ANÁLISE DO PROJETO DE LEI Nº 1.876/99: implicâncias ambientais e sua influência na consecução do Estado Socioambiental


Pormarianajones- Postado em 29 abril 2019

Autores: 
Luiza Curcio Pizzutti

1 ANÁLISE DO PROJETO DE LEI Nº 1.876/99: implicâncias ambientais e sua influência na consecução do Estado Socioambiental

Luiza Curcio Pizzutti1

Resumo: O presente paper tem por objetivo demonstrar que o Projeto de Lei nº 1.876/99, que revoga o atual Código Florestal e traz novas disposições no tocante a tutela da flora, não observa na mesma medida as questões econômica, social e ambiental. O Estado Ecológico, Ambiental ou Socioambiental teve uma progressão gradual na proteção de interesses e direitos da sociedade, vindo a proteger o meio ambiente recentemente. Proteger o meio ambiente implica em restringir certos atos e atividades, trazer novos valores para esta atuação, significa mudanças. Almejar e buscar o desenvolvimento sustentável passa por rever conceitos, atos e formas de agir, de formular e desenvolver a economia com novas balizas, de prestar políticas públicas ambientais, como o saneamento, a conscientização e a educação ambiental. A proteção da flora no Brasil tem regras bastante razoáveis. A legislação restringe a intervenção em algumas áreas, como as áreas de preservação permanente, a reserva legal e as unidades de conservação. Não são áreas intocáveis, mas o uso da flora nestes locais é restringido para proteger a própria humanidade, que depende do ecossistema para sobreviver. A legislação atual é reflexo do antropocentrismo alargado, concepção aceita na Constituição Federal de 1988 e legislação infraconstitucional. As alterações sugeridas pelo Projeto de Lei nº 1.876/99 denotam à legislação um caráter de antropocentrismo tradicional, também chamado de economicocentrismo. Portanto, contrariam os preceitos constitucionais, de forma que a aprovação do novo Código indica um retrocesso ambiental, violando o princípio da proibição de retrocesso. Em termos ambientais, haverão prejuízos ao ecossistema, o que vai, em um futuro, refletir na sobrevivência humana.

Palavras-chave: Estado Socioambiental. Desenvolvimento sustentável. Código Florestal. Proibição de retrocesso. Prejuízos ao meio ambiente. 1 Especialista em Direito Ambiental pela UFRGS, graduada em ciências jurídicas e sociais pela Unisinos. Advogada. Assessora Jurídica do Centro de Apoio Operacional de Defesa do Meio Ambiente do Ministério Público Estadual do Rio Grande do Sul.

2 ANÁLISE DO PROJETO DE LEI 1.876/99: implicâncias ambientais e sua influência na consecução do Estado Socioambiental

Os homens e mulheres que lutam para descobrir „quem e o que não são inferno‟ precisarão encarar toda sorte de pressões para aceitar o que insistem em chamar de „inferno‟. Zygmunt Bauman A preocupação com o meio ambiente é bastante recente e é uma decorrência da forma como a humanidade tem vivido: o desenrolar da economia, da estrutura de poder, do conhecimento científico, do desenvolvimento das tecnológicas, da forma como tratamos as questões sociais. Tudo isso tem implicância no meio em que vivemos, já que todo processo no nosso planeta é dinâmico, cíclico e sistêmico, ou seja, um problema ambiental, por exemplo, estará interligado com uma série de fenômenos, pois todo processo é interdependente. A atual crise ambiental é decorrência da forma como a humanidade tem se relacionado, seja na relação homemhomem, ou na relação homem-meio. Se as relações e processos são cíclicos, as nossas ações anteriores terão nítida influência nas consequências posteriores, dada a dependência existente nos processos cíclicos. O desenvolvimento da humanidade, em especial o econômico, não considerou importante a questão ambiental, a salvaguarda da natureza, pelo contrário, a natureza era vista como matéria-prima do processo produtivo, ensejando uma intervenção constante. Tal questão somente ganhou relevância dentro do Estado após uma série de catástrofes ambientais e acidentes decorrentes da ação humana imprudente. A organização da sociedade em Estados, por meio do denominado contrato social, foi a fórmula encontrada para haver ordem, organização e respeito nas relações humanas, bem como de assegurar uma certa segurança. Através de um sucinto resgate histórico é possível verificar que as