A aplicabilidade da Lei de Ficha Limpa para as eleições 2010


Pormarina.cordeiro- Postado em 16 maio 2012

Autores: 
MIRANDA, Fagianni Viana de

O candidato a Governador Jackson Lago teve o seu registro impugnado por causa de inelegibilidade constante de inovação trazida pela LC nº 135/2010.

Faz parte da liturgia do cargo de assessor jurídico a discrição e a conduta reservada, razão pela qual deve este evitar, tanto quanto possível, a emissão de opinião pública sobre caso concreto.

Entretanto, como se trata de matéria julgada em 04 de agosto último pelo Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão, nos autos da AIRC nº 3128-94.2010.6.10.0000 — que deferiu o registro de candidatura de Jackson Kepler Lago ao cargo de Governador do Estado do Maranhão —, tal como se verá adiante, afigura-se salutar e conveniente a realização deste ensaio, ainda que frugal, acerca de questão tão controversa.

Convém, de início, confessar que, ao participar do Congresso Brasiliense de Direito Eleitoral, ocorrido na Capital Federal, em maio passado — portanto, pouco antes da aprovação da lei complementar objeto deste rápido estudo —, o autor estava juridicamente inclinado pela imediata aplicação da nova lei, caso fosse sancionada — como de fato a foi.

Todavia, entre teoria e prática vão-se distâncias razoáveis. Diante do inusitado, foi o autor testemunha e partícipe de debates informais entre magistrados, membros do ministério público, assessores, advogados, e uma faceta de tudo isso se mostrava mais ostensivamente: a dúvida e a inquietação sobre como enquadrar, à luz da exegese majoritária, uma lei complementar que, prima facie, parecia angulosa demais para se encaixar com mínima perfeição diante da Constituição Federal.

Em matéria de direito, como em qualquer outro ramo da ciência, diante de um tema novo, num ambiente rarefeito de artigos, doutrinas, nenhuma jurisprudência, deve voltar-se o hermeneuta para as origens, ou melhor, para os princípios.

E são exatamente nos princípios em que se sustentam, estruturam e organizam todo o arcabouço e a lógica jurídica. Ressalte-se, o conjunto normativo material e instrumental tem suas bases fincadas nessa substrução elementar. Logo, nada mais interessante para o estudioso do direito que se deparar com situações novas, porquanto possível revisitar as nascentes da norma em si, e a partir dali, construir as correntes de pensamento, teses, à semelhança do curso de um rio sendo desenhado ao longo do tempo, pela intervenção da mão doutrinária e jurisprudencial.

No entanto, esse intervencionismo deve ter limites. Da mesma forma que um rio admite ser represado, desviado, este não poderá desafiar a lógica, aí compreendida a lei da gravidade, que é um princípio fundante da ciência física.

Enquanto não se definir, com exatidão, o curso a ser seguido por este rio imaginário — se planície abaixo ou planalto acima, se mais a leste ou a oeste —, corre-se o risco de se condenar o cidadão comum, pouco interessado nesse viés romântico do Direito, ao limbo da insegurança jurídica, por não saber se está edificando sua vida política num outeiro seguro, num solo de aluvião, ou mesmo na várzea seca, à espera da inundação iminente.

Impressionante, por conseguinte, como tudo na vida segue uma lógica. Enquanto não se resolver essa questão, por exemplo, mediante controle concentrado de constitucionalidade, um número imenso de controvérsias se avolumará nos tribunais, tais como as águas que se vão represando, à espera de um leito pacífico por onde possam escoar.

Mantida a lógica dos fenômenos da natureza, havendo demora, duas situações se afiguram possíveis: ou se vai criando uma força potencial capaz de inundar tudo, altiplano abaixo, destruindo-se direitos; ou simplesmente, pela demora extrema, as águas turbulentas nada mais encontrarão senão o deserto árido dos direitos, que é a perda do objeto.

Na dúvida, deve-se relembrar que os princípios, como na natureza, seguem uma lógica universal e inflexível.

Pois bem! Aqueles que militam nesta seara vão entender com perfeição o que se discorrerá brevemente a seguir.

Não há área do Direito mais rumorosa, movediça, instável, e por isso mesmo tão palpitante e desafiadora quanto a Eleitoral. Trata-se de um caso à parte em nosso ordenamento jurídico, contudo dotada de uma relevância monumental, porque, de forma direta ou indireta, diz respeito ao dia a dia das pessoas mais simples, indo até as decisões e acontecimentos mais marcantes da vida republicana. Enfim, o Direito Eleitoral interfere indistintamente, e de forma efetiva, na vida de todos, cidadãos ou não.

