Benefício de prestação continuada integrando renda familiar: inconstitucionalidade e antijuridicidade


Porwilliammoura- Postado em 27 maio 2013

Autores: 
CORDOVA JÚNIOR, Milton

 

Uma das mais relevantes ações em favor das pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade e risco social foi introduzida na CF 88, no art. 203, V, ou seja, a garantia de receber um salário mínimo, nos seguintes termos:

 

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

 

V - a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua famíliaconforme dispuser a lei.

Tudo em consonância com o Principio Fundamental da Dignidade Humana (art. 1º), somado aos Objetivos Fundamentais plasmados no art. 3º, I, II e III (construção de uma sociedade justa e solidária, erradicação da pobreza e a promoção do bem para todos).

Entretanto o Constituinte Originário remeteu à necessidade de lei para estabelecer condições para a concessão do benefício, quando expressou o comando “conforme dispuser a lei”.

 


LOAS

 

Assim, em 07.12.1993 foi sancionada a Lei 8.742/93 (Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS), que estabeleceu critérios subjetivos e objetivos para a concessão do benefício, em dois artigos (art. 2º, “e” mais o art. 20, caput e §§ 3º e 4º), a saber:

Art. 2º  A assistência social tem por objetivos:

 

e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família;

 

e

 

Art. 20.  O benefício de prestação continuada é a garantia de um salário-mínimo mensal à pessoa com deficiência e ao idoso com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção nem de tê-la provida por sua família.

 

§ 3º  Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

 

§ 4º  O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória.

 

Da análise dos critérios estabelecidos pela Lei 8.742/93 (LOAS), temos que:

 

a) art. 2º: foram estabelecidos dois critérios subjetivos (“não possuir meios de prover a própria manutenção” e “ou de tê-la provida por sua família”.

 

b)  art. 20 e §§: estabelecidos critérios objetivos:

 

-  renda mensal per capita inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

 

- proibição de acumulo do beneficio, pelo beneficiário, com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime.

Dessa forma, tem direito ao Beneficio de Prestação Continuada (doravante denominado apenas “BPC”), no valor de um salário mínimo (valor estabelecido pela Constituição) a pessoa com deficiência, inserida em família cuja renda per capita seja inferior a ¼ do salário-mínimo, não tendo condições de prover a sua própria manutenção, ou, por outro lado, nem na circunstância sua família não possuir condições de provê-la

 

Atualmente são 1,8 milhões de beneficiários com deficiência recebendo o BPC (dados de agosto de 2011), em expressiva ação socioassistencial que se harmoniza plenamente com o texto do Preâmbulo da Constituição, que proclama

“... para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social. ...”

 


DECRETO 1744, de 08.12.1995 e seguintes

Apesar do largo alcance do BPC, que alcança 1,8 milhões de brasileiros que se encontram em situação de extrema vulnerabilidade e risco social (extrema, porque aqui temos a pobreza aliada à existência de deficiência, muitas vezes múltiplas), constata-se que reiterado equívoco no Decreto 7617/11 vem excluindo, inconstitucional e antijuridicamente, pessoas com deficiência que tem direito a receber o BPC.         

 

Usamos a expressão “reiterado”, porque o equívoco vem se repetindo e prorrogando no tempo desde o Decreto 1744, de 08.12.95 (que regulamentou o BPC), produzindo os efeitos da “Teoria do Fruto da Árvore Envenenada”, criada pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que entende que os vícios da “planta são transmitidos aos seus frutos”.  No caso, a “árvore envenenada” é o Decreto 1744, de 08.12.1995 que transmitiu os vícios (seu art. 19) para os frutos (decretos subsequentes, incluindo o Decreto 7617/11).

 

Vale lembrar que pessoas excluídas fazem parte de um grupo de famílias que, além de pobres (renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo), tragicamente têm dois ou mais portadores de deficiência (ou deficiências múltiplas, tais como de ordem física, mental, sensorial, intelectual), tornando a vulnerabilidade e risco ainda mais severos, implicando que tenham que arcar com sacrifícios, esforços e custos maiores, como por exemplo, a contratação de “cuidadores” para auxilio em casa, pessoas que geralmente residem nas proximidades.

 

Além disso, por óbvio, as tarefas pertinentes aos cuidados especiais que essas pessoas demandam sobrecarregam demasiadamente os familiares. Por conta disso, muitas vezes membros da família ficam impedidos até mesmo de trabalhar em razão da enorme responsabilidade, dos cuidados e atenções que essas pessoas tão vulneráveis necessitam. O resultado é a exigência da presença constante de membro da família membro da família (geralmente a mãe) diuturnamente ao lado da pessoa deficiente.

