a limitação ao direito de propriedade nos condomínios edilícios E sua função social
Autor: Eduardo Beil, advogado, especialista em Direito Processual Civil pela FUNJAB/UFSC, Mestrando no Curso de Pós-graduação em Ciências Jurídicas da Universidade do Vale do Itajaí – CPCJ/UNIVALI
INTRODUÇÃO
O presente artigo científico tem por
objetivo realizar uma breve análise da questão envolvendo a limitação ao
direito de propriedade em condomínios edilícios.
CONDOMÍNIO EDILÍCIO
De início, necessário estabelecer o
conceito de “condomínio edilício”, de modo a possibilitar uma delimitação do
tema central a ser abordado.
Muitos já foram os nomes dados pela lei
e doutrina brasileira à propriedade condominial em edifícios no Brasil, sendo
que a legislação mais marcante sobre o assunto foi editada em 1964, com a Lei
n.º 4.591. Mais especificamente, tem-se que:
No condomínio ‘especial’, criado a partir da Lei 4.591/64, coexistem, de
um lado, um condomínio ordinário (denominado voluntário a partir do novo
Código) com a divisão do solo em frações ideiais e, ao mesmo tempo, uma outra
forma de divisão de propriedade, alcançando a edificação erigida sobre esse
mesmo solo, subdividida em ´planos horizontais´ - andares, apartamentos ou
qualquer outro tipo de habitação – havendo, ainda, a estremar, e ao mesmo
tempo, integrar essas unidades, umas com as outras, partes da edificação que
são designadas ´áreas comuns´. Esse conjunto de direitos, sobre uns e outros, e
que se denomina como propriedade horizontal.[1]
Dito isto, convencionar-se-á aqui
chamar de condomínio edilício o
conjunto de propriedades numa edificação composto por partes exclusivas e
partes comuns. A adoção da expressão condomínio
edilício tem fundamento no fato de ser este o nome adotado pela legislação
ora vigente, constante dos arts. 1.331 a 1.358 do Código Civil – Lei n.º 10.406
de 10 de janeiro de 2002[2].
Como o próprio nome já diz, no condomínio várias pessoas possuem o co-domínio
(co-propriedade) sobre uma mesma coisa, havendo, contudo, no edilício, a característica distintiva
especial de que uma parte do bem sob uma mesma área é de propriedade exclusiva
de cada um dos comunheiros, e outra parte é comum.
Enfim, diferentemente da hipótese comum
do Direito Civil, no condomínio edilício os proprietários compartilham de forma
diferenciada essa propriedade, destinando a todos áreas comuns, mas prevendo
também áreas privativas aos seus donos. Justamente em razão de tais
características, e principalmente pela dissonância de pensamento entre diversos
moradores, é que surgem questões cotidianas que precisam de solução.
A vida em sociedade é fenômeno gerador
de inúmeros conflitos; tanto é verdade que mais e mais leis surgem a cada dia
com o objetivo de tentar – sem conseguir, a propósito – regular e prever os
mais diferentes comportamentos, buscando assim um tratamento equânime para
convergir pensamentos dissonantes. Em
condomínios edilícios – verdadeira reprodução em miniatura da Sociedade –
conflitos divergentes são igualmente cotidianos.
Para que se chegasse ao atual modelo de
Sociedade, cada vez mais complexa, operou-se nas últimas décadas no Brasil um
êxodo rural de proporções jamais vistas, no qual milhares de famílias decidiram
trocar propriedades maiores e mais isoladas do campo por imóveis residenciais
aglomerados em centros urbanos. Diz Caio Mario da Silva Pereira, explicando a
transição do centro da economia da agricultura para a indústria:
Num rápido vôo por sobre a concepção dominial, desde o direito romano
até os nossos dias, com o assinalamento apenas dos momentos históricos mais
acentuados e característicos, podemos evidenciar que a cada tipo de organização
jurídica haveria de corresponder um tipo de propriedade, e que, trabalhada esta
pela concepção política dominante num dado período, recebe o seu impacto e,
portanto, reflete-a. Propriedade-família-religião foi a trilogia da Cidade
Antiga. Propriedade-política-economia é o tríplice índice de um
complexo paralelogamo de forças que seguiu a sua vida na civilização do
Ocidente, e ainda hoje traz as tendências para uma nova concepção
econômico-jurídica.[3]
Neste cenário, tendo em vista os
interesses econômicos que cercam a necessidade de unir grandes quantidades de
pessoas (e de força de trabalho) em centros estratégicos para o desenvolvimento
do mercado, obviamente o modelo de propriedade rural perdeu seu espaço. Assim
sendo, viu-se como necessário, principalmente nos grandes centros, a
“verticalização” da propriedade, momento a partir do qual terrenos onde antes
cabiam duas ou três famílias passaram a albergar dez ou vinte vezes mais tal
quantia, gerando contato constante e implicando no uso comunitário de parte da
propriedade. Popularizou-se, assim, a figura do condomínio edilício.
