Alternativas plurais de aplicação do Direito com vistas à isonomia como princípio de justiça


PorPedro Duarte- Postado em 25 fevereiro 2013

Autores: 
Rafael Ramos da Silva

Descreve os principais pontos do movimento denominado de Direito Alternativo no âmbito brasileiro e evidenciar tais características a partir de um caso em que se denotam tais valores "alternativos".

1. INTRODUÇÃO

O Direito positivado e sua imperatividade pressupõem o preterimento do conceito moral de Justiça na aplicação da lei, forçando o magistrado a limitar sua atuação jurídico-social à legalidade positivista em vigor.

Em contrapartida, surge, em meados de 1990, uma corrente doutrinária que se propôs a romper essa relação juspositivista em função da realização da Justiça – em sua acepção ética e moral –, através da aplicação alternativa do Direito. O Direito Alternativo foi um movimento que aqui no Brasil, floresceu entre os juízes gaúchos, no momento pré-constituinte. Essas pessoas buscavam uma sociedade mais justa, pois havia muitas desigualdades e contradições no meio social brasileiro. Os idealizadores do movimento buscam influenciar os operadores do direito (advogados, promotores, juízes); aqueles que produzem teorias para produzir uma nova racionalidade (professores, intelectuais); e, também, a síntese de tudo (estudante).

Eles defendem que é necessário ouvir a sociedade civil, na luta por um direito mais democrático, já que é desta que vêm os limites da atividade do jurista e as condições do seu trabalho. Acreditam, ainda, que é preciso construir uma teoria que consiga explicar o fenômeno jurídico no contexto da sociedade atual. E tal teoria só poderá ser implantada se houver uma ponte entre direito alternativo, operadores e movimentos sociais de vanguarda.

Pretende-se evidenciar que, por meio do Direito alternativo, a discussão pode transpor a idéia fixa de legalidade e neutralidade posta, como absoluta, pelo paradigma dominante, conseguindo, assim, atingir os pressupostos do direito.

Outra nuance intrínseca ao tema abordado é o que se denomina de pluralismo jurídico, enquanto contrário à inexorabilidade do Estado como fonte exclusiva de toda a produção do Direito. Dessa forma, “trata-se de uma perspectiva descentralizadora e antidogmática que pleiteia a supremacia de fundamentos ético-político-sociológicos sobre critérios tecno-formais positivistas” (WOLKMER, 2001, p.7). Em consonância com essas palavras pontuadas por Wolkmer, impõe-se encarar o pluralismo jurídico a partir da multiplicidade de manifestações normativas num mesmo espaço político-social. Esse caráter múltiplo decorre justamente do reconhecimento de que o Direito estatal, perante a complexidade, instabilidade e contradições das atuais sociedades, é apenas uma dentre inúmeras fontes de direito.

Entretanto, dadas essas constatações, em que cenário deve ser contemplado o fenômeno do pluralismo jurídico? Faz-se necessário enxergar sua pertinência em face da ineficácia do atual aparato jurídico tecno-formal perante relações sociais cada vez mais imprevisíveis; daí a importância do reconhecimento de manifestações normativas fora da égide estatal e oriundas das necessidades e particularidades dos novos sujeitos sociais.

Desse modo, o que se defende é que, se o Direito deve ser enxergado como reflexo de uma estrutura pulverizada também pelo conflito entre múltiplos atores sociais (WOLKMER, 2007, p.1), é lógica e plenamente possível a existência de normas derivadas de fontes diversas, desde que reiteradas nas práticas e interações sociais.

Busca-se, assim, realçar as principais características dos movimentos brasileiros do “Direito Alternativo” e do “Direito Achado na Rua” e as particularidades do Pluralismo Jurídico no âmbito da jurisdição brasileira.