As decisões em matéria eleitoral, diferentemente da maioria das outras áreas do Direito, atingem em cheio a coletividade. Quando se interpõe um Recurso Contra Diplomação, por exemplo, em face de um Prefeito, Governador do Estado, ou até mesmo do Presidente da República, há, de imediato, a conformação triangular da lide, composta por Estado-Juiz e pelas partes.

No ápice, tem-se a figura do Estado-Juiz, nesse caso representado pelo órgão colegiado competente; no pólo ativo, haverá uma coligação, partido, candidato ou o Ministério Público Eleitoral, este na qualidade de "guardião do regime democrático e dos interesses difusos eleitorais" (RAMAYANA: 2006. p. 621); no outro, os candidatos diplomados, partidos ou coligações — esses dois últimos apenas em pleitos majoritários.

Antes, entretanto, uma indagação deve ser feita: a demanda judicial, em matéria eleitoral, diz respeito apenas aos atores diretamente envolvidos, ou a toda a coletividade?

Mais que em qualquer outro campo, as decisões nessa matéria afetam um contingente enorme de pessoas, e pode interferir, de maneira efetiva, no futuro e na história de um povo, tornando-se tanto mais importante quanto maior o universo envolvido, no caso de eleições municipais, estaduais ou mesmo presidenciais.

Para se chegar ao nível de maturidade política atual, levamos várias centenas de anos. O garantismo jurídico vivenciado por esta geração era impensável há não mais que vinte e poucos anos. No entanto, houve um custo altíssimo ao país e às sucessivas gerações que experimentaram o jugo dos regimes de exceção.

Exatamente por isso — no interpretar da lei — deve-se ter cuidado para não subverter e arruinar os alicerces do ordenamento jurídico, mitigando ou nulificando princípios consagrados na Carta Republicana de 1988, para impor um duro retrocesso a tudo o que se conseguiu edificar de mais sublime em matéria de direitos e garantias.

Não se pode, a pretexto de agir em nome da moralidade e dos mais elevados propósitos, seguir a lógica maquiavélica — em que os meios se justificam pelos seus próprios fins — para sacrificar todo um intrincado e delicado encadeamento lógico-jurídico, fruto de esforços de gerações inteiras de doutrinadores e juristas.

Hoje se respira ares democráticos plenos de leveza, há liberdade de expressão e nossas instituições democráticas são dotadas de musculatura suficiente para resistir a ataques e pressões, sejam as mais veladas e sutis ou mesmo às escâncaras.

Àqueles que se aventuram a opinar irresponsavelmente, sobretudo à luz dos holofotes da grande imprensa, é preciso que entendam a diferença entre formar e deformar opinião. Faz-se premente que compreendam o papel institucional dos cargos e posições que ocupam. Divulgada, pois, a posição do Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão — pela não aplicabilidade imediata da nova lei —, este foi duramente atacado, em escala nacional, por jornalistas, cronistas e até por profissionais da área jurídica, sendo voz corrente que o tribunal local descumprira deliberadamente orientação emanada do TSE.

Certo é que há maneiras civilizadas de irresignar-se diante de uma decisão judicial. Nesse caso, servem os recursos e a ação declaratória de constitucionalidade. Mas o que não se pode tolerar é o ataque gratuito, infamante, contra uma instituição republicana que tem como função precípua, garantir o exercício da democracia, aí compreendida, inclusive, a liberdade de se poder criticar decisões judiciais, com a certeza de que nunca mais se voltará aos tempos despóticos dos decretos-leis e atos institucionais.

Ora, é comezinho que resultado da consulta não vincula qualquer tribunal regional, juiz, ou mesmo o próprio colendo TSE, quando da análise de futuros casos concretos. Basta lembrar que sequer ali o assunto é pacífico.

Menos ainda se pode admitir como verdade que tenha a Corte Regional descumprido orientação daquele Pretório Superior. Não se pode ignorar o papel constitucional dos Tribunais Regionais Eleitorais, que, muito longe de serem claustros judiciais submissos a uma Sé, têm liberdade para decidir conforme a consciência e livre convencimento de seus Juízes Membros, respeitados os limites e parâmetros da legalidade.