A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Paralelamente, seguidas constituições
foram garantindo grande proteção ao direito de propriedade e a sua utilização
condicionada à observação de sua função social. Tanto é que o texto atual da
Carta Maior, ao dissertar sobre as garantias fundamentais, estabelece o direito
à propriedade no inciso XXII do art. 5º, mas logo em seguida determina o seu
atendimento à função social. Tal tema é novamente abordado pela Constituição de
1988 nos arts. 170, II e III e nos arts. 182, 183 e 184.
Esclarece-se que para o presente texto,
adotar-se-á um conceito bem aberto de função social da propriedade. Quer-se com
ele enfatizar que não só a propriedade deve obedecer regras elementares de
urbanização, mas também que deve ela propiciar o máximo de benefícios à
sociedade. Enfim, função social da
propriedade deve ser sinônimo de exploração eficiente do imóvel de modo a
propiciar o bem-estar da coletividade. Diz Lívia Bacciotti:
O que se pode concluir é que a função social da propriedade não deve ser
encarada como uma restrição ao direito da propriedade e sim um meio de
recolocá-la em seu verdadeiro objetivo, pois, exemplificadamente, uma
propriedade cujo uso seja deturpado ou degenerado, fere a Ordem Jurídica, vez
que esta visa o interesse social acima do individual. Objetivando atender
especialmente este interesse é que dispôs a CF neste sentido, ou seja,
prejudicando o direito de especulação, fruto do individualismo jurídico,
tornando a função social, portanto, inseparável do direito de propriedade
(...)
Atribuindo uma função social à propriedade o ordenamento jurídico reage
contra desperdícios da propriedade para satisfazer necessidades materiais ou
pessoais humanas, atendendo aos anseios sociais, e contribuindo para o
desenvolvimento da nação e erradicação da pobreza e desigualdades sociais.[4]
AS LIMITAÇÕES AO DIREITO DE PROPRIEDADE E A FUNÇAO SOCIAL
Feitos tais esclarecimentos iniciais,
tem-se que o objetivo que aqui se pretende é justamente o de estabelecer a
premissa de que as limitações ao direito de propriedade nos condomínios
edilícios podem ter sua legalidade verificada pela análise, ainda que em última
instância, da constitucionalidade de seu conteúdo, aí incluída a necessidade de
respeito à função social da propriedade. Sobre a utilização da propriedade de
acordo com sua função social, escreve Caio Mário:
Sem deixar de ser um direito, com as características de facultas,
a propriedade deve ser exercida em sentido social. É o exercício daquele
direito que se subordina ao interesse público, e a função social é integrante
menos da definição do direito do que ligada ao seu exercício. Toda vez que se
esboça um conflito entre o individual e o social, entre o direito de um dono e
a conveniência da coletividade, o legislador terá forçosamente de resolve-lo
neste último sentido, ainda que com o sacrifico do direito subjetivo. A
utilização dos bens apropriáveis estará, na linha de equilíbrio entre a
faculdade reconhecida e a conveniência de todos. [5]
Portanto, tem-se que a temática
envolvendo a função social da propriedade deve sempre ser levada em
consideração quando dúvidas surgirem quanto à legalidade/constitucionalidade de
uma limitação criada no regramento interno do micro-sistema social que é um
condomínio edilício.
Parte-se do seguinte raciocínio: o
direito à propriedade e dever de atendimento desta à sua função social são
garantias constitucionais de elevada condição, mormente porque previstas no
art. 5º do texto da Carta Maior. Estando assim disposto o texto, conclui-se que
a função social da propriedade, tendo em vista sua importância, compreende
desde o mais amplo espectro social, seja na propriedade urbana, seja rural, até
o específico micro-sistema condominial. Este também deve ter suas regras e
referentes fundados na proteção ao direito de propriedade e no atendimento à
sua função social.
