Aspectos da capacidade civil da pessoa com deficiência à luz da Lei nº 13.146/15


Portiagomodena- Postado em 06 maio 2019

Autores: 
Cândido Pérez

A situação jurídica da pessoa com deficiência experimentou sensíveis alterações com a entrada em vigor da Lei nº 13.146/15. Aludida norma, inspirada na Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CDPD), de Nova York, e que passou a integrar o direito brasileiro por meio do Decreto nº 6.949/2009, disciplinou, de forma ampla, a matéria, com nítido viés inclusivo, em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República Federativa do Brasil, a teor do disposto no art. 1º, III, da Constituição Federal de 1988.

O direito civil brasileiro, tradicionalmente, sempre tratou a pessoa com deficiência mental como incapaz, absoluta ou relativamente, a depender do grau de discernimento. O Código Civil de 1916, como se sabe, empregava a expressão “loucos de todo gênero”, bastante criticada pela atecnia, para classificar, como incapazes, os deficientes desprovidos de discernimento (art. 5º, II), vedando-lhes, com base nesse estado, a prática direta de atos da vida civil. Embora o deficiente mental grave, à luz do Código Civil anterior, tivesse aptidão para ser titular de direitos e obrigações, como decorrência de sua personalidade (art. 2º), não tinha possibilidade de exercê-los diretamente, faltando-lhe a chamada capacidade de fato ou de exercício.

Tal panorama não sofreu alterações significativas com o advento do Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/02), sem embargo dos avanços da medicina e do longo tempo de tramitação do projeto do novo diploma. Seguindo a trilha de seu antecessor, o novo Código classificou como absolutamente incapazes aqueles que, “por enfermidade ou doença mental”, não tivessem o discernimento necessário para a prática dos atos da vida civil (art. 3º, II). Por outro lado, classificou como relativamente incapazes os ébrios habituais, os viciados em tóxicos e os deficientes e excepcionais com “discernimento reduzido” (art. 4º, II e III). Preservou, destarte, em grande parte, a disciplina anterior, com a manutenção do status de incapaz do deficiente mental grave e com sua sujeição à curatela, cominando ainda a pena de nulidade aos atos praticados diretamente pelo absolutamente incapaz (art. 166, I).

A crítica que se fazia a tal sistema, notadamente após o advento da Constituição de 1988, era no sentido de que, embasando a incapacidade na enfermidade mental,{C}[1] com amparo, portanto, em critério médico, e sujeitando o deficiente à curatela, que em determinados casos tinha ampla abrangência, a norma praticamente privava o deficiente de existência civil, aniquilando sua individualidade, com a transferência total da prática dos atos à pessoa do curador.

Assim é que, nos deficientes com o discernimento mais severamente comprometido, a interdição podia assumir caráter quase absoluto,[2] e tal estado de coisas se mostrava - sustentavam os críticos - incompatível com a própria dignidade do deficiente, circunstância que, por certo, contribuiu para a alteração levada a efeito pela Lei nº 13.146/15. A ideia da segregação deu lugar à ideia da inclusão, adotando o novo diploma diretrizes renovadas para o tratamento jurídico dos deficientes, de forma a respeitar-lhes, tanto quanto possível, a individualidade, em sintonia com o princípio da dignidade da pessoa humana. A dignidade, vale lembrar, é pedra angular da vigente ordem constitucional, e consubstancia, nos dizeres da doutrina,

“um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar”{C}[3]{C}

De acordo com a Lei nº 13.146/15, o portador de deficiência mental não pode mais ser classificado como absolutamente incapaz. Suprimiu-se, do rol respectivo, existente no Código Civil, o mentalmente enfermo, remanescendo nessa categoria somente o menor de 16 (dezesseis) anos. Quanto ao mentalmente enfermo, por outro lado, foi inserido no rol dos relativamente incapazes, porém tal incapacidade é, agora, definida a partir de novo critério, qual seja, o da impossibilidade de manifestação válida da vontade, em decorrência de causa permanente ou transitória (art. 4º, III). Afastou-se, pois, o critério médico, que vigorava nos regimes anteriores. Em substituição, acolheu-se o critério da impossibilidade circunstancial de emissão da vontade, por causa permanente ou transitória.

 

As pessoas com deficiência, além disso, nos termos do art. 84, caput, da Lei nº 13.146/15, passaram a ter o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas. Isso significa que a capacidade passou a ser a regra, e que a deficiência, isoladamente considerada, deixou de ser causa determinante de incapacidade, ainda que de grau severo. Em tais casos, de deficiência incapacitante de manifestação da vontade, a incapacidade subsistirá, porém será, como adiantado, relativa, e decorrerá, repita-se, não mais da enfermidade, mas sim da ausência de capacidade volitiva.

