A apreensão em flagrante do adolescente infrator pela ótica de quem lavra


Pormarina.cordeiro- Postado em 21 março 2012

Autores: 
ARAÚJO, Tiago Lustosa Luna de

Em 13 de julho de 2010, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90 - ECA) completou vinte anos de existência, sendo considerado, até hoje, um marco legislativo. O Estatuto, afinado com as diretrizes da Constituição de 1988 e de tratados internacionais [01], deixando de lado a filosofia defasada do Código de Menores (Lei n. 6.697/1979), passou a tratar os menores de 18 anos não mais como meros inimputáveis, mas como sujeitos de direitos, prescrevendo, concomitantemente, as garantias aptas a assegurá-los.

Na seara infracional [02], as garantias se mostram evidentes, através da previsão de princípios, vedações e procedimentos específicos, com o fito de assegurar a proteção integral da criança e do adolescente, em razão de sua condição especial de pessoa em desenvolvimento (art. 6). A apreensão em flagrante do adolescente infrator, por exemplo, é medida drástica de privação de liberdade, em relação a qual devem ser rigorosamente observados os direitos e garantias previstos no ECA, sob pena de responsabilização [03].

Neste particular, observamos certa dificuldade na interpretação das normas do estatuto, no que concerne a alguns aspectos do atendimento e destino do adolescente conduzido em estado de flagrância. Assim, propõe-se, com o presente texto, uma abordagem objetiva do tema, expondo, passo a passo, sob a perspectiva policial, os procedimentos a serem adotados, bem como algumas questões específicas, consignando, quando pertinente, nossa opinião.

Inicialmente, há que deixar claro que a criança (até 12 anos de idade incompletos) não será apreendida em flagrante pela polícia por prática de ato infracional, só o sendo o adolescente (de 12 até 18 anos de idade incompletos). Segundo o artigo 105 do ECA, ao ato infracional praticado por criança corresponderão as medidas previstas no art. 101 (medidas protetivas ou de proteção em espécie [04]), a serem aplicas pelo Conselho Tutelar (art. 136, I) ou Juiz da Infância e Juventude (art. 262).

Assim, caso a repartição policial receba ocorrência de ato infracional cometido por criança, deve seguir os seguintes passos: a) encaminhar para o Conselho Tutelar e fazer o registro da ocorrência; b) na ausência do Conselho Tutelar, conduzir a criança para o Juiz da Infância e Juventude, mediante termo de entrega ou c) na ausência do Juiz da Infância e Juventude, entregar aos pais ou responsáveis e encaminhar, posteriormente, através de comunicação, o registro da ocorrência ao juizado (cf. Guia prático..., 2006, p. 4) [05].

Nos termos do ECA (art. 106, caput), em norma adaptada do art. 5º, LXI, da Constituição, o adolescente somente será privado de sua liberdade em duas hipóteses: 1) em caso de flagrante de ato infracional ou 2) por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente [06]. É do primeiro modo coercitivo que trataremos amiúde.

A apreensão em flagrante do adolescente está regulada no estatuto, mais precisamente, no Título VI: Do Acesso à Justiça, Capítulo III: Dos Procedimentos, Seção V: Da Apuração de Ato Infracional Atribuído a Adolescente. Aplicam-se subsidiariamente as normas gerais previstas no Código de Processo Penal e leis processuais esparsas pertinentes (cf. art. 152).

O artigo 172 determina que o adolescente apreendido em flagrante de ato infracional será, desde logo, encaminhado, adequada e condignamente [07], à autoridade policial competente. Havendo no local do fato repartição policial especializada, será o Delegado titular desta a autoridade competente (na cidade de Aracaju-SE, por exemplo, é o Delegado lotado na Delegacia de Proteção à Criança e Adolescente - DEPCA). Não existindo órgão especializado, o menor infrator será apresentado ao Delegado comum, municipal ou distrital.