Repita-se: o condomínio edilício nada
mais é do que a reprodução em menor escala de um cenário social qualquer. Tanto é que, da mesma forma do que numa sociedade específica – um
país, por exemplo – no condomínio edilício existe um síndico, que reproduz a
figura do Poder Executivo; uma Assembléia Geral que representa o Poder Legislativo;
um Conselho que fiscaliza contas (como um Tribunal de Contas, ou como o
Ministério Público, por exemplo) e auxilia o síndico em suas decisões (Conselho
da República, Ministros, etc.). Igualmente, há tanto na assembléia, quanto no
síndico e no conselho, figuras que equivalem ao Poder Judiciário, eis que
aplicam sanções frente ao descumprimento de normas, decidem sobre a permissão
ou não de obras, alterações e outros pedidos mais.
Há ainda no condomínio edilício uma
convenção, como que uma lei suprema, equivalente a uma Constituição, e um
regimento interno, muitas vezes destinado a questões menores ou à disciplina
pormenorizada do uso da propriedade e da preservação do direito de vizinhança.
Tal convenção, atualmente está regulada no art. 1.333 do Código Civil e é
verdadeiro “contrato coletivo de natureza
normativa, por isso que submete ao seu comando todos aqueles que assumirem
alguma posição jurídica, em relação à propriedade autônoma, a que a lei atribui
qualificação para sujeitar-se às normas convencionais.”[6]
Enfim, o condomínio edilício é uma
micro-sociedade que reproduz, em menor escala, uma série de situações
vivenciadas em termos globais. Neste cenário, nada mais certo do que transpor
da Constituição Federal ao micro-sistema a necessária observação da função
social da propriedade. Por isto, importante frisar a disposição acima
mencionada do civilista Caio Mario da Silva Pereira que bem estabelece a
existência de uma linha de equilíbrio entre o uso da propriedade e a
conveniência de todos, inclusive em se tratando exclusivamente de condomínios.
E continua o mencionado autor:
A iniciativa individual imaginou no edifício de apartamentos uma
forma nova de domínio, em que a propriedade do solo converte-se em uma
quota-parte de uma espaço necessário a certa aglomeração. Desloca-se o conceito
dominial da exclusividade para a utilização comum, restando o poder exclusivo
reduzido a uma unidade do conjunto, e mesmo assim onerada de pesadas
restrições. [7]
Como bem anotado, o deslocamento do
direito de propriedade da exclusividade para o uso comum impôs pesadas
restrições ao seu uso, sendo portanto correta a existência de limitações ao
direito de propriedade. É certo que a instituição de áreas comuns entre os
condôminos gera diferentes idéias e interesses quanto à finalidade de sua
utilização, razão pela qual a observação da função social da propriedade merece
mais uma vez atenção. Isto é, deve a mesma ser utilizada como regra fundamental
para a tomada das decisões entre os proprietários comunheiros, de modo a que se
possa já de início verificar se as limitações ao direito de propriedade são
adequadas ou não.
A questão a ser analisada passa a ser
até que ponto a convenção, lei maior interna do condomínio, pode ou não limitar
o direito de propriedade, estabelecendo regras quanto ao seu uso e restringindo
determinadas condutas.
