Ações afirmativas e o dever de agir do Estado para garantir o direito fundamental à educação


Porrayanesantos- Postado em 07 maio 2013

Autores: 
JARDIM, Rodrigo Guimarães

 

RESUMOCom o objetivo de universalizar o acesso ao conhecimento, a Constituição Federal de 1988 positivou o direito à educação como fundamental. Contudo, considerando que a previsão constitucional não foi suficiente para alterar a realidade social, o Estado deve agir para dar efetividade a esse direito. Numa realidade em que não há vagas nas universidades públicas para todos os brasileiros e que a maioria dessas vagas é ocupada por alunos com relativa capacidade financeira, é inegável que o Estado não está oferecendo suficientemente a prestação que deve pelo direito fundamental à educação. Em razão disso, a política de cotas universitárias não merece reparos, pois representa uma medida apta a equilibrar o acesso ao ensino gratuito, custeado pelo próprio Estado. 

 

PALAVRAS-CHAVE: Direito fundamental. Direito à educação. Ações afirmativas. Cotas universitárias.


 

I. Considerações iniciais

 

                        A experiência em vários países demonstra que a educação consiste em elemento chave para a evolução de uma sociedade. A qualificação de toda uma geração por meio do aprofundamento científico do estudo e da pesquisa beneficiará a próxima geração e assim sucessivamente. A verdade é que conhecimento é poder e, como tal, não pode ser propriedade apenas das classes sociais privilegiadas, sob pena de a outrora escravidão física ser substituída por uma escravidão intelectual, com os mesmos efeitos nefastos.

 

                        Com o objetivo de universalizar o acesso ao conhecimento, a Constituição Federal de 1988 positivou o direito à educação como fundamental. Contudo, considerando que a previsão constitucional não foi suficiente para alterar a realidade social, o Estado deve agir para dar efetividade a esse direito. Esse é o tema deste estudo, o direito fundamental à educação e o dever de agir do Estado, mediante políticas públicas de acesso às universidades.

 

II. O direito fundamental à educação e o dever de agir do Estado.

 

                        O direito à educação, consoante parcela relevante da doutrina, consiste num direito fundamental de segunda dimensão, incluindo-se, como regra, entre os “direitos positivos” ou “prestacionais”, pois impõe ao Estado uma obrigação de agir em prol do particular.            Nos termos do artigo 205 da Constituição Federal de 1988, a prestação devida pelo Estado é a estruturação e a disponibilização de um sistema de ensino que, nos termos do constituinte, vise “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”[1]. Além disso, a interpretação sistemática da Constituição permite concluir que tal direito é ainda mais importante, pois está diretamente relacionado aos Princípios e Objetivos Fundamentais da República.

 

                        O artigo 1º da Constituição Federal de 1988 coloca como fundamentos do Estado Democrático de Direito a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e o pluralismo político. A educação como preparo para o exercício da cidadania é finalidade expressa no já citado artigo 205[2]. A dignidade da pessoa humana também passa pela educação porque, no estágio de evolução do homem, o conhecimento e a cultura dignificam a pessoa em todos os seus relacionamentos, seja familiar, religioso, no trabalho, enfim, no círculo social que se está inserido. A relação da educação com os valores sociais do trabalho talvez seja a mais evidente de todas, pois o atual mundo globalizado só tem espaço para pessoas profissionalmente qualificadas - passou o tempo em que a conclusão do ensino médio garantia uma posição no mercado de trabalho. A ligação do pluralismo político com a educação também é inegável, tendo em vista que a evolução do pensamento político através de uma discussão pluralista só é possível com argumentos empíricos e teóricos que dependem do estudo da evolução social e científica - que dependem da educação e da pesquisa.

 

                        Já o artigo 3º da Constituição Federal de 1988 elenca os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, quais sejam: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promover o bem de todos, sem preconceitos ou discriminações[3]. Esses fins mostram-se intrinsecamente ligados à garantida ao direito à educação.

 

                        A construção de uma sociedade livre, justa e solidária passa com certeza pelo “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O homem só é livre se tem condições de pensar por si só, de ter opiniões e consciência política, de se dignificar pelo trabalho. E a justiça e a solidariedade social dependem de um homem livre, que depende de educaçãoA garantia do desenvolvimento nacional engloba o crescimento social, político, econômico e tecnológico, sendo que todos dependem da educação, que também é chave para a diminuição das desigualdades e promoção do bem de todos.

