porque da mesma forma que existe a previsão  no Código de Processo Civil distribuindo o ônus da prova, há expressa previsão no Código de Defesa do Consumidor a respeito da possibilidade de inversão do ônus da prova se o juiz considerar como verossímeis as alegações do consumidor ou se ele for hipossuficiente.


6.            Referências Bibliográficas

BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Julgamento e ônus da prova. Temas de direito processual: segunda série. 2ªed. São Paulo: Saraiva, 1988.

DIDIER JR, Fredie; BRAGA, Paulo Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil, vol 2. 5ª ed. Salvador: JusPodIVm, 2010.

GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil brasileiro, vol 2. 20ªed. São Paulo: Saraiva, 2009.

GRINOVER, Ada Pellegrini; BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos e; FINK, Daniel Roberto et al. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto. 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

MATOS, Cecilia. O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor. Justitia, São Paulo, ano 57, v.170, p. 94-102, abr./jun. 1995.

MARCATO, Antonio Carlos (coord.). Código de processo civil interpretado. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2005.

NEGRÃO, Theotonio; GOUVÊA, José Roberto F.; BONDIOLI, Luis Guilherme A. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 43ªed. São Paulo: Saraiva, 2011.

NERY JUNIOR, Nelson; ANDRADE NERY, Rosa Maria. Código de processo civil comentado e legislação extravagante. 11ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

RIZZATTO NUNES, Luiz Antônio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

SCARPINELLA BUENO, Cassio. Curso sistematizado de direito processual civil: procedimento comum: ordinário e sumário, 2: tomo I. 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010


Notas

[1] Curso de Direito Processual Civil, p.78.

[2] Código de processo civil comentado e legislação extravagante, p. 635.

[3] Julgamento e ônus da prova, in Temas de direito processual: segunda série, p. 75/76

[4] O ônus da prova no Código de Defesa do Consumidor, p. 99/100

[5] Código de processo civil interpretado, p. 1044.

[6] Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto, p. 814/816.

[7] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça, Ap.198.945-1/7, 2ª C., rel. Des. Cezar Peluso, j. 21.12.93. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 83, n.706, p. 67-68, agosto 1994. Ver nesse mesmo sentido: BRASIL. STJ, REsp 949.000/ES, 3ª T., rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJe 23/06/2008; BRASIL. STJ, AgRg nos Edcl no Ag 977795/PR, 3ª T., rel. Min. Sidnei Beneti, DJe 13/10/2008. Disponíveis em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em 15/04/2012.

[8]. Curso sistematizado de direto processual civil, p. 275/276. Ver, nesse sentido; RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor, p. 153/156.

[9][9] SÃO PAULO. 2º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo (extinto). AgIn 881705-0/7, 2ª T., rel. Des. Gilberto dos Santos, j. 07.03.2005. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 94, n. 837, p. 226-230, julho 1995. Ver nesse sentido: BRASIL. STJ. REsp 881651/BA, 4ª T., rel Min. Hélio Quaglia Barbosa, DJ 21/05/2007, p. 592; BRASIL. STJ. REsp 720930/RS, 4ª T., rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJe 09/11/2009; e BRASIL. STJ. AgRg no REsp 1095663/RJ, 4ª T., rel. Min. João Otávio Noronha, DJe 17/08/2009. Disponíveis em: <http://www.stj.jus.br>. Acesso em 15/04/2012.