Alteração de contrato administrativo decorrente de falha no projeto básico


PorJeison- Postado em 18 dezembro 2012

Autores: 
CARLI, Kalinca De.

No curso da execução dos contratos administrativos, não raro a Administração se depara com a identificação de erros e falhas nos projetos básicos que deram origem a tais ajustes, o que faz surgir a discussão sobre a possibilidade de alteração contratual, mesmo na ausência de fato superveniente que a justifique.

 

Como sabido, o entendimento doutrinário é no sentido de que os contratos administrativos podem ser alterados unilateral ou bilateralmente. A alteração unilateral quantitativa ocorrerá – por força da prerrogativa da Administração, que atua com supremacia, excepcionando a norma fundamental da imutabilidade dos contratos – quando for necessária a modificação do valor pactuado em razão do acréscimo ou diminuição quantitativa do seu objeto, nos limites permitidos pela lei, em sintonia com a ordem do inciso I do art. 58 da Lei nº 8.666/93.

 

Nessa hipótese, o contratado fica obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, esses acréscimos ou supressões. Tais limites estão especificados no § 1º do art. 65 da Lei nº 8.666/93[1], que estipula que, em se tratando de obras, serviços ou compras, o acréscimo ou a diminuição poderá atingir até 25% do valor inicial atualizado do contrato.

 

Interpretando de forma conjunta a alínea “b” do inciso I do art. 65 da Lei nº 8.666/93 com o § 1º do mesmo artigo, tem-se que os seguintes elementos conformam o núcleo da hipótese normativa da alteração unilateral quantitativa: a) modificação do valor contratual, decorrente do acréscimo ou supressão do quantitativo do objeto; b) limite máximo de 25% do valor inicial atualizado do contrato, no caso de acréscimo ou supressão de serviços, mantidas as demais condições do contrato; c) superveniência de motivo justificador da alteração contratual, evidenciado pela Administração.

 

Interessante, por oportuno, mencionar a lição de Marçal Justen Filho[2] quanto ao poder discricionário da Administração Pública para realizar a alteração contratual e à necessidade de justificar o fato superveniente que a motiva:

 

“A alteração do contrato retrata, sob alguns ângulos, uma competência discricionária da Administração Pública. Não existe, porém, uma liberdade para a Administração impor a alteração como e quando melhor lhe aprouver. Tal como anotado no comentário do art. 58, ao qual se remete, a contratação é antecedida de um procedimento destinado a apurar a forma mais adequada de atendimento ao interesse público. Esse procedimento conduz à definição do objeto licitado e à determinação das regras do futuro contrato. Quando a Administração pactua o contrato, já exercitou a competência “discricionária” correspondente. (...)

 

A Administração tem de evidenciar, por isso, a superveniência de motivo justificador da alteração contratual. Deve evidenciar que a solução localizada na fase interna da licitação não se revelou, posteriormente, como a mais adequada. Deve indicar que os fatos posteriores alteraram a situação de fato ou de direito e exigem um tratamento distinto daquele adotado. Essa interpretação é reforçada pelo disposto no art. 49, quando ressalva a faculdade de revogação da licitação apenas diante de ‘razões de interesse público decorrente de fato superveniente’.” (grifou-se)

 

Dessa forma, cabe à Administração, a princípio, evidenciar a superveniência do motivo justificador da alteração contratual pretendida. Deve demonstrar que fatos posteriores alteraram a situação de fato ou de direito e exigem um tratamento distinto daquele adotado por ocasião do pacto inicial.

 

Com efeito, tal se justifica diante da obrigação da Administração de alcançar nível de precisão satisfatório no planejamento que antecede suas contratações, por ser esta a garantia de que o resultado da execução corresponderá ao fim de interesse público que motivou o contrato, a par de balizar a definição dos recursos orçamentários suficientes à cobertura das despesas contratuais, a formulação de propostas pelos licitantes e as futuras ações de controle e avaliação.

