Aborto e legalização


Porwilliammoura- Postado em 25 fevereiro 2013

Autores: 
LIMA, Marina Torres Costa

As religiões conseguem espaço público suficiente para burlar o princípio fundamental da laicidade no Estado brasileiro e, consequentemente, retardar o reconhecimento de liberdade sexual e reprodutiva à população feminina.

Introdução

As discussões acerca do aborto são infindáveis e datam de muito tempo. São sempre extremamente polêmicas principalmente porque os argumentos envolvem, de um lado, ideais de cunho religioso, bem como, por outro, fundamentos que visam a garantir a autonomia e a dignidade feminina e buscam quebrar as assimetrias de gênero.

O presente trabalho demonstrará a influência do paradigma de gênero no debate sobre o aborto, apontando como se constrói o discurso social de domínio sobre as decisões da mulher. Nesse sentido, o artigo apresentará a força de dois instrumentos extremamente responsáveis por perpassar a desigualdade sociocultural existente, os quais se tornam verdadeiros óbices à garantia dos direitos humanos da mulher, quais sejam: as religiões, que ignoram diariamente a laicidade do Estado Brasileiro, interferindo de forma direta na promoção de políticas públicas voltadas à dignidade da mulher; e o próprio Estado, que, através do seu estatuto penal, impede o desenvolvimento em plenitude da vida sexual e reprodutiva da mulher e, por conseguinte, da concretização do ideário de cidadania e democracia previstos formalmente.

Destarte, este texto tem como objetivo refletir sobre a criminalização da citada prática, analisando suas implicações para a garantia dos direitos fundamentais da mulher e demonstrando que a desconstrução de conceitos e valores preconceituosos se faz necessária para a manutenção do bem-estar geral.


1.  Algumas considerações sobre gênero, direitos sexuais e reprodutivos

O conceito de gênero foi elaborado a fim de refutar toda e qualquer tentativa de fundamentação biológica para as desigualdades na determinação dos papéis destinados ao homem e à mulher no seio social. Significa, portanto, que tais sujeitos são frutos da realidade sociocultural da qual fazem parte, cujos preceitos estabelecem os comportamentos que cada um deve seguir no seu cotidiano.

Cediço, dessa maneira, que não cabe qualquer atenção ao discurso do senso comum de que mulheres e homens têm diferenças naturais que os obrigam a exercer funções diferentes na sociedade, mesmo que desiguais. Os seres humanos são realmente socializados e educados durante toda a vida para agir conforme a cartilha de condutas predeterminadas pelas instituições sociais, e não segundo o tão falado determinismo biológico. Com efeito,

O modo como homens e mulheres se comportam em sociedade corresponde a um intenso aprendizado sociocultural que nos ensina a agir conforme as prescrições de cada gênero. Há uma expectativa social em relação à maneira como homens e mulheres devem andar, falar, sentar, mostrar seu corpo, brincar, dançar, namorar, cuidar do outro, amar etc. Conforme o gênero, também há modos específicos de trabalhar, gerenciar outras pessoas, ensinar, dirigir o carro, gastar o dinheiro, ingerir bebidas, dentre outras atividades (GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA, 2009, p. 40).

A construção social das assimetrias de gênero é revigorada dia após dia pela maciça maioria da sociedade, ainda que inconscientemente. Geralmente, nas mínimas atitudes, a relação de hierarquia que se estabelece entre homem e mulher é reforçada, com a reprodução, sem questionamentos, de um discurso estereotipado e injusto.

Vê-se, nesse sentido, a habitual ausência de reflexão sobre as condutas apontadas como tipicamente femininas ou masculinas na vida familiar e social. Afinal, quem costuma discordar de que o doméstico, o rosa e a boneca estão relacionados diretamente ao universo feminino? Ou que o azul, o espaço público e a agressividade são aspectos que devem caracterizar a vida do homem? E, por sua vez, quem costuma se perguntar de onde vêm essas regras?

Os modelos de comportamento indicados para homens e mulheres conseguem sem perpassados ainda com tanta força de geração em geração – seja na escola, na família, no trabalho etc. – por não haver a dose necessária de ponderação sobre o assunto. Desde muito cedo, os passos de cada um são desenhados de acordo com o gênero ao qual pertencem, sem um exame preocupado acerca das implicações dessa separação de universos. Como regra, as pessoas não atentam para o fato de que essas desigualdades constituem fonte de desrespeito, desavenças e de várias formas de violência; pelo contrário, na verdade é comum a legitimação da(s) violência(s) em virtude de uma possível desobediência à “cartilha social de boas maneiras”.