E se o adolescente infrator houver praticado ato infracional em coautoria com maior? Sendo ambos detidos, para onde levá-los? O parágrafo único, do art. 172, esclarece que havendo repartição policial especializada para atendimento de adolescente, prevalecerá a atribuição desta, a qual, após as providências necessárias e conforme o caso, encaminhará o adulto à repartição policial própria (comum ou especializada para outras atribuições), juntamente com os autos para instauração de Inquérito Policial. Neste caso, em princípio, serão lavrados dois autos, o de apreensão em flagrante do adolescente e o de prisão em flagrante do adulto. Eduardo Roberto Alcântara Del-Campo e Thales Cezar de Oliveira (2005, p. 219), prestigiando uma ação mais célere e econômica, sugerem a lavratura de um só auto, de apreensão e prisão em flagrante (no mesmo sentido Jurandir Norberto Marçura in CURY, 2005, p. 533).

Se houver dúvida sobre a idade real do detido, cuja identificação não foi obtida e que alega ser menor de idade, como tal será tratado, inclusive na lavratura dos respectivos procedimentos, até esclarecimento através do órgão de identificação ou perícia médico-legal (semelhantemente: GARCIA, 2004, p. 336 e ROCHA, 2002, p. 466). A identificação compulsória, em consonância com o art. 5º, LVIII, da CF, ocorre nos termos do art. 109 do ECA que dispõe que: "O adolescente civilmente identificado não será submetido a identificação compulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada". Pode ter como fonte a Lei 12.037/2009 - nova lei de identificação criminal (cf. ROSSATO, LÉPORE, SANCHES, 2010, p. 308). Realizada a identificação ao arrepio da hipótese legal, configura-se a responsabilidade penal do art. 232 do ECA.

Deve-se, outrossim, evitar o sensacionalismo com a apreensão. O Delegado, como garante dos direitos do adolescente apreendido, deve repelir qualquer atitude que vise a expor a imagem e identidade deste. O ECA é veemente quando, em seu art. 143, proíbe a divulgação de atos judiciais, policiais e administrativos que digam respeito a crianças e adolescentes a que se atribua autoria de ato infracional, significando dizer que estarão, estes atos, acobertados pelo sigilo. O parágrafo único prossegue determinando que qualquer notícia a respeito do fato não poderá identificar a criança ou adolescente, vedando-se fotografia, referência a nome, apelido, filiação, parentesco, residência e, inclusive, iniciais do nome e sobrenome. A divulgação/publicação indevida faz incidir, ao desobediente, responsabilidade administrativa, prevista no art. 247. Nada impede a publicação da notícia, em si. O nome da vítima deverá ser preservado se a expuser à situação de risco.

Pois bem. Recebida a ocorrência e apreendidos na repartição policial, abre-se caminho para duas possibilidades:

1) Não há estado de flagrância, mas há indícios de participação do adolescente na prática de ato infracional. Neste caso a autoridade policial determinará o registro do fato através de boletim de ocorrência (BO), fará a oitiva dos presentes (condutores, conduzido e eventual vítima) sobre os fatos, liberando em seguida o menor, mediante termo de entrega aos pais ou responsável, ou, na ausência destes, ao Conselho Tutelar ou Juiz. Instaurará procedimento investigatório, batizado na praxe policial como Auto de Investigação de Ato Infracional – AIAI, similar ao Inquérito (cf. GARCIA, 2004, p. 331), e, ao final, encaminhará ao representante do Ministério Público relatório das investigações e demais documentos (v. art. 177). Luiz Carlos Rocha (2002, p. 464), diversamente, defende o envio apenas de relatório resumido, do qual conste, além das indicações próprias do BO, a descrição sumária do fato e da autoria bem como rol de testemunhas;

2) Há estado de flagrância (hipóteses do art. 302 do Código de Processo Penal), devendo a autoridade policial, formado seu juízo preliminar de tipicidade, determinar a lavratura do BO e iniciar o procedimento a ser realizado, nos termos do artigo 173, a saber:

Art. 173. Em caso de flagrante de ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça a pessoa, a autoridade policial, sem prejuízo do disposto nos arts. 106, parágrafo único, e 107, deverá:

I - lavrar auto de apreensão, ouvidos as testemunhas e o adolescente;

II - apreender o produto e os instrumentos da infração;

III - requisitar os exames ou perícias necessários à comprovação da materialidade e autoria da infração.

