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Os princípios da eticidade, da socialidade e da operabilidade no Código Civil de 2002
André Soares Hentz*
É indubitável que o Código
Civil sancionado em 2002 foi responsável pela recodificação do direito privado
no Brasil, na medida em que o inseriu na rota da ordem constitucional com o
claro objetivo de dar efetividade às suas diretrizes. [01]
Não
é por outra razão que Carlyle Popp [02] diz que "o Direito
Civil está constitucionalizado e há uma indistinta e direta aplicação da norma
constitucional às relações privadas". Pelo fato de o ordenamento jurídico
ser unitário, a ordem constitucional não estaria acima ou fora, mas sim dentro
dele. Por isso, muitos doutrinadores utilizam-se da expressão "direito
civil constitucional" para denominar o atual estágio por que passa o
direito privado no Brasil. Apesar de sua contínua e indiscriminada utilização,
a expressão tem sido objeto de severas críticas, quer por sua imprecisão técnica
[03], quer pela sua desnecessidade. [04]
Em
que pesem as discussões doutrinárias, o mais importante a ser frisado é que o
Código Civil de 2002, ao adotar como seus pilares de sustentação os princípios
da eticidade, da socialidade e da operabilidade, resgatou a importância da
Ética nas relações privadas, algo que havia sido relegado a um plano secundário
na antiga codificação.
O
princípio da eticidade tem por escopo valorizar o ser humano na sociedade, o
que se dá mediante a efetivação dos princípios constitucionais, mormente o da
dignidade da pessoa humana. [05] Alexandre dos Santos Cunha
[06] defende que referido princípio, apesar de inserido na Constituição
Federal, é, pela sua origem e pela sua concretização, um instituto de direito
privado.
Carlyle
Popp [07] enfatiza que a dignidade da pessoa humana "significa
a superioridade do homem sobre todas as demais coisas que o cercam; é o homem
como protagonista da vida social. Representa, então, a subordinação do objeto
ao sujeito de direito".
A
valorização do ser humano se dá na medida em que a confiança e a lealdade
passam a ser imperativos das relações privadas, bem como pelo fato de o
julgador ter maior poder na busca da solução mais justa e eqüitativa para os
casos concretos que lhe são submetidos, mediante análise subjetiva da questão.
Isso implica, em última análise, no afastamento do formalismo jurídico reinante
durante a vigência da codificação anterior.
Miguel
Reale [08], definidor do Código Civil como "a constituição do
homem comum", pondera que o princípio da eticidade afasta o excessivo
rigorismo formal ao conferir ao juiz "não só poder para suprir lacunas,
mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores
éticos". José Augusto Delgado [09] aduz que "interpretar
as regras do Código Civil com base em princípios éticos é contribuir para que a
idéia de justiça aplicada concretamente torne-se realidade", o que é
anseio de todos os cidadãos.
O
princípio da socialidade, por sua vez, como bem assevera Judith Martins-Costa
[10], guarda íntima relação com o princípio da eticidade, sendo certo que
a distinção feita entre eles é meramente metodológica. Isso porque as regras
dotadas de conteúdo social são fundamentalmente éticas e as normas éticas têm
afinidade com a socialidade.
Antonio
Jeová Santos [11] diz que a preocupação do legislador do Código
Civil vigente foi regular os interesses do "homem situado" e não mais
do "homem isolado" como fazia a codificação anterior, na medida em
que a vida de relação exige que o homem se projete no mundo e dele participe
não como mero espectador, mas como alguém que interfira no resultado. Dessa
forma, a finalidade do princípio da socialidade é afastar a mera aplicação do
Direito Civil às relações dos particulares, eis que esses vínculos, em diversas
oportunidades, podem interessar à sociedade como um todo, autorizando, por
conseguinte, a intervenção estatal. Em suma: o princípio da socialidade
objetiva afastar a visão individualista, egoística e privatística do Código
Civil de 1916. [12]
Rodrigo
Reis Mazzei [13] assevera que as relações privadas podem ter
enfoques ultrassubjetivos quando as relações entre os particulares não projetam
efeitos apenas sobre eles, mas também sobre a sociedade como um todo. Na
verdade, o novo Código Civil nada mais fez do que adequar o sistema de direito
privado à realidade constitucional.