 

No mesmo passo, cumpre também salientar que é vedada a transfiguração ou transmutação do objeto em qualquer alteração contratual, visto que as exigências qualificadas como técnicas e econômicas são eleitas de acordo com o objeto licitado. Assim, deve-se certificar que a alteração contratual visada não tem o condão de desnaturar o objeto originalmente pactuado, sob pena de ofensa ao princípio da intangibilidade do objeto contratual.

 

Não obstante tais considerações, contudo, entende-se que, mesmo se deparando a Administração, no curso da execução contratual, com a constatação de erro objetivo no projeto básico que redundou naquela contratação – o que, a rigor, não se confundiria com a identificação de fato superveniente –, não pode ser afastada a possibilidade de alteração contratual, pelas razões que se expõem a seguir.

 

Sobre a matéria, nota-se que a doutrina moderna tende a classificar, para fins de exigência erigida à categoria de pressuposto de validade da alteração contratual, a descoberta de erros objetivos passíveis de serem cometidos pela Administração como fato imprevisto, autorizativo do exercício da modificação do contrato administrativo. Veja-se, nessa esteira, o magistério de Fernando Vernalha Guimarães[3]:

 

“Quando a Administração celebra contratos administrativos e vale-se, em alguma medida, de sua autonomia pública (espaço discricionário) na missão de clausular condições contratuais, poderá, eventualmente, praticar erros e laborar em defeitos de previsão em relação a aspectos versados na avença e na formulação do projeto de contratação. Estes erros que se verificarem poderão ser considerados causas habilitantes do poder modificativo.

 

Sabe-se que os contratos administrativos, por fundamentos já previamente firmados neste estudo, instrumentam a busca pelo interesse público primário. Refletem bens e serviços relacionados com o interesse coletivo, de forma que, evidenciada a incorreção de seu conteúdo, evidenciado está o mal-atendimento ao interesse público. Os erros objetivamente cometidos (erros de fato, erros materiais, erros técnicos ou simples erros de cálculo), ainda que culposa ou dolosamente (o que caracterizaria desvio de poder), por agentes públicos na feitura de cláusulas contratuais, e que produzam reflexos de razoável impacto no interesse público relativo significam prejuízos a toda uma coletividade de usuários e beneficiários. Seria extremamente penoso imputar à comunidade uma obra ou um serviço mal-planejados pela impossibilidade de modificar o contrato administrativo.” (grifou-se)

 

Mais adiante em sua obra, esclarece o mesmo autor[4]:

 

“Tanto às alterações qualitativas quanto às quantitativas consagradas pela Lei 8.666/1993 impõe-se a exigência de verificação de fato superveniente a autorizar a medida de instabilização, ressalvada a situação de erro no projeto, para a qual se exige a concreta demonstração do ato lesivo ao interesse geral.”

 

Extrai-se da lição retromencionada que, quando a Administração se depara com hipótese de inadequação do projeto original, a alteração contratual é não só permitida como também imperiosa, pois, se mantido o projeto inadequado, sua execução importará frustração do interesse público e ofensa ao poder de diligência inerente à função administrativa, o que não pode ser suportado pela coletividade a pretexto de homenagem à imutabilidade do contrato.

 

A propósito do tema, observa-se que o próprio Tribunal de Contas da União (TCU), em recentes decisões, tem admitido a possibilidade de alteração contratual para sanar erros objetivos na definição do objeto ou no projeto, conforme se infere dos excertos dos acórdãos a seguir colacionados:

 