Parágrafo único. Nas demais hipóteses de flagrante, a lavratura do auto poderá ser substituída por boletim de ocorrência circunstanciada.

Pelo dispositivo em comento, para o ato infracional cometido mediante violência ou grave ameaça à pessoa (caput)será confeccionado o Auto de Apreensão em Flagrante, procedimentomuitosemelhante, na forma, ao auto de prisão em flagrante para o adulto. O atingido pelo meio deve ser "pessoa", assim, se a violência for cometida contra objetos (ex: dano - art. 163 do Código Penal) ou contra animais (ex. maus-tratos - art. 32. Lei 9.605/98), não se procederá ao auto de apreensão, mas sim ao Boletim e Ocorrência Circunstanciado, a seguir exposto.

Em sintonia com a Carta Magna (art. 5º, LXIII, LXVI e LXII), o auto de apreensão será lavrado sem prejuízo do disposto nos arts. 106, parágrafo único, e 107, que expressam, respectivamente: a) o direito à identificação dos responsáveis pela apreensão e à informação acerca dos direitos (art. 106, parágrafo único), b) a comunicação imediata à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada da apreensão e local onde se encontra recolhido [08] (Art. 107, caput) e c) o exame, desde logo e sob pena de responsabilidade, da possibilidade de liberação imediata (art. 107, parágrafo único).

Apesar de previstas para o auto de apreensão, as providências de oitivas das testemunhas e do adolescente, de apreensão do produto e dos instrumentos da infração e de requisição dos exames ou perícias (art. 173, I a III), são também aplicáveis ao Boletim de Ocorrência Circunstanciado (cf. oportunamente atentam ROSSATO, LÉPORE, SANCHES, 2010, p. 427).

As peças que compõe o auto de apreensão já formam um procedimento próprio, que servirá de base para eventual representação do Ministério Público, dispensando a abertura de Autos de Investigação de Ato Infracional ou Relatório resumido (assim: ROCHA, 2002, p. 469), salvo se requisitado pelo Parquet. Concordamos. Novas diligências e elementos de prova, posteriores à autuação, poderão ser remetidos, via ofício, ao titular da ação socioeducativa. Diversamente, pela abertura automática do AIAI: GARCIA, 2004, p. 338.

Já para o ato infracional cometido sem violência ou grave ameaça à pessoa (parágrafo único), lavrar-se-á Boletim de Ocorrência Circunstanciado, procedimento bem mais simplesque o auto de apreensão, mas que não prescinde de uma elaboração cautelosa e aprofundada, pois servirá de base para a manifestação do Ministério Público e providências do juízo. Note-se que a lei "faculta" a lavratura, podendo a autoridade policial, considerando a complexidade e gravidade do caso concreto, optar por realizar auto de apreensão [09].

Após a confecção do Auto de Apreensão em Flagrante ou do Boletim de Ocorrência Circunstanciado, conforme o caso, o Delegado de polícia decidirá se manterá ou não a apreensão, levando em conta o conteúdo expresso no art. 174, in verbis:

Art. 174. Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança pessoal ou manutenção da ordem pública.

O disposto neste dispositivo merece especial atenção, pois sua má interpretação pode gerar equívocos na prática. Ele abre ao Delegado de Polícia a possibilidade de liberar o infrator, delimitando os requisitos e meio para tanto. Segue, nesse passo, a diretriz expressa no parágrafo único do art. 107, segundo o qual: "Examinar-se-á, desde logo e sob pena de responsabilidade[10], a possibilidade de liberação imediata". A liberação também ocorrerá quando da constatação de ilegalidade da apreensão pelos condutores. Sendo o adolescente liberado, a autoridade policial encaminhará imediatamente ao representante do Ministério Público cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência (art. 176), mostrando-se desnecessária a comunicação ao juiz.

