Brevíssimas considerações sobre a possibilidade de cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa


Pormarina.cordeiro- Postado em 12 março 2012

Autores: 
ALVES, Leonardo Barreto Moreira

É longa e antiga a discussão na doutrina menorista acerca da possibilidade do Ministério Público aplicar medida sócio-educativa no momento do oferecimento da remissão pré-processual ao adolescente infrator.

"Justiça atrasada não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta". Ruy Barbosa

 


SUMÁRIO: Introdução. 1 O instituto da remissão na Lei n. 8.069/90: conceito e espécies. 2. Argumentos doutrinários contrários à cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa. 3. A possibilidade de cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa. Conclusão. Bibliografia.


 

INTRODUÇÃO

            É longa e antiga a discussão na doutrina menorista acerca da possibilidade do Ministério Público aplicar medida sócio-educativa no momento do oferecimento da remissão pré-processual ao adolescente infrator.

            Pelo que se vê na prática processual cotidiana, pode-se afirmar, em apertada síntese, que existem duas correntes doutrinárias a respeito do tema: a primeira defende a impossibilidade desta cumulação, com fundamento na Súmula n. 108 do STJ e nos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa; a segunda refuta os argumentos da corrente anterior e ainda alega que o artigo 127 da Lei n. 8.069/90 permite expressamente tal cumulação.

            Neste trabalho, pretende-se perfilhar a segunda corrente doutrinária, essencialmente porque os argumentos expendidos pela primeira corrente não são sólidos o suficiente para impedir a cumulação da remissão pré-processual com a medida sócio-educativa, ao passo que o posicionamento desta segunda corrente encontra amplo respaldo na legislação infraconstitucional e na jurisprudência consagrada dos principais Tribunais do país, a exemplo do STF e do STJ, além do que tal posicionamento permite a promoção de uma efetiva celeridade processual.

            Aliás, a respeito da celeridade processual, é sempre importante rememorar a consagrada lição do inesquecível Ruy Barbosa, segundo o qual "Justiça atrasada não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta".

 

 Sendo assim, este artigo aventura-se em dar uma pequena contribuição a um debate já tão acalorado, na expectativa de que a tese da possibilidade de cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa saia vencedora e, com isso, a justiça no caso concreto seja obtida com efetiva celeridade.


 

1. O INSTITUTO DA REMISSÃO NA LEI N. 8.069/90: CONCEITO E ESPÉCIES

            A palavra remissão é tida pela norma culta como sinônimo de clemência, perdão. Como instituto jurídico menorista, a remissão vem especificamente prevista no Capítulo V do Título II da Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), nos artigos 126 a 128, e pode ser entendida como forma de paralisar ou encerrar a apuração de ato infracional sem que haja uma sentença de mérito absolutória ou condenatória.

            Através da remissão, portanto, suspende-se ou interrompe-se o iter da persecução do ato delitivo praticado por adolescente.

            Nas palavras do saudoso Professor Júlio Fabbrini Mirabete, através da remissão "procura-se, em casos especiais, evitar ou atenuar os efeitos negativos da instauração ou continuação do procedimento na administração da Justiça de Menores, como, p. ex., o estigma da sentença. No confronto dos interesses sociais e individuais tutelados pelas normas do Estatuto (interessa à sociedade defender-se de atos infracionais, ainda que praticados por adolescentes, mas também lhe interessa proteger integralmente o adolescente, ainda que infrator), o instituto da remissão, tal como o princípio da oportunidade do processo penal, é forma de evitar a instauração do procedimento, suspende-lo ou extingui-lo (...)". (in "Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais", 6a ed. rev. e atual. pelo novo Código Civil, Ed. Malheiros, coordenador Munir Cury: São Paulo, 2003, p. 425).

            Por não permitir a discussão do mérito em feitos envolvendo a apuração de ato infracional, a remissão "não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes" (art. 127 do ECA).

            Para o oferecimento da remissão, a autoridade competente deverá sempre observar os requisitos exigidos pelo art. 126, caput, parte final, do ECA, quais sejam, as circunstâncias e conseqüências do fato, o contexto social, a personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.

