Adoção por Pares Homoafetivos: Uma Tendência da Nova Família Brasileira


Porbarbara_montibeller- Postado em 13 março 2012

Autores: 
DINIZ, Maria Aparecida Silva Matias

1. Noções Preliminares

É sabido que as leis estão a serviço da sociedade e que são necessárias para a organização de um Estado Democrático de Direito. Quanto a isso, não há o que se discutir. No entanto, principalmente a partir da segunda metade do século XX, com o avanço das mais variadas tecnologias, percebe-se uma aceleração nas mudanças sociais e, conseqüentemente, nas próprias relações familiares.

Nesse ritmo contínuo de modificações, a humanidade acompanha, no ápice da globalização, os aparelhos de televisão tradicionais (até duas décadas passadas, transmitindo imagens em preto e branco) sendo rapidamente substituídos por outros mais modernos com transmissão de imagens coloridas e, atualmente, pela tecnologia LCD.

Da mesma forma, as máquinas de datilografar deram lugar aos desktops e, em pouquíssimo tempo, aos lap-tops. Nesse contexto, também as cartas foram substituídas por e-mails e as notícias de esfera mundial chegam a todos os países do planeta em tempo real. É a nova face do mundo globalizado.

Assim, inevitáveis modificações na realidade cultural das famílias brasileiras ocorreram, principalmente nas últimas décadas. Os valores mudaram e os legisladores e juristas, como parte dessa transformação, também se modificaram conceitualmente em meio a tamanha dinamicidade. 

Agora, a afetividade ganha relevância em detrimento do poder marital ou patriarcal. A Constituição de 1988 prevê que é princípio basilar a dignidade da pessoa humana e que os cônjuges agora são iguais em direitos e deveres. As pessoas não mais são obrigadas a permanecer convivendo sem o afeto, sem a livre escolha, pois o Código Civil tornou livre a constituição, o desenvolvimento e a extinção das entidades familiares. Também instituiu a isonomia na proteção jurídica dos filhos biológicos, adotados e socioafetivos.. Tais inovações modificaram o estatuto jurídico da família brasileira, mas ainda não atendem à necessidade da atual diversidade.

São muitas as transformações e, com isso, a base familiar sofre alterações significativas. Tal evento repercute no meio social e essa troca de influências assimiladas pelas modificações da família e da sociedade não pode ser desconsiderada pelo Estado. Entre tantas alterações, novas formas familiares passam a coexistir ao lado da família tradicional, constituída através do casamento. Dentre elas, a família homoafetiva,  formada por pares homossexuais. 

Nesse diapasão, faz-se necessário esclarecer o significado de homoafetividade, homossexualismo e homossexualidade. O termo homossexualismo era empregado, no Brasil e no mundo, para designar uma das espécies de distúrbios mentais e emocionais, era considerado um "desvio ou transtorno sexual". Felizmente (embora tardiamente), em 1973, a APA (Associação Americana de Psiquiatria) retirou-o da lista de patologias.

Em 1995, na décima revisão do Código Internacional de Doenças (CID), "deixou de ser considerado doença, substituindo-se o sufixo 'ismo' por 'dade'" (SILVA JÚNIOR, 2008, p. 63). Assim, homossexualismo passa a ser homossexualidade, já que o sufixo anterior remetia a uma interpretação equivocada e sem qualquer comprovação nos estudos médicos. Afinal, não causa qualquer mal à saúde ou à conduta social que justifique um indivíduo ser tratado como doente por sentir atração por pessoa do mesmo sexo.

Para o Professor Enézio de Deus Silva Júnior, homossexualidade :

"é uma prática sempre presente na história da humanidade, por se constituir uma das possíveis orientações afetivo-sexuais humanas - caracterizada pela predominância ou manifestação de desejos por pessoas do mesmo sexo biológico que não se reduz a [sic] simples escolha ou opção." (2008, p.55)

Atualmente, a relação de afetividade entre homossexuais começa a receber, doutrinariamente, um novo sinônimo: homoafetividade. Este vocábulo está sendo introduzido pela desembargadora e jurista Maria Berenice Dias, a qual defende que o afeto é o fator mais relevante na atração que uma pessoa sente pelo mesmo sexo. Segundo ela, "Não se trata apenas de buscar palavras politicamente corretas, mas - sobretudo - posturas humanas e sociais, democráticas e libertárias corretas"[1].

Nota-se que não se trata apenas de uma relação de cunho sexual: é, sobretudo, um vínculo criado pela afetividade, pelo carinho, pelo desejo de estar com o outro numa convivência harmônica, duradoura e marcada pelo amor.

Indispensável esclarecer que o estudo aqui apresentado concentra-se nos pares homoafetivos e na possibilidade deles adotarem uma criança ou adolescente. Quanto à possibilidade de pessoa homossexual adotar, não existe motivo para se contestar, tendo em vista que, no ordenamento jurídico pátrio, desde que atenda aos requisitos estabelecidos pelo ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente)  e pelo Código Civil de 2002, qualquer pessoa  pode adotar.

Perceba que aqui não há de se falar em casal, pois a doutrina mais tradicional entende por casal o conceito que os dicionários dão ao vernáculo[2].  Da mesma forma, o Código Civil, no artigo 1.514, dispõe in verbis que "o casamento se realiza no momento em que o homem e a mulher manifestam, perante o juiz, a sua vontade de estabelecer vínculo conjugal, e o juiz os declara casados."

Em sentido semelhante, a Constituição de 1988, apesar dos avanços significativos, também se refere a um homem e uma mulher, como se o legislador desconhecesse que há famílias formadas por dois homens ou duas mulheres desde os primórdios da civilização humana. É o que se vê literis: "art. 226, § 3º Para efeito da proteção de Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento."

Em função disso, argumenta-se juridicamente que os únicos grupos familiares acolhidos pela legislação brasileira são os formados pelo casamento e pela união estável entre um homem e uma mulher, além dos formados por um dos pais e seus descendentes. 