Por força das próprias circunstâncias, situações em que famílias pobres tem dois ou mais portadores de deficiência – muitas vezes com deficiências múltiplas - tornam a exclusão ainda mais grave, pela intensa vulnerabilidade e risco social presentes naquele agrupamento familiar.           

 

A exclusão dessas pessoas do direito ao BPC (o “envenenamento da árvore”), por meio de simples Decreto, que impôs restrição que nem a Lei, nem a Constituição impuseram,  aconteceu no famigerado art. 19 do Decreto 1744, de 08.12.95, que deu a seguinte redação:

“Art. 19 O benefício da prestação continuada será devido a mais de um membro da mesma família, enquanto for atendido o disposto no inciso III do art. 2º deste Regulamento, passando o valor do benefício a compor a renda familiar, para a concessão de um segundo benefício.” (grifamos)

 

Ocorre que a equivocada exclusão vem se protelando no tempo, agora em razão do disposto no art. 1º do Decreto 7617/11, quando esse mantém a disposição do art. 19 do Decreto 1744, ainda que com outra redação, pois considera o BPC para efeito do calculo da renda familiar bruta:        

 

“Art. 1º (alterando o art. 4º, VI do Decreto 6214/07, incluindo o seguro-desemprego) - renda mensal bruta familiar: a soma dos rendimentos brutos auferidos mensalmente pelos membros da família composta por salários, proventos, pensões, pensões alimentícias, benefícios de previdência pública ou privada, seguro-desemprego, comissões, pro-labore, outros rendimentos do trabalho não assalariado, rendimentos do mercado informal ou autônomo, rendimentos auferidos do patrimônio, Renda Mensal Vitalícia e Benefício de Prestação Continuada, ressalvado o disposto no parágrafo único do art. 19.”  

 

Vale dizer que o Decreto 7617/11 apenas reproduziu o art. 4º, VI, do Decreto 6214, de 26.09.07, que tinha a mesma redação, apenas sem o seguro-desemprego.

 

É de sabença geral que os Decretos são atos privativos do Chefe do Executivo para regular a fiel execução da lei que, por sua vez, tem que estar em completa sintonia com o texto constitucional (conforme art. 84, IV, CF).

 

No caso, não foi o que ocorreu com o art. 19 do Decreto 1744/95, (que se prorroga no tempo por meio dos Decretos 6214/07 e Decreto 7617/11), pois a referida exclusão (por meio da inclusão do BPC para efeitos de composição da renda familiar) não refletiu com fidelidade o espírito do texto legal (LOAS) na sua regulamentação, muito menos se harmonizou com a Constituição, violando-a.

 


DA INCONTITUCIONALIDADE E ANTIJURIDICIDADE DOS DECRETOS

 

Dessa forma, o Decreto 7617/11 (nessa questão) segue inconstitucional e antijurídico, um “morto-vivo”, verdadeiro zumbi com dezoito anos, conforme exposição que se segue.

 

A uma, é inconstitucional uma vez que a Constituição (art. 203, V) garante à pessoa portadora de deficiência um salário mínimo, nem mais, nem menos.

 

Esse é o mínimo social, o mínimo existencial para essas pessoas, previsto na Carta Magna.  Ao incluir o BPC recebido por outra pessoa com deficiência no calculo da “renda familiar”, são várias as inconformidades cometidas pelo Decreto em comento, com gravíssimo dano para pessoas desafortunadas que se encontram em situação de elevada vulnerabilidade e risco social. 

 

A impropriedade mais óbvia de ser visualizada é que a distorção da renda familiar (por meio da inclusão de um BPC recebido por beneficiário na renda familiar) produz como consequência direta a exclusão de outras pessoas com deficiência (da mesma família) que se enquadram no comando constitucional previsto no art. 203, V, em razão da elevação indevida e inadequada da renda per capita desse grupo, que será superior aos ¼ do salário mínimo, em razão da maior base de cálculo.

 

Dessa forma, outras pessoas portadoras de deficiência inseridas na mesma família, pobres, incapazes de seu próprio sustento, em situação de extrema vulnerabilidade e risco social, não receberão nenhum benefício, contrariando o texto constitucional e em ampla contradição com os objetivos da LOAS. A realidade demonstra que os recursos percebidos pelo único beneficiário são repartidos também para a manutenção da segunda pessoa com deficiência da família, implicando que ambos passarão a receber, de fato (nesse exemplo), apenas ½ salário mínimo, em grave violação constitucional (que prevê, inequivocamente, o benefício de um salário mínimo para a pessoa portadora de deficiência).