“Ementa: (...) 9.3. alertar a Gerência Executiva de Bauru/SP quanto às seguintes irregularidades: (...) 9.3.2. realização de licitação com projeto básico deficiente, em descumprimento ao art. 7º, § 2º, inciso I, da Lei nº 8.666/1993, havendo a necessidade de se atentar para: (i) a obrigatoriedade de manter o equilíbrio econômico-financeiro do Contrato nº 82/2009 em eventuais alterações contratuais, de forma a não reduzir o desconto inicial concedido em favor da Administração (art. 112, § 6º, da Lei nº 12.017/2009 - LDO 2010); e (ii) os limites estabelecidos pelo art. 65, § 1º, da Lei nº 8.666/1993, segundo entendimento do item 9.2 do Acórdão nº 749/2010 - TCU - Plenário; (...)” (Acórdão nº 2.872/2010 - Plenário, Rel. José Múcio Monteiro, DOU 01/11/2010 - grifou-se) 

 

“Ementa: (...) 9.4. alertar a Gerência Executiva do INSS em Maceió/AL quanto às irregularidades consubstanciadas: (...) 9.4.2. na realização de licitação com projeto básico deficiente, relativamente à unidade de atendimento de Pilar/AL, e à necessidade de, nas eventuais alterações do Contrato nº 42/2009 disso decorrentes, atentar para a obrigatoriedade de se verificar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato, de forma a não reduzir o desconto inicial em desfavor da Administração, em cumprimento ao art. 112, § 6º, da Lei nº 12.017/2009 (LDO 2010), bem como os limites estabelecidos pelo art. 65, § 1º, da Lei nº 8.666/1993, segundo entendimento do Acórdão nº 1.981/2009 - Plenário; (...)” (Acórdão nº 2.596/2010 – Plenário, Rel. José Múcio Monteiro, DOU 04/10/2010 – grifou-se)

 

Aliada à questão do erro objetivo na especificação de um objeto que não se enquadra nas reais necessidades da contratante e, por consequência, não atende ao interesse público, importa ter presente, ainda, a circunstância de que dele poderão eventualmente decorrer gastos desnecessários à Administração, caracterizando atos de má gestão de recursos públicos e ineficiência administrativa, passíveis de se configurarem, em tese, como atos de improbidade administrativa, o que é refutado tanto pelo ordenamento jurídico como pela boa moral e ética administrativa.

 

Calha salientar, por oportuno, que toda alteração contratual traz ínsita a contraposição de princípios e regras, acarretando, com isso, a necessidade do exercício de ponderação entre os valores contrapostos, para cuja solução deve ser levado em conta o princípio da proporcionalidade. Sobre o tema, leciona Marçal Justen Filho[5]:

 

“A disciplina da alteração dos contratos administrativos reflete, então, uma solução de composição entre princípios e valores contrapostos. Há, por um lado, a necessidade de preservar a função e a utilidade da licitação. Os direitos e obrigações das partes devem ser definidos, na sua essência, por meio de uma licitação aberta à participação de todos os interessados.

 

Mas, em contrapartida, é necessário admitir a alteração dos pactos originalmente estabelecidos. A cristalização da avença tal como produzida por meio de uma licitação poderia acarretar sério descompasso entre as necessidades da Administração Pública e o conteúdo dos contratos administrativos.

 

A solução adotada reflete a incidência do princípio da proporcionalidade.Diante da constatação de que dois princípios, dotados de relevância similar, produzem efeitos contrapostos, a solução reside em reduzir o âmbito de extensão de ambos.

 

Portanto, o princípio da vinculação absoluta ao ato convocatório sofre limitações, tal como se passa com o princípio da ilimitação das alterações do contrato administrativo. Admitem-se modificações contratuais, mas restritas a determinados limites.” (grifou-se)

 

Na hipótese em tela, é possível visualizar, em rota de colisão, de um lado, os princípios da vinculação ao instrumento convocatório, da isonomia entre os licitantes e da competitividade do certame e, de outro, os princípios do interesse público, da economicidade e da eficiência.