Para os autores que acreditam nessa interpretação restritiva da Constituição, qualquer outra forma de família que se deseje reconhecer deverá ser "criada" por emenda constitucional, não por projeto de lei. Contudo, como será aprofundado adiante, essa interpretação puramente dogmática da Carta Magna é equivocada e, além do preconceito, revela desconhecimento dos que a defendem.

Em contrapartida, o Projeto de lei 2.285/2007, conhecido como o "Estatuto das Famílias" está em trâmite junto à Câmara dos Deputados e, se aprovado, reformulará todo o conceito de família vigente no ordenamento jurídico brasileiro. Uma das mudanças mais significativas será a união homoafetiva nos mesmos termos da união estável.

Nessa esteira, se a própria Constituição Federal prevê a igualdade e não discriminação das pessoas, por cor, raça, sexo, condição social, o exercício da sexualidade está no plano da intimidade, também protegida constitucionalmente. Dessa forma, a união homoafetiva, preenchendo os requisitos da união estável, também dá ao par homossexual o direito de exercer a paternidade ou a maternidade responsável.

Contudo, biologicamente impensável a possibilidade de duas pessoas do mesmo sexo gerarem um filho. Haveria, nessa situação a necessidade genética do sexo diverso. Assim sendo, como um par homoafetivo poderia realizar o desejo (e necessidade, em muitos casos) da maternidade ou da paternidade?

Para esse tipo de impedimento de ordem natural, o ordenamento jurídico pátrio, tem o instituto da adoção. Assim, primeiramente faz-se oportuno conceituar aqui termo que é o ponto central deste trabalho: "A adoção é uma ficção jurídica que cria o parentesco civil. É um ato jurídico bilateral que gera laços de paternidade e filiação entre pessoas para as quais tal relação inexiste naturalmente" (WALD, 2005, p.269).

Há, ainda, outros conceitos, dentre os quais o do doutrinador Wilson Donizeti Liberati, que define que a "adoção é um ato solene pelo qual se admite em lugar de filho quem por natureza não é." (LIBERATI, 2004, p. 17).

Vale destaque, que o tema aqui abordado é a adoção por pares do mesmo sexo, que tenham vínculo afetivo e convivam no que analogicamente se equipara à união estável. Não se trata, pois, de adoção por pessoa homossexual, o que já encontra proteção no manto da lei e na jurisprudência, conforme será exposto neste trabalho.

2. Evolução Histórica da Adoção

O instituto aqui analisado sofreu diversas modificações no decorrer das mudanças ocorridas pela raça humana no decorrer do tempo. Abordar-se-á, sucintamente, algumas dessas transformações acerca da adoção no mundo e no Brasil.

2.1. Antecedentes da Adoção no Mundo

Segundo Wald (2005), a adoção teria surgido atendendo a imperativos de ordem religiosa. A família primitiva era um verdadeiro estado dentro do Estado, pois possuiu unidade política, religiosa e econômica. Assim, a adoção permitia a integração do estrangeiro que aderia à religião doméstica. Como facultava a saída de uma família e a integração a uma outra, o mundo antigo pode, através dela (a adoção), desenvolver-se e civilizar-se de forma mais pacífica.

Além disso, no direito primitivo, a adoção tornou possível a perpetuação da religião e da família, assim como os bens desta, já que o testamento só iria surgir a posteriori. Foi uma forma de instituir direitos de herdeiros sem necessidade de maiores empenhos.

Já tendo sido objeto de legislação na Grécia, a adoção também está presente na Bíblia, no Código de Hamurabi a nas Leis de Manu.  Mas foi em Roma que o instituto ganhou importância política. Inicialmente vinculada ao culto dos mortos, os direitos do adotado passaram a ser protegidos na mudança de legislação que ocorreu na época de Justiniano: passou-se a distinguir a adoção plena da adoção menos plena. A primeira, realizada por ascendente do adotado; a outra, por estranho. Na época também, passou-se a limitar a diferença de idade entre adotando e adotado.

Posteriormente, em Roma, a adoção passou a ser utilizada pelos imperadores para indicar seus sucessores. Dessa forma, perdeu o status de direito privado e passou a configurar no direito público e a técnica cômoda, que outrora servia para instituir herdeiro, passa a ser utilizada para a escolha dos futuros chefes de Estado.

Na fase seguinte, no direito romano-helênico, o instituto da adoção passa a ser utilizado por casais estéreis, perdendo, assim, a função político-religiosa.  Por outro lado, na Idade Média, limitava-se à sucessão e praticamente desapareceu. O direito canônico via com reservas a adoção. Para os sacerdotes, seria uma forma de reconhecimento de filhos ilegítimos (frutos de adultérios e de incestos) e de desestimular o casamento e a constituição da família legítima.

Finalmente, no século XIX, a França ressuscitou o instituto através da sua regulamentação no Código de Napoleão. Na verdade, o que impulsionou o imperador foi o interesse que tinha em adotar um dos sobrinhos. Na prática, a lei francesa foi de pouca aplicação devido à complexidade de suas exigências, dentre as quais a necessidade de o adotante ter completado cinqüenta anos.

A partir do século XX, outras leis passaram a facilitar o instituto da adoção, inclusive abaixando a idade mínima para adotar.

2.2. Antecedentes da Adoção no Brasil

No Brasil, a Consolidação das Leis Civis, aprovada pelo Imperador em 1858, tratou apenas de forma superficial a adoção nos seus artigos 1.635 a 1.640. Posteriormente, o Antigo Código Civil, na redação originária, transferia o pátrio poder para o adotante, apenas se este não tivesse filhos legítimos, se fosse mais velho pelo menos dezoito anos que o adotado e, ainda, se tivesse mais de cinqüenta anos (artigos 368 a 378). O instituto era feito por escritura pública, registrado na circunscrição competente de Registro Civil.

Na forma primitiva daquele código, "o filho adotivo era equiparado ao legítimo, mas em concorrência à herança com o filho legítimo superveniente, visto que o primeiro recebia a metade da cota atribuída ao segundo" (WALD, 2005, p.273).