A regra, assim ensina a doutrina baseada em normas internacionais, é que o adolescente responda ao procedimento em liberdade (cf. ROSSATO, LÉPORE, SANCHES, 2010, p. 302).

O instrumento emitido para operacionalizar a liberação é termo de compromisso e responsabilidade de apresentação do adolescente infrator ao membro do Ministério Público local, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato. O termo, depois de cientificado seu teor, será assinado pelos pais ou responsável. A doutrina adverte para o risco de se dar uma interpretação extensiva ao termo responsável, "a ponto de se admitir a liberação para qualquer pessoa indicada pelo infrator ou que espontaneamente se apresente no distrito policial, tais como vizinhos, tios, irmãos etc" (DEL-CAMPO; OLIVEIRA, 2005, p. 219). Responsável, nesse passo, deve ser tido como aquele que tem o dever legal de guarda. Se os pais ou responsável não forem encontrados ou não quiserem resgatar o adolescente, mesmo assim não haverá óbice à liberação, sugerindo-se sua entrega ao Conselho Tutelar [11], ou, na ausência deste, ao Juiz, para que sejam adotadas as medidas pertinentes.

A decisão pela manutenção da apreensão pode se dar para assegurar a ordem pública ou a segurança pessoal do infrator, afetadas pela prática do ato infracional grave e de repercussão social.

Os parâmetros para dimensionar a gravidade do ato infracional não foram expressos no ECA, razão pela qual há controvérsias sobre como defini-la. Para alguns doutrinadores, o critério residiria apenas no fato de o crime ser punido, em abstrato, com pena de reclusão (Cury, Garrido e Marçura apud DEL-CAMPO e OLIVEIRA, 2005, p. 162; CURY, 2005, p. 534 e ROCHA, 2002, p. 470). Outros, porém, defendem a análise da gravidade realizada casuisticamente (nesse sentido ROSSATO, LÉPORE, SANCHES, 2010, p. 336 e CURY, 2005, p. 416). Parece-nos mais razoável a última posição.

A taxação dos crimes de menor potencial ofensivo, pela Lei 9.099/95, pode servir como norte interpretativo para aferição dos atos infracionais destituídos de gravidade. Nessa ordem de ideias, atos infracionais como de lesão corporal leve (art. 129, caput, do Código Penal) e de ameaça (art. 147 do mesmo código), apesar de agressivos (o primeiro cometido mediante violência e o segundo com grave ameaça), por serem de menor potencial lesivo (portanto não graves), ensejariam a liberação do seu autor. Não seria nada razoável que adolescentes pudessem ficar retidos por essas condutas, até porque adultos que as cometem podem ser postos em liberdade, mediante termo de compromisso de comparecimento ao juizado, no bojo do Termo Circunstanciado.

Conjugada à gravidade, deve haver a repercussão social do ato infracional. Jurandir Norberto Marçura (in CURY, 2005, p. 534) define ato infracional de repercussão social como aquele "que provoca clamor público, gerando nas pessoas sentimento de indignação".

Os atos graves e de repercussão social, aptos a atentarem contra a ordem pública, podem ser cometidos mediante violência ou grave ameaça (ex: o estupro, latrocínio, extorsão mediante seqüestro, homicídio doloso) ou sem violência ou grave ameaça (ex: trafico de entorpecentes), justificando ambas as formas a manutenção da apreensão. Os atos graves e sem repercussão social (exemplos: estelionato, porte ilegal de arma de fogo, furto, apropriação indébita) e os sem gravidade e sem repercussão social (ex: injúria, calúnia, difamação, dano simples), diferentemente, ensejam a pronta liberação.

Analisando a necessidade de internação para garantia da segurança pessoal do adolescente que praticou ato grave e de repercussão social (situação de risco), Pedro Caetano de Carvalho (in CURY, 2005, p. 537) leciona que: "há situações em que o crime causa clamor público ou revolta familiares e amigos da vítima, levados, muitas vezes, a querer vingança ou fazer justiça com as próprias mãos. Para estes casos, o bom senso indica que a não liberação pode representar a sobrevivência do adolescente" [12].