 

Por outro lado, o simples fato do art. 1º do Decreto 7617/11 manter o BPC de um beneficiário pra composição da renda familiar, implica em grave desvio de finalidade, pois legitima, em tese, que o BPC também se destina a todos os outros integrantes da família, mesmo pessoas sem deficiência, e não apenas ao beneficiário. Dessa forma, vislumbra-se a “lógica do absurdo”: enquanto na origem cumpre-se a obrigação constitucional de se destinar um salário mínimo diretamente para a pessoa com deficiência, por outro lado admite-se a hipótese dessa pessoa receber bem menos, em razão da autorização implícita inserida equivocadamente no Decreto, decorrente da distribuição do BPC na composição da renda per capita da família.

 

Dito de outra forma, ao incluir o BPC de um beneficiário no calculo da renda per capita familiar, é o mesmo que afirmar que cada membro da família tem direito a parte do BPC, quando esse é destinado exclusivamente ao portador de deficiência (LOAS, art. 20: “... garantia de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de deficiência...”)  

 

A situação se agrava no caso da família possuir outra pessoa com deficiência, pois a possibilidade dessa ser impedida de receber o BPC será inevitável ante a elevação artificial e indevida da renda per capita, que será maior que 1/4 do salario mínimo na maior parte das vezes.  

 

Importante lembrar que outro relevante programa social, o Bolsa Família, difere-se do BPC exatamente em relação à sua destinação: trata-se de programa de transferência de renda diretamente às famílias. Portanto é lícito afirmar que os recursos do Bolsa Família compõem a renda familiar; todavia, o mesmo não ocorre com os recursos oriundos de BPC.   

 

Na análise do problema, pouco importa se a realidade mostra que parte dos recursos do BPC recebidos são consumidos pela família, sob a forma de alimentos, remédios e roupas adquiridos com aquele beneficio, que de fato passa a integrar a renda família. Integra de fato mas não de direito.

 

Dessa forma, nenhuma dúvida reside no fato de que a pessoa portadora de deficiência, que não é capaz de sustentar-se, ou que nem sua própria família é capaz de provê-la em seu mínimo existencial e social, tem direito a receber um BPC no valor de um salário mínimo, nunca menos. Também é por demais evidente que o BPC de um beneficiário jamais poderá compor a renda familiar, muito menos a renda per capita da família, eis que esses recursos destinam-se, exclusivamente, à sua manutenção, ao seu “mínimo existencial”, não podendo ser compartilhado com terceiros.

 

A duas, o Decreto 7617/11 (art. 1º) é antijurídico porque a própria LOAS espelhou, corretamente, o texto constitucional, alcançando a vontade do Legislador Originário, uma vez que o seu art. 2º, “e” LOAS prevê

 

e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família;

 

Por sua vez, o art. 20, caput, reproduziu o texto (do art. 2º, “e”), sendo que o seu parágrafo 3º estabeleceu o limite de ¼ do salário mínimo (renda per capita), conforme se lê em 

 

§ 3º  Considera-se incapaz de prover a manutenção da pessoa com deficiência ou idosa a família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo.

 

Por outro lado, o parágrafo 4º trouxe a única hipótese da não cumulatividade de benefícios, assim mesmo pelo próprio beneficiário, conforme

 

4º  O benefício de que trata este artigo não pode ser acumulado pelo beneficiário com qualquer outro no âmbito da seguridade social ou de outro regime, salvo os da assistência médica e da pensão especial de natureza indenizatória.

 

Em síntese: não há na Constituição (nem na LOAS), qualquer dispositivo que autorize interpretação extensiva para a inclusão de um BPC na renda familiar para fins de apuração da renda per capita, restringindo direitos de quem mais precisa. O art. 1º do Decreto 7617/11 viola a Constituição e a LOAS, ao considerar um BPC recebido por beneficiário como parte da renda familiar (ou considerá-lo como recebido por outra pessoa com deficiência), provocando a exclusão de outras pessoas que se encontram em estado de vulnerabilidade, que não recebem outro benefício da seguridade social.

 

Essa grave inconstitucionalidade é contrária aos objetivos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e de seu Protocolo Facultativo, recepcionado no ordenamento jurídico brasileiro por meio de Decreto Legislativo.




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