Em 08 de maio de 1957, a Lei n° 3.133 é publicada e reformula a adoção. Isso significou, na época, um avanço, já que trouxe substanciais modificações que tornaram mais fácil a aplicação do instituto.

Essa lei reduziu para trinta anos a idade mínima para o adotante. Este, se casado, deveria ter pelo menos cinco anos de vida conjugal e ser no mínimo dezoito anos mais velho que o adotado. Com exceção de marido e mulher, apenas uma pessoa poderia adotar.

Também o tutor ou curador poderiam, após prestar contas da administração dos bens do pupilo ou do curatelado, adotá-lo. Importante ressaltar que a adoção era feita mediante consentimento do adotado ou do seu representante legal (se menor ou incapaz). Além disso, cessada a menoridade ou a interdição, o adotado poderia desligar-se desse vínculo através de acordo com o adotante ou nas formas em que a lei permitia a deserdação.

Mantida a forma de escritura pública como exigível para o ato da adoção, o parentesco limitava-se apenas às partes (adotante e adotado). A única exceção referia-se a impedimentos matrimoniais entre o adotante e o cônjuge do adotado; ou entre o adotado e o cônjuge do adotante; ou, ainda, entre o adotado e filho superveniente do adotante (artigos 376 e 183, III e V, do CC revogado).

Essa limitação trouxe dúvidas com relação aos direitos dos descendentes do adotado: eles teriam direito à herança do adotante no caso do genitor já estar morto?  A doutrina e a jurisprudência não tratavam do assunto de forma pacífica e apenas lei posterior iria solucionar esse impasse jurídico.

Quanto ao parentesco natural, à exceção do pátrio-poder, que passava para a pessoa do adotando, os direitos e deveres permaneciam os mesmos. Isso significa, por exemplo, que, no caso do pai adotante não poder manter o adotado, este poderia pedir alimentos ao pai natural.

Após vários projetos tentarem resolver a questão da adoção no Brasil, é publicada, em dois de junho de 1965, a Lei 4.655, Essa lei finalmente legitima a adoção, o que era um anseio da parte da população interessada no tema.

A partir de então, a legitimação ocorria por decisão judicial e com acompanhamento do Ministério Público. De forma irrecorrível, a sentença provocava a averbação do registro da família natural. Outra modificação foi a possibilidade da adoção por pessoas com menos de trinta anos, desde que casadas há mais de cinco anos, provando ser estéril e ter vida conjugal estável.

A Lei n° 4.655 foi revogada pela Lei n° 6.697, conhecida como "Código de Menores", em 1979. Como a lei posterior não revogou a adoção simples, regida pelo Código Civil, passaram a coexistir duas formas de adoção: a plena, com legitimação adotiva; e a simples, pelo Código Civil e pelo Código de Menores (artigos 27 e 28).

O que particulariza a adoção plena é que, além de manter a legitimação adotiva, atinge, além do adotante, a família deste. Isso resolve a questão dos direitos sucessórios do adotado e de seus descendentes.

No ano de 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n° 8.069, de 1990), no seu artigo 267, revogou expressamente a lei n° 6.697.  Fundamentado na Doutrina Jurídica da Proteção Integral, regulamentou a adoção de menores, ao passo que manteve as regras do Código Civil para a adoção de maiores, de acordo com o artigo 227, parágrafo 5° da Constituição Federal.

Assim, no que diz respeito à adoção de menores, o Estatuto revogou também o disposto no Código Civil de 1916 e passou a reger sozinho todas as disposições acerca do assunto.

Na Seção III, o ECA estatue as regras aplicáveis à família substituta. Na Seção IV, nos artigos 39 a 52, todos os aspectos relativos à adoção de menores de dezoito anos são regulamentados minuciosamente. Esses e outros aspectos serão apresentados no decorrer deste trabalho, de acordo com a pertinência do tema e, por isso, não será esgotado neste momento.

Finalizando, no Novo Código Civil, o legislador buscou afastar a distância entre o Código de 1916 e as necessidades de mudanças na matéria referente à filiação. Para isso, estatuiu no artigo 1597 que "os filhos, havidos ou não na relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação".

3. Crise na Família Tradicional e Novas Famílias Possíveis

Tecendo um breve apanhado histórico, pode-se constatar que a condição sexual, que sempre serviu para estabelecer os vínculos que geram direitos e obrigações mútuas, tende a não subsistir diante do perfil da nova família. 

Basta lembrar que as relações sexuais, na vigência do Código Civil de 1916, só eram legítimas dentro do casamento. Esse entendimento perdurou até a promulgação do "Estatuto da Mulher Casada" e da "Lei do Divórcio", o que significa dizer que só gozavam dos direitos referentes à filiação os filhos gerados dentro do casamento.

Como se não bastasse, a mulher casada era considerada relativamente incapaz para os atos da vida civil, o que a impedia de exercer ocupação remunerada e de tornar-se proprietária de bem imóvel sem autorização escrita do marido. Destarte, uniões consideradas contrárias à instituição família (extra-matrimoniais) eram condenadas pela sociedade que estigmatizava o casal e considerava "bastardos" e ilegítimos os filhos nascidos dessas relações.

Felizmente, a partir da publicação do Código Civil de 2002, observa-se uma crescente tendência ao reconhecimento, pela sociedade e pelo próprio Estado, das variadas formas de família. A afetividade nas relações passa ao eixo central em detrimento da sexualidade e dos vínculos puramente genéticos. Assim, uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo não podem mais ser tratadas como algo condenável ou que deva permanecer na obscuridade.

Nesse sentido, já é fato na jurisprudência pátria que é cada vez maior o número de julgados instituindo o direito obrigacional entre pares homoafetivos que constituíram, de forma contínua, durante um determinado espaço de tempo no qual somaram esforços comuns, uma relação familiar afetiva.