A Justiça Eleitoral, mormente nos dias atuais, não se presta à defesa apaixonada de teses ou interesses pessoais e políticos de quem quer que seja, mas tão só dedica-se à análise e apreciação técnica de fatos que lhes são postos, seja mediante provocação ou no exercício do poder de polícia, com o fim de prestar jurisdição.

Não há dúvidas, a nosso sentir, de que as alterações sofridas pela Lei Complementar nº 64/1990, por conta da já consagrada "Lei de Ficha Limpa", sejam uma vitória da sociedade. Contudo, o que se discute neste momento não é a sua validade, o seu alcance social, mas exclusivamente a modulação dos seus efeitos. Mostra-se, pois, bastante claro, em observância ao princípio da irretroatividade da lei mais severa, ao princípio da anualidade da lei eleitoral e a tantos outros, insertos ad abundantia no texto constitucional, que os seus efeitos sejam ex nunc.


SOBRE O CASO CONCRETO

No caso em exame, tem-se que o candidato a Governador JACKSON KEPLER LAGO teve o seu registro impugnado pelo Ministério Público Eleitoral, por enquadramento em causa de inelegibilidade constante de inovação trazida pela LC nº 135/2010, que alterou o art. 1º, inciso I, alínea d, da Lei de Inelegibilidades.

Vejamos, portanto, o que reza o novel dispositivo:

Art. 1º São inelegíveis:

I - para qualquer cargo:

d) os que tenham contra sua pessoa representação julgada procedente pela Justiça Eleitoralem decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiadoem processo de apuração de abuso do poder econômico ou político, para a eleição na qual concorrem ou tenham sido diplomados, bem como para as que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes;  (Redação dada pela Lei Complementar nº 135, de 2010).

— destacamos —

Entretanto, necessário analisar a parte dispositiva da decisão que gerou a presente impugnação, nos autos do RCED nº 671-TSE:

DECISÃO:

O Tribunal, por unanimidade, rejeitou as preliminares suscitadas, nos termos do voto do Relator. No mérito, por maioria, proveu o Recurso para cassar os diplomas do governador, Jackson Kepler Lago, e do vice-governador, Luiz Carlos Porto. Vencidos os Ministros Marcelo Ribeiro e Arnaldo Versiani, que o desproviam.

Por maioria, vencido o Ministro Felix Fischer, o Tribunal determinou que sejam diplomados nos cargos de governador e vice-governador do Estado do Maranhão os segundos colocados no pleito de 2006, nos termos do voto do Relator.

Também por maioria o Tribunal decidiu que a execução do julgado se dará com o julgamento de eventuais Embargos de Declaração, nos termos do voto do Ministro Ricardo Lewandowski. Vencidos os Ministros Eros Grau (Relator) e Felix Fischer.

(Recurso Contra Expedição de Diploma nº 671, Acórdão de 03/03/2009, Relator(a) Min. EROS ROBERTO GRAU, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 59, Data 03/03/2009, Página 35)


I – RCED e declaração de inelegibilidade:

Cumpre anotar que a r. decisão do TSE não decretou inelegibilidade do ex-Governador. E não o fez por um motivo bem simples: é que a procedência do pedido, em sede de RCED, não se presta a declarar inelegibilidade do diplomado. As melhores lições doutrinárias ensinam, em uníssono, que o RCED pode fundar-se em causa de inelegibilidade superveniente ao registro de candidatura, mas nunca declará-la como consequência.

Ademais, mesmo à luz da nova redação, o art. 1º, inciso I, alínea d, é bastante claro ao estabelecer que somente serão declarados inelegíveis aqueles que contra si tiverem representação julgada procedente pela Justiça Eleitoral.

Ora, o termo "representação" diz respeito às ações judiciais hábeis a apurar, mediante investigação judicial, as infrações de que tratam o art. 22 da LC 64/90, quais sejam, "uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social".

Cabe ainda anotar que a representação de que trata o art. 22 segue rito próprio, enquanto o recurso contra diplomação está atrelado ao procedimento previsto nos art. 266 e 267, no caso de eleições municipais, prosseguindo-se com os arts. 268 e seguintes do Código Eleitoral, nas eleições estaduais. Portanto, são ações distintas, anotando-se que o RCED possui natureza jurídica de ação.