O mesmo art. 84, em seus parágrafos 1º e 2º, revisou o instituto da curatela, conferindo-lhe contornos mais específicos. Destacou, em primeiro lugar, a sua natureza de medida protetiva excepcional e limitada a questões patrimoniais e negociais. E vedou, de forma expressa, sua aplicabilidade aos chamados direitos da personalidade, ou direitos existenciais, como o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à saúde, à privacidade e outros. A curatela deverá ser imposta em processo judicial regular e as restrições aos atos do deficiente curatelado serão definidas em atenção às peculiaridades do seu caso, apuradas e definidas por equipe multidisciplinar, devendo perdurar, a medida, apenas pelo tempo em que se fizer necessária.

Ao lado da medida da curatela, a Lei nº 13.146/15 instituiu um novo mecanismo de proteção ao deficiente, inserindo, no Código Civil, o art. 1.783-A. Trata-se da tomada de decisão apoiada. Por meio de tal instituto, o deficiente terá a possibilidade de, caso seja de seu interesse, solicitar a designação de duas pessoas, com as quais mantenha proximidade e vínculos de confiança, para lhe prestarem apoio na tomada de decisões, fornecendo-lhe informações e aconselhamento. Os apoiadores nomeados assumirão formalmente o compromisso e os limites de sua atuação deverão constar, de forma expressa, do instrumento respectivo, cabendo ao magistrado dirimir eventuais divergências entre o apoiado e o apoiador. O apoiador responderá por eventual atuação negligente e, a qualquer tempo, poderá a pessoa apoiada solicitar o encerramento do vínculo, assistindo igual direito ao apoiador, que, porém, permanecerá no exercício até a dispensa formal pelo juiz.

A inserção do instituto da tomada de decisão apoiada é medida bastante salutar, uma vez que, ao mesmo tempo em que incrementará o sistema de proteção ao deficiente, atuando como medida intermediária, não prejudicará a capacidade legal do apoiado, que permanecerá íntegra. Como explica Nelson Rosenvald,

“na tomada de decisão apoiada, o beneficiário conservará a capacidade de fato. Mesmo nos específicos atos em que seja coadjuvado pelos apoiadores, a pessoa com deficiência não sofrerá restrição em seu estado de plena capacidade, apenas será privada de legitimidade para praticar episódicos atos da vida civil”[4]

Percebe-se, portanto, que não foram poucas as novidades trazidas pela Lei nº 13.146/15. Ela igualmente assegurou, de forma expressa, vários outros direitos das pessoas com deficiência, como o direito à moradia, ao trabalho, à cultura e à mobilidade, dentre outros. Contudo, também não serão poucas as dificuldades que surgirão da aplicação do novo diploma, que somente poderão ser superadas após um período de reflexão e uma intensa atuação da doutrina e da jurisprudência. Questões como a necessidade de revisão das curatelas já instituídas, a natureza da nulidade dos atos praticados por deficientes, se absoluta ou relativa, e a exigência de intervenção judicial para a nomeação de apoiadores, além de várias outras, deverão ser enfrentadas e solucionadas, buscando-se sempre evitar o risco de, ao invés de mais protegido, ficar o deficiente em situação de maior vulnerabilidade por influxo da nova lei, sofrendo prejuízos.[5] Necessário, contudo, que, na atividade interpretativa, tenha o aplicador do direito sempre em mente a finalidade maior da norma, que é a derrubada de barreiras para a inclusão social e comunitária cada vez maior da pessoa com deficiência.


Referências 

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 19 ed., atual. até a EC nº 48/05, São Paulo: Atlas, 2006.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v.I, 19 ed., rev. e atual., Rio de Janeiro: Forense, 1998.

ROSENVALD, Nelson. Estatuto da Pessoa com Deficiência: 11 perguntas e respostas. Disponível em << http://genjuridico.com.br/2015/10/05/em-11-perguntas-e-respostas-tudo-qu... >>

TARTUCE, Flávio. Estatuto da pessoa com deficiência: Uma nota crítica. Por Zeno Veloso. Disponível em << https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/338456458/estatuto-da-pes... >>

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. v. 6, 5 ed., São Paulo: Atlas, 2005.


Notas

[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v.I, p. 171

[2] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. v. 6, p. 487

[3] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. p. 16

[4] Estatuto da Pessoa com Deficiência: 11 perguntas e respostas. Disponível em << http://genjuridico.com.br/2015/10/05/em-11-perguntas-e-respostas-tudo-qu... >>

[5] Estatuto da pessoa com deficiência: Uma nota crítica. Por Zeno Veloso. Disponível em << https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/338456458/estatuto-da-pes... >>