Para Enézio de Deus Silva Júnior,

"A decadente família patriarcal, por exemplo, foi erigida culturalmente (como já visto, com o reforço ideológico de todo um aparato político-religioso) à condição ideal indissolúvel de entidade familiar. Isso contribuiu para que se reduzisse a visão da dinâmica intersubjetiva da afetividade humana, em suas múltiplas possibilidades de manifestação e de organização, [sic] no âmbito histórico-social". (2008, p. 39)

Segundo ele, a estrutura familiar que deve ser defendida é, antes de qualquer coisa, o espaço psíquico e afetivo das pessoas.  Isso exclui a compreensão da família como tendo "a verdade heterossexual estabelecida como padrão normal de sexualidade" (2008, p. 39).

Daí o reconhecimento de famílias plurais, defendido pela Desembargadora Maria Berenice Dias: são famílias matrimoniais, informais, homoafetivas, monoparentais, anaparentais, pluriparentais, paralelas e, ainda, eudemonistas.

Por família matrimonial entende-se a acepção familiar constituída através do casamento civil e/ou religioso. Até a atual Constituição, era a única entidade familiar admissível em direito.

Após a publicação da Carta Magna, as famílias informais passaram a ser acolhidas sob o conceito de união estável tendo, em linhas gerais, os mesmos direitos que as famílias tradicionalmente reconhecidas. É o que se vê no artigo 226, parágrafo 3° da Constituição Federal, in verbis: "Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento".

Por outro lado, a família monoparental, formada por qualquer dos pais e seus descendentes, encontra abrigo na Lei Maior, no seu artigo 226, parágrafo 4°. É o tipo de família que já representa um terço das famílias brasileiras e, por estranho que pareça, ainda não encontra abrigo no manto do Código Civil, o qual se omite quanto aos seus direitos.

Há, ainda a família anaparental, cuja convivência é marcada pela união de esforços durante um longo período de tempo sem conotação de ordem sexual. Parte da doutrina, a exemplo da Desembargadora Berenice Dias, acredita que, por analogia, cabe aplicar "as disposições de que tratam o casamento e a união estável" (2007, p. 47).

Seria um exemplo fático, a convivência duradoura de duas irmãs no mesmo domicílio, comungando esforços na construção de um patrimônio comum. Morrendo uma delas, seria cabível dividir igualmente os bens adquiridos com o trabalho das duas entre todos os demais irmãos? Pelo entendimento aqui defendido, caberia invocar a Súmula 380 do Superior Tribunal Federal, reconhecendo como sociedade de fato ou, ainda e preferencialmente, utilizar-se da analogia e reconhecer relação familiar equiparada à união estável.

Também chamadas de mosaico, a família pluriparental traz, no seu bojo, uma multiplicidade de vínculos decorrentes de novas formações resultantes de fatos como o divórcio, a separação, novos casamentos, além das famílias não-matrimoniais e das famílias frutos de desuniões.

Realidade cada vez mais presente na sociedade brasileira, esse tipo familiar parece ser desconhecido pelos legisladores que, em momento algum, fazem qualquer referência a ela, salvo quando possibilitaram, no artigo 1.626, parágrafo único do Código Civil, que o companheiro da mãe pudesse adotar o enteado, desde que com a permissão do pai registral. Na prática, essa possibilidade de adoção parece mais uma ficção, uma vez que dificilmente o pai biológico permite a adoção por parte do companheiro da mãe da criança.

Outro tipo de família aqui abordado é o da família eudemonista, ligada pela afetividade, pela busca da felicidade e da realização pessoal.

"A família identifica-se pela comunhão de vida, de amor e de afeto no plano da igualdade, da liberdade, da solidariedade e da responsabilidade recíproca.

(...) não mais existem razões  morais, políticas, físicas ou naturais que justifiquem a excessiva e indevida ingerência do Estado na vida das pessoas" (DIAS, 2007, p. 53)

Acrescenta-se, ainda, a família paralela, tratada pelo direito como concubinato. Tal modalidade não encontra apoio nas leis do Estado, uma vez que, no Brasil, a monogamia é condição indispensável para o reconhecimento de núcleo familiar. Dessa forma, mantendo a coerência legal, o direito brasileiro protege os filhos nascidos da relação de cuncubinato, já que a Carta Magna equiparou todos os filhos havidos dentro ou fora do casamento civil. No entanto, já há alguns julgados reconhecendo os direitos de concubino supérstite que convivia há mais de quarenta anos concomitantemente ao casamento do de cujos.

Finalmente, no final do século XX, desponta um novo tipo de formação familiar, até então escondida, camuflada ou rejeitada pela sociedade: a homoafetiva, composta por pares do mesmo sexo. A esse tipo de família era negado o reconhecimento (por preconceito ou receio do legislador que ainda não a normatizou, como fez com a união estável).

Contudo, a Lei Maria da Penha, nos artigos 2° e 5°,§ único, faz ressalva acerca da opção sexual da pessoa que sofre violência doméstica.  Dessa forma, "Como veio proteger a mulher vítima de violência doméstica e familiar, definiu família e albergou no seu conceito as uniões homoafetivas". (DIAS, 2007, p. 46)

Como exposto, várias são as possibilidades de formação familiar, o que evidencia a crise da tradicional família patriarcal e o surgimento de novos núcleos familiares ainda ignorados pelo Estado, mas cada vez mais freqüentes e aceitos pela sociedade neste início de século XXI.

4. Da possibilidade da Família Homoparental ser Equiparada à União Estável

O ordenamento jurídico brasileiro, quando se refere ao casamento civil e à união estável, faz a menção à união entre "um homem e uma mulher".  É o que se vê no Código Civil (artigos 1.514 e 1.723). Partindo desses dispositivos, a corrente contrária à equiparação da união homoafetiva à união estável entende que há defesa legal  para tal possibilidade.

Acrescenta, ainda, tal corrente que, como o casamento civil também tem como requisito a existência de "um homem e uma mulher" e a Carta Magna prevê a facilitação da união estável em casamento civil, seria impossível casamento civil entre pessoas do mesmo sexo. É o que está disposto no artigo 226, §3º da Constituição Federal: "para efeito da proteção do Estado é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento."