Porém, cada uma dessas ações constitui processo autônomo, dado possuírem causas de pedir próprias e consequências distintas, de acordo com os seguintes precendentes do e. TSE: AREspe 26.276/CE, Rel. Min. Marcelo Ribeiro, DJ de 7.8.2008; REspe 28.015/RJ, Rel. Min. José Delgado, DJ de 30.4.2008.

Nesse sentido é a decisão do e. TSE que, nos autos do RCED nº 698, deixou de decretar inelegibilidade do Gov. Marcelo Miranda (TO), ao apreciar embargos de declaração interpostos pelo Partido Popular Socialista - PPS, verbis:

EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECURSO CONTRA EXPEDIÇÃO DE DIPLOMA. ELEIÇÕES 2006. CAPTAÇÃO ILÍCITA DE SUFRÁGIO. ABUSO DE PODER POLÍTICO E ECONÔMICO. USO INDEVIDO DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO. AUSÊNCIA DE OMISSÃO. EMBARGOS REJEITADOS. [...]

3. O art. 1º, I, c, da LC nº 64/90 prevê a inelegibilidade daqueles que perdem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual, da Lei Orgânica do Distrito Federal e da Lei Orgânica dos Municípios. Contudo, a pretensão de ver declarada tal inelegibilidade deve ser manejada por instrumento próprio. Tal sanção não se inclui entre aquelas previstas para o recurso contra expedição de diploma.

[...] (EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO CONTRA EXPEDIÇÃO DE DIPLOMA nº 698, Acórdão de 08/09/2009, Relator(a) Min. FELIX FISCHER, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Data 05/10/2009, Página 48 )

— destacamos —

Após a diplomação, portanto, somente em sede de AIME poder-se-ia ter decretado a inelegibilidade do governador cassado, fundada em abuso de poder político, com viés econômico (precedente TSE: Ação Cautelar nº 3.334-MG , rel. Min. Marcelo Ribeiro, em 25.09.2009, Síntese de 30.09.2009).


II – O princípio da anualidade ou anterioridade da lei eleitoral e irretroatividade da lei mais severa:

Em 1993, o art. 16 da Constituição Federal de 1988, por meio da emenda nº 4, passou a ter a seguinte redação:

Art. 16. A lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até um ano da data de sua vigência. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 4, de 1993)

O dispositivo supra é, pois, cristalino, não restando a menor dúvida, por decorrência lógica, de que a Lei Complementar nº 135/2010, por alterar as regras do processo eleitoral em pleno curso, não se aplicará às Eleições Gerais de 2010. Para chegar a esta conclusão, o autor dispensou maiores esforços exegéticos, mas tão somente valeu-se de vasta releitura daquilo que, até então, vinha decidindo pacificamente o excelso STF e o próprio colendo TSE.

Nesse diapasão, é indubitável que a interpretação dada à novel lei complementar também fere o princípio da irretroatividade da lei mais severa, consagrado no art. 5º, XL, da Lei Maior.

Contudo, não se contesta a importância da iniciativa popular para a aprovação da LC nº 135/2010. Sua aprovação foi exclusivamente resultado da valiosa pressão da sociedade civil organizada, absolutamente cansada da corrupção endêmica e da incapacidade administrativa que grassam pelos quatro cantos deste país. Por isso, a lei se transforma num filtro interessante, a expurgar temporariamente da vida pública aqueles que não foram dignos dos cargos que lhes foram confiados. Todavia, quem garante que, em muitos casos, a facilidade de tramitação nas duas Casas Legislativas não esteve atrelada a interesses menos nobres?

Ora, se o princípio em referência visa exatamente evitar casuísmos, está-se, pois, diante de um caso emblemático. A coluna PAINEL da Folha de São Paulo traz matéria demonstrando que, no plano nacional, a oposição sofrerá mais baixas que o governo federal, por conta da aprovação do Projeto Ficha Limpa:

PAINEL: FICHA LIMPA ABALARÁ MAIS PALANQUES DE SERRA DO QUE DE DILMA

DE SÃO PAULO

Exame preliminar da Lei da Ficha Limpa indica que, se aplicada sem exceção, a nova regra abalará mais palanques de José Serra (PSDB) do que de Dilma Rousseff (PT)

A lei impede, dentre outros dispositivos, a candidatura de políticos condenados por um colegiado da Justiça (mais de um juiz).

Segundo a coluna, a lista de possíveis baixas do lado dele começa no Maranhão, onde o nome para enfrentar o clã Sarney e o PT seria o do ex-governador Jackson Lago (PDT).

