Aborto de Anencéfalo: conflitos de competência entre pais, médicos e o Estado


Porbarbara_montibeller- Postado em 18 abril 2012

Autores: 
SANTOS, Osvaldo Araujo dos

Uma decisão acertada pelo STF
Muito se tem falado, ultimamente, sobre a anencefalia. A discussão acerca dos direitos das pessoas envolvidas com esse problema tem gerado, direta ou indiretamente, muitos debates jurídicos, assim como, também, tem provocado discordâncias quanto à sua interpretação no campo do direito. A principal discussão sobre esse tema ronda em torno da preservação da vida. Qual vida preservar, a vida da mãe que traz no ventre uma criança “sem cérebro”, ou a vida da criança “sem cérebro?”. Finalmente o STF se posicionou e decidiu pela aprovação do abordo necessário.


Sumário: 1. Introdução; 2. Conceito; 3. Fundamentos legais de garantia à vida; 4. Características gerais da ocorrência de anencefalia. 5. Fundamentos religiosos; 6. Hipóteses se cabimento da antecipação terapêutica; 7. A ética médica e as inovações tecnológicas; 8. O direito de família na concepção constitucional; 9. Conseqüências e efeitos; 11. Conclusão; 12. Referências.


 

Muito se tem falado, ultimamente, sobre a anencefalia. A discussão acerca dos direitos das pessoas envolvidas com esse problema tem gerado, direta ou indiretamente, muitos debates jurídicos, assim como, também, tem provocado discordâncias quanto à sua interpretação no campo do direito. A principal discussão sobre esse tema ronda em torno da preservação da vida. Qual vida preservar, a vida da mãe que traz no ventre uma criança “sem cérebro”, ou a vida da criança “sem cérebro?”.

Por um lado está a posição dos legisladores que ainda se apresenta com certa timidez ou cautela, por se tratar de uma “caixa de pandora” em que envolve muitos interesses, mesmo por que o conceito de vida e morte (cerebral) ainda é uma incógnita no mundo do direito.

Por outro lado, está a ética médica, cujo juramento prestado para o exercício da medicina dá ao médico o poder de decidir ou escolher entre a vida e a morte da mãe do anencéfalo e a própria vida do bebê que apresenta a anencefalia.

Há, ainda, a posição do direito dos pais, que baseada numa postura ética, moral e, sobretudo religiosa, exerce total influência no julgamento do Poder Judiciário ao decidir sobre tais questões.

Estas e outras questões têm acarretado um amplo debate de direito sobre qual vida preservar, ou qual vida tirar. Muitas são as divergências. Entram nessa discussão os pontos de vista jurídico, o religioso, o da ética médica, o da sociedade organizada e dentre estes o mais relevante de todos: o da família do bebê anencéfalo.

A anencefalia é uma anomalia biológica que causa o fechamento do tubo neural em seu extremo encefálico, por volta do 20º. e o 28º. dia após a concepção, a qual implica na falta de desenvolvimento dos hemisférios cerebrais e do hipotálamo (neocórtex), além do desenvolvimento incompleto da glândula pituitária e da estrutura óssea do crânio. Significa dizer que o bebê se forma sem a presença de cérebro, impossibilitando a manutenção da vida pelo fato de que suas funções vitais não são desenvolvidas normalmente, levando os órgãos à falência múltipla até a morte de fato, pois a morte cerebral já é um fato constatado e atestado pelos médicos.

Sua causa ainda é um mistério. Há algumas teorias, sendo provavelmente ocasionada em decorrência de uma combinação de fatores genéticos e ambientais. A ingestão de ácido fólico antes da gestação pode prevenir em cerca de 50% os casos de anencefalia. A ocorrência deve-se ao fato de que alguns medicamentos como alguns anticoncepcionais ou a ingestão de ácido valpróico (anticonvulsivamente) ou drogas antimetabólicas em geral reduzem o nível de absorção de ácido fólico, causando o risco de dar à luz uma criança com anencefalia.

Por outro prisma, em decorrência da anencefalia costuma-se observar outras anomalias, como defeitos na coluna, que afetam aproximadamente 50% (cinqüenta por cento) dos casos, espinha bífida, com mielomeningocele, além disso, entre 13% (treze por cento) e 33% (trinta e três por cento) dos anencéfalos apresentam outros defeitos orgânicos, como no coração e nos rins. Em acréscimo, o nervo ótico costuma ser inexistente, mas, se presente, não chega ao cérebro, o que se encerra com a cegueira total.