2. DECISÃO JUDICIAL: DIREITO ALTERNATIVO E SUAS NUANCES

Apesar do caos social que estamos vivendo, com ampla ausência de valores éticos e morais, ainda existem pessoas (inclusive autoridades) com equilíbrio e bom senso, que têm coragem de usá-los em suas decisões diárias, como no caso do Juiz Rafael Gonçalves de Paula, da 3ª Vara Criminal da Comarca de Palmas, em Tocantins, cuja decisão evidencia uma aplicação de acordo com os pressupostos do Direito Alternativo e refere-se a um caso de roubo de duas melancias, que segue in verbis:

Trata-se de auto de prisão em flagrante de Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha, que foram detidos em virtude do suposto furto de duas (2) melancias. Instado a se manifestar, o Sr. Promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão. Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional). Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém. Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário. Poderia brandir minha ira contra os neo-liberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia. Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra - e aí, cadê a Justiça nesse mundo? Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade. Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas: não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir. Simplesmente mandarei soltar os indiciados. Quem quiser que escolha o motivo. Expeçam-se os alvarás. Intimem-se. (PAULA, Rafael Gonçalves de. Palmas, 2003. Disponível em: <http://reimel.blogspot.com/2007/09/sentena-roubo-das-melancias.html>. Acesso em 05 de Julho de 2011)

Não obstante o tom inusitado imposto pela colocação lingüística do juiz, a decisão contém em si uma bem construída crítica à exacerbação positivista que se mostra conveniente às classes dominantes e automatiza a atuação dos magistrados ante os casos concretos.

De acordo com CARVALHO (2006), a atividade do operador do direito, no sentido de colocar em prática os ensinamentos do Direito alternativo, inquieta os conservadores e evidencia um novo modo de atuar do judiciário. Esta mudança de comportamento é salutar, pois o judiciário deve ser mais sensível às demandas dos despossuídos, tendo em vista que os outros poderes (executivo e legislativo) são mais fechados aos anseios sociais por lidarem com interesses da classe dominante.

A esse tipo de atitude alternativa opõe-se o positivismo jurídico. Na concepção juspositivista, os efeitos decorrentes da subjetividade do julgador que emite decisão calcada em sentimentos e opiniões próprias – em explícito detrimento da lei vigente, ainda que se buscasse alcançar a Justiça equânime – deturpam a verdadeira função do Poder Judiciário, que não é a de promover a Justiça Social, mas a de dizer o Direito, através da prestação da tutela jurisdicional do Estado; ou ainda, a de construir o Direito, através da interpretação e aplicação das normas jurídicas ao caso concreto. Nesse contexto, a autoridade judiciária tem o poder-dever de ser imparcial e justo, em sua acepção positivista, pois assim exerceria seu verdadeiro papel social.

Entrementes, CARVALHO (2006) critica a formação do jurista, que é baseada no positivismo jurídico-legalista. E alguns pressupostos desta corrente de pensamento são os seguintes: direito é neutro; o direito é fundamento no direito posto, positivado; gera fetichismo da lei; direito colocado sem preocupações políticas, morais, de consciência, etc. Aplica-se o método da subsunção, em que os fatos são a premissa menor e a lei é a premissa maior. Desta forma, não há preocupação com a realidade social, com os dramas que ocorrem cotidianamente. Objetiva-se apenas seguir os parâmetros legais vigentes. As verdades postas são absolutas, incontestáveis, não se abre espaço para os espíritos críticos e inconformados. O direito é tido e aplicado como dogmático.

Visando assegurar a prática jurídica como instrumento para a efetivação da justiça igualitária, distributiva e não apenas reparativa, o Direito Alternativo defende variados pressupostos a saber: servir ao processo de emancipação da classe trabalhadora; o jurista deve valorar as normas em busca da libertação dos trabalhadores; negar falta de posicionamento político, imparcialidade e independência dos juízes; utilizar as incoerências e contradições em benefício dos fracos; entender o direito como ambivalente, pois apesar de defender interesses da classe dominante, é também justiça; no campo do direito ocorre a luta de classes; construção de interpretação jurídico-progressista para que os mais fracos tenham vez; direito como elemento de emancipação para consolidar conquistas dos mais fracos, etc.