No entanto, a lacuna deixada pelo legisladore no que tange às relações homoafetivas é incontestável, tendo em vista que a própria Constituição de 1988 garante igualdade entre todas as pessoas independentemente de sexo. Além disso, se a "família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado" (artigo 226, caput), como justificar tal discriminação imposta a famílias que têm dois homens ou duas mulheres convivendo numa relação afetiva contínua, duradoura, pública e com objetivos comuns?

Esse silêncio do legislador, além de fruto do preconceito, também se origina no receio de desagradar parte da sociedade que insiste em fingir que a decadente família patriarcal ainda é a única possibilidade de núcleo familiar que merece o amparo do Estado. É claro que o reconhecimento da família informal (união estável) e da família monoparental como entidades familiares  significaram um avanço. Mas ainda é pouco.

Verdade é que a Constituição de 1988 foi publicada antes do homossexualismo ser retirado do CID como patologia e o Código Civil de 2002 manteve os requisitos "um homem e uma mulher" para o reconhecimento familiar diante do Estado. Entretanto, com as mudanças ocorridas na mentalidade e no comportamento das pessoas, inclusive formando e assumindo novas formas de núcleos familiares, faz-se necessária uma interpretação analógica e extensiva da lei para que a união estável se estenda a pessoas do mesmo sexo.

Nesse sentido, a Lei 11.340/2006, conhecida como "Lei Maria da Penha", reconhece como família, "a união de pessoas relacionadas de forma espontânea e afetivamente, sejam ou não aparentadas, vivam ou não sob o mesmo teto, hetero ou homossexuais."[3]

É o que se vê no artigo 2º in verbis :

"Art. 2o  Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social."

Nessa esteira, como a referida Lei se destina a proteger a mulher da violência, nada mais natural que essa proteção se estenda contra lésbicas que agridam suas parceiras. Além disso, reconhece a família formada por pessoas do mesmo sexo quando prevê, no inciso III do artigo 5º, "em qualquer relação íntima de afeto", excluindo claramente a orientação sexual. É o que se vê literis:

"Art. 5o  Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual."

Mas não é só: o Projeto de Lei 2.285 de 2007, intitulado de "Estatuto das Famílias", Encontra-se em trâmite junto à Câmara dos Deputados. Caso seja aprovado, será reconhecida legalmente a união entre duas pessoas do mesmo sexo. Isso significa que serão aplicadas às famílias homoafetivas as mesmas regras da união estável, incluindo regime de bens e qualificação.

Considerando que o atual Livro de Direito de Família do Código Civil foi concebido na década de 1960 e introduzido pelo Código Civil de 2002, nota-se incontestável defasagem e paralisia diante do quadro dinâmico das relações familiares no atual mundo globalizado. Nesse esteio, o Projeto Lei surge como uma esperança de evolução nas normas que regulam o direito de família.

Pelo referido projeto, o "Direito das famílias" será retirado do Código Civil e passará a viger lei autônoma para regular material e processualmente as relações de família.

"Nesse sentido, quer revogar totalmente o Livro IV- Do Direito de Família, do Código Civil, e também alguns dispositivos do Código de Processo Civil, a atual Lei de Alimentos (lei 5.478/68), a Lei de Divórcio (lei 6.515/77) e a Lei de Investigação de Paternidade de filhos havidos fora do casamento (lei 8.560/92), e ainda os artigos 70 a 76 da Lei de Registros Públicos."  (PASSARELLI, 2008)

Nessa esteira, o entendimento doutrinário-jurisprudencial já está se pacificando quando reconhece que a união estável homoafetiva, por analogia, é possível, até que o legislador cubra essa lacuna. É o que se vê abaixo:

EMENTA - APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre duas mulheres de forma pública e ininterrupta pelo período de 16 anos. A homossexualidade é um fato social que se perpetua através dos séculos, não mais podendo o Judiciário se olvidar de emprestar a tutela jurisdicional a uniões que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de sexos. É o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de forma que a marginalização das relações homoafetivas constitui afronta aos direitos humanos por ser forma de privação do direito à vida, violando os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. Negado provimento ao apelo. (TJRS Ap Civ 70012836755 - 7ª CC - j. 21.12.2005 - rel. Desa. Maria Berenice Dias)

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul tem reiterado o posicionamento no sentido de considerar possível o pedido de reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo. É o que se vê literis:

"HOMOSSEXUAIS. UNIÃO ESTÁVEL. PPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. É possivel o processamento e o rteconhecimento de união estável entre homossexuais, ante princípios fundamentais insculpidos na constituição federal que vedam qualquer discriminação, inclusive quanto ao mesmo sexo, sendo descabida discriminação quanto à união homossexual. E é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos acentuados em nosso pais, destruindo preceitos arcaicos, modificando conceitos e impondo a serenidade científica da modernidade no trato das relações humanas, que as posições devem ser marcadas e amadurecidas, para que os avanços não sofram retrocesso e para que as individualidades e coletividades, possam andar seguras na tão almejada busca da felicidade, direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruido o feito. Apelação provida. (apelação n. 598362655, oitava câmara civel,Ttribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, rel. des.Jjosé Trindade, data do julgamento 01/03/2000)"

Isso significa que, para boa parte dos magistrados, se um par homoafetivo estabelece uma relação familiar com comunhão de esforços para a constituição ou a manutenção de patrimônio comum e um deles vêm a falecer, o sobrevivente não encontra amparo no direito de família, mas apenas no campo do direito das obrigações.

Mais importante, a falta de reconhecimento desse tipo de união como núcleo familiar ofende o princípio da isonomia (igualdade jurídica sem distinções de qualquer natureza), insculpido no artigo 5º da Carta Magna, constituindo ainda ofensa à honra e a imagem dos integrantes desses núcleos (protegidos pelo inciso X do mesmo artigo), e atentando contra a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF).