O art. 5º. da Constituição Federal de 1988 que trata dos direitos e garantias fundamentais estabelece a igualdade de direitos entre todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país, garantindo-lhes entre outros direitos fundamentais a inviolabilidade do direito à vida. Os incisos II, III, VI e VIII deste mesmo artigo reforçam este direito, ao dizer que:

II - “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”

III – “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”.

VI – “é inviolável a liberdade de consciência e de crença...”;

VIII – “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.

O art. 6º. da Constituição Federal de 1988 que trata dos direitos sociais, estabelece que a maternidade e a infância, entre outros, são direitos que devem ser protegidos e preservada pelo Estado.

Corroborando ainda com essa linha de análise, o art. 227 da CF/88 que trata da criança e do adolescente, reforçado pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, através da lei 8.069 de 13 de julho de 1990, orienta e define os termos da proteção que deve dar o Estado, a família e a sociedade como um todo, à criança e ao adolescente.

Art. 227 da CF - “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à dignidade, (...), além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A expressão “com absoluta prioridade”, garante à criança e ao adolescente um tratamento de fato prioritário, acima, inclusive, da discricionariedade das decisões administrativas tomadas pelos dirigentes da organização pública do Estado brasileiro, em todos os níveis: federal, estadual e municipal.

Essa expressão “com absoluta prioridade” significa dizer que, com o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, não é mais possível ao administrador público utilizar-se do princípio da discricionariedade, em face da oportunidade e necessidade pública, para se descuidar da proteção integral da criança e do adolescente, devendo adotar políticas públicas abrangentes de alcance a todas as crianças e adolescentes, com eficiência e a eficácia, que venham a garantir a efetividade dessa proteção integral.

A lei 8.069 de 13 de julho de 1990 inaugura a existência de um novo instituto jurídico no sistema jurídico brasileiro intitulado O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, cujo art. 1º. desta lei busca a proteção integral da criança e do adolescente. Inaugura-se, portanto, uma nova maneira de enxergar a criança e o adolescente como de fato eles são, merecedores da proteção estatal, da sociedade e da família.

Já o art. 7º. desse novo instituto busca ampliar essa proteção, responsabilizando o Estado pela adoção e desenvolvimento de políticas públicas voltadas para atender, prioritariamente, as necessidades da criança e do adolescente como forma de aniquilar a fome, a pobreza, a miséria, as injustiças sociais historicamente praticadas contra estas, e principalmente para acabar com a falta de legislação em torno desse agrupamento social de crucial relevância para o futuro da nossa sociedade, esquecido pelo sistema jurídico, dando-lhes direitos concretos e prioritários como forma de resgatar sua dignidade, sua auto-estima e sua condição de cidadão.

Art. 7º. do ECA – “ A criança e o adolescente têm direito a proteção à vida e à saúde, mediante a efetivação de políticas sociais públicas que permitam o nascimento e o desenvolvimento sadio e harmonioso, em condições dignas de existência”.

A garantia à vida, entre outras garantias, não exclui os portadores de anencefalia ou quaisquer outras anomalias congênitas, decorrentes da má formação fetal. Portanto, não há que se excluir da apreciação do poder judiciário aqueles que têm ou são portadores de deficiências, a exemplo dos anencéfalos.

A lei 9.434/97, que trata da adoção e transplante de órgãos, acata a adoção da morte encefálica como critério médico e jurídico como determinante da morte para quaisquer efeitos jurídicos. Como suporte pericial na apreciação dos fatos e julgamento do caso concreto, o atestado médico confere ao anencéfalo a incapacidade para a vida, afirmando que a “ausência de cérebro” é uma condição irreversível, levando à morte inquestionavelmente, em períodos curtíssimos de apenas minutos, horas ou dias.

O Código Penal tipifica o aborto como crime praticado contra a vida, exceto aquele praticado por médico nos termos do art. 128, desde que praticado se não houver outro meio para salvar a vida da gestante ou se a gravidez resultar de estupro, havendo o consentimento da gestante ou de seu representante legal se esta for incapaz. São classificados como aborto necessário ou humanitário ou sentimental.

            A discussão sobre bebês anencéfalos se instalou no Brasil com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADPF 54 (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental), proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS) para que se possibilitasse aos médicos a prática de aborto anencefálico.

Em decisão liminar de 01/07/2004, o Ministro Marco Aurélio apreciou a questão dos fetos anencefálicos sob a ótica da “dignidade humana”, “legalidade”, “liberdade” e “autonomia de vontade” da gestante, dizendo que “... a situação concreta foge à glosa própria do aborto”.