Infelizmente, o paradigma de gênero é uma realidade que permeia todos os aspectos da vida social e reflete, com mais veemência, nas questões referentes à sexualidade e à reprodução. Há verdadeira normatização sobre as condutas sexuais e reprodutivas esperadas de cada um, ponto em que certamente se aguçam as diferenças entre os universos masculino e feminino.

As representações das sexualidades masculina e feminina, bem como as questões ligadas à vida reprodutiva são fruto de um sistema patriarcal e machista que violenta a autonomia da mulher, quando não lhe permite a liberdade para lidar com seu corpo da forma que desejar. Ao passo que é assegurada ao homem (heterossexual, claro!) a possibilidade de viver livre e tranquilamente seus direitos sexuais e reprodutivos, são impostas inúmeras restrições ao sujeito feminino, as quais se consubstanciam, primordialmente, na necessidade de salvaguarda do seu corpo, de sua “moral sexual”, além do encargo necessário da maternidade.

Nesse sentido,

qualquer inadaptação ou desvio de conduta corre o risco de ser duramente criticada/o ou discriminada/o socialmente: elas podem se tornar “putas” e “galinhas” (em razão de uma vida sexual ativa), ou “sapatões”, “machonas” ou “freiras” (como categoria de acusação em alusão à castidade para as que se recusam a aderir à prática sexual por imposição do parceiro); e eles, “bichas”, “veados”, “mulherzinha”, “maricas”. Em suma, há modelos de gênero rigidamente estabelecidos que inspiram representações e práticas sociais para jovens de cada sexo. (Idem, p. 52).

Assim, a mulher educada para ser frágil, sensível, delicada é a mesma que tem como ensinamento diário o dever de viver sua vida sexual de forma cautelosa, reprimida, com um parceiro fixo e que tenha o domínio da situação. Do mesmo modo, essa mulher é socializada para reproduzir, como consequência e necessidade direta e “natural” da existência de sua sexualidade, e com a finalidade de cumprir sua maior função na sociedade.

Aqui se demonstra o predomínio de uma interpretação errônea sobre os direitos sexuais e reprodutivos, uma vez que, conforme assevera Ávila (2003, p. 466), existe uma moral conservadora que prescreve às mulheres a submissão de sua sexualidade à reprodução. Em outros termos, não é justo nem correto ser mulher sem tornar-se mãe! Ainda, nas palavras de Tânia Navarro Swain (2011, p. 91), “esta é a ‘verdadeira mulher’ do mundo patriarcal, sem aspirações próprias, sem autoconfiança, sem autoestima, resumida à procriação e à dedicação”.

Nessa perspectiva, compreende-se o porquê de tanta celeuma em torno da legalização ou não do aborto. As tentativas de descriminalização da prática esbarram na mentalidade social de que a mulher, ao usufruir de sua sexualidade, carrega o (b)ônus da reprodução. Afinal, como convencer a aceitar a legalização do aborto uma sociedade machista e preconceituosa, para a qual parir é uma condição sine qua non para a vivência dos direitos sexuais da mulher e, ainda, que acredita que apenas a esta cabe a responsabilidade de evitar a gravidez indesejada?


2. O debate sobre o aborto: a influência do (desigual) discurso religioso.

As discussões sobre o aborto seguem duas correntes básicas: a que defende a criminalização da prática, argumentando principalmente que abortar é afrontar o direito à vida e, por conseguinte, à manutenção da própria família; e a segunda, que luta pela legalização da conduta, com fundamento, em suma, na necessidade de garantia da autonomia e da saúde feminina.

Quem concorda com o caráter delitivo do aborto comunga – ainda que não admita – das opiniões contaminadas pelas desigualdades de gênero. Em realidade, defender a criminalização significa minimizar a capacidade de decisão da mulher, restringir sua faculdade de se autodeterminar de acordo com suas escolhas. Atribuir maior importância à vida do ser gerado do que à liberdade da mulher de eleger o que é melhor pra si é compartilhar da premissa de que o sujeito feminino deve se guiar, independentemente de seus desejos pessoais, por todas as regras que lhe são estabelecidas, máxime através de sua principal função na sociedade patriarcal – a de reproduzir.