5. Processo de Adoção

Para que a adoção seja possível, não necessários alguns requisitos previstos pelo ECA, na Seção IV (Da Colocação em Família Substituta"), transcrita in verbis:

"Art. 165. São requisitos para a concessão de pedidos de colocação em família substituta

I - qualificação completa do requerente e de seu eventual cônjuge, ou companheiro, com expressa anuência deste;

II - indicação de eventual parentesco do requerente e de seu cônjuge, ou companheiro, com a criança ou adolescente, especificando se tem ou não parente vivo;

III - qualificação completa da criança ou adolescente e de seus pais, se conhecidos;

IV - indicação do cartório onde foi inscrito nascimento, anexando, se possível, uma cópia da respectiva certidão;

V - declaração sobre a existência de bens, direitos ou rendimentos relativos à criança ou ao adolescente.

Parágrafo único. Em se tratando de adoção, observar-se-ão também os requisitos específicos."

Além do ECA, também o Código de Processo Civil regula a adoção no Brasil. Esse instituto pode ser utilizado tanto para maiores de dezoito anos de idade como também para crianças e adolescentes menores, porém só ocorre através de processo judicial, com a efetiva participação do Ministério Público, uma vez que se configura uma ação de estado, conforme previsto na legislação.

A tramitação deste tipo de ação ocorre nas varas de família, para ambos os tipos de adoção, maiores de idade ou crianças e adolescentes, independente do tipo de situação, mesmo em condições envolvendo litígio. Afora isso, somente nos casos em que haja situação de risco comprovado, a competência do processo para adoção de crianças e adolescentes migra para as varas da infância e juventude.

Além disso, o princípio do juízo imediato deve ser sempre observado quando da definição da competência do processo, devendo sempre ser observado o critério que melhor atenda aos objetivos e que possa ter a mais eficaz prestação jurisdicional. Para o cumprimento processual, é necessária que se promova um estudo social, realizado por uma equipe interdisciplinar, sendo ainda necessário estabelecer um estágio de convivência preliminar à concessão da adoção.

Apesar deste estágio de convivência não ser previsto no Código Civil, ele é aplicado no processo de adoção de crianças e adolescentes, podendo ser dispensado pelo juiz condutor do processo quando ocorrer do adotando ter menos de um ano de idade, ou então, em caso de qualquer idade, se o mesmo já convive com o adotante por um tempo que permita avaliar a conveniência do vínculo já existente.

Mesmo o Código Civil não prevendo o estágio de convivência, ele prevê que quando o adotando tiver mais de doze anos, deverá ser ouvido e a opinião do mesmo deverá ser considerada no processo. A Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada no Brasil (o que lhe confere força normativa), prevê que as opiniões das crianças sejam consideradas no processo, segundo a idade e maturidade das mesmas, de modo a colher a opinião dos menores sob todos os aspectos nos quais os seus direitos estão sendo decididos.

Em outras palavras, no sentido de melhor proteger o interesse da criança, é imprescindível que a mesma seja ouvida, qualquer que seja sua idade, língua falada ou grau de maturidade, sendo que esta atividade não deve ser do juiz, porém ser realizada por um profissional habilitado, de preferência da área de psicologia ou do serviço social.

Como o processo de adoção garante todos os direitos previstos na filiação, seu deferimento prevê a destituição do poder familiar. Caso os genitores não venham a concordar com a adoção, o normal é exigir com antecedência a desconstituição do poder familiar.

Inicialmente, quando se configurava a situação da não concordância do processo de destituição do poder familiar, o processo de adoção era extinto por se caracterizar numa impossibilidade jurídica do pedido. Atualmente, contudo, há jurisprudência no sentido de seguir simultaneamente com as demandas dos processos de adoção e destituição do poder familiar, porém formalismos processuais não prevalecem em processos pertinentes aos direitos de crianças e adolescentes.

Uma vez que o processo de adoção implica na perda do poder familiar, não há a necessidade de se ingressar com uma ação específica de destituição de poder, sendo que este pleito pode ser considerado implícito no processo de adoção, sendo a destituição do poder familiar reconhecida como resultado da sentença homologatória do processo de adoção. Nesse caso, é exigida somente a citação dos genitores, configurando, assim, o litisconsórcio necessário, exigível somente quando não ocorrer qualquer uma das condições em que a concordância dos genitores é dispensável.

O vínculo da adoção é processado através de sentença judicial que dispõe sobre a eficácia do ato e seus efeitos a partir de seu trânsito em julgado. Somente na hipótese de falecimento do adotante, durante o decorrer do processo de adoção, a sentença disporá de efeito retroativo à data do óbito, considerando já ter havido manifestação de vontade por parte do mesmo.

Dessa forma, a sentença será inscrita mediante mandado judicial, no registro civil, sem que seja indicada qualquer referência à origem do ato. Este interesse é tamanho que no registro de nascimento do adotado não deve consta nenhuma observação, sendo ainda vedado o fornecimento de certidão.     

6. Adoção Homoparental

A adoção por homossexual, como foi adiantado no início deste trabalho, já encontra guarita na jurisprudência brasileira. Exemplo disso foi o caso no qual o Ministério  Público interpôs a Apelação Cível Nº 1998.001.14332, insurgindo-se contra a adoção de um menor, na época, com dez anos, por um professor que se declarara homossexual. Aquele, ao ser ouvido, demonstrou estar satisfeito no novo núcleo familiar, ao contrário do que ocorria enquanto morava com os pais biológicos, que o abandonaram. Ainda, segundo o adotado, era tratado pelo pai adotivo com decoro, respeito aos bons costumes e à moral. Por unanimidade, a decisão negou provimento ao recurso.

"Adoção cumulada com destituição do pátrio poder. Alegação de ser homossexual o adotante. Deferimento do pedido. Recurso do Ministério Público.
1. Havendo os pareceres de apoio (psicológico e de estudos sociais), considerando que o adotado, agora com dez anos, sente agora orgulho de ter um pai e uma família, já que abandonado pelos genitores com um ano de idade, atende a adoção aos objetivos preconizados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e desejados por toda a sociedade. 2. Sendo o adotante professor de ciências de colégios religiosos, cujos padrões de conduta são rigidamente observados, e inexistindo óbice outro, também é a adoção, a ele entregue, fator de formação moral, cultural e espiritual do adotado. 3. A afirmação de homossexualidade do adotante, preferência individual constitucionalmente garantida, não pode servir de empecilho à adoção de menor, se não demonstrada ou provada qualquer manifestação ofensiva ao decoro, e capaz de deformar o caráter do adotado, por mestre a cuja atuação é também entregue a formação moral e cultural de muitos outros jovens. Votação:Unânime Resultado: Apelo improvido TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Acórdão: Apelação Cível - Processo 1998.001.14332 Relator: Desembargador Jorge Magalhães Julgamento: 23.03.1999 - Nona Câmara Cível".