 

Nesse contexto, a resolução do conflito parece-nos passar pela identificação da finalidade precípua da Administração Pública, que, como é sabido, sempre busca atingir o bem comum e, para tanto, deve ter um âmbito de atuação não engessado na esfera da relação jurídico-contratual administrativa, a fim de que possa exercer a tutela do objeto do contrato, de modo a adequar a prestação decorrente às reais necessidades públicas envolvidas. Daí que, uma vez que o interesse público imponha condições de prestação diversas, caberá à Administração alterar os termos pactuados, com vistas a estabelecer a necessária readequação do ajuste.

 

Nesse diapasão, considerando que a atividade administrativa deve estar pautada, necessariamente, pela satisfação do bem comum, e uma vez demonstrada a necessidade da alteração contratual face ao erro identificado no momento da elaboração do projeto, tem-se que a mesma restará justificada, não só com fulcro no inciso I do art. 65 da Lei nº 8.666/93, como também pelo respeito aos princípios do interesse público, da economicidade e da eficiência administrativa.

 

Ademais, somente haverá de se falar em direito da contratada a eventual indenização caso sejam comprovados prejuízos por ela suportados em decorrência da referida alteração contratual, como no caso de já ter adquirido materiais necessários à execução do serviço que será suprimido do contrato, consoante previsto no § 4º do art. 65 da Lei nº 8.666/93[6].

 

De outro lado, no concernente a eventual apuração de responsabilidade em virtude da alteração contratual procedida, entende-se que será necessária caso haja justa causa para tal, ou seja, se, à vista dos elementos constantes nos autos, seja possível inferir indícios de dolo ou má-fé por parte dos servidores que deram causa ao erro objetivo identificado.

 

Em resumo, portanto, entende-se ser possível a alteração dos contratos administrativos, não apenas nos casos de fato justificador superveniente, mas também nas hipóteses de erros e falhas contidos no projeto básico e identificados somente no curso da execução contratual, em atenção aos princípios do interesse público, da economicidade e da eficiência administrativa. Para tanto, contudo, deve ser comprovado que a alteração pretendida se coaduna com a ideia de melhor adequação técnica frente às necessidades públicas visadas, sem prejuízo, ainda, do direito da contratada à indenização pelos eventuais prejuízos suportados e da apuração de responsabilidade dos servidores envolvidos caso haja indícios de dolo ou má-fé.

 

Referências bibliográficas:

 

GUIMARÃES, Fernando Vernalha. Alteração Unilateral do Contrato Administrativo. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

 

JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª ed., São Paulo, Dialética, 2009.

 

Notas:

[1] “Art. 65.  Os contratos regidos por esta Lei poderão ser alterados, com as devidas justificativas, nos seguintes casos:

I - unilateralmente pela Administração:

(...)

b) quando necessária a modificação do valor contratual em decorrência de acréscimo ou diminuição quantitativa de seu objeto, nos limites permitidos por esta Lei;

(...)

§ 1º O contratado fica obrigado a aceitar, nas mesmas condições contratuais, os acréscimos ou supressões que se fizerem nas obras, serviços ou compras, até 25% (vinte e cinco por cento) do valor inicial atualizado do contrato, e, no caso particular de reforma de edifício ou de equipamento, até o limite de 50% (cinqüenta por cento) para os seus acréscimos.”

[2] In: Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª ed., São Paulo, Dialética, 2009, pp. 524-525.

[3] In: Alteração Unilateral do Contrato Administrativo. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, pp. 170-171.

[4] In: Alteração Unilateral do Contrato Administrativo. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 307.

[5] In: Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos. 13ª ed., São Paulo, Dialética, 2009, p. 768.

[6] “Art. 65... § 4o No caso de supressão de obras, bens ou serviços, se o contratado já houver adquirido os materiais e posto no local dos trabalhos, estes deverão ser pagos pela Administração pelos custos de aquisição regularmente comprovados e monetariamente corrigidos, podendo caber indenização por outros danos eventualmente decorrentes da supressão, desde que regularmente comprovados.”

 

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