            O ECA prevê duas espécies distintas de remissão. A primeira delas vem estampada no seu artigo 126, caput, e é aquela oferecida pelo Ministério Público antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, tendo como efeito prático a exclusão do processo. A essa primeira espécie, para fins deste trabalho, dá-se o nome de remissão pré-processual.

            A remissão pré-processual, segundo lição do Professor Mirabete, "justifica-se ‘quando o interesse de defesa social assume valor inferior àquele representado pelo custo, viabilidade e eficácia do processo’ (Paulo Afonso Garrido de Paula, ‘Direitos de infrator exigem respeito’, O Estado de São Paulo de 24.4.91, p. 14). Reserva-se, assim, às hipóteses em que a infração não tem caráter grave, quando o menor não apresenta antecedentes e quando a família, a escola ou outras instituições de controle social não institucional já tiverem reagido de forma adequada e construtiva ou seja provável que venham reagir desse modo (...)". (ob. cit.).

            A segunda modalidade vem prevista no art. 126, parágrafo único, ECA, e é aquela oferecida pela autoridade judiciária quando o procedimento judicial já foi iniciado, tendo como efeito prático a suspensão ou extinção do processo. A essa modalidade, também para os fins deste trabalho, dá-se o nome de remissão processual.

            Quanto à possibilidade de cumulação da remissão processual com medida sócio-educativa não há qualquer embate relevante na doutrina, estando a matéria absolutamente pacificada, até mesmo porque o art. 127 do ECA é de clareza solar ao dispor que a remissão pode "incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação".

            Dúvidas remanescem apenas no que diz respeito à cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa, ou em outras palavras, discute-se se o art. 127 do ECA é também aplicável à remissão pré-processual.

            Inúmeros são os argumentos contrários e em prol da aplicação do referido dispositivo legal à remissão pré-processual. Por questões didáticas, passa-se a analisa-los detidamente em capítulos separados.


 

2. ARGUMENTOS DOUTRINÁRIOS CONTRÁRIOS À CUMULAÇÃO DA REMISSÃO PRÉ-PROCESSUAL COM MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA

            A respeitável corrente doutrinária que sustenta a impossibilidade de cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa fundamenta o seu entendimento no conteúdo da Súmula n. 108 do STJ, bem como nos princípios constitucionais do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa.

            Nos termos do verbete da Súmula n. 108 do STJ, "A aplicação de medidas sócio-educativas ao adolescente, pela prática de ato infracional, é de competência exclusiva do juiz".

            Ora, pondera esta corrente, se somente a autoridade judiciária pode aplicar medida sócio-educativa, a remissão pré-processual, por ser oferecida pelo Ministério Público, não poderia ser cumulada com medida desta natureza.

            Reforça tal argumento o fato de que o art. 148, II, ECA, assevera ser a Justiça da Infância e da Juventude aquela competente para conceder a remissão, como forma de suspensão ou extinção do processo.

            Sustenta ainda esta corrente que a imposição de medida sócio-educativa ao menor infrator deveria respeitar o devido processo legal, no sentido de que somente seria possível a aplicação de tal medida ao final do procedimento previsto nos artigos 182 e seguintes do ECA, o qual tem início com a representação encaminhada pelo Ministério Público à autoridade judiciária, prossegue com a realização de audiências de apresentação do menor e de instrução e julgamento, bem como a abertura de vista às partes para apresentação de alegações finais, e encerra-se com a prolação da sentença (in casu) condenatória.

            Os doutrinadores adeptos desta corrente também afirmam que a imposição de medida sócio-educativa sem o cumprimento do iter acima narrado violaria os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, pois o adolescente sofreria gravame em sua situação pessoal sem que tivesse oportunidade de efetivamente se defender.

            Apesar do brilhantismo dos argumentos construídos por esta corrente doutrinária, verificar-se-á no tópico a seguir que eles não são suficientes para impedir a cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa.