A teor do artigo 175, em caso de não liberação, o adolescente será encaminhado, desde logo, ao representante do Ministério Público, juntamente com cópia do auto de apreensão ou boletim de ocorrência, o qual, no mesmo dia e à vista do procedimento encaminhado, procederá imediata e informalmente à sua oitiva e, em sendo possível, de seus pais ou responsável, vítima e testemunhas (art. 179, caput), podendo o Parquet, na seqüência, agir de três modos, conforme elencado no art. 180: 1) promover o arquivamento dos autos; 2) conceder a remissão (casos em que o próprio Promotor determina a imediata liberação) ou 3) representar à autoridade judiciária para aplicação de medida socioeducativa (que conduz à ação socioeducativa pública), requerendo ou não, na própria peça inaugural da persecução infracional, a internação provisória como medida cautelar (equivalente à prisão preventiva) [13].

Sendo impossível a apresentação imediata ao promotor, a autoridade policial encaminhará o adolescente à entidade de atendimento (art. 90, VII), que fará a apresentação ao representante do Ministério Público no prazo de 24 (vinte e quatro) horas (art. 175, § 1º). Nas localidades onde não houver entidade de atendimento, a apresentação far-se-á pela autoridade policial. À falta de repartição policial especializada, o adolescente aguardará a apresentação em dependência separada da destinada a maiores, não podendo, em qualquer hipótese, exceder o prazo de vinte e quatro horas (art. 175, § 2º) [14].

Na prática, como bem vaticina Ismar Estulano Garcia (2004, p. 338), trata-se de norma pouca observada, sobretudo nas pequenas cidades onde não há funcionamento de recolhimento provisório administrado pelo juízo, ocorrendo "a simples comunicação do fato e a ciência de que o menor encontra-se recolhido à disposição do Juiz". E continua o mesmo autor: "O recolhimento pela polícia, que deveria somente ocorrer como exceção, acaba sendo a regra".

Após manifestação do promotor, se este representar pela aplicação de medida socioeducativa, os autos são conclusos à autoridade judiciária, a qual designará audiência de apresentação do adolescente, decidindo, desde logo, sobre a decretação ou manutenção da internação provisória (nas hipóteses dos incisos I a III, do art. 122), pelo prazo máximo de quarenta e cinco dias, em decisão fundamentada e baseada em indícios suficientes de autoria e materialidade, demonstrada a necessidade imperiosa da medida (art. 184, caput, c/c art 108 e parágrafo). Não havendo necessidade de internação ou existindo medida alternativa mais adequada (art. 122, § 2º), o infrator será posto em liberdade.

Sendo a internação decretada pela autoridade judiciária, exige o ECA que não seja cumprida em estabelecimento prisional (art. 185). Inexistindo na comarca entidade exclusiva para adolescentes, situada em local distinto daquele destinado ao abrigo, onde é obedecida rigorosa separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração, e onde se aplicam obrigatoriamente atividades pedagógicas (características estas definidas no art. 123), o adolescente deverá ser imediatamente transferido para a localidade mais próxima (§ 1º). Prevê ainda o estatuto que, sendo impossível a pronta transferência, o adolescente aguardará sua remoção em repartição policial, desde que em seção isolada dos adultos (incomunicabilidade) e com instalações apropriadas, não podendo ultrapassar o prazo máximo de 05 (cinco dias), sob pena de responsabilidade [15] (§ 2º).

Não havendo condições operacionais, justificáveis, de transferir o adolescente no prazo legal, deve o Delegado, antes do término do lapso temporal, oficiar ao Juiz, informando o problema e requerendo posicionamento no sentido da manutenção na repartição policial, mudança para outro local ou liberação, evitando, com isso, a responsabilização pelo descumprimento da norma do § 2º, do art. 185.