Significar dizer, portanto, que o Poder Judiciário afastou a possibilidade da anencefalia ser tratada como se fosse um aborto. Além disso, deixa claro que, ao não se posicionar juridicamente de forma contundente, afasta temporariamente o problema da esfera jurídica por falta de legislação especifica que possa dar suporte às decisões judiciais.

Ainda pautado em pareceres médicos, o poder judiciário não tem conseguido grandes avanços nesse campo específico, se limitando a analisar pareceres a cerca do que é a vida, quando ela aparece ou quando não se pode considerá-la.

Estudos desenvolvidos por especialistas indicam que cerca de 57% dos anencéfalos que nascem com vida morrem no primeiro dia e que apenas 15% sobrevivem até o 3º. dia de vida, enquanto que 44% não passam de uma semana e somente casos excepcionais conseguem chegar a mais de uma semana de vida extra-uterina.

Aqui precisamos fazer uma análise diferenciada da vida intrauterina e extrauterina. Como todos os demais bebês ou fetos ainda no útero da mãe, os bebês anencéfalos têm seu desenvolvimento intrauterino como qualquer um deles. Seu período de desenvolvimento se dá da forma mais normal possível, podendo ser verificado todos os movimentos normais de um bebê sadio ao longo de toda a gestação. A sua incapacidade para a vida é verificada após o nascimento devido ao falecimento múltiplo dos órgãos.

O problema na esfera jurídica, social e ética está posto, há décadas, sem uma solução até a presente data. Considerando que o aborto anencefálico envolve o direito à vida e a dignidade do feto, bem como os direitos à vida, à saúde, à dignidade, à autonomia da vontade e à liberdade de escolha dos pais, o judiciário brasileiro tem examinado a questão de três formas distintas:

- Primeira, por que o sistema jurídico ainda não está amplamente aparelhado para absorver esta questão, necessitando de legislação específica, pois em face do princípio da legalidade que admite que a “ninguém é obrigado fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”, reduz significativamente a atuação do poder judiciário nesta questão, possibilitando aos pais a decisão, conforme suas convicções.

- Segunda, a religião, apesar de gozar de liberdade de atuação no âmbito do sistema jurídico brasileiro, influenciando diretamente na tomada de decisões de natureza social coletiva, não possui competência técnica para tratar da questão com propriedade e credibilidade, por lhe faltar respaldo legal de atuação a esse nível de complexidade jurídica.

- Terceira, a ética médica que atenta para o fato de que a prática da medicina leva o médico a tomar decisões muitas vezes consideradas ilegais, mas que do ponto de vista da ética médica era a decisão acertada, pois envolve vida e morte, dentre as quais o médico deve fazer sua opção, obedecendo a esses critérios éticos da profissão. Contudo, muitos problemas na esfera jurídica têm ocorrido com essa decisão puramente profissional, sem o aval do poder judiciário.

Estes conflitos de direito, de ética e de conduta, têm gerado dificuldades jurídicas no trato da questão, pois perdura, ainda, na ótica dos pais, a visão puramente religiosa e afetiva para decidir sobre a antecipação terapêutica, restando-lhes a esperança e a fé na sobrevida do bebê anencéfalo.

A atuação religiosa, em alguns casos, afeta o discernimento da realidade, por se tratar de doutrinas dominadoras, desprovidas de conhecimentos específicos, em que a maioria de seus membros é desprovida de uma consciência intelectual da realidade social que os cercam, preferindo seguir os dogmas da religião a discutir os fatos da forma em que eles ocorreram.

Essa posição dogmática praticada pela religião, descredencia sua atuação no campo do direito, pois exige o desapego das questões puramente religiosas, da crença de que há um Deus que resolve os problemas dos mortais. Mortalidade e imortalidade são temas antagônicos cuja crença religiosa tende a optar pela possibilidade da vida em outro nível de consciência.

Os pais, armados de afeto, de esperança e de fé, apesar de não estarem imbuídos de legalidade jurídica, possuem um link que define a responsabilidade direta e o peso da decisão de praticar ou não praticar a antecipação terapêutica (eutanásia), pois envolve não apenas a questão jurídica, religiosa ou ética, mas acima de tudo, trata-se do amor e do grau de afeto que envolve diretamente os pais dessa criança.