 

3. A POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DA REMISSÃO PRÉ-PROCESSUAL COM MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA

            Após praticar as providências aludidas no art. 179 do ECA como forma de investigação do cometimento de ato infracional, o Ministério Público, segundo o art. 180 do Estatuto, passa a ter a possibilidade de adotar três comportamentos distintos, quais sejam, a promoção do arquivamento dos autos (inciso I), a concessão da remissão (inciso II) e a representação à autoridade judiciária para aplicação de medida sócio-educativa (inciso III).

            Voltando-se o olhar apenas à segunda hipótese, constata-se que o art. 126, caput, do Estatuto da Criança e do Adolescente possibilita que o órgão ministerial, antes de iniciado o procedimento judicial para apuração do ato infracional, conceda a remissão como forma de exclusão do processo (remissão pré-processual), desde que obviamente sejam observados os critérios norteadores contidos no referido dispositivo legal.

            Avançando na análise sobre o tema, verifica-se que o art. 127 do ECA, sem fazer qualquer distinção entre remissão pré-processual e remissão processual, assevera expressamente que a remissão (gênero) pode incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação.

            Pela leitura da redação do art. 127 do ECA, portanto, já é possível perceber que inexiste vedação legal à cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa; a única restrição imposta por lei é a que diz respeito à proibição de oferecimento da remissão pré-processual em conjunto com a aplicação das medidas que impliquem em privação da liberdade do menor (semi-liberdade e internação).

            Como é cediço, é regra de Hermenêutica Jurídica que toda exceção deve vir sempre prevista expressamente em lei; como o art. 127 do ECA não fez qualquer restrição à remissão pré-processual, mesmo deixando claro no artigo imediatamente anterior que existem dois tipos de remissão (a pré-processual e a processual), conclui-se que a própria letra da lei (art. 127 do ECA) permite a cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa (exceto a colocação em regime de semi-liberdade e a internação).

            É este o entendimento consagrado no Superior Tribunal de Justiça, conforme se vê do esclarecedor aresto a seguir transcrito, in verbis:




            "RECURSO ESPECIAL – PENAL – LEI Nº 8.069/90 – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – ECA – REMISSÃO OFERECIDA PELO MEMBRO DO MINISTÉRIO PÚBLICO – HOMOLOGAÇÃO EM JUÍZO – CUMULAÇÃO DE MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE ADVERTÊNCIA – POSSIBILIDADE – PROVIMENTO – 1. Esta Corte Federal Superior firmou já entendimento no sentido de que, por força mesmo da letra da Lei, pode o magistrado, ao homologar a remissão concedida pelo órgão ministerial, impor outra medida sócio-educativa prevista na Lei nº 8.069/90, excetuadas aquelas que impliquem semiliberdade ou internação do menor infrator. Precedentes. 2. Recurso Especial provido". (STJ – RESP 200201045409 – (457684 SP) – 6ª T. – Rel. Min. Hamilton Carvalhido – DJU 13.12.2004 – p. 00465).

            Embora desde já esteja cristalina a possibilidade de cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa em meio aberto em virtude de autorização legal expressa nesse sentido, consideremos, por amor ao debate e apenas a título de argumentação, que a interpretação gramatical é sempre aquela mais pobre, simplória por demais para resolver uma questão tão polêmica, e avancemos ainda mais na discussão do tema, analisando com vagar os argumentos apresentados no item 2 deste trabalho.

            De logo, com base nos mesmos argumentos acima expendidos, constata-se que a multi-citada cumulação não ofende de modo algum o princípio constitucional do devido processo legal.

            Ora, conforme já exaustivamente visto neste trabalho, é a própria legislação menorista sobre o processo infracional, nos artigos 126, caput, e 127, do ECA, que autoriza expressamente a cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa de regime aberto.

            Sendo assim, observa-se que a imposição de medida sócio-educativa de regime aberto na fase da remissão pré-processual obedece rigorosamente o devido processo legal. Somente haveria ofensa a este princípio constitucional se o Ministério Público, junto com a remissão pré-processual, oferecesse a aplicação de medida sócio-educativa de regime fechado (semi-liberdade e internação), pois aí sim haveria vedação legal expressa.

