Breve análise das implicações da Lei nº 11.232/2005 na classificação das sentenças de mérito


PorJeison- Postado em 29 outubro 2012

Autores: 
SANTOS, Paulo Antonio dos.

 

1. A função jurisdicional do Estado e a atividade do juiz

O convívio em sociedade é inerente à natureza humana. Desde que o homo sapiens surgiu na Terra ele procurou agregar-se aos seus pares, de modo a melhor poder enfrentar a luta pela sobrevivência.

Entretanto, a vivência em comum traz também, inevitavelmente, o conflito.

Por outro lado, se se deixasse a resolução desses conflitos para que os particulares a fizessem por conta própria, é óbvio que ter-se-ia o caos, pois o mais forte (seja física, intelectual ou economicamente) sempre conseguiria se impor, ainda que não tivesse razão.

Destarte, para evitar essa situação de flagrante injustiça, o Estado criou o Direito e avocou a missão de dirimir os litígios, aplicando a lei ao caso concreto.

Essa função estatal, chamada jurisdição, é atribuição do Poder Judiciário, cujos representantes são os juízes.

O magistrado, no desempenho de sua função jurisdicional, pratica os atos arrolados no art. 162 do Código de Processo Civil: sentenças, decisões interlocutórias e despachos.

Os despachos são simples atos de movimentação do processo. As decisões interlocutórias resolvem incidentes processuais. As sentenças são os atos mais importantes, justamente por encerar o procedimento ou, principalmente, resolver o mérito da causa (LOPES, 2006, p. 142). Nesse sentido, a sentença já foi chamada em doutrina de “ato jurisdicional magno” (BELLINETTI, apud CÂMARA, 2006, p. 439).

2. A sentença – conceito

O § 1º do art. 162 do Código de Processo Civil, em sua redação original precedente à modificação trazida pela Lei nº 11.232/05, definia a sentença como “o ato pelo qual o juiz põe termo ao processo, decidindo ou não o mérito da causa”.

Por outro lado, a definição legal não teve muita aceitação. Para Alexandre Freitas Câmara, v. g., a sentença é o “provimento jurisdicional que põe termo ao ofício de julgar do magistrado, resolvendo ou não o objeto do processo” (CÂMARA, 2006, p. 440). Antes mesmo da Lei nº 11.232/05 o autor salientava que não seguia a definição do Código por entendê-la falha, uma vez que a sentença não põe termo ao processo, o qual só se extingue quando da formação da coisa julgada (CÂMARA, 2001, p. 212). 

Assim, o dispositivo legal foi alvo de severas críticas, as quais foram sintetizadas de forma clara e didática por Luiz Rodrigues Wambier:

Afirmou-se, por exemplo, que ele antes apontava um efeito do que apresentava o conceito de sentença. Ponderava-se também que não é a sentença que encerra o processo, visto que, havendo recurso, o ato último receberá a denominação de acórdão (art. 163). Dever-se-ia, pelo menos, ter dito: ato que encerra o processo ou procedimento em primeiro grau de jurisdição (WAMBIER, 2006, p. 170).

Destarte, boa parte da doutrina entendia a sentença como sendo o ato que encerra o processo em primeiro grau de jurisdição.[1] Entretanto, conforme o mesmo autor, definir o referido ato dessa forma traz à tona um novo problema:

Dizer-se que a sentença é o ato do juiz que põe fim ao procedimento em primeiro grau de jurisdição é uma tautologia, ou seja, um raciocínio circular. Pergunta-se: qual é o ato do juiz que põe fim ao procedimento em primeiro grau de jurisdição? Responde-se: a sentença. Por outro lado, ao se perguntar o que é uma sentença, tem de responder-se que é o ato do juiz que põe fim ao procedimento em primeiro grau de jurisdição (WAMBIER, 2006, p. 479).

Acrescente-se ainda que “sempre houve casos em que a sentença é executada no próprio processo em que foi proferida [...]. Então, se a sentença é executada no naquele mesmo processo, isso significa que ela não pôs fim ao processo. Quando muito, ela encerrou a fase cognitiva do processo, em primeiro grau (WAMBIER, 2006, p. 170)”.