Assim, cabe uma análise mais aprofundada das razões que envolvem o afeto e o amor dos familiares com o bebê anencéfalo, cabendo a estes a decisão de praticar ou não a eutanásia com a antecipação da morte de seu fruto do amor, principalmente o amor da mãe por estar diretamente ligada pelo cordão umbilical e carregar durante os nove meses aquele bebê em seu ventre e sentir todas as contrações e sopro de vida intra-uterina.

Hoje a função médica procura prolongar a vida com qualidade, observando os parâmetros da dignidade da pessoa humana, o respeito à vontade dos pais e seu poder decisório, tem modificado substancialmente a relação médico-paciente existente.

Considerando-se o feto e a mãe como pacientes, avaliando as obrigações a despeito de ambos, embasadas nos princípios da autonomia, beneficência e não maleficência, confrontando-se esses deveres com relação ao feto-paciente em conflito com os mesmos deveres com relação à mãe-paciente, se reconhece que a grávida se encontra obrigada apenas quanto a um feto que mostre viabilidade, se essa gravidez trouxer perigos reais e imediatos à sua própria vida.

A viabilidade deve ser o primeiro fator a ser ponderado com relação ao feto anencefálico. Afirmações médicas têm sido contestadas por entidades religiosas e algumas organizações sociais humanitárias, pois entendem elas que a vida pode se prolongar por muito mais tempo do que afirmam os laudos médicos.

Alguns exemplos aconteceram em todo o mundo, em que tais crianças desprovidas de cérebro tiveram uma sobrevida além das previsões médicas, assim, a posição dessas entidades ou organizações sociais tem razão de ser.

Estes exemplos, portanto, têm colocado em xeque a posição e a própria aplicação jurídica em torno da questão, levando os juristas e magistrados a adotarem extrema cautela quando do julgamento de tais casos na esfera judiciária. O julgamento da ADPF 54 pelo STF demonstra toda a dificuldade dos magistrados de lidar com essa questão, e traduz, consequentemente, toda a incerteza jurídica por que passam os tribunais em torno da anencefalia.

Porém, as novas tecnologias aplicadas nos exames preventivos de doenças degenerativas ou anomalias decorrentes da má formação fetal, como a ultra-sonografia e a dosagem de alfafetoproteína, têm demonstrado um avanço fenomenal na busca das causas dessas doenças e da aplicação terapêutica de procedimentos regenerativos ou preventivos. Técnicas absolutamente confiáveis têm sido amplamente utilizadas no tratamento dessas doenças, de forma que a atividade médica ganha mais autonomia nas suas decisões e são mais aceitas pela sociedade como procedimento com alto grau de aproveitamento.

A identificação e a separação do DNA humano se apresentam como uma das mais importantes inovações tecnológicas da área médica para suplantar problemas dessa natureza. Ainda incipiente no tratamento efetivo, mas merece a confiança de um futuro brilhante para que a medicina venha a superar os tratamentos convencionais e de pouca eficiência utilizados atualmente.

Contudo, a despeito dessas novas tecnologias e técnicas, tem-se, pois, instalado o conflito jurídico, por se tratar de uma atipicidade ao direito por não se saber objetivamente suas causas jurídicas. Ou seja, qual a vida a preservar – objeto jurídico; falta de sujeito passivo – o feto, pois não se constitui pessoa – e, por fim, a falta da materialidade, causa fundamental do direito.

A atuação médica vem imbuída de uma carga ética muito grande, pois cabe ao médico utilizar-se de parâmetros não legais, para poder decidir sobre a vida e a morte de duas pessoas que dependem de uma solução imediata. A decisão tomada seja ela qual for, poderá repercutir na sua atuação profissional, se mal interpretada tanto pelos pais, quanto pelo Poder Judiciário.

Instala-se, pois um conflito entre o dever e o direito. Por um lado, o dever de salvar uma vida significa o poder de tirar outra vida, ainda que esta seja vivida por pequenos intervalos de tempo, como é o caso dos anencéfalos. Por outro lado, contudo, há dúvidas da atuação do médico no que diz respeito à vida tirada, caso ele tivesse tomado a decisão de manter a vida do bebê, mesmo arriscando a vida da mãe, ou levando à incerteza quanto ao tempo de vida que teria aquele bebê.

A Constituição Federal de 1988, ao tratar do direito de família, estabelece princípios e parâmetros basilares para reconhecer e organizar essa relação familiar, dentre eles a dignidade da pessoa humana, o afeto e o amor como forma de ponderar essa relação entre o feto anencéfalo e sua mãe.