            Seguindo esta mesma linha de intelecção já decidiu a jurisprudência nacional, in verbis:




            "HABEAS CORPUS – MENINA MENOR INFRATORA QUE MERECEU SER SUBMETIDA ÀS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS DE ADVERTÊNCIA E DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE EM REMISSÃO SEM O DEVIDO PROCESSO LEGAL. INEXISTÊNCIA DE CONSTRANGIMENTO ILEGAL. ORDEM QUE SE DENEGA. Não se apresenta inconstitucional e abusiva a imposição de medidas socioeducativas de advertência e prestação de serviços à comunidade em remissão, se tais medidas estão expressamente contempladas nos artigos 126 e 127 do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. A ressalva se prende às medidas de internação e semiliberdade. In casu, como deflui das judiciosas informações do MM Dr. Juiz a quo apontado como autoridade judiciária coatora, de se aplicar até mesmo a Súmula 108 do STJ. Se se trata de medidas provindas de negócio bilateral objetivando evitar a instauração de procedimento infracional, não há violação a qualquer princípio de natureza constitucional ou processual, até porque tal procedimento está previsto na própria lei de menores, e, na verdade, o due process of law é justamente aquele previsto na norma legal. Logo, não há que falar em quebra do devido processo legal e, muito menos, em inconstitucionalidade. Writ, pois, que se denega". (TJRJ – HC n.2001.059.03175 – 2a Câmara Criminal – Des. J. C. Murta Ribeiro – Julgado em 11/12/2001) – GRIFO NOSSO.

            Em meio a esse contexto, é preciso fazer menção à Súmula n. 108 do STJ, publicada no DJ na já longínqua data de 22/06/1994, cujo verbete é o seguinte: "A aplicação de medidas sócio-educativas ao adolescente, pela prática de ato infracional, é de competência exclusiva do juiz".

            Esta Súmula, ao contrário do que aparentemente possa parecer, não foi editada como forma de vedar a cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa. Na verdade, o STJ, com tal verbete, procurou encerrar longa discussão existente na doutrina sobre a possibilidade ou não de que órgão diverso do Poder Judiciário (in casu, o Ministério Público) praticasse, em um processo judicial, ato decisório, discussão esta surgida diante da redação do art. 126, caput, ECA, segundo a qual o Parquet poderá "conceder" a remissão pré-processual (e, por conseqüência, a medida sócio-educativa).

            Ora, como já defendia doutrina amplamente majoritária antes da edição da Súmula sub occulis, é óbvio que o simples ato de concessão da remissão pré-processual pelo Ministério Público não tem caráter decisório, pois, para que este ato tenha plena eficácia, há necessidade da homologação judicial.

            Nesse sentido, inclusive, frise-se que o art. 181, parágrafo 1o, ECA, estabelece que a autoridade judiciária homologará a remissão (gênero), determinando, em seguida, conforme o caso, o cumprimento da medida (que só pode ser a sócio-educativa).

            O advento da Súmula n. 108 STJ, portanto, veio apenas consagrar o entendimento dessa corrente doutrinária, deixando bem claro que cabe ao Ministério Público o oferecimento da remissão pré-processual, mas este ato somente obterá sua eficácia com a chancela judicial, o que não implica, ressalte-se novamente, na proibição da cumulação da apontada modalidade de remissão com medida sócio-educativa em meio aberto.

            Comentando a questão em apreço, as Promotoras de Justiça fluminenses Bianca Mota de Moraes e Helane Vieira Ramos apresentam entendimento idêntico ao aqui esposado, nesses termos:




            "Ao prever a remissão, a Lei 8.069/90 expressamente autorizou ao Ministério Público a inclusão de medida socioeducativa, com exceção das de semi-liberdade e de internação (art. 127). A matéria causa divergência na doutrina e na jurisprudência em virtude, basicamente, da expressão ‘conceder’ utilizada no texto legal, a qual vem ensejando nebulosa interpretação no sentido de que se teria conferido poder decisório a órgão diverso do Poder Judiciário. Tal controvérsia resultou na edição do verbete n. 108 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça: ‘A aplicação de medidas socioeducativas ao adolescente pela prática de ato infracional, é da competência exclusiva do Juiz’ (...)". (in "Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos", coordenadora Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel, Ed. Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2006, p. 789).