Por
derradeiro, o princípio da operabilidade objetivou a facilitação da aplicação
do novo Código Civil, ao afastar a idéia de completude da codificação anterior,
e disciplinou a possibilidade de se recorrer a elementos exteriores para se
atingir a Justiça, o que se dá, precipuamente, por meio das cláusulas gerais.
[14]
Observa
Antonio Jeová Santos [15] que o Código Civil de 2002 pretendeu se
livrar do rótulo das "leis que não pegam", que são aquelas que não
foram promulgadas para o mundo real, "mas para a satisfação de algum
parlamentar que quis engrossar o seu currículo com o patrocínio de mais uma
lei".
Nesse
contexto, José Augusto Delgado [16] diz que, com a entrada do novo
Código Civil em vigor, as normas passaram não apenas a existir, mas também a
serem válidas, eficazes e efetivas, já que o poder conferido aos juízes teve
por escopo -- além de garantir a busca da solução mais justa para o caso
concreto --, conferir maior executividade às sentenças e decisões judiciais.
Bem
se vê, pois, que a busca pela Justiça por meio do equilíbrio entre os
interesses dos indivíduos e da sociedade é a marca fundamental do Código Civil
de 2002, o que representa avanço significativo na integração necessária entre
Ética e Direito.
Notas
01
É dessa forma que pensa Judith Martins-Costa: "O Código Civil, na
contemporaneidade, não tem mais por paradigma a estrutura que, geometricamente
desenhada como um modelo fechado pelos sábios iluministas, encontrou a mais
completa tradução na codificação oitocentista. Hoje a sua inspiração, mesmo do
ponto de vista da técnica legislativa, vem da Constituição, farta em modelos
jurídicos abertos. Sua linguagem, à diferença do que ocorre com os códigos
penais, não está cingida à rígida descrição de fattispecies cerradas, à
técnica da casuística. Um Código não totalitário tem janelas abertas para a
mobilidade da vida, pontes que o ligam a outros corpos normativos – mesmo os
extra-jurídicos – e avenidas, bem trilhadas, que o vinculam, dialeticamente,
aos princípios e regras constitucionais" (MARTINS-COSTA, Judith. O direito
privado como um "sistema em construção": as cláusulas gerais no
projeto do código civil brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v.
753, jul. 1998, p. 26).
02 POPP, op. cit., p. 170.
03
Gabriel Menna Barreto Von Gehlen diz que "a locução ‘direito civil
constitucional’ é um tanto equívoca, à medida que conduz à idéia de um possível
direito civil inconstitucional, o que é obviamente um contra-senso. Afinal,
desde Marshall e a supremacia da Constituição, o direito tem de ser
constitucional, caso contrário ou será nulo ou inexistente, conforme se adote
uma ou outra teoria a respeito do fenômeno de inconstitucionalidade: se nem sequer
direito é, muito menos direito adjetivado de civil será" (VON GEHLEN,
Gabriel Menna Barreto. O chamado direito civil inconstitucional. In:
MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do direito privado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 184).
04
Gustavo Tepedino sustenta que "a adjetivação atribuída ao direito civil,
que se diz constitucionalizado, socializado, despatrimonializado, se por
um lado quer demonstrar, apenas e tão-somente, a necessidade de sua inserção no
tecido normativo constitucional e na ordem pública sistematicamente
considerada, preservando, evidentemente, a sua autonomia dogmática e
conceitual, por outro lado poderia parecer desnecessária e até errônea. Se é o
próprio direito civil que se altera, para que adjetivá-lo? Por que não apenas
ter a coragem de alterar a dogmática, pura e simplesmente? Afinal, um direito
civil adjetivado poderia suscitar a imprecisão de que ele próprio continua como
antes, servindo os adjetivos para colorir, com elementos externos, categorias
que, ao contrário do que se pretende, permaneceriam imutáveis. A rigor, a
objeção é pertinente, e a tentativa de adjetivar o direito civil tem como meta
apenas realçar o trabalho árduo que incumbe ao intérprete. Há de se advertir,
no entanto, desde logo, que os adjetivos não poderão significar a superposição
de elementos exógenos do direito público sobre conceitos estratificados, mas
uma interpenetração do direito público e privado, de tal maneira a se
reelaborar a dogmática do direito civil. Trata-se, em uma palavra, de
estabelecer novos parâmetros para a definição de ordem pública, relendo o
direito civil à luz da Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda
uma vez, os valores não-patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa
humana, o desenvolvimento da sua personalidade, os direitos sociais e a justiça
distributiva, para cujo atendimento deve se voltar a iniciativa econômica
privada e as situações jurídicas patrimoniais" (TEPEDINO, Gustavo. Temas
de direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 22).