 

                        Por tudo isso, o conceito de educação deve ser entendido num espectro amplo. Para Celso de Mello, o conceito de educação

 

é mais compreensivo e abrangente que o da mera instrução. A educação objetiva propiciar a formação necessária ao desenvolvimento das aptidões, das potencialidades e da personalidade do educando. O processo educacional tem por meta: (a) qualificar o educando para o trabalho; e (b) prepará-lo para o exercício consciente da cidadania. O acesso à educação é uma das formas de realização concreta do ideal democrático[4].

 

                        Corolário lógico, destarte, é o dever de o Estado agir, em cumprimento à face prestacional do direito à educação, para universalizar materialmente o acesso ao conhecimento. Na lição de Ingo Wolfgang Sarlet,

 

podemos considerar como sendo correta a identificação dos direitos a prestações em sentido estrito com os direitos fundamentais sociais de natureza prestacional. Estes, por sua vez, têm sido considerados, também entre nós, como resultado de um processo de desenvolvimento que radica já na Constituição francesa de 1793 e que, além disso, se encontra intimamente vinculado à questão social do século IXX. O certo é que os direitos fundamentais sociais a prestações, diversamente dos direitos de defesa, objetivam assegurar, mediante a compensação das desigualdades sociais, o exercício de uma liberdade e igualdade real e efetiva, que pressupõe um comportamento ativo do Estado, já que a igualdade material não se oferece simplesmente por si mesma, devendo ser devidamente implementada. Ademais, os direitos fundamentais sociais almejam uma igualdade real para todos, atingível apenas por intermédio e uma eliminação de desigualdades, e não por meio de uma igualdade sem liberdade, podendo afirmar-se, neste contexto, que, em certa medida, a liberdade e a igualdade são efetivadas por meio dos direitos fundamentais sociais.[5]

 

                        Sabe-se que não existem vagas em universidades públicas para todos, que a procura pelo ensino superior é muito maior do que a oferta gratuita. Mais: sabe-se também que, reiteradamente, os candidatos aprovados nas universidades públicas são aqueles que têm condições financeiras de custear cursinhos pré-vestibulares de elevado custo. Tal situação, aliás, choca-se com objetivos fundamentais.

 

                        Nessa linha, apenas permitir o acesso de todos às seleções realizadas pelas universidades públicas com as provas de vestibular não é suficiente para assegurar a igualdade de concorrência. Como enfatiza a Ministra Carmen Lúcia, “se a igualdade jurídica fosse apenas a vedação de tratamentos discriminatórios, o princípio seria absolutamente insuficiente para possibilitar a realização dos objetivos fundamentais da República constitucionalmente definidos.”[6]

 

                        A renomada jurista prossegue a análise esclarecendo que, para a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, “universaliza-se a igualdade e promove-se a igualação: somente com uma conduta ativa, positiva, afirmativa, é que se pode ter a transformação social buscada como objetivo fundamental República.”[7]

 

                        É necessário, assim, que o Estado adote ações afirmativas para efetivamente garantir o acesso à educação em igualdade material de condições. Para o Ministro Joaquim Barbosa, as ações afirmativas podem ser definidas como sendo um

 

conjunto de políticas públicas e privadas de caráter compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, bem como para corrigir os efeitos presentes da discriminação praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego.[8]

 

                        Em síntese, as ações afirmativas são “políticas e mecanismos de inclusão concebidas por entidades públicas, privadas e por órgãos dotados de competência jurisdicional, com vistas à concretização de um objetivo constitucional universalmente reconhecido - o da efetiva igualdade de oportunidades a que todos os seres humanos têm direito”.[9]

 

                        Dentre as possibilidades de o Estado agir para efetivamente realizar a igualdade de acesso às universidades e, por consequência, ao direito à educação, o estudo, neste momento, já se mostra apto a fundamentar a adoção de cotas universitárias. Essa medida visa corrigir o total desvirtuamento pelo qual passam as universidades públicas, na medida em que a grande maioria dos aprovados nos seus vestibulares são alunos com capacidade financeira de custear cursos preparatórios caros.