            Segue o mesmo trilhar o sempre brilhante Juiz da Infância e da Juventude do Estado do Rio Grande do Sul, João Batista Costa Saraiva, que assim leciona:




            "Como expresso no caput do art. 112, apenas a autoridade competente poderá aplicar a medida sócio-educativa e esta autoridade será sempre judiciária a teor da Súmula 108 do STJ, cuja ementa dispõe: a aplicação de medidas socioeducativas ao adolescente, pela prática de ato infracional, é da competência exclusiva do juiz. Tal entendimento não desfigura o instituto da remissão composta pelo MP, como forma de exclusão do processo, pois quando o agente do Ministério Público concertar remissão a que seja cumulada medida socioeducativa e quando esta deliberação for posta sob apreciação do Juiz e este a homologar, será a Autoridade Judiciária quem estará aplicando a medida ajustada pelo Ministério Público, neste caso somente no pertinente às chamadas medidas socioeducativas em meio aberto, únicas possíveis de serem impostas ao adolescente em sede de remissão, como tratado anteriormente". (in "Compêndio de Direito Penal Juvenil – Adolescente e Ato Infracional", Ed. Livraria do Advogado, 3a ed., rev. e ampl.: Porto Alegre, 2006, p. 149).

            É imprescindível ainda destacar que o próprio Superior Tribunal de Justiça, em decisões posteriores à edição da Súmula n. 108, deixou assente o posicionamento ora defendido, como se vê dos arestos a seguir transcritos, in verbis:




            "RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. REMISSÃO E MEDIDA SOCIOEDUCATIVA. CUMULAÇÃO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DE OITIVA DO MENOR. VIOLAÇÃO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL. INOCORRÊNCIA. – Da exegese sistemática das normas componentes do Estatuto da Criança e do Adolescente extrai-se o entendimento de que a remissão concedida pelo Ministério Público pode ser cumulada com medida socioeducativa que não implique restrição ou privação de liberdade (art. 127, do ECA). – Não ocorre violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa na hipótese em que, embora ausente a oitiva do menor infrator, é homologada a concessão de remissão, determinando-se a aplicação de medida socioeducativa de liberdade assistida. – Precedentes deste Tribunal. – Recurso improvido. Hábeas corpus denegado". (STJ – RHC 11099/RJ – Sexta Turma – Relator Min. Vicente Leal – DJ de 18/02/2002, p. 496).

            "PENAL – ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (LEI n. 8.069/90). ART. 127. REMISSÃO. MEDIDA SOCIOEDUCATIVA. CUMULAÇÃO. AUSÊNCIA. CONSTRANGIMENTO ILEGAL. 1. Não há falar em constrangimento ilegal decorrente da homologação pelo Juiz de remissão concedida pelo Ministério Público, simultaneamente à aplicação de medida socioeducativa – prestação de serviços à comunidade, ante a possibilidade de sua cumulação, ex vi do art. 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente, Precedentes. 2. Recurso especial conhecido e provido". (STJ – REsp 226159/SP – Sexta Turma – Relator Min. Fernando Gonçalves – DJ de 21/08/2000, p. 177).