preocupações do Estado variaram conforme o momento histórico vivido. Quando a Europa vivia Estados totalitários e absolutistas, em que praticamente não havia nenhuma liberdade, a sociedade exigiu o reconhecimento do direito à propriedade e à liberdade (direitos civis ou de primeira geração), como forma de limitar a atuação abusiva do Estado. Também a fim de limitar o poder estatal, foi definida uma estrutura básica de organização do Estado que deveria ter três poderes independentes, mas com certo controle um do outro: o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Era especialmente por meio da lei que a sociedade controlava o Estado, considerando que o sistema legislativo era composto por representantes da vontade do povo. Com este sistema passamos a ter um Estado de direito, que passou a reconhecer alguns dos direitos individuais do ser humano. Visando proteger ainda mais as liberdades individuais, o Estado Liberal passou a garantir a menor intervenção possível na economia, atividade desenvolvida pelos que lutaram contra o absolutismo do Estado. Mas a exploração humana seguiu em andamento, agora não somente pelo Estado, mas pelas estruturas econômicas. O desenvolvimento econômico, a industrialização e a busca desenfreada pelo progresso acarretaram a exploração da mão-de-obra para o trabalho e os direitos mínimos que deveriam ser assegurados à população não foram concretizados. O Estado Liberal era um „estado formal‟ que garantia os interesses do próprio Estado e da nova classe de poder decorrente do desenvolvimento econômico capitalista. Considerando que a liberdade formal do Estado Liberal não tornou possível o exercício da liberdade, novos valores foram incorporados pelo Estado, novamente através de lutas sociais. A evolução para o Estado Social ou Estado do Bem Estar Social representa a luta por condições mínimas para o real exercício da liberdade, a luta pela dignidade humana compreendendo jornadas de trabalho razoáveis e demais direitos trabalhistas, direito à saúde, à previdência, à educação, e outros ditos sociais (direitos de segunda geração). O Estado Social não desconsiderou as liberdades visadas pelas primeiras lutas, como o direito à vida e à propriedade, apenas entendeu que para o exercício destes direitos primeiro se faz necessária certas condições para que, de fato, possamos decidir com liberdade. Este Estado implicou em uma maior intervenção do Estado na vida social, regendo a economia (financiamentos, consumo, produção, etc.) e prestando serviços públicos. Todavia, o Estado nunca conseguiu prestar plenamente todos os serviços públicos que seriam necessários para a dignidade humana, até porque novos riscos sociais foram criados pela tecnologia exigindo uma maior atuação estatal. Por outro lado, o cidadão passou a ver-se como cliente, exigindo sempre do poder público uma resposta aos problemas sociais e ambientais existentes, como se o indivíduo não tivesse responsabilidades e deveres pelas situações criadas pelo 3 homem. O individualismo impregnou os pensamentos e atitudes humanas, surgindo uma sociedade desintegrada cujos laços de solidariedade e fraternidade ficaram cada vez mais enfraquecidos. A economia, cada vez mais industrializada e globalizada, discursava a favor do neoliberalismo como se o progresso econômico fosse diminuir a pobreza e a desigualdade, discurso que como vemos pela janela, não é verdadeiro, ou, pelo menos, apenas representa parcela da verdade, pois todas evidências vão no sentido de que a economia como desenvolvida gera mais pobreza, mais exclusão social e mais desigualdade. A busca por um Estado Democrático significa uma igualdade efetiva aos iguais, o retorno da solidariedade, a busca por uma ordem justa, por direitos sociais, pela democratização dos espaços públicos, com uma maior participação da sociedade nas decisões legislativas e administrativas. Este Estado, associado a novos valores que agora interessam à sociedade e que só passaram a ser preocupação após a crise ambiental, denota o que chamamos de Estado Ambiental, Ecológico ou Socioambiental. Na visão de Ingo Wolfgang Sarlet, não é possível alcançar o Estado Socioambiental no nosso país sem considerar as questões sociais – que ainda carecem de efetiva atenção pelo Estado – e o processo de democracia na atuação