— destacamos —

O notável doutrinador Uadi Lammêgo Bulos, Presidente da Sociedade Brasileira de Direito Constitucional, em sua obra Curso de Direito Constitucional (Saraiva: 2010, 871-872), diz o seguinte:

Pelo princípio da anualidade ou anterioridade da lei eleitoral, busca-se evitar mudanças de última hora no processo de escolha dos representantes populares.

Mediante sua observância, as normas reguladoras de eleições só lograrão efetividade um ano após a data de sua vigência, como decidiu o Supremo Tribunal Federal.

Precedente do STF: "A norma inscrita no art. 16 da Carta Federal, consubstanciadora do princípio da anterioridade da Lei Eleitoral, foi enunciada pelo Constituinte com o declarado propósito de impedir a deformação do processo eleitoral mediante alterações casuisticamente nele introduzidas, aptas a romper a igualdade de participação dos que nele atuem como protagonistas principais: as agremiações partidárias e os próprios candidatos" (STF, Pleno, ADIn 353-MC/DF. Rel. Min. Celso de Melo, DJ, 1, de 12-2-1993, p. 1450).

— destacamos —

Ora, não se está a falar de uma norma qualquer, mas de um princípio consagrado na Constituição Federal. Data maxima venia, qualquer lei, notadamente por interpretação temerária, que venha a alterar as regras do processo eleitoral, sem a devida observância ao disposto no art. 16 da Carta Magna, é, nesse aspecto, inconstitucional e, via reflexa, nula de pleno direito.

Celso Antônio Bandeira de Melo, em valiosa lição doutrinária, bem explicita a importância dos princípios para o ordenamento jurídico:

"Princípio – já averbamos alhures – é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome sistema jurídico positivo.

Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra.

Isto porque, com ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e alui-se toda a estrutura nelas esforçada."

— destacamos —

Cumpre relembrar que, exatamente nas últimas Eleições Gerais (2006), houve tentativa semelhante de alterar as regras do jogo eleitoral, mediante promulgação da Emenda Constitucional nº 52, em pleno 08 de março de 2006, dando-se nova redação ao §1° do artigo 17 da Constituição, visando barrar a verticalização para as eleições do mesmo ano, ipsi litteris:

§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 52, de 2006)

Tratava-se de uma franca resposta do Congresso Nacional ao Tribunal Superior Eleitoral que, nas Eleições Gerais de 2002, expediu a Resolução n° 20.993, de 26 de fevereiro do mesmo ano, a qual criou a denominada "verticalização das coligações", ou seja, a obrigação dos partidos políticos repetirem nas eleições estaduais as coligações que porventura formularam na eleição nacional.

Ao confrontar-se com a matéria, nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3685-8/DF, o Supremo Tribunal Federal, sob a brilhante relatoria da Min. Ellen Gracie, assim se manifestou:

"[...] Quanto ao mérito, afirmou-se, de início, que o princípio da anterioridade eleitoral, extraído da norma inscrita no art. 16 da CF, consubstancia garantia individual do cidadão-eleitor detentor originário do poder exercido por seus representantes eleitos (CF, art. 1º, parágrafo único) e protege o processo eleitoralAsseverou-se que esse princípio contém elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental — oponível inclusive à atividade do legislador constituinte derivado (CF, artigos 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV) —, e que sua transgressão viola os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). Com base nisso, salientando-se que a temática das coligações está ligada ao processo eleitoral e que a alteração a ela concernente interfere na correlação das forças políticas e no equilíbrio das posições de partidos e candidatos e, portanto, da própria competição, entendeu-se que a norma impugnada afronta o art. 60, § 4º, IV, c/c art. 5º, LIV e § 2º, todos da CF. Por essa razão, deu-se interpretação conforme a Constituição, no sentido de que o §1º do art. 17 da CF, com a redação dada pela EC 52/2006, não se aplica às eleições de 2006, remanescendo aplicável a estas a redação original do mesmo artigo. [...]"

— destacamos —

Em suma, a verticalização continuou valendo para as Eleições de 2006, sendo definitivamente extinta apenas a posteriori, ou seja, neste prélio eleitoral. De se notar que uma emenda constitucional não conseguiu barrar, de imediato, sequer uma resolução normativa do TSE, justamente porque promulgada após o início do calendário eleitoral.