A convenção de fato é a lei maior
dentro do condomínio edilício, e por lei tem o poder de regulamentar questões
internas para a boa convivência dos moradores comunheiros. Tem um caráter real,
e assume-se que todos os que adquirem parte do domínio ali existente
comprometem-se a cumprí-lo. Tem também um caráter estatutário, já que não só
obriga os proprietários, mas também todos aqueles que adentrarem tal
propriedade privada. Diz J. Nascimento
Franco:
Ao traçar as normas de utilização do edifício, nas suas partes
privativas e nas de uso comum, a Convenção visa resguardar, em proveito de
todos, o patrimônio condominial, o bom nível do edifício e a moralidade do
ambiente, num sistema de normas que, mais rigorosamente do que as decorrentes
do direito de vizinhança, objetivam garantir a todos os ocupantes das unidades
autônomas sossego, tranqüilidade e segurança. Daí o entendimento segundo o qual
representa a vontade dos que a elaboraram, assim como constitui ato normativo,
de caráter estatutário.[8]
Tais disposições convencionais, sejam
contratuais ou estatutárias, podem – e muitas vezes devem – limitar o direito
de propriedade dos comunheiros de modo a garantir o bom uso do bem comum,
assegurando um equilíbrio entre direitos e deveres, não permitindo que o
direito de propriedade de um se sobreponha ao direito dos demais. Continuando:
Há, ainda, o dever de cumprimento
daquelas disposições aprovadas pelos próprios condôminos na Convenção do
Condomínio, as quais constituem lei particular do agrupamento dos integrantes
deste, e estão sujeitos a estrita obediência. Se ali constar que a porta
externa do edifício se feche a determinada hora, ou que determinadas pessoas
não podem circular pelo hall social, ou usar o elevador social, ou que
nenhum condômino tem a faculdade de
manobrar seu carro na garagem comum, o que não podem permanecer crianças nos
corredores, os condôminos e seus locatários, todos os habitantes, em suma, são
obrigados a tais preceitos, sob as sanções impostas no mesmo regulamento ou
convenção. Trata-se, é bem verdade, de normas restritivas da liberdade
individual, mas, da mesma forma que toda vida em sociedade impõe a cada um
limitações à sua atuação livre em benefício do princípio social de convivência,
assim também naquele pequeno agrupamento de pessoas, que compõem uma comunidade
especial, adotando como normas convenientes à tranqüilidade interna desta
certas limitações à liberdade de cada um em proveito da melhor harmonia do
todo, têm aquelas restrições e limitações um sentido de princípio de disciplina
social interna, de natureza cogente a todos os que penetram no círculo social
restrito.[9]
Todavia, a questão envolvendo o
conteúdo da convenção não parece ter resposta simples quando nela passam a ser
previstas disposições que limitam o direito de propriedade em verdadeiro
confronto com a legislação ordinária e constitucional.
Nestas hipóteses, as disposições
estatutárias da convenção não podem prevalecer. Isto porque, por mais
necessário que seja o respeito às regras internas e à autonomia da vontade dos
“contratantes” que decidiram impor ainda mais limitações à sua propriedade
privada comum, tais disposições convencionais não podem ultrapassar um limite
tal que viole o direito de propriedade do condômino ao ponto de desrespeitar a
sua função social e outros princípios constitucionais. Observe-se:
Concordam,
praticamente, todos os operadores do direito com a natureza jurídica contratual
normativa da convenção, essencialmente, uma declaração conjunta de vontade dos
condôminos destinada a produzir efeitos por prazo indeterminado ou até que seja
modificada. Também não se questiona o fato de que a fonte primeira do direito,
em matéria condominial, é a lei que tem caráter geral e só, em seguida, a
convenção emanada da vontade da maioria e na conformidade dos dispositivos
legais, torna-se igualmente obrigatória, mas tão somente para aquelas pessoas
alcançadas pelo estatuto daquela comunidade.
Havendo
divergência entre a convenção e a lei, esta haverá de prevalecer, já que não
será válida a declaração unilateral ou coletiva de vontade contrariando o
comando legal maior. Assim, quando houver dissenso, entre o que dispõe a
convenção e o que preceitua a lei, resolver-se-á na conformidade do comando
maior.[10]
Portanto, o primeiro limite para o
conteúdo da convenção – e conseqüentemente aos direitos relativos à propriedade
nela insertos – está na lei ordinária, sendo que tal matéria tem sua
regulamentação atualmente no Código Civil – Lei n.º 10.406/2002.
Inicialmente, ao falar sobre os
direitos dos condôminos, as disposições do Código Civil são um tanto genéricas,
limitando-se o art. 1.335 do referido diploma a estabelecer o direito de “usar, fruir e livremente dispor de suas
unidades”, bem como “usar das partes
comuns conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos
demais compossuidores”. A realidade, todavia, mostra que tal texto geral
está longe de resolver qualquer conflito ou estabelecer de forma clara os
limites à propriedade que a convenção pode trazer em seu conteúdo.
Em seguida, o art. 1.336 do Código
Civil determina obrigações ao condômino, entre elas a de não utilizar da
edificação de maneira prejudicial ao sossego, salubridade e segurança dos
demais, bem como não violar os bons costumes. Não obstante a delimitação aqui
comece a ficar mais clara, surgem por outro lado novos conceitos