pública. Somente teremos uma nação cuidando do meio ambiente se também cuidar do outro ser humano, investindo em saúde, educação, e outras áreas sociais. Uma economia que não tenha somente o lucro como valor, mas também a dignidade humana, os valores sociais e a preservação do meio ambiente requer uma produção e um consumo sustentáveis e mesmo uma profunda mudança na forma como pensamos, vivemos e agimos. O Estado aos poucos foi introduzindo conceitos e valores ecológicos, inicialmente através da legislação e, posteriormente, através das políticas públicas. A luta pela inserção de normas jurídicas de conteúdo ambiental começou no mundo especialmente na década de 70, época em que promulgada a Convenção de Estocolmo. No Brasil tais normas surgiram especialmente na década de 80, com a Lei federal nº 6.938/81 e a Constituição Federal de 1988. Especialmente com o advento da Constituição Federal de 1988, o meio ambiente passou a ter uma tutela específica, e o valor liberal da economia passou a ter novas balizas associadas ao lucro, como a dignidade da pessoa humana e a valorização do meio ambiente. No Brasil, o desenvolvimento sustentável passou a ter um valor em si mesmo, uma norma orientadora das atividades desenvolvidas pela sociedade e pelo próprio Estado. A legislação que protege a flora é anterior ao “boom” ambiental; a Lei 4.771 foi promulgada em 1965. Entrementes, novos parâmetros de proteção ambiental foram inseridos na lei na década de 80, nos anos 1986 e 1989, por meio das Leis federais nº 7.511 e 7.803, respectivamente, especialmente com o aumento das áreas de preservação permanente ao longo de cursos d´água. Ademais, a Constituição Federal de 1988 trouxe novos paradigmas e princípios para nortear o direito, permitindo, inclusive, o reconhecimento do direito ambiental como ciência jurídica autônoma, com princípios próprios, como o da precaução, da prevenção, poluidor-pagador e da equidade intergeracional. A proteção ambiental, seja por meio de normas jurídicas, políticas públicas ou outros atos, pode ser vista com base no antropocentrismo, no antropocentrismo alargado2 ou na deep ecology, todos dilemas éticos. O antropocentrismo vê a natureza como um recurso a ser utilizado pelo ser humano, seja para satisfazer suas necessidades vitais, ou para oferecer maior conforto e comodidade. É bem verdade que esta forma de ver o mundo – ainda predominante – causou uma série de danos ambientais e, inclusive, coloca em risco a humanidade. Nesse sentido, José Rubens Morato Leite destaca: A razão humana situa o ser humano em uma irrefragável posição de proeminência sobre a natureza. O fato de o ser humano não agir tão instintivamente como os demais seres, podendo decidir a maioria de suas ações, faz com que possa subjulgar a natureza, embora não devesse, transformando-a de acordo com as suas necessidades. Não é à toa que o destino de todo o Planeta está dependendo de decisões humanas3 . Outra forma de ver a questão é através de uma visão que concilia economia e meio ambiente, denominada por José Rubens Morato Leite de antropocentrismo alargado e por Herman Benjamin de antropocentrismo mitigado, que visa dar maior valor ao meio ambiente, inclusive por meio do direito, mas com a finalidade de proteger a própria 2 Termo de José Rubens Morato Leite. 3 LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In:CANOTILHO, José Joaquim Gomes; ______. Direito constitucional ambiental brasileiro. Saraiva: São Paulo, 2007, p. 136-137. 4 humanidade, já que se não cuidar do meio em que inserida, a humanidade pode sucumbir. O ambiente deixa de ter um valor econômico e passa a ter um valor em si mesmo, pois somente com a sua conservação podemos falar em vida humana digna e saudável. Por fim, a ecologia profunda é uma linha defendida, dentre outros, por Fritjof Capra. Nesta concepção ética o ser humano não deve ser visto como um ser superior aos demais, mas sim igual aos demais, devendo integrar-se ao ambiente, já que o universo é uma teia, uma rede de conexões em que todos dependentes dos demais e todos estão interligados. Pode-se dizer que a legislação brasileira atual tem como paradigma a concepção antropocêntrica alargada4 , especialmente por força do artigo 225 da Constituição Federal de 1988, mas também dos artigos 170 e 186. Não podemos