Maria Betânia Ávila (2003, p. 467), com primazia, assevera:

É importante ressaltar que a persistente desigualdade entre homens e mulheres é um impedimento para a liberdade reprodutiva e sexual das mulheres. A violência na vida cotidiana tem sido um forte mecanismo de manutenção da dominação sobre a vida sexual das mulheres. No terreno político, há uma forte reação por parte dos setores conservadores contra as propostas feministas de transformação social e cultural nesses campos. Um exemplo contundente é a reação contrária à legalização do aborto. Essa reação produz alianças entre igrejas, partidos políticos e outros setores no sentido de conter avanços no campo legal e das políticas sociais.

 Com efeito, os argumentos em prol da criminalização da prática geralmente se baseiam em preceitos religiosos, os quais repreendem toda e qualquer suposta perturbação ao modelo “satisfatório” de família. Em que pese o risco das generalizações, não há o que temer ao se afirmar que é imensurável a contribuição das religiões monoteístas, de forma geral, para a existência de uma sociedade tão desigual e tão cruel no que tange ao abismo existente entre as garantias de homens e mulheres. Ora, os ensinamentos religiosos e, mais que isso, as distorções efetuadas pelo fundamentalismo tornam muito mais difíceis as tentativas de dirimir as assimetrias de gênero. As igrejas pregam descaradamente a pretensa superioridade masculina e a necessidade de que as mulheres sigam papéis sociais meramente secundários; fazem campanhas públicas contra a legalização do aborto, contra o uso de métodos anticoncepcionais; enfim, atuam com vigor contra a garantia da liberdade e da dignidade feminina.

Nesse sentido e com toda autoridade, Swain (2011, p. 88) ressalta que

os discursos que afirmam a existência de uma “natureza humana” assentam o poder do patriarcado a partir de diferentes instituições, entre elas as religiões monoteístas, que, de início, definiram a “diferença” para melhor tornar inferior o feminino, invocando culpas e pecados que só pertencem à sua imaginação e sua vontade de poder. Quer seja usando a Bíblia ou o Alcorão, todas as religiões monoteístas têm como fundamento o controle e a disposição dos corpos das mulheres e a sua inferiorização em relação aos homens. Nele, a “vontade de Deus” é igual à “vontade dos homens”. E esta é uma vontade de poder, de controle, de domínio, de utilização.

Dessa maneira, para as religiões, base do ataque à possível legalização do aborto, pouco importa se referida conduta, enquanto crime, mata milhares de mulheres pela falta de assistência médica. Não interessa, tampouco, os motivos pelos quais elas realizam tal prática. E é nessa ausência de reflexão e interesse acerca das causas e das consequências da realização do aborto na vida da mulher que se situa o egoísmo daqueles que seguram a bandeira machista da criminalização da conduta ora discutida.

Ora, o julgamento social sobre a mulher que aborta está impregnado de clichês patriarcais que atribuem a ela a responsabilidade exclusiva pelo seu ato. Não se questiona a postura do parceiro e/ou até onde ele contribuiu para isso. Em realidade, para a construção sociocultural que limita a capacidade de agir e pensar da mulher, importa apenas saber que foi ela, fisicamente, quem abortou, devendo, destarte, sofrer todas as espécies de conseqüências – que vão desde a sanção moral coletiva até uma possível condenação penal, além de toda a probabilidade de óbito de mulheres que recorrem aos procedimentos clandestinos.

Admitir razão aos argumentos supracitados é padecer da ausência de criticidade sobre as condições deploráveis de desigualdade de gênero construídas e perpassadas pela incontável maioria da sociedade. Concordar com o fato de que a mulher deve exercer a maternidade obrigatoriamente, porque, acima de qualquer coisa, esta é um dom divino, é permitir que a(s) religião(ões) invadam abruptamente à esfera mais íntima de cada um e exerçam verdadeiro poder de decisão sobre sua vida.

Imprescindível, nesse sentido, reconhecer que a laicidade do Estado Brasileiro deve ter efetividade como qualquer outro direito fundamental, representando verdadeiro pressuposto para a concretização de um real Estado Democrático de Direito. Ao passo que se permite que preceitos religiosos se difundam entre as questões jurídico-políticas do país, bem como interfiram no funcionamento das instituições públicas, abre-se uma vereda para a omissão estatal no que tange aos direitos fundamentais, conforme salienta Orozco (2008, p. 2):

Em muitas ocasiões, os programas de saúde se vêm afetados, precisamente, pela ambigüidade ideológica que vivem alguns funcionários públicos de hospitais, por exemplo, que se consideram com o direito de julgar, em nome de sua moral religiosa, qualquer pessoa que busca serviços para a realização de um aborto; ou que é portadora de qualquer tipo de enfermidade sexualmente transmissível. Nesta relação, mediada por ideologias religiosas, em muitas ocasiões se estabelece a perda do direito individual e do direito de cidadania de pessoas que solicitam serviços vinculados à sexualidade ou aos direitos reprodutivos. (Sem destaques no original)


3. O atual Direito Penal brasileiro como óbice à promoção de direitos

Essencial destacar, de pronto, que defender a legalização do aborto não significa apoiar a realização contínua e inconsequente da prática. Na verdade, quem luta para retirar do ordenamento jurídico criminal brasileiro a previsão deste delito tem como objetivo maior o cumprimento, pelo Estado, da sua função primordial de garantidor de direitos.