 Isso é fato, visto que o artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que podem adotar os maiores de vinte e um anos (leia-se dezoito anos), independentemente de estado civil. Além disso, o Código Civil, no seu artigo 1.618, institui que "só pode se qualificar como adotante pessoa maior de dezoito anos". Logo, deduz-se que qualquer pessoa que preencha os requisitos impostos pelo ECA e pelo Código Civil pode adotar.

Assim, seria inconstitucional levar em conta a opção sexual do adotante como requisito abonador ou desabonador no processo de adoção. Trata-se de questão de foro íntimo e sua invasão iria de encontro ao direito à intimidade, previsto na Carta Magna (artigo 5º) como direito individual. Além disso, seria infligir o preceito constitucional que veda preconceitos "em razão de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação" (artigo 3º, IV, parte final, CF).

Contudo, a chamada "homoparentalidade", adoção por par homossexual, ainda não encontra guarita na jurisprudência mansa e pacífica. As opiniões acerca do tema divergem e há até movimentos religiosos imbuídos no sentido de proibi-las.  É o preconceito enraizado na cultura brasileira, colocando a intimidade sexual do adotante acima dos seus valores morais, éticos e afetivos. Essa prática é vedada na Constituição Federal no seu art. 3o, inciso IV. Logo, não pode ser utilizada como paradigma na decisão que envolve a adoção por par homoafetivo.

Além do mais, é descabido o pensamento que (ainda!) têm algumas pessoas: criança criada em lar de homoafetivos tornar-se-á homossexual. Basta ler acerca de estudos científicos feitos com homossexuais e com heterossexuais, a exemplo da Harvard Law Review, que confirma que "a prole de homossexuais não está mais propensa a sentir desejo pelo mesmo sexo, com a natural convivência." (Harvard Law Review, apud SILVA JÚNIOR, 2008, p.143).

Segundo entendimento do Professor Enézio de Deus Silva Júnior (2008, p.143), os juízes podem encontrar fundamentação científica favorável à adoção por hono e bissexuais, além dos estudos feitos aqui no Brasil, também nos dados e conclusões apresentados pela Universidade de Harvard, em 1990.

Ainda de acordo com o Harvard Law Review apud Enésio de Deus, não procede o entendimento de que a violência sexual sofrida por crianças e adolescentes se faz mais presente em famílias homossexuais. Ao contrário, "95% dos casos de abusos provém de convivência com heterossexuais" (SILVA JÚNIOR, 2008, p. 143)

Conclui-se, pois, que o fato de alguns terem sido criados por casais ou por alguém que tenha preferência pelo mesmo sexo, não foi determinante para a opção sexual, tampouco colocou essas crianças e adolescentes numa situação de maior risco de sofrerem abuso sexual

A Professora Maria Berenice traz, no seu artigo[4], a possibilidade de analogia entre adoção entre casais [sic] homoafetivos e a união estável. Segundo ela, se o ordenamento jurídico brasileiro possibilita, além do casamento civil, a união estável, analogicamente, um par homoafetivo tem a mesma possibilidade de adotar uma criança que um casal heteroafetivo. Pelo entendimento dela:

 "Negar a realidade, não reconhecer direitos só tem uma triste seqüela: os filhos são deixados a mercê da sorte, sem qualquer proteção jurídica. Livrar os pais da responsabilidade pela guarda, educação e sustento da criança é deixá-la em total desamparo. Há que reconhecer como atual e adequada a observação de Clovis Bevilaqua ao visualizar um misto de cinismo e de iniqüidade, chamando de absurda e injusta a regra do Código Civil de 1916 que negava reconhecimento aos filhos  adulterinos e incestuosos." (DIAS, 2003, p. 269/275)

7. O Registro do Adotado

A Lei 6.015 de 1973, Lei dos Registros Públicos, regula os registros de brasileiros. Nela, nenhuma exigência formal obsta que uma pessoa seja registrada com dois pais ou duas mães. Da mesma forma, o ECA apenas prevê no artigo 47 que:

"O vínculo de adoção constitui-se por sentença judicial, que será inscrita no registro civil, mediante mandado do qual não se fornecerá certidão.

§ 1º A inscrição consignará o nome dos adotantes como pais, bem como o nome dos seus ascendentes"

Não há, portanto qualquer discriminação com relação à sexualidade biológica dos adotantes e, sendo adotada por par homoafetivo masculino ou feminino, a criança ou o adolescente terá seu registro civil elaborado de acordo com os requisitos habituais, já que não há qualquer vedação na legislação que impeça de constarem como pais ou mães duas pessoas do mesmo sexo. Esse entendimento ficou decidido inequivocamente pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no aresto transcrito abaixo na Apelação Cível n.o 70013801592.

Para evitar qualquer constrangimento sem, contudo, deixar de refletir a realidade familiar socioafetiva na qual os adotados estão inseridos, o juiz Marcos Danúbio Edon Franco determinou, na sentença, que o registro de nascimento das crianças adotadas por pessoa do mesmo sexo conste que são filhas de L.R.M. e Li.M.B.G., omitindo-lhes a condição de pai ou de mãe.