dizer que o direito brasileiro tenha adotado a deep ecology, já que o direito é um fenômeno social voltado para as relações humanas, sejam com outros seres humanos, seja com o meio em que inserido. Tampouco se trata de um antropocentrismo tradicional, pois o artigo 225 denota que o meio ambiente tem um valor por si só para a humanidade, pois tem a titularidade difusa: é de todos e não é de ninguém; e todos têm deveres para com este meio. Uma vez adotado o antropocentrismo alargado, as normas jurídicas devem ter conteúdos que abranjam o uso racional da natureza, conciliando desenvolvimento econômico, consumo e meio ambiente. Tratando-se de meio ambiente artificial, deve ter em conta, dentre outros, conceitos urbanísticos, paisagísticos e a saúde humana. E quanto ao meio ambiente cultural, deve-se levar em conta especialmente a conservação do patrimônio e a educação ambiental. As atividades e obras humanas devem estar norteadas por um conceito denominado de desenvolvimento sustentável. Conforme a Conferência do Rio de 1992, desenvolvimento sustentável seria a integração entre a proteção do meio ambiente e o desenvolvimento da economia. Para Fritjof Capra5 , a comunidade sustentável é aquela em que os estilos de vida, suas tecnologias e suas instituições sociais respeitam, apoiam e cooperam com a capacidade inerente da natureza de manter a vida em equilíbrio. A imprecisão no conceito de desenvolvimento sustentável permite que atores públicos e privados justifiquem seu sistema de mercantilização global que está assentado na lógica predatória da espécie humana e da natureza6 e, associada à falta de efetividade das normas jurídicas existentes, temos um mundo governado pelo poder e que define as políticas conforme seus interesses, que são, especialmente, a liberdade do comércio e a liberdade de ter lucro7 . A busca por um meio-termo, um equilíbrio nas relações é que deve nortear este conceito de desenvolvimento sustentável. Interessantes balizas são definidas por Jalcione Almeida, da Faculdade de Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul: Por fim, voltando a ideia de desenvolvimento sustentável, o caminho que me parece ser ideal a ser seguido é aquele em que as necessidades dos grupos sociais possam ser atendidas a partir da gestão da sociedade. A direção, pois, do desenvolvimento sustentável deixa de ser aquela linear, única, que assumiu o desenvolvimento dominante até nossos dias; não mais a marcha de todos em uma só direção, mas o reconhecimento e a articulação de diferentes formas de organização e demandas como base, sustentáculo a uma verdadeira sustentabilidade. O „modelo‟ de desenvolvimento buscado seria então um modelo rico em alternativas, capaz de enfrentar com novas soluções a crise social e ambiental. É preciso conceber um desenvolvimento que tenha nas prioridades sociais sua razão-primeira, transformando, via participação política, excluídos e marginalizados em cidadãos. Esta me parece uma verdadeira chance para a reorganização 4 Assim aduz José Rubens Morato Leite. Também Paulo Affonso Leme Machado refere que “a defesa do meio ambiente é uma dessas questões que obrigatoriamente devem constar na agenda econômica pública e privada. A defesa do meio ambiente não é uma questão de gosto, de ideologia e de moda, mas um fator que a Carta Maior manda levar em conta” – MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 15.ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 145. 5 CAPRA, Fritjof. Falando a linguagem da natureza: princípios da sustentabilidade. In: STONE, Michael K.; BARLOW, Zenobia (org.). Alfabetização ecológica: a educação das crianças para um mundo sustentável. Tradução de Carmen Fischer. São Paulo: Cultrix, 2005. 6 Nesse sentido ver artigos de Bernard Dobrenko e Jean-Jaques Gouget. 7 Esta lógica pode ser identificada nos textos de Christian Guy Caubet e Zigmunt Bauman. 