Assim, o legislador preferiu alterar o conceito de sentença, sendo que a nova redação do dispositivo dada pela Lei nº 11.232/05 preferiu não fazer alusão expressa ao mérito, dizendo, simplesmente, que “a sentença é o ato do juiz que implica algumas das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta Lei”.

O art. 267 trata da extinção do processo sem resolução do mérito e o art. 269 trata das hipóteses de julgamento do mérito, sem, entretanto, fazer alusão à extinção do processo.

Carreira Alvim analisa que a reforma redacional pretendeu adequar o conceito de sentença com a nova sistemática da execução, que passa a ser feita nos próprios autos do processo de conhecimento, através de simples cumprimento da sentença (ALVIM,  2006, p. 23).

Por outro lado, também antes da nova lei, Nelton Agnaldo Moraes dos Santos salientava que, apesar das críticas merecidas pelo texto, não se podia negar seu valor prático, uma vez que o enunciado legal tinha o objetivo de facilitar a determinação do recurso cabível e, nesse sentido, vinha cumprindo satisfatoriamente sua missão (MARCATO; coord., 2005, p. 461-462).[2]

De qualquer forma, a partir da Lei nº11.232/05, a sentença deixa de ser identificada exclusivamente pela sua aptidão de por fim ao processo (WAMBIER, 2006, p. 171) e, cremos, a definição dada por Câmara, mencionada em linhas anteriores, é cientificamente adequada.

3. A classificação das sentenças de mérito

A doutrina tradicional classifica as sentenças segundo seu conteúdo, que pode ser meramente declaratóriocondenatório ou constitutivo.

Nesse sentido, as sentenças declaratórias simplesmente declaram a existência, a inexistência ou o modo de ser de uma relação ou situação jurídica, ou a autenticidade ou falsidade de um documento, conforme o art. 4º do Código de Processo Civil (são exemplos as sentenças das ações de usucapião, nulidade de ato jurídico, investigação de paternidade etc.).

De início, é de se salientar que todas as sentenças de mérito contem conteúdo declaratório, que consiste no reconhecimento da existência ou inexistência do direito afirmado pelo autor. Entretanto, as espécies seguintes não se limitam à declaração do direito, contendo também um plus que as diferenciam (Cf. CÂMARA, 2006, p. 450).

As sentenças constitutivas implicam uma alteração, uma “novidade” no mundo jurídico, uma vez que constituem, desconstituem ou alteram uma situação jurídica (exempli gratia, as sentenças nas ações de divórcio, anulação de casamento e interdição).

As sentenças condenatórias, por fim, condenam o réu a uma prestação (é o caso da condenação a indenização por perdas e danos).

Essa classificação tem aceitação universal. O critério utilizado para que se classifiquem as sentenças desse modo é referente ao tipo de tutela jurisdicional que é veiculada pelo pedido. Então, o pedido que houver, no bojo da ação, é que ira determinar que tipo de ação se trata, e de que tipo de sentença se tratará (WAMBIER, 2006, p. 489).

Por outro lado, a doutrina mais recente manifesta a tendência de acatar a classificação quinária sugerida por Pontes de Miranda, incluindo, ao lado das três espécies supracitadas, as sentenças executivas lato sensu e as mandamentais.

Antes da Lei 11.232/05, quando um pedido condenatório era julgado procedente, havia a necessidade de um processo autônomo de execução para a efetivação do direito reconhecido na sentença. No escólio de Athos Gusmão Carneiro, o credor insatisfeito era obrigado a bater duas vezes às portas da justiça para cobrar um só e mesmo crédito. Entretanto, existiam poucos casos em que a sentença condenatória poderia ser cumprida de imediato, citando-se, como exemplo, as ações possessórias e o mandado de segurança. Tal situação deu margem ao surgimento da classificação quíntupla das sentenças (ROESLER, 2007, passim).