Desse modo, o Direito alternativo não concebe o direito neutro, mas o vê como um modo de assegurar os interesses de uma determinada classe. Assim, tenta influenciar os juristas a lutarem em favor dos interesses dos trabalhadores. Para tanto, combate-se entendimentos dogmáticos que venham a barrar mudanças necessárias, pois o ideal de justiça social é maior. É evidente a parcialidade que se estabelece para defender os mais pobres, além de combater a posição inerte de muitos juristas.

Destarte, o modo de atuar, baseado na interpretação alternativa, visa chegar mais perto do conflito humano, permitindo a discussão valorativa para acabar com a idéia de neutralidade, questiona a ordem posta e as leis que a sustenta; é engajado no contexto sócio-econômico e apresenta soluções novas para resolver os conflitos entre os sujeitos sociais.

3. PLURALISMO JURÍDICO E “DIREITO ACHADO NA RUA”

Outra faceta que se pode extrair da decisão do nosso caso das melancias é a evidência que o juiz Rafael Gonçalves ressalta quando relata: “[...] os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Ghandi [...]”, “[...] a situação econômica brasileira [...]” e “[...] neo-liberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo [...]”. Tais trechos demonstram claramente a pluralidade das fontes do Direito (em suas formas teológica, econômica e sócio-política, respectivamente). Tal proposta passa pela superação dos paradigmas positivos inerentes ao campo jurídico e que contribuem para a perpetuação de um Direito estático, frio e talhado pelas vicissitudes do normativismo absoluto.

Consoante WOLKMER (2006) “as fontes de produção jurídica que se estruturam em termos de um conteúdo (sentido material) e de uma configuração simbólico-cultural (sentido formal), reproduzem a manifestação de seres humanos inter-relacionados, que vivem, trabalham, participam de lutas e conflitos, buscando a satisfação de necessidades cotidianas fundamentais num interregno marcado pela "convivência das diferenças". Nestas condições, a produção jurídica não pode deixar de retratar o que a própria realidade dimensionaliza, bem como de corresponder às reais necessidades da sociedade em dado momento histórico, moldando-se a flutuações cíclicas que afetam também os demais fenômenos do mundo cultural (aspectos sociais, econômicos, políticos, éticos, religiosos, lingüísticos etc.). As transformações da vida social constituem, assim, a formação primária de um "jurídico’ que não se fecha em proposições genéricas e em regras fixas formuladas para o controle e solução dos conflitos, mas se manifestam como o resultado do interesse e das necessidades de agrupamentos associativos e comunitários, assumindo um caráter espontâneo, dinâmico e flexível. Esta concepção aqui partilhada afasta-se das expressões normativas pré-fixadas e abstratas, criadas e impostas, com exclusividade, pela moderna estrutura estatal de poder. A produção jurídica formal e técnica do Estado moderno só atinge parcelas da ordem social, achando-se quase sempre em atraso, relativamente às aspirações jurídicas mais desejadas, vivas e concretas da sociedade como um todo. Evidentemente, que o Direito projetado pela sociedade burguês-capitalista, corporificado pelo modelo de centralização estatal, impõe um rígido sistema de fontes formais caracterizado pela supremacia do Direito legiferado e escrito sobre o Direito consuetudinário e o Direito dos juristas, e pelo sufocamento e exclusão de práticas informais vinculadas ao Direito Comunitário autônomo. Parece claro, por conseguinte, que o problema das fontes do Direito numa sociedade determinada e historicamente concreta não está mais na priorização de regras técnico-formais e nas ordenações teórico-abstratas perfeitas, porém na dialética de uma práxis do cotidiano e na materialização normativa comprometida com a dignidade do novo sujeito social. Os centros geradores de Direito não se reduzem, de forma alguma, às instituições e aos órgãos representativos do monopólio do Estado, pois o Direito por estar inserido nas e ser fruto das práticas sociais, emerge de vários e diversos centros da produção normativa, tanto na esfera supra-estatal (organizações internacionais) como no nível infra-estatal (grupos associativos, organizações comunitárias, corpos intermediários e movimentos sociais). Portanto, o ponto de partida para a Constituição e o desenvolvimento do Direito vivo comunitário não se prende nem à legislação, nem à ciência do Direito e tampouco à decisão judicial, mas às condições reais da vida cotidiana, cuja real eficácia apóia-se na ação de grupos associativos e organizações comunitárias”.