 

                        Merecem destaque as palavras do Ministro Ricardo Lewandowski proferidas, no voto ainda em fase de revisão, durante o julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186/2009:

 

Todos sabem que as universidades, em especial as universidades públicas, são os principais centros de formação das elites brasileiras. Não constituem apenas núcleos de excelência para a formação de profissionais destinados ao mercado de trabalho, mas representam também um celeiro privilegiado para o recrutamento de futuros ocupantes dos altos cargos públicos e privados do País.

 

O relevante papel dos estabelecimentos de ensino superior para a formação de nossas elites tem, aliás, profundas raízes históricas.

 

Ao analisar a composição social da elite imperial brasileira, José Murilo de Carvalho conclui que, diferentemente do que ocorreu em outros países da América Latina, nos quais a composição da elite local refletia com relativa fidelidade a sua origem social, no Brasil, a formação das lideranças, sobretudo no âmbito político, deveu-se predominantemente seu ao treinamento acadêmico.

 

(...)

 

É preciso, portanto, construir um espaço público aberto à inclusão do outro, do outsider social. Um espaço que contemple a alteridade. E a universidade é o espaço ideal para a desmistificação dos preconceitos sociais com relação ao outro e, por conseguinte, para a construção de uma consciência coletiva plural e cuturalmente heterogênea, aliás, consentânea com o mundo gobalizado em que vivemos.

 

Foi exatamente a percepção de que a diversidade é componente essencial da formação universitária que pautou as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos da América nos casos em que ela examinou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa, a exemplo de Bakke v. Regents of the University of Califórnia (1978), Gratz v. Bollinger (2003) e Grutter v. Bollinger (2003).[10]

 

                        Ao final, o Ministro Relator concluiu que,

 

considerando, em especial, que as políticas de ação afirmativa adotadas pela Universidade de Brasília (i) têm como objetivo estabelecer um ambiente acadêmico plural e diversificado, superando distorções sociais historicamente consolidadas, (ii) revelam proporcionalidade e a razoabilidade no concernente aos meios empregados e aos fins perseguidos, (iii) são transitórias e preveem a revisão periódica de seus resultados, e (iv) empregam métodos seletivos eficazes e compatíveis com o princípio da dignidade humana, julgo improcedente esta ADPF.[11]

 

                        Assim, principalmente com base nesses fundamentos, o Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186/2009 e declarou a constitucionalidade das cotas para acesso às universidades, pois se trata de uma política pública baseada no dever de agir do Estado para dar maior efetividade ao direito fundamental à educação.

 

III. Considerações finais

 

                        Embora não exista hierarquia entre as normas constitucionais, os direitos fundamentais têm particular relevância em qualquer sociedade, pois a sua faceta prestacional determina que o Estado elabore políticas públicas para conformar a realidade, proibindo-o de se omitir.          Em relação ao direito fundamental à educação, esse dever de agir revela-se ainda mais importante, pois ele é elemento chave para a construção de uma sociedade justa, livre e solidária.

 

                        Numa realidade em que não há vagas nas universidades públicas para todos os brasileiros e que a maioria dessas vagas é ocupada por alunos com relativa capacidade financeira, é inegável que o Estado não está oferecendo suficientemente a prestação que deve pelo direito fundamental à educação. Em razão disso, a política de cotas universitárias não merece reparos, pois representa uma medida apta a equilibrar o acesso ao ensino gratuito, custeado pelo próprio Estado.

 

Notas:

[1] SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 19. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2000, p. 315.

[2] MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 733.

[3] Ibidem, p. 734

[4] MELLO FILHO, José Celso. Constituição federal anotada. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 1986 , p. 533.

[5] SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6.ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 230.

[6] ANTUNES ROCHA, Carmen Lúcia. Ação afirmativa: o conteúdo democrático do princípio da igualdade jurídica, IN RTDP 15/85, São Paulo, Malheiros, 1996.

[7] Ibidem.

[8] BARBOSA GOMES, Joaquim Benedito. Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 40-41.

[9] Ibidem.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186. Requerente: Democratas. Requerido: Universidade de Brasília. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Brasília, 26 de abril de 2012. Disponível em < http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF186RL.pdf>. Acesso em: 13 abr. 2013.

[11] Ibidem.

 

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