            O Pretório Excelso também já julgou a matéria nesse sentido, como se constata do seguinte aresto:




            "Recurso extraordinário. Artigo 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente. - Embora sem respeitar o disposto no artigo 97 da Constituição, o acórdão recorrido deu expressamente pela inconstitucionalidade parcial do artigo 127 do Estatuto da Criança e do Adolescente que autoriza a acumulação da remissão com a aplicação de medida sócio-educativa. - Constitucionalidade dessa norma, porquanto, em face das características especiais do sistema de proteção ao adolescente implantado pela Lei nº 8.069/90, que mesmo no procedimento judicial para a apuração do ato infracional, como o próprio aresto recorrido reconhece, não se tem em vista a imposição de pena criminal ao adolescente infrator, mas a aplicação de medida de caráter sócio-pedagógico para fins de orientação e de reeducação, sendo que, em se tratando de remissão com aplicação de uma dessas medidas, ela se despe de qualquer característica de pena, porque não exige o reconhecimento ou a comprovação da responsabilidade, não prevalece para efeito de antecedentes, e não se admite a de medida dessa natureza que implique privação parcial ou total da liberdade, razão por que pode o Juiz, no curso do procedimento judicial, aplicá-la, para suspendê-lo ou extingui-lo (artigo 188 do ECA), em qualquer momento antes da sentença, e, portanto, antes de ter necessariamente por comprovadas a apuração da autoria e a materialidade do ato infracional. Recurso extraordinário conhecido em parte e nela provido". (STF – RE 229382 – Tribunal Pleno – Relator Min. Moreira Alves – DJ 31-10-2002, PP – 00020 EMENT VOL – 02089-02 PP-00231).

            Em consonância com a redação do art. 127 do ECA, autorizadora da cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa de regime aberto, pontifica o ilustre Tarcísio José Martins Costa:




            "Na verdade, a remissão por iniciativa do Ministério Público é ato bilateral complexo, uma vez que só se completa mediante a homologação da autoridade judiciária". (in "Estatuto da Criança e do Adolescente", Ed. Del Rey: Belo Horizonte, 2004, p. 264).

            Encerrando definitivamente a polêmica, as Promotoras cariocas Bianca Mota de Moraes e Helane Vieira Ramos, novamente com brilhantismo, arrematam:




            "Assim, quando o Parquet concede a remissão e nela inclui a aplicação de medida socioeducativa para o adolescente, promove nos autos a sua opção em não representar, submetendo este entendimento ao Poder Judiciário, que decidirá se o homologa, determinando, ou não, ao jovem o seu cumprimento. Portanto, o fato de o cumprimento da medida depender da decisão judicial homologatória para receber exigibilidade (art. 181, parágrafo 1o, ECA) não obsta a que a sua aplicação seja incluída no ato remissivo promovido pelo Ministério Público". (in "Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos", coordenadora Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade Maciel, Ed. Lúmen Júris: Rio de Janeiro, 2006, p. 791).

            Superados os dois primeiros argumentos contrários à cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa, resta ainda analisar se tal cumulação violaria os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

            Para esta análise, rememorando lição abalizada do insigne Professor João Batista Costa Saraiva, em sua obra "Compêndio de Direito Penal Juvenil – Adolescente e Ato Infracional", segundo a qual o regramento da apuração de ato infracional constitui verdadeiro Direito Penal Juvenil, façamos uma similitude entre a remissão pré-processual e o instituto da transação penal, no qual também há aplicação de uma determinada medida ao autor dos fatos, proveniente de proposta ofertada pelo Ministério Público e homologada pela autoridade judicial, sem que isso implique em qualquer violação aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

            A jurisprudência pátria, adotando o critério de correlação entre a transação penal e a remissão pré-processual, já decidiu sobre a possibilidade de cumulação entre esta última e medida sócio-educativa de regime aberto, como se vê dos arestos a seguir transcritos, in verbis:




            "INFRACIONAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SOCIOEDUCATIVA (...). HOMOLOGAÇÃO DA MEDIDA PELO JULGADOR. 1. Cabe ao órgão do ministério público, titular da ação pública socioeducativa, conceder a remissão como forma de exclusão do processo, que pode ser cumulativa com medida socioeducativa não privativa de liberdade, caso em que deve haver a anuência do adolescente e de seu representante legal, constituindo autêntica transação. 2. Compete ao julgador homologar a remissão, caso com ela concorde (...)". (TJRS – Apelação Cível n. 70004383444, Sétima Câmara Cível, Relator Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 19/06/02).