O direito de família é o único ramo do direito privado cujo objeto de ligação é o afeto, de forma que o amor está para o direito de família assim como o acordo de vontades está para o direito dos contratos. Tendo essa assertiva como base não se pode querer transformar a desilusão pelo fim de vínculos afetivos em obrigação indenizatória, visto que a negativa de afeto não se resolve na seara da responsabilidade civil.

Em paralelo, está a discussão sobre o aborto no Brasil, cuja tendência indica a sua não aprovação pela sociedade e pelas organizações sociais e religiosas, apesar de ter um outro enfoque que não o do bebê anencéfalo. Trata-se de problemas presentes no bojo da sociedade, em decorrência de variáveis sociais, tanto do ponto de vista educacional, quanto das reais condições de vida do povo brasileiro, com raízes profundas dos bolsões de miséria, da prostituição, dentro e fora de casa. Contudo, esse é um outro tema interessante que será tratado oportunamente.

Voltando ao nosso problema da anencefalia, recentemente foi publicada no jornal A Tarde, mais precisamente no dia 20 de maio de 2007, uma matéria jornalística que trazia a informação de sobrevida de mais um bebê portador da anencefalia. Os menos observadores ou desconhecedores do problema jurídico instalado em torno desse problema, provavelmente não deram a menor importância. Porém, os que lidam com o direito, com certeza se surpreenderam ao ler a matéria.

O fato mais importante é que este caso amplia a discussão sobre o assunto e gera ainda mais insegurança aos magistrados e tribunais que se vêem às voltas com casos de anencefalia para julgar. Os parâmetros médicos passam a ser mais cuidadosamente analisados e considerados quando da fundamentação jurídica para a prolação de decisões judiciais, pelo fato de ter o bebê sobrevivido por mais de seis meses, contrariando todos os prognósticos médicos.

A vida que tanto o direito preserva, poderia estar ameaçada pelo próprio direito ao sentenciar o magistrado pela antecipação da morte de tal bebê, tendo como base tal prognóstico médico, o qual acata como critério de determinação de vida ou morte.

A decisão dos familiares de manter a vida do filho até os últimos momentos é inquestionavelmente correta, sob todos os aspectos.  Todos os parâmetros legais foram observados, que se reflete na proteção maior do bem jurídico: A VIDA. Vida é vida, não importa o lapso temporal, se um ano, um mês, um dia, um minuto ou singelo segundo.

A vida vale pelo que ela pode ser vivida. Por um simples segundo que seja, pois o que está em jogo não é a discussão dialética sobre o que pensam os juristas e os médicos sobre o que é vida, seja ela ativa ou inativa, ou ainda, a posição religiosa e de entidades humanitárias. O que de fato vale é a emoção de ter a vida em suas próprias mãos, do filho que foi gerado com amor, da realização do sonho esperado.

Essa emoção, esse direito de decidir pela vida, ainda que por segundos, jamais será legislada, jamais será retirada dos pais. Os institutos de direito jamais evoluirão a ponto de interagir nesse momento único e sublime dos genitores com seus frutos do amor esperados, se assim eles decidirem agir em sintonia com suas próprias consciências. Essa interação é única.

Contudo, outra visão do problema se aflora. É o caso de bebês anencéfalos que causam danos irreparáveis à sua genitora, podendo provocar a morte desta por se encontrar em estágio de dependência grave, ou ainda por estar em um estado crítico de massa sem vida no útero da mãe, podendo, inclusive, levá-la à morte.

O Poder Judiciário vem deferindo a antecipação do parto nos casos em que envolve risco para a gestante, cuja possibilidade de sobrevida do bebê anencéfalo é constatada nos exames médicos realizados que caracterizam a deformação absoluta e irreversível do feto.

Porém, mais uma vez, a antecipação fetal dependerá dos pais ou familiares, que decidirão com base nos diagnósticos médicos ou de suas próprias convicções religiosas, éticas ou morais. A preservação da vida, nesse caso, é visivelmente determinada. Nesse momento, os valores internos de cada um deles vão indicar qual o caminho a escolher, quais as medidas a serem tomadas. Repito. A decisão ainda é dos familiares e não dos médicos ou do Poder Judiciário. Estes podem, contudo, funcionar como dosadores do direito íntimo da família e auxiliares na tomada de uma decisão menos danosa.

Apesar das acirradas discussões em torno da anencefalia pelo direito pátrio, fundamentado pelos pareceres dos médicos peritos da vida, entendo que a decisão de antecipar a morte será sempre dos pais ou familiares ou pessoas ligadas ao feto anencéfalo.