5 consequente da sociedade, visando à sustentação da vida e a manutenção de sua diversidade plena8 . A legislação ambiental que protege a flora traz um equilíbrio entre a intervenção na natureza e a sua preservação. As atividades agrícolas, a pecuária e outras intervenções são possíveis e necessárias à sobrevivência humana, mas devem ser desenvolvidas de forma a preservar à vida e à saúde. Para Altieri, citado por Jalcione Almeida, sustentabilidade na agricultura é “a habilidade de um agroecossistema em manter a produção através do tempo, face a distúrbios ecológicos e pressões socioeconômicas de longo prazo”, ou seja, o objetivo da agricultura sustentável é “a manutenção da produtividade agrícola com o mínimo de impactos ambientais e com retornos financeiro-econômicos adequados que permitem diminuir a pobreza e atender as necessidades sociais da população” 9 . A legislação atual impõe algumas restrições às atividades, obras e ações humanas que interferem na flora, solo, enfim, em elementos da natureza. A Lei federal nº 9.985/00 prevê as unidades de conservação em que, nos termos do artigo 2, inciso I, da lei consiste em um “espaço territorial e seus recursos ambientais, incluindo as águas jurisdicionais, com características naturais relevantes, legalmente instituído pelo Poder Público, com objetivos de conservação e limites definidos, sob regime especial de administração, ao qual se aplicam garantias adequadas de proteção”. Existem dois tipos de unidades: de proteção integral e de uso sustentável, sendo a primeira mais restritiva que a segunda. Os parágrafos do artigo 7º trazem o objetivo das unidades: a de proteção integral é “preservar a natureza, sendo admitido apenas o uso indireto dos seus recursos naturais, com exceção dos casos previstos nesta Lei” (§ 1º); a de uso sustentável é “compatibilizar a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela dos seus recursos naturais” (§ 2 o ). Outra forma de proteção à flora é o Código Florestal federal, Lei nº 4.771/65, que traz, especialmente, os institutos da área de preservação permanente e a reserva legal. Área de preservação permanente, no conceito trazido pela Medida Provisória 2.166-67/01, que mudou o Código Florestal, é uma “área protegida nos termos dos arts. 2o e 3o desta Lei, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica, a biodiversidade, o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas” (artigo 1º, § 2º, inciso II). São áreas de preservação permanente: no entorno de rios e demais cursos d´água uma metragem mínima de 30 metros; ao redor das lagoas, lagos ou reservatórios d'água naturais ou artificiais na metragem definida na Resolução CONAMA nº 302/02; nas nascentes, ainda que intermitentes e nos chamados "olhos d'água", qualquer que seja a sua situação topográfica, num raio mínimo de 50 (cinquenta) metros de largura; no topo de morros, montes, montanhas e serras; nas encostas ou partes destas, com declividade superior a 45°, equivalente a 100% na linha de maior declive; nas restingas, como fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues; nas bordas dos tabuleiros ou chapadas, a partir da linha de ruptura do relevo, em faixa nunca inferior a 100 (cem) metros em projeções horizontais; em altitude superior a 1.800 (mil e oitocentos) metros, qualquer que seja a vegetação. Nestas áreas somente pode haver intervenção humana nos casos definidos pela legislação. Portanto, a regra é não intervir nestes locais, salvo quando a lei permite. Normas mais recentes abrandaram as previsões da Lei 4.771 de 1965, como a Resolução CONAMA nº 369/06 que autoriza a intervenção nas áreas de preservação permanente, especialmente para realizar obras de utilidade pública e interesse social e ações de pequeno impacto ambiental. A Resolução CONAMA nº 425/10 consolida algumas intervenções agrícolas realizadas pelo pequeno agricultor até 24 de julho de 2006 nas áreas de preservação permanente. E, ainda, a Lei 11.977/09 traz a regularização fundiária de interesse social em área de preservação permanente cuja ocupação tenha ocorrido até 31 de dezembro de 2007 (artigo 54), além de alterações legislativas no próprio Código Florestal (assim, ver artigo 4º e seus parágrafos). Reserva legal, consoante artigo 1º, § 2º, inciso III, do Código Florestal, é “área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, excetuada a de preservação permanente, necessária ao uso sustentável dos recursos naturais, à conservação e reabilitação dos processos ecológicos, à conservação da biodiversidade e ao abrigo e proteção de fauna e flora nativas”. 