Com efeito, enquanto diversas legislações internacionais atuais insistem na necessidade de se garantir uma vida sexual e reprodutiva saudável a todas as mulheres, o sistema brasileiro permanece na contramão desses avanços legais. Afinal, como dirigir políticas públicas à promoção dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher se há verdadeira barreira jurídica preceituada nos arts. 124 e ss. do Código Penal Brasileiro? Sim, pois tratar o aborto como crime é obrigar milhares de mulheres a procurar procedimentos clandestinos sem qualquer amparo médico e psicológico. Tratar o aborto como crime é negar o direito mais básico a uma existência livre e digna, enviando à morte tantas mulheres.

Interessante frisar que, em 2006, o Ministério da Saúde emitiu uma cartilha que segue o norte mundial, reconhecendo os direitos sexuais e reprodutivos da mulher como direitos humanos e elencando-os conforme o que se espera[1]. Todavia, apesar da importante normatização, a realidade brasileira demonstra a ineficiência do Estado em efetivá-la. Há, nesse caso, verdadeira contradição entre os valores que o Estado pretende assegurar, uma vez que, enquanto perdurar a tipificação penal do aborto, não há possibilidade de pôr em prática a bela redação acima mencionada, em prol da dignidade da vida reprodutiva e sexual feminina.

Outrossim, o fato merece uma análise sob outro viés: para quê insistir nessa criminalização se não há uma efetiva coerção sobre aquelas que a praticam? Por que o aborto deve ser crime se, com isso, o Estado não obtém êxito em sua prevenção ou repressão? A punição para a conduta, na realidade fática, não se consubstancia na pena privativa de liberdade prevista legalmente, já que, na práxis forense, não é corriqueira a ocorrência de um julgamento pelo referido crime, considerando a existência de milhares de abortamentos ilegais diariamente; a sanção, na realidade, vem de forma indireta, uma vez que às mulheres que abortam restam a invisibilidade e o desprezo do seio social.

Deve-se concluir, portanto, que, se a norma não impinge o temor que deveria nem faz jus à eficácia esperada, é porque a proteção ao bem jurídico tutelado merece uma nova interpretação. Considerando a realidade de milhares de clínicas clandestinas espalhadas pelo país, com um número alarmante de mulheres sofrendo inúmeras complicações em decorrência da falta de atendimento das políticas públicas, vislumbra-se a necessidade premente de uma mutação no sistema, que vise a atender os anseios de uma população que tem direito a ter direitos. O Direito Penal pátrio precisa evoluir para tornar-se, de fato, mínimo e desocupar a posição de impedimento legal à promoção de políticas voltadas ao efetivo bem-estar reprodutivo das mulheres.

Nesse caminho, fundamental agora rechaçar o famoso argumento de que a legalização acarretaria a banalização do aborto: pesquisas apontam que, em 2003, houve mais de 40 milhões de abortos no mundo – praticamente a metade de forma provocada. Cerca de 97% desses abortamentos ocorreram em países como o nosso, cujo ordenamento restringe a liberdade e a capacidade feminina de determinar os passos de sua vida reprodutiva. Ademais, estimam-se cerca de 70 mil mortes maternas derivadas do aborto inseguro, quase todas em países da África, Ásia, América Latina e Caribe[2]. Como se vê, a probabilidade é que as práticas abortivas aconteçam em maior número em países cujas legislações restrinjam a importância da garantia dos direitos humanos sexuais e reprodutivos da mulher, contrariando o que é defendido pelo senso comum.

Em realidade, a medida de descriminalização do aborto não é reivindicada de forma isolada. Com a referida abolitio criminis, surge a possibilidade efetiva de promover políticas públicas comprometidas integralmente com o desenvolvimento da vida sexual e reprodutiva da mulher, como forma de assegurar o que propõem os valores democráticos, da mesma maneira que tem ocorrido nos países em que a prática é legalizada.