Para WOLKMER(2006) o critério do "justo" resulta daquilo que os grupos comunitários reconhecem como tal, correspondendo eficazmente aos padrões da vida cotidiana almejada pelas coletividades submetidas às relações de dominação, a noção de Justiça acaba se constituindo numa necessidade por liberdade, igualdade e emancipação.

Faz-se conveniente nessa altura abordar alguns conceitos sobre o “Direito achado na rua”. Preliminarmente, devemos aqui contemplar a rua justamente como o palco das organizações populares, o espaço fértil às mobilizações e aos clamores do povo. O “Direito achado na rua”, expressão original de Roberto Lyra Filho, emerge do pluralismo jurídico na medida em que nasce, não do ventre do Estado, mas do clamor dos oprimidos e das práticas dos novos sujeitos sociais.

Em harmonia com Wolkmer (2002, p.100) – amparado no pensamento de Lyra Filho, “[...] o Direito não mais refletirá com exclusividade a superestrutura normativa do moderno sistema de dominação estatal, mas solidificará o processo normativo de base estrutural, produzido pelas cisões classistas e pela resistência dos grupos menos favorecidos.” O autor assevera que o Direito Achado na Rua se insere justamente na proposta desse Direito novo que vai ao encontro da capacidade popular de se afirmar como agente determinante e não só determinado por esta ou aquela estrutura estatal. É assim que a escória do corpo social se mostra soberana quanto à afirmação de seus interesses, visto que manifestam, nas relações sociais, formas jurídicas completamente novas, desformalizadas e contrárias à inércia do Direito posto em códigos.

Conseqüentemente, busca-se justamente definir novas categorias jurídicas a partir das reiteradas práticas sociais inovadoras e propagadoras de novos direitos – aproximando-se da perspectiva do Pluralismo Jurídico, quando atenta para a existência de mais fontes jurídicas do que se está de fato positivado nas estruturas jurídicas estatais.

4. CONCLUSÃO

É através da compreensão não apenas dos conceitos, mas da adoção dos pressupostos e atitudes dos movimentos do Direito Alternativo, do Movimento Achado na Rua e do Pluralismo Jurídico, intrinsecamente relacionados em uma concepção democrática de justiça, embasados por valores plurais, humanos e sociais de comprometimento com o princípio da isonomia. Tal intento extravasa os limites de uma pretensa positivação normativa do direito, e que tem uma única fonte: a estatal. Fator fundamental faz-se da capacidade do magistrado atender às demandas cada vez mais plurais da sociedade, item que é diretamente proporcional a sua vontade de atuar interdisciplinarmente e de forma não-robotizada, com a finalidade precípua de valorizar o direito emergente dos conflitos e manifestação dos que mais necessitam e historicamente sofrem pela exclusão pelas classes dominantes: o direito que bebe da fonte das aspirações e anseios mais profundos das pessoas comuns da sociedade, surgindo então a esperança de uma sociedade mais democrática e isonômica.

REFERÊNCIAS

WOLKMER, Antônio Carlos. Introdução ao pensamento jurídico crítico. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

______. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo: Alfa Omega, 2001.

______. As fontes de produção na nova cultura jurídica. São Paulo: Alfa Omega, 2006.

______. Disponível em: < http://www.alfaomega.com.br/pluralismo-jur.php>. Acesso em: 04 de Julho de 2011.

PAULA, Rafael Gonçalves de. Palmas, 2003. Disponível em: <http://reimel.blogspot.com/2007/09/sentena-roubo-das-melancias.html>. Acesso em 05 de Julho de 2011.

CARVALHO, Amilton Bueno de. Direito alternativo em movimento. São Paulo: Acadêmica, 2006.