8 ALMEIDA, Jalcione. Da ideologia do progresso à ideia de desenvolvimento (rural) sustentável. In: ALMEIDA, Jalcione e NAVARRO, Zander. Reconstruindo a agricultura: ideias e ideais na perspectiva do desenvolvimento rural sustentável. Porto Alegre, Editora da UFRGS, 3a ed. 2009. p. 33-55. 9 Ibidem, loc.cit. 6 No tocante a reserva legal dois artigos do atual Código regulamentam a questão, o artigo 16 e o 44. Prevê o artigo 16, a título de reserva legal, um mínimo de oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal; trinta e cinco por cento, na propriedade rural situada em área de cerrado localizada na Amazônia Legal, sendo no mínimo vinte por cento na propriedade e quinze por cento na forma de compensação em outra área, desde que esteja localizada na mesma microbacia, e seja averbada; vinte por cento, na propriedade rural situada em área de floresta ou outras formas de vegetação nativa localizada nas demais regiões do País; e vinte por cento, na propriedade rural em área de campos gerais localizada em qualquer região do País. Algumas características da atual reserva legal devem ser ressaltadas. No § 2 o do artigo 16 temos que “a vegetação da reserva legal não pode ser suprimida, podendo apenas ser utilizada sob regime de manejo florestal sustentável, de acordo com princípios e critérios técnicos e científicos estabelecidos no regulamento, ressalvadas as hipóteses previstas no § 3o deste artigo, sem prejuízo das demais legislações específicas”, sendo que o § 3 o aduz que “para cumprimento da manutenção ou compensação da área de reserva legal em pequena propriedade ou posse rural familiar, podem ser computados os plantios de árvores frutíferas ornamentais ou industriais, compostos por espécies exóticas, cultivadas em sistema intercalar ou em consórcio com espécies nativas. O cômputo das áreas de preservação permanente no cálculo do percentual de reserva legal somente será admitido quando não implicar em conversão de novas áreas para o uso alternativo do solo e quando a soma da vegetação nativa em área de preservação permanente e reserva legal exceder a: oitenta por cento da propriedade rural localizada na Amazônia Legal; cinqüenta por cento da propriedade rural localizada nas demais regiões do País; e vinte e cinco por cento da pequena propriedade; consoante disposição do § 6º do artigo 16, ressaltando que, nestas hipóteses, nos termos do § 7 o , o regime de uso da área de preservação permanente não se altera. Aqueles proprietários e possuidores que tiverem em suas terras um percentual de reserva legal inferior ao exigido na lei devem observar as determinações dos incisos do artigo 44 da Lei federal nº 4.771/65, quais sejam: recompor a reserva legal de sua propriedade mediante o plantio, a cada três anos, de no mínimo 1/10 da área total necessária à sua complementação, com espécies nativas, de acordo com critérios estabelecidos pelo órgão ambiental estadual competente; conduzir a regeneração natural da reserva legal; e compensar a reserva legal por outra área equivalente em importância ecológica e extensão, desde que pertença ao mesmo ecossistema e esteja localizada na mesma microbacia, conforme critérios estabelecidos em regulamento. A recomposição mediante plantio com espécies nativas poderá ser realizada “mediante o plantio temporário de espécies exóticas como pioneiras, visando a restauração do ecossistema original, de acordo com critérios técnicos gerais estabelecidos pelo CONAMA”, com forte no § 2º do artigo 44. No caso de compensar a reserva legal, somente poderá ser realizada fora da mesma microbacia diante da real impossibilidade de fazê-lo e, neste caso, “o órgão ambiental estadual competente aplicar o critério de maior proximidade possível entre a propriedade desprovida de reserva legal e a área escolhida para compensação, desde que na mesma bacia hidrográfica e no mesmo Estado”, segundo determinação do § 4º do aludido artigo. E, por fim, nos termos do § 6o , introduzido pela Lei federal nº 11.428/06, “o proprietário rural poderá ser desonerado das obrigações previstas neste artigo, mediante a doação ao órgão ambiental competente de área localizada no interior de unidade de conservação de domínio público, pendente de regularização fundiária, respeitados os critérios de compensação antes referidos”. Tramita agora no Congresso Nacional um projeto ambiental que revoga o vigente, trazendo novas disposições em que a proteção ambiental, sem