Vale registrar, que o recurso da apelação foi utilizado para recorrer da sentença prolatada pelo magistrado. Veja que, por unanimidade, foi mantida a decisão do magistrado Marcos Danilo Edon Franco:

"APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar, merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das crianças e dos adolescentes (art. 227 da  Constituição Federal). Caso em que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente  entre as crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME." (APELAÇÃO CÍVEL SÉTIMA CÂMARA CÍVEL Nº 70013801592 COMARCA DE BAGÉ - DESA. MARIA BERENICE DIAS - Presidente - Apelação Cível nº 70013801592, Comarca de Bagé: "NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME." Julgador(a) de 1º Grau: MARCOS DANILO EDON FRANCO)

Na mesma linha, o Professor Enézio de Deus Silva Júnior entende que "a existência de um registro de nascimento, no qual constem os nomes de dois homens ou de duas mulheres pode se opor aos costumes, mas não ao ordenamento positivo pátrio."(SILVA JÚNIOR, 2008, p. 142)

Ratifica tal entendimento fatos jurídicos como o que ocorreu com Theodora Rafaela Carvalho da Gama, uma menina que, aos cinco anos de idade, no dia 17 de novembro de 2006, foi registrada no município e comarca de Catanduva, estado de São Paulo, pelos cabeleireiros Vasco Pedro da Gama, 35 anos, e Júnior de Carvalho, 43 anos.

Após um ano requerendo a adoção da menor, finalmente eles conseguiram que, numa decisão inédita da Justiça brasileira, constasse na Certidão de Nascimento os nomes dos dois pais, sendo que a palavra "pai" foi suprimida. Da mesma forma, os nomes dos avós foram colocados no referido documento sem a referência de "avós paternos" ou de "avós maternos". Apenas avós, apenas "filha de Vasco Pedro da Gama e de Júnior de Carvalho".

Não foi preciso mais que isso para que a menina que passara seus primeiros quatro anos de vida sem um lar, sem uma família, passasse a ter legalmente reconhecidos dois pais amorosos e dedicados.

8. Considerações Finais

Diante das evidentes modificações ocorridas na família brasileira em meio às efêmeras características do mundo globalizado, a pluralidade de núcleos familiares diversos dos que estão explícitos no ordenamento jurídico pátrio é um fato que o legislador não pode continuar ignorando

Assim, não reconhecer as novas famílias formadas, é negar a proteção jurídica do Estado, o que vai de encontro à Constituição Federal de 1988, que trouxe como princípio basilar a dignidade da pessoa humana e que veda qualquer tipo de discriminação. Nesse contexto, as famílias formadas por duas pessoas do mesmo sexo, que constituem uma relação de convivência afetiva contínua, duradoura e notória, têm o direito à proteção legal dada à família formada pelo casamento civil, pela união estável ou, ainda, por um dos genitores e seus descendentes.

Dessa forma, analogicamente, pode-se atribuir à família homoafetiva o mesmo tratamento jurídico dado à união estável, com direitos e deveres idênticos a esta. No atual momento histórico-sócio-cultural, um dos direitos mais reclamados pelos homossesuais masculinos e femininos que convivem em núcleo familiar com seus pares é o direito à adoção.

Importante ressaltar que não se trata da adoção por uma pessoa, mas por duas pessoas do mesmo sexo que desejam adotar criança ou adolescente e, além disso, reúnem todos os requisitos legais necessários. Como comprovado no decorrer deste trabalho, nada justifica que esses pares homoafetivos sejam impedidos de exercer a maternidade ou a paternidade, contraindo todos os direitos e deveres provenientes da relação familiar com o filho afetivo.

Enquanto permanece o silêncio do legislador no que se refere a esse fato, a parte mais conservadora da sociedade ainda reage de forma preconceituosa, acreditando que, se criada por homossexual, a criança também terá desejo por pessoa do mesmo sexo. Pior ainda: há os que defendem que, num lar homoafetivo, o adotado será abusado sexualmente pelos pais ou pelas mães adotivas.

Contrariando esse entendimento, estudos científicos e relatórios feitos em todo o mundo revelam que esses paradigmas estão totalmente equivocados e que não procedem.

Felizmente, a jurisprudência pátria tem começado a se mostrar sensível à necessidade do reconhecimento do direito da adoção homoparental e, conforme exposto no corpo deste trabalho, já passa a conceder à família formada por pessoas do mesmo sexo o direito à adoção. Nesses casos, as crianças e adolescentes adotados saem da condição de órfãs e passam ao seio de famílias que as escolheram para amar e proteger, tomando para si os deveres que os pais biológicos, por algum motivo, recusaram ou não puderam honrar.

Por último, parece oportuno que fique registrado o entendimento de Rodrigo da Cunha Pereira, que afirma: "O pai é muito mais importante como função social do que como genitor" (1997, p.131). Esse conceito de paternidade e de maternidade socioafetiva, introduzido recentemente na legislação do Brasil, deixa claro que o amor, a solidariedade, o cuidado e o respeito com a prole são mais relevantes para o bom desenvolvimento da criança e do adolescente que o aspecto puramente biológico.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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PASSARELLI, Luciano Lopes. Projeto de lei 2.285/2007: o "Estatuto das Famílias". Disponível em < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=406>.  Acesso: 27 out. 2008.

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SILVA JÚNIOR, Enésio de Deus.A Possibilidade Jurídica de Adoção por Casais Homossexuais. 3. Ed. ver. E atual. - Curitiba: Juruá, 2008.

WALD, Arnoldo. O novo Direito de Família. 16. ed., São Paulo:  Saraiva, 2005.


[1] DIAS, Maria Berenice.  Politicamente correto. Disponível em http://www.consciencia.net/2003/06/07/homoafeto.html. Acesso em 19 set. 2008.

[2]Segundo Aurélio Buarque de Holanda, casal é "par composto de macho e fêmea ou homem e mulher".

[3] CFEMEA  - Centro feminista de Estudos e Acessória.Lei Maria da Penha: do papel para a vida.Comentários à Lei 11.340/2006 e sua inclusão no ciclo orçamentário. Disponível em <http://www.cfemea.org.br/pdf/leimariadapenhadopapelparaavida.pdf >  Acesso 08 out. 2008.

[4] DIAS, Maria Berenice.Adoção Homoafetiva e companheiros homoafetivos no registro civil do menor.  Disponível em: <http://www2.oabsp.org.br/asp/comissoes/crianca/artigos/04.pdf >.   Acesso 27 ago. 2008.