Antes da transferência a qualquer entidade, é pertinente que se realize exame de corpo de delito no interno, mesmo que não apresente lesões. Frisando essa medida, leciona Luiz Carlos Rocha (2002, p. 469): "um exame que não pode ser esquecido, ad cautela, é o exame de corpo de delito do menor infrator. A legislação não prevê, mas o delegado deve providenciar esse exame, para que o menor não alegue, posteriormente, ter sido vítima de maus tratos".

C´est fini.

Esse é o roteiro que propomos para o ciclo da apreensão em flagrante do adolescente infrator, que vai da detenção pelos condutores à liberação ou internação, esperando que seja útil, sobretudo aos servidores policiais, que têm a missão árdua, e ao mesmo tempo honrada, de preservar a ordem pública e solucionar infrações penais. Críticas à parte, o ECA constitui paradigma de enfrentamento proporcional e garantista das questões que envolvem a infância e juventude, sendo copiado por muitos países. A comemoração dos vinte anos do estatuto serve para lembrar sua importância e contribuição para a sociedade. Com o presente escrito, oferecemos nossa homenagem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CURY, Munir (Coord.). Estatuto da Criança e do Adolescente comentado: Comentários jurídicos e sociais. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2005.

DEL-CAMPO, Eduardo Roberto Alcântara; OLIVEIRA, Thales Cezar de. Estatuto da criança e do adolescente. São Paulo: Atlas, 2005 (Série leituras jurídicas: provas e concursos; v. 28).

GARCIA, Ismar Estulano. Procedimento Policial: Inquérito e Termo Circunstanciado. 10. ed. Goiânia: AB, 2004.

Guia prático para atuação das polícias em situações envolvendo criança e adolescente. Delegacia especial de proteção à criança e ao adolescente. Aracaju: SSP-SE, 2006.

ROCHA, Luiz Carlos. Manual do Delegado de Polícia: Procedimentos policiais. Bauru, São Paulo: Edipro, 2002.

ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo; CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da criança e do adolescente comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.