As sentenças executivas lato sensu seriam aquelas cuja executividade está presente em si mesma, estando nelas intrínseca a aptidão para levar a satisfação do credor. Podem ser efetivadas imediatamente, sem a instauração de nova relação processual, porque elas autorizam a prática de medidas executivas ainda dentro do mesmo processo em que são proferidas. Em outras palavras, o processo de execução autônomo e ex intervalo é dispensável (ex: sentença de despejo e de reintegração de posse).

Já as sentenças mandamentais consubstanciam-se num ato de autoridade estatal, contendo uma ordem do juiz para que se faça ou se deixe de fazer alguma coisa, cujo descumprimento por parte do destinatário acarreta as sanções (inclusive de natureza penal) previstas em lei (sendo assim, seria mandamental a sentença do mandado de segurança, ou a que determina a cessação de ruídos incômodos). As sentenças mandamentais também dispensariam posterior processo de execução porque a providência realiza-se com a simples expedição da ordem judicial.[3]

Nos tempos que antecediam a Lei 11.232/05 as sentenças executivas lato sensu distinguiam-se das condenatórias porque nestas existia apenas uma autorização para executar um crédito, sendo indispensável a propositura de nova demanda.

Já antes da alteração legislativa sub examine Alexandre Freitas Câmara dizia não assistir a razão àqueles que optavam por classificar as sentenças em cinco espécies. O autor ponderava que o conceito de “sentenças condenatórias” seria abrangente o suficiente para abarcar as executivas lato sensu e as mandamentais.

“Parece-nos”, diz ele “que a existência de sentenças executivas lato sensu não é defensável. Isto porque estas sentenças, assim como as condenatórias, impõem ao demandado o cumprimento de uma prestação” (CÂMARA, 2006, p. 460).

Com relação às sentenças mandamentais, o mesmo diz que o fato de ela “conter uma ordem dirigida ao demandado não a desnatura como sentença condenatória [...]”, pois “a sentença condenatória contém um comando dirigido ao demandado, para que este cumpra uma prestação de dar, fazer ou não fazer, da mesma forma que nas sentenças ‘mandamentais’” (CÂMARA, 2006, p. 462).

Com efeito, se levarmos em consideração as definições de “sentenças condenatórias” dadas por Falazzari e Eduardo Couture, citados pelo próprio Câmara, temos a tendência de concordar com este.

O jurista uruguaio afirmou que “sentenças condenatórias são todas as que impõem o cumprimento de uma prestação, seja em sentido positivo (dar, fazer), seja em sentido negativo (não fazer, abster-se)”. Sendo assim, a condenação consistiria “em impor ao obrigado o cumprimento da prestação, em determinar-lhe que se abstenha de efetuar os atos que lhe são proibidos, ou em obriga-lo a desfazer o que já tenha sido efetuado” (COUTURE, apud CÂMARA, 2006, p. 454).

Ora, o conteúdo das sentenças executivas lato sensu e das mandamentais permite que as encaixemos perfeitamente na definição acima. As duas sentenças apontadas em linhas anteriores como exemplos de mandamentais (a sentença do mandado de segurança ou a que determina a cessação de ruídos incômodos) não têm exatamente esse conteúdo?

Já para o italiano a sentença condenatória é uma ordem dirigida para o juiz ao sucumbente, para que este dê ou faça algo a favor do adversário, comando este que se emite quando a situação fática enquadra-se num comando legal que não foi voluntariamente observado. O ato do juiz cria uma nova situação substancial, idêntica à da lei, mas, como revela um ato de vontade Estatal para aquele caso concreto, possui o atributo de permitir a instauração da execução forçada (FALAZZARI, apud CÂMARA, 2006, p. 454).

De outro tanto, Marcelo Lima Guerra e Alexandre Freitas Câmara sustentavam que uma mera diferença procedimental seria irrelevante para a classificação das sentenças, pois a dispensa ou não da instauração de um processo autônomo para a prestação da tutela executiva era fruto de simples opção de política legislativa. O primeiro acrescentava ainda que a diferenciação das sentenças em razão apenas do modo de prestação da tutela executiva consistiria numa “multiplicação inútil de entidades” (GUERRA, apud ROESLER, 2007; CÂMARA, 2006, p. 460).