            "ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – PEDIDO DE REMISSÃO CUMULADA COM MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO À COMUNIDADE – CONCESSÃO DE REMISSÃO SIMPLES EM 1° GRAU – RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO – PROVIMENTO – A concessão de remissão, como forma de exclusão do processo, é de iniciativa do ministério público, podendo haver cumulação de medida sócio-educativa de prestação de serviço à comunidade desde que haja acordo entre órgão ministerial, adolescente infrator e seu responsável, conforme art. 127 do eca (...)". (TJDF – APE 20030130034818 – 1ª T.Crim. – Rel. Des. Sérgio Bittencourt – DJU 08.09.2005 – p. 75) (Ementas no mesmo sentido).

            Ainda fazendo a correlação entre os institutos da remissão pré-processual e da transação penal, verifica-se que as únicas cautelas que devem ser observadas para a aplicação daquele, assim como ocorre com a aplicação deste, são, a uma, conforme já mencionado pelas decisões acima transcritas, a concordância do menor e do seu representante legal com a proposta oferecida pelo Ministério Público, e, a duas, o acompanhamento do adolescente por advogado, como muito bem lembrado pelo Professor gaúcho João Batista Costa Saraiva:




            "Evidentemente que se na remissão concertada pelo Ministério Público, de caráter pré-processual, vier proposta a aplicação de alguma medida socioeducativa, em nome do contraditório, haverá de o adolescente estar acompanhado de Defensor na audiência pré-processual realizada junto ao Ministério Público onde operou-se a transação, expressa na remissão" (in "Direito Penal Juvenil – Adolescente e Ato Infracional – Garantias Processuais e Medidas Socioeducativas", Ed. Livraria do Advogado, 2a ed., rev. e ampl.: Porto Alegre, 2002, pp.59-0).

            Há ainda de se mencionar que o Estatuto da Criança e do Adolescente, no seu art. 128, consagra a possibilidade de revisão judicial, a qualquer tempo, a pedido do próprio adolescente ou de seu representante legal, ou do Ministério Público, da medida aplicada por força da remissão, o que constitui, sem dúvida alguma, mais uma forma de proteger os interesses do menor com relação à referida medida.

            Por tudo quanto até aqui exposto, não há que se falar em violação dos princípios do contraditório e da ampla defesa quando concedida remissão pré-processual cumulada com medida sócio-educativa.

            Por fim, é preciso ponderar sobre a conveniência prática da aplicação de medida sócio-educativa de regime aberto no momento do oferecimento da remissão pré-processual.

            Admitir a cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa de regime aberto significa antecipar a aplicação desta medida sem que haja a necessidade de transcorrer todo o longo iter do processo de apuração do ato infracional, provocando a redução de custos para o Estado (que não aciona a sua máquina judiciária) e para o próprio adolescente (que deixa de constituir advogado e de arcar com as custas processuais), isso sem falar na eliminação do desgaste psicológico inerente ao desenvolvimento de qualquer processo judicial, além do que traz uma efetiva celeridade aos feitos envolvendo ato infracional.

            Aliás, é sempre bom reprisar que a promoção da celeridade em feitos de qualquer natureza é uma das maiores exigências do mundo pós-moderno e globalizado, tanto que, no Brasil, foi elevada à condição de direito fundamental do cidadão pela Emenda Constitucional n. 45/2004, passando a constar no rol do art. 5o da Carta Magna, mais precisamente no seu inciso LXXVIII.