dúvida, diminui. O argumento para a aprovação deste projeto é beneficiar o pequeno agricultor, que tem a sua produtividade e seu lucro pequeno devido às limitações que a legislação ambiental impõe ao uso da propriedade. Caso aprovado o projeto, teremos algumas mudanças profundas no cuidado com o meio ambiente. No tocante às áreas de preservação permanente, fica definida uma metragem inferior a atual para a vegetação existente ao longo dos rios e qualquer curso d´água, pois a metragem passa a ter como parâmetro a borda do leito menor e não mais o nível mais alto do curso d´água. Além disso, a largura mínima de 30 metros só continua exigida para cursos d´água entre 5 e 10 metros de largura, pois os com largura inferior a 5 metros terão uma área de preservação permanente de 15 metros. Os topos de morros, montes, montanhas e serras, hoje tidos como área de preservação permanente serão extintos, passando a ser regular a sua ocupação, ou qualquer outro tipo de intervenção humana. Ademais, intervenções ilegais realizadas até 22 de julho de 2008 serão anistiadas, ou seja, não precisarão ser reparadas, pois serão tidas como consolidadas. 7 No que se refere à reserva legal, será extinta para propriedades e posses rurais de até 4 módulos fiscais. Aquelas que possuam mais de 4 módulos fiscais deverão ter reserva legal, todavia, se tiverem em percentual inferior ao exigido pela lei ou se não a tiverem, não deverão complementar ou implementar no todo a reserva legal, pois não será considerada toda a propriedade para o cálculo da reserva legal, mas somente no tocante o excedente aos 4 módulos fiscais (já que até este montante não existe reserva legal). Outra questão importante é que as áreas de preservação permanente poderão ser somadas na área de reserva legal. Ademais, a recuperação da reserva legal poderá ser feita com árvores exóticas em até 50% da área a ser recuperada e os proprietários e possuidores que recuperarem a reserva legal através de plantio intercalado de árvores nativas e exóticas poderão explorar esta área de plantio. Será de forma permanente, enquanto que hoje somente é permitido o plantio temporário de árvores exóticas. Por fim, será consolidada a intervenção ocorrida em área de reserva legal até 22 de julho de 2008, não havendo que ser recuperada e indenizada tal intervenção. Sucintamente vemos que o projeto de lei regulariza edificações, benfeitorias, atividades agrossilvopastoris e qualquer tipo de intervenção realizada em áreas de preservação permanente e na reserva legal até 22 de julho de 2008 e concede a anistia às infrações ali ocorridas, que não terão que ser recuperadas nem indenizadas10 . De todo o analisado podemos concluir que o projeto de lei em discussão no Congresso Nacional não contempla as pretensões de todos os setores da sociedade, não passou por um processo de discussão amplo, democrático e livre, em desrespeito aos princípios da informação, educação, conscientização ambiental, bem como do princípio da participação. Em outras palavras, não se trata de projeto de lei democrático. Pode-se mesmo afirmar que o projeto de lei contempla praticamente só os interesses do setor ruralista, em especial daqueles que tem ignorado a legislação ambiental florestal vigente no país desde a década de 60. Nas palavras do doutrinador Gustavo Trindade, o projeto reflete A ausência de subsídios científicos e os discursos maniqueístas (ambientalistas x ruralistas) têm prevalecido nos debates das alterações do Código Florestal. A pretensa vitória do setor ruralista com a aprovação do texto do Substitutivo do PL 1876/99 coloca em risco não apenas o direito das futuras gerações ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, mas a própria viabilidade das atividades agropecuárias no nosso país. Como diz Carlos Drummond de Andrade: „a natureza não faz milagres; faz revelações‟”11 . Ora, comparando o projeto com a atual legislação, vemos que, caso o projeto seja aprovado, além do evidente retrocesso ambiental, haverá uma legitimação dos desmatamentos e da impunidade. Fala-se em retrocesso ambiental porque o Código Florestal federal brasileiro prevê um mínimo de proteção da flora, ele permite a intervenção em todas as terras brasileiras, menos aquelas ali definidas (área de preservação permanente e reserva legal). Este