Agora, com a instituição, pela Lex já citada, da fase do cumprimento da sentença (arts. 475-I a 475-R), as críticas à classificação sugerida por Pontes de Miranda se multiplicam.

O único traço que estabelecia uma diferença entre as sentenças condenatórias e as executivas latosensu e mandamentais era o fato de aquelas exigirem efetivação através de um processo de execução posterior e autônomo. Entretanto, com as recentes modificações operadas na execução da sentença, em nenhuma hipótese seu cumprimento ensejará um processo autônomo de execução.

Assim, por outra interpretação, Ada Pellegrini Grinover conclui que, face às modificações ocasionadas pela Lei nº 11.232/2005, seria a sentença condenatória chamada “pura” que teria desaparecido da referida classificação, entendida essa como aquelas que demandavam um processo de execução distinto e autônomo, porquanto todas as sentenças que reconheçam uma obrigação a ser cumprida pelo réu comportarão efetivação no bojo dos mesmos autos do processo de conhecimento (ROESLER, 2007).

Pelo exposto, no que pese o respeito que temos doutrinadores que preferem classificar as sentenças em cinco espécies, parece não haver óbice para incluirmos as mandamentais e as executivas lato sensu no conceito genérico de sentença condenatória.

REFERÊNCIAS 

CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil. 5. ed. rev. e atual. Vol 1. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2001. 3 v.

______,______. Lições de Direito Processual Civil. 15. ed. rev. e atual. Vol 1. Rio de Janeiro: Lumen Júris, 2006. 556 p. 3 v.

CARREIRA ALVIM, José Eduardo. Alterações do Código de Processo Civil. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.

LOPES, João Batista. Curso de Direito Processual Civil: processo de conhecimento. Vol 1. São Paulo: Atlas, 2006. 3 v.

MARCATO, Antonio Carlos (coordenador). Código de Processo Civil Interpretado. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2005. 2838 p.

NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 7. ed. São Paulo, RT, 2003.

ROESLER, Átila Da Rold. A classificação das ações face à recente reforma processual civil . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1371, 3 abr. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9685>. Acesso em: 27 jul. 2007 .

WAMBIER, Luiz Rodrigues (coord). Curso Avançado de Processo Civil: Teoria geral do processo e processo de conhecimento. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

NOTAS

[1] Cf., por exemplo, NERY JR., Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil Comentado7. ed. São Paulo, RT, 2003; e MARQUES, Frederico. Manual de Direito Processual Civil.  13. ed. Vol 3. São Paulo: Saraiva, 1990.

[2] Na seqüência,o autor dizia:

“É preciso reconhecer que as dificuldades do operador do direito quase nunca recaem sobre a compreensão propriamente dita da definição legal de sentença. Os problemas surgem quando não se consegue perceber, com nitidez, se o ato concreto do juiz está a extinguir, ou não, o processo.

Para resolver essas questões, é preciso retomar o conceito de processo (ver comentário ao art. 154). Como já se afirmou, o processo resulta do somatório de um procedimento com uma relação processual. Assim, ter-se-á uma sentença quando o ato do juiz produzir, simultaneamente, a extinção do procedimento e da relação processual.

Uma sentença que, por exemplo, acolha ou rejeite o pedido formulado pelo autor, tem a aptidão de extinguir o processo, porquanto coloca termo ao procedimento e à relação processual (MARCATO; coord., 2005, p. 461-462, grifo do autor)”.

[3] João Batista Lopes diferenciava essas duas espécies pela circunstância de a efetivação da primeira exigir o concurso de auxiliares do juízo, como na efetivação da penhora pelo oficial de justiça; ao passo que nas segundas o comando só pode ser cumprido (ou descumprido) pelo próprio destinatário. Por exemplo, apenas o réu pode acatar (ou não) a ordem para fazer cessar ruídos incômodos (LOPES, 2006, p. 144-145).

 
 
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