            Encerremos este tópico com um apanhado geral feito pelo Professor Mirabete de tudo quanto aqui desenvolvido, inclusive com relação às vantagens práticas advindas da cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa de regime aberto:




            "A remissão pode ser concedida como perdão puro e simples, sem a aplicação de qualquer medida, ou, a critério do representante do Ministério Público ou da autoridade judiciária, como uma espécie de transação, como mitigação das conseqüências do ato infracional. Nesta última hipótese ocorre a aplicação de medida específica de proteção ou sócio-educativa, excluídas as que implicam privação da liberdade (encaminhamento aos pais ou responsáveis, advertência etc). Excluem-se as medidas de semi-liberdade e internação diante do princípio do devido processo legal, consagrado na Constituição Federal (art. 5o, LIV). Essa transação sem a instauração ou conclusão do procedimento tem o mérito de antecipar a execução da medida adequada, a baixo custo, sem maiores formalidades, diminuindo também o constrangimento decorrente do próprio desenvolvimento do processo". (in "Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais", 6a ed. rev. e atual. pelo novo Código Civil, Ed. Malheiros, coordenador Munir Cury: São Paulo, 2003, p. 426-427).


 

CONCLUSÃO

            O artigo 127 do ECA, ao não fazer qualquer distinção entre a remissão pré-processual e a remissão processual, permite expressamente a cumulação daquela com medida sócio educativa de regime aberto.

            Por estar prevista em lei, a referida cumulação não causa qualquer violação ao princípio constitucional do devido processo legal.

            A remissão pré-processual cumulada com medida sócio-educativa de regime aberto é um ato bilateral, pois, de um lado, cabe ao Ministério Público oferecer a proposta de ambos os institutos, enquanto que, de outro lado, é imprescindível a aceitação desta proposta por parte do adolescente, desde que acompanhado do seu representante legal e de advogado.

            Desse modo, assim como ocorre com o instituto da transação penal, não há que se falar em ofensa aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

            Oferecida pelo Ministério Público a proposta da remissão pré-processual com medida sócio-educativa de regime aberto e aceita a mesma pelo menor, devidamente acompanhado do seu representante legal e do advogado, ainda assim tal ato não produz imediatamente os seus efeitos legais, necessitando, para tanto, da homologação judicial, sendo esta a correta interpretação que se deve dar ao conteúdo da Súmula n. 108 do STJ.

            Feitas essas considerações, conclui-se, em definitivo, pela possibilidade de cumulação da remissão pré-processual com medida sócio-educativa (em meio aberto).

            Diante disso, deve-se indagar: se é a lei que permite tal cumulação, por que aguardar o desenrolar de todo um processo de apuração do ato infracional para, somente no final dele, aplicar ao menor uma medida sócio-educativa de regime aberto que poderia ser fixada antes do início deste mesmo processo?

            Se o próprio menor, acompanhado do seu representante legal e orientado por advogado, prefere evitar o desgaste natural de um processo desta natureza e aceita, desde logo, cumprir uma determinada medida sócio-educativa, por que a autoridade judiciária não deveria homologar este ato?

            Se o resultado alcançado com a homologação da remissão pré-processual cumulada com a medida sócio-educativa de meio aberto, nas circunstâncias aqui expostas, é exatamente o mesmo daquele atingido ao final de um enfadonho processo de apuração de ato infracional, por que não preferir aquela primeira opção, evitando a movimentação da máquina judiciária e a criação de maiores gastos para o adolescente e sua família?

            Em um mundo pós-moderno tão globalizado, no qual os fatos acontecem em uma velocidade ímpar, optar por um caminho mais longo e demorado, sabendo que há um outro caminho muito mais rápido, econômico e menos desgastante, cujo destino final é exatamente o mesmo daquele, não é uma forma de se obter a verdadeira justiça.

            Afinal de contas, rememorando mais uma vez o ilustre jurista baiano Ruy Barbosa, "Justiça atrasada não é Justiça, senão injustiça qualificada e manifesta".

 

BIBLIOGRAFIA

            CURY, Munir (coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado – Comentários Jurídicos e Sociais. 6a ed. rev. e atual. pelo novo Código Civil, São Paulo: Malheiros, 2003.

            MACIEL, Kátia Regina Ferreira Lobo Andrade (coord.). Curso de Direito da Criança e do Adolescente – Aspectos Teóricos e Práticos. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2006.

            SARAIVA, João Batista Costa. Compêndio de Direito Penal Juvenil – Adolescente e Ato Infracional. 3a ed., rev. e ampl., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.