05
José Augusto Delgado diz que "a eticidade no Novo Código Civil visa
imprimir eficácia e efetividade aos princípios constitucionais da valoração da
dignidade, da cidadania, da personalidade, da confiança, da probidade, da
lealdade, da boa-fé, da honestidade nas relações jurídicas de direito
privado" (DELGADO, op. cit., p. 176).
06
CUNHA, Alexandre dos Santos. Dignidade da pessoa humana: conceito fundamental
do direito civil. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). A reconstrução do
direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 260.
07 POPP, op. cit., p. 170 et. seq.
08
REALE, Miguel. Visão geral do projeto de código civil. Revista dos
Tribunais. São Paulo, v. 752, jun. 1998, p. 22-30.
09
DELGADO, op. cit., p. 166.
10
Confira-se as palavras da autora: "Ambas – eticidade e socialidade –
constituem perspectivas reversamente conexas, pois as regras dotadas de alto
conteúdo social são fundamentalmente éticas, assim como as normas éticas têm
afinidade com a socialidade. A distinção ora procedida, de cunho meramente
metodológico, não faz mais do que assinalar ênfases, ora pendendo para o
fundamento axiológico das normas, ora inclinando-se às suas características
numa sociedade que tenta ultrapassar o individualismo, não significando, de
modo algum, que uma regra ética não se ponha, também, na dimensão da
socialidade, e vice-versa" (MARTINS-COSTA, Judith; BRANCO, Gerson Luiz
Carlos. Diretrizes teóricas do novo código civil brasileiro. São
Paulo: Saraiva, 2002, p. 131).
11
SANTOS, A., op. cit., p. 23.
12
Miguel Reale, na Exposição de Motivos do Anteprojeto do Código Civil de 2002,
defende que a socialização do Direito é uma das grandes contribuições da nova
codificação: "Superado de vez o individualismo, que condicionara as fontes
inspiradoras do Código vigente; reconhecendo-se cada vez mais que o Direito é
social em sua origem e em seu destino, impondo a correlação concreta e dinâmica
dos valores coletivos com os individuais, para que a pessoa humana seja
preservada sem privilégios e exclusivismos, numa ordem global de comum
participação, não pode ser julgada temerária, mas antes urgente e
indispensável, a renovação dos códigos atuais, como uma das mais nobres e
corajosas metas de governo".
13 MAZZEI, op. cit., p. CXVII.
14
Cláudio Luiz Bueno de Godoy diz que pelo princípio da operabilidade
"procura-se a superação de divergências teoréticas e formais, acerca de
institutos de direito, pela sua capacidade de ser executado. Por outra,
prefere-se à vinculação da norma a um conceito por vezes tecnicamente
discutível, o seu tratamento de modo a, fugindo desse liame teórico, permitir a
sua mais fácil realização – sentido da operabilidade. O exemplo citado é o do
tratamento da prescrição e da decadência, sobre cuja distinção teórica
divergem, de há muito, os autores. Preferiu-se no Código Civil, em vez de
tentar solucionar ou se posicionar sobre o debate, regrá-las de forma a que
possam ser operadas sem gerar dúvidas. Isso ubicando a regra da prescrição em
dispositivo próprio da parte geral, para que se saiba que, fora dele, serão de
decadência" (GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do contrato.
São Paulo: Saraiva, 2004, p. 118).
15
SANTOS, A., op. cit., p. 98.
16
DELGADO, op. cit., p. 167
* advogado em Ribeirão Preto (SP), mestrando em Direito na UNESP
HENTZ, André Soares. Os princípios da eticidade, da socialidade e da operabilidade no Código Civil de 2002 . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1247, 30 nov. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9221>. Acesso em: 30 nov. 2006.