Notas

  1. Vide art. 227 da Constituição Federal (com a redação dada pela EC 65/2010), bem como as convenções de Organização Internacional do Trabalho, Declaração de Genebra – Carta da Liga sobre a Criança de 1924, Declaração dos Direitos da Criança de 1959, regras mínimas das Nações Unidas para a administração da Justiça da Infância e da Juventude – Regras de Beijing e Convenção sobre os direitos da criança de 1989.
  2. Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.
  3. O art. 230 dita como crime: "Privar a criança ou o adolescente de sua liberdade, procedendo à sua apreensão sem estar em flagrante de ato infracional ou inexistindo ordem escrita da autoridade judiciária competente: Pena - detenção de seis meses a dois anos. Parágrafo único. Incide na mesma pena aquele que procede à apreensão sem observância das formalidades legais".
  4. Para Estela Scheinvar (in CURY, 2005, p. 325): "As medidas específicas de proteção no art. 101 são propostas quando da ameaça ou da violação dos direitos reconhecidos na lei da Criança e do Adolescente, seja por ‘ação ou omissão da sociedade ou do Estado; por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável, assim como em razão de sua conduta’".
  5. Ismar Estulano Garcia (2004, p. 340), de modo diferente, ensina que: "As crianças apanhadas na prática ato infracional são imediatamente entregues aos pais ou responsável, mediante termo de responsabilidade expedido pela autoridade policial e assinado pelos pais ou pelo responsável, devendo ser feita comunicação, via ofício, ao Conselho Tutelar, ou na falta deste, ao Juiz de Direito. Se na localidade existir Conselho Tutelar, o encaminhamento deve ser imediato, sem necessidade sequer de lavrar ocorrência".
  6. Reza o art. 171 que: "O adolescente apreendido por força de ordem judicial será, desde logo, encaminhado à autoridade judiciária".
  7. Na condução à repartição policial especializada, o adolescente infrator não poderá ser conduzido ou transportado em compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade (art. 178). Não há vedação ao uso de algemas, quando necessário. Os parâmetros para o uso de algemas foram delineados pela malfadada, para não dizer inconstitucional, súmula vinculante 11 do STF.
  8. A responsabilidade penal encontra-se descrita no art. 231: "Deixar a autoridade policial responsável pela apreensão de criança ou adolescente de fazer imediata comunicação à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada: Pena - detenção de seis meses a dois anos".
  9. Questão interessante: Com a entrada em vigor da Lei 9.099/95, houve a introdução, no processo penal, do Termo Circunstanciado de Ocorrência (TCO), em muito parecido, na forma, com o Boletim de Ocorrência Circunstanciado (BOC). O TCO, como se sabe, é o procedimento correspondente aos crimes de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei 9.099/95), ou seja, aqueles cuja pena máxima não ultrapasse dois anos. Pergunta-se: os atos infracionais os cometidos mediante violência ou grave ameaça correspondentes aos crimes de menor potencial ofensivo seriam, por analogia, tratados em procedimento simplificado, no caso o BOC? Por que se dar ao trabalho de formalizar o ato de apreender se já se sabe que, ao final, o menor será liberado? Interpretação literal: Apesar de a lei 9.099/95 ser posterior ao ECA, não alterou a parte procedimental referida no inciso I do art. 173, aplicando-se o princípio da especialidade. Assim, por exemplo, na hipótese de cometimento de lesões corporais leves por parte de um adolescente, lavrar-se-ia o auto de apreensão e não o BOC. Interpretação baseada no método normativo-estruturante (de Müller): a literalidade seria posta de lado pelo intérprete-aplicador (aqui o Delegado) para valorizar a concretização da norma jurídica (que não é sinônimo de texto normativo) na realidade social. Assim, a analogia com a lei 9.099/95, que trouxe novos paradigmas processuais, traria ao ECA a razoabilidade que faltou na prescrição original do art. 173, I, sendo mais adequado à nova realidade social o uso do BOC em lugar do auto de apreensão, nas ocorrências de atos infracionais que se enquadrem no conceito de menor potencial ofensivo (concepção do delegado Claudio Roberto A. de Sousa).
  10. Neste sentido, o art. 234 criminaliza a conduta da autoridade competente (Delegado ou Juiz) nos seguintes termos: "Deixar a autoridade competente, sem justa causa, de ordenar a imediata liberação de criança ou adolescente, tão logo tenha conhecimento da ilegalidade da apreensão: Pena - detenção de seis meses a dois anos".
  11. Na rotina policial a participação do Conselho Tutelar tem se revelado de grande valia, proporcionando o devido acompanhamento e encaminhamento para as redes de proteção disponíveis, fazendo valer o princípio da proteção integral. Muitas autoridades policiais têm a práxis de convocar membros do Conselho Tutelar para acompanharem oitivas de adolescentes infratores, trazendo credibilidade e segurança ao trabalho desenvolvido nas repartições policiais.
  12. Há, contudo, vozes contrárias à internação ou sua manutenção por situação de risco, neste sentido, comentando a internação decretada pelo juiz: "Com efeito, a internação teria a finalidade de tutelar interesse da sociedade, funcionando como mecanismo cautelar e de defesa social. Se o adolescente necessita de proteção, então, o correto é acionar a rede protetiva" (in ROSSATO, LÉPORE, SANCHES, 2010, p. 305).
  13. As medidas previstas no art. 180 do ECA também poderão ser tomadas nas hipóteses de apresentação, pelos pais ou responsável, do menor liberado, ou remessa do AIAI ou relatório resumido.
  14. O não cumprimento do prazo de 24 horas, injustificado, pode ensejar responsabilização criminal incidente no artigo 235 do ECA: "Descumprir, injustificadamente, prazo fixado nesta Lei em benefício de adolescente privado de liberdade: Pena - detenção de seis meses a dois anos". Exemplos de situações justificadas de impossibilidade de apresentação que isentam de responsabilização o órgão incumbido são: a hospitalização do menor, ausência do promotor na cidade ou no plantão, insuficiência de efetivo ou falta de viatura para transporte, etc.
  15. Aqui também pode incidir a responsabilidade pelo art. 235. Vide nota anterior para mais detalhes.