Por tudo, conclui-se que a anencefalia possui, como as demais enfermidades ou deformidades biótipicas, estágios variados de possibilidades de prolongamento da vida, o que torna um campo extremamente delicado para se traçar metas resolutivas do problema da forma puramente jurídica, devendo ser ainda mais amadurecida, levando-se em consideração a posição dos pais, seus principais atores da história que se quer contar da anencefalia.

“A sobrevivência da democracia depende da capacidade de grandes maiorias de fazer escolhas de um modo realista, à luz de uma informação suficiente”.       

Aldous Huxley.

A despeito dessa citação de Aldous Huxley[1], encerra-se este trabalho com uma observação muito pertinente no que diz respeito ao legalismo jurídico vigente como mola mestra propulsora da sociedade contemporânea, lembrando que, precipuamente, o direito deve estar a serviço da sociedade e não a sociedade a serviço do direito.

O sistema jurídico pátrio precisa evoluir de forma coerente com os grandes temas sociais que se apresentam no dia a dia, para que possa ser capaz de decidir com muita firmeza, a partir de informações seguras, as novas demandas sociais ainda não previstas pelo sistema jurídico ou ainda não totalmente absorvidas e adequadas ao mundo jurídico.

O aborto decorrente da anencefalia ainda não é um pressuposto permissível pelo Poder Judiciário, por pura falta de legislação específica, apesar da decisão em torno da ADPF No. 54, cuja decisão liminar proferida pelo Ministro Marco Aurélio, com efeito “erga omnes”, cassada em plenário, conferir a existência no sistema jurídico, ainda que por apenas três meses, a existência do aborto legal em casos de anencefalia, vem a ser um dos desafios do direito pela sua atipicidade, não podendo ser tratado como o aborto tipificado.

            Há que se respeitar a vida, seja ela quanto tempo for, em quais condições, desde que haja quem se importe com ela. Muitas injustiças já foram praticadas no passado e continuam sendo praticadas no presente contra os inocentes e indefesos, na sua hora de maior necessidade. O Estado não pode punir quem já está sendo punido pela sua própria condição, pelo mero conceito de vida do ponto de vista da avaliação jurídica, quando se verifica condição de vida intrauterina e extrauterina, ainda que por um singelo segundo ou uma simples respiração que possa preencher os pulmões de um ser que luta desesperadamente pela vida.

A vida não poder ser medida, quantificada ou desconsiderada em decorrência do seu tempo, mas merece ser vivida enquanto há vida.

Finalmente termina a batalha jurídica. No dia 12 de abril de 2012 o STF decidiu pela descriminalização do aborto de crianças portadoras da anencefalia, por cinco votos a favor e dois contra, deixando para os pais a difícil tarefa de escolher entre a vida e a morte que envolve o bebê e a mãe.

Esta decisão vem confirmar o resultado desse trabalho, onde a prevalência da vontade dos pais consiste em fator essencial, posto que as condições psicológicas da mãe em todo o período da gestação são de fundamental importância para determinar a necessidade de aborto, em função das expectativas de vida nutrida pela mãe em relação ao seu bebê.

Contudo, a batalha jurídica não terminou. As organizações sociais e religiosas que não concordam com esta decisão do STF prometem desenvolver uma discussão ainda calorosa sobre o assunto, restando a nós o aguardo dos desfechos futuros.

Referências:

ANGHER, Anna Joyce. Vade mecum acadêmico de direito. Anne Joyce Angher organização. 4. ed. – São Paulo: Rideel, 2007.

BRSUSSIN, Otto. O pensamento jurídico. Tradução Hebe A. M. Caletti Marrenco. Campinas: Edicamp, 2001.

COUTINHO, Luiz Augusto. Aborto em casos de anencefalia: crime ou inexigibilidade de conduta diversa? http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6423.  Jus Navigandi. 22 de junho de 2007, 15h12min.

CURY, Muniz, Garrido & Marçura. Estatuto da criança e do adolescente anotado. 3. ed. ver. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.

ISHIDA, Válter Kenji. Estatuto da criança e do adolescente: doutrina e jurisprudência. Comentários Válter Kenji Ishida. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2004.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito – Tradução João Baptista Machado – 6. Ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1998.

PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparativo dos sistemas regionais europeus, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 5. ed. ver. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2007.

Notas:

[1] Huxley, Aldous – Admirável Mundo Novo (Breve New World)