Mutatis mutandis, mantido tal raciocínio, e respaldado pelas mesmas premissas, impossível admitir-se que uma lei complementar que cria novos casos de inelegibilidade e aumenta substancialmente, de três para oito anos, a suspensão da cidadania passiva, venha a alterar as regras das próximas eleições, quase na antevéspera do período de registro de candidatura.

Por fim, à guisa de ilustração, e para bem demonstrar sobre o quão tormentosa é a matéria, traz-se à colação a seguinte manifestação do atual Presidente do TSE, também integrante do STF, o em. Min. Ricardo Lewandowski, ementada no excerto adiante, quando já se tentava aplicar do conceitode "ficha limpa", por meio de construção jurisprudencial, tudo isso há menos de um ano, verbis:

RECURSO CONTRA EXPEDIÇÃO DE DIPLOMA. INELEGIBILIDADE. VIDA PREGRESSA DE CANDIDATO ELEITO. ELEIÇÕES 2006. DEPUTADO ESTADUAL. PRELIMINAR. SEGREDO DE JUSTIÇA. INDEFERIMENTO.

I - A inelegibilidade infraconstitucional e preexistente ao registro não pode ser arguida no recurso contra expedição de diploma. Precedentes.

II - Não há que se falar em inelegibilidade de candidato eleito com base na sua vida pregressa sem que haja trânsito em julgado de decisão judicial condenatória, sob pena de afronta aos princípios constitucionais.

III - Recurso a que se nega provimento.

(Recurso Contra Expedição de Diploma nº 702, Acórdão de 18/06/2009, Relator(a) Min. ENRIQUE RICARDO LEWANDOWSKI, Publicação: DJE - Diário da Justiça Eletrônico, Tomo 166, data 01/09/2009, página 38)

— destacamos —

Na transcrita decisão, o eminente Ministro vai muito além, e se socorre do princípio constitucional da presunção de inocência ou não culpabilidade para cunhar o seu posicionamento (CF1988, art. 5º, LVII).

Entrementes, o assunto ainda suscitará intermináveis debates. No entanto, sob a ótica do autor, não há dúvida de que, pelo aspecto da aplicabilidade imediata e da retroatividade, a lei em referência sofrerá inevitáveis restrições, quando submetida ao controle abstrato de constitucionalidade.

Finalmente, e fazendo uma consideração histórica, oportuno lembrar que, a cada quatro anos, em face da realização de Eleições Gerais, vem se alterando, de alguma maneira, as regras do certame, seja para atender interesses pontuais de quem está no comando, seja com viés moralizador.

De uma forma ou de outra, em 1998, viu-se o nascimento do infausto instituto da reeleição, via EC nº 16, de 04.06 do ano anterior; em 2002, o e. TSE, tentando tornar coerentes as alianças no plano nacional, editou Resolução de n° 20.993, de 26.02 do mesmo ano, que disciplinou a verticalização das coligações; em 2006, o Congresso aprova a EC nº 52, de 08.03 daquele ano, tentando, sem sucesso, afastar a verticalização para aquele pleito geral. Agora, o país inteiro está novamente às voltas com a aplicabilidade ou não da LC nº 135, de 04.06 último, para as Eleições Gerais de 2010.

Com efeito, uma pergunta remanesce: o que mais virá, no afogadilho, para as Eleições Gerais de 201420182022...?

Por todo o exposto, e em homenagem ao princípio constitucional da segurança jurídica (art. 5°, XXXVI), princípio derivado da não surpresaprincípio constitucional da irretroatividade da lei mais severa (art. 5º, XL), princípio constitucional da anualidade da lei eleitoral (art. 16), dentre os mais importantes, entende o autor — respeitando-se todas as opiniões contrárias — que o leading case, nascido em decisão do egrégio Tribunal Regional Eleitoral do Maranhão, foi lúcida, prudente, acertada e, sobretudo, arrojada e independente.


Nota: as impressões contidas neste texto traduzem exclusivamente as opiniões pessoais do autor sobre o tema, não vinculando, de forma alguma, a Justiça Eleitoral ou qualquer de seus magistrados.


BIBLIOGRAFIA

BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Eleitoral. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. – São Paulo: Malheiros, 2000.

RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 6ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2006.

_______. Código Eleitoral. Série Legislação. 3ª ed. Rio de Janeiro: Idéia Jurídica, 2010.

_______. Código Eleitoral Comentado. Rio de Janeiro: Roma Vitor, 2004.