mínimo a ser protegido está em consonância com os preceitos constitucionais, em especial o artigo 225, § 1º, incisos I, II e III que falam da preservação dos processos ecológicos essenciais, do manejo ecológico das espécies e ecossistemas, da preservação da diversidade brasileira e dos espaços territorialmente protegidos cuja alteração e supressão somente serão permitidas por meio de lei, e desde que não comprometam a integridade dos atributos que justificam a proteção ambiental. Como observa Patryck de Araújo Ayala: Um mínimo ecológico de existência tem a ver, portanto, com a proteção de uma zona existencial que deve ser mantida e reproduzida; mínimo que não se encontra sujeito a iniciativas revisoras próprias do exercício das prerrogativas democráticas conferidas à função legislativa. É neste ponto que a construção de uma noção de mínimo existencial (também para a dimensão ambiental) estabelece relações com um princípio de proibição de retrocesso, para admitir, também ali, uma dimensão ecológica que deve ser protegida e garantida contra iniciativas retrocessivas que possam, em alguma medida, representar ameaça a padrões ecológicos elementares de existência12 . 10 TRINDADE, Gustavo. Áreas de preservação permanente e reserva legal: análise comparativa entre o atual Código Florestal Federal (Lei nº 4.771/65) e o Substitutivo do PL nº 1.876/1999 (novo Código Florestal). In: LIMA, André; LAVRATTI, Paula; PRESTES, Vanêsca Buzelato. Reformas do Código Florestal: limites jurídicos. São Paulo: Instituto o direito por um planeta verde, 2001, p. 192. 11 Ibidem, loc.cit. 12 AYALA, Patryck de Araújo. Mínimo existencial ecológico e proibição de retrocesso em matéria ambiental: considerações sobre a inconstitucionalidade do código do meio ambiente de Santa Catarina. Revista de Direito Ambiental: publicação oficial do Instituto “o direito por um planeta verde”, São Paulo, n.60, p. 329-371, out/dez. 2010. 8 Aliado a isso, os objetivos de diminuir os gases emitidos para a atmosfera – uma política para amenizar as mudanças climáticas visada pela Lei federal nº 12.187/09, em especial artigos 11 e 12 – restarão seriamente prejudicados, pois o desmatamento é um dos principais culpados pela mudança climática. Com isso teremos o comprometimento do planeta para a humanidade, para as gerações atuais e gerações futuras, desrespeitando não somente a legislação ambiental, mas os princípios jurídicos e morais da precaução e equidade intergeracional. É a consagração de que preferimos o imediatismo, o lucro e os valores capitalistas à prudência e a vida ecologicamente equilibrada. Como vemos, o discurso de que as mudanças legislativas beneficiariam os pequenos produtores é na verdade uma falácia para beneficiar o grande mercado, a lógica predatória e a liberdade de ter lucro, tudo isso por meio de um verdadeiro desrespeito ao meio ambiente em que estamos inseridos e, em última instância, um desrespeito ao próprio ser humano. Não se está dizendo que a legislação ambiental não pode ser aprimorada, mas sim que o projeto de lei em votação no Congresso Nacional traz profundas reformas na legislação que desconsideram totalmente a proteção do meio ambiente e o equilíbrio ecológico, ou seja, com parâmetros não razoáveis, prejudicando a todos. Com isso, vemos que além de um retrocesso ambiental, o Substitutivo do projeto de lei em questão afasta, ainda mais, a consecução do Estado Socioambiental, livre, democrático, justo, com políticas sociais e ambientais aliadas às políticas econômicas. O pretendido desenvolvimento sustentável, baliza do Estado Ecológico, fica cada vez mais distante, aparecendo, de forma mais evidente, a proeminência dos velhos interesses econômicos e do poder não emancipatório. Concluindo, o que se espera da República Federativa do Brasil é um repúdio à aprovação do projeto de lei, pois se “inter arma silent leges”, devemos mostrar que quando o povo fala, seu governante ouve, ou seja, somente através das reivindicações e das lutas somos ouvidos pelo poder, pelo governo e pelo Estado. Lutar por uma legislação adequada significa democratizar os espaços públicos e conciliar interesses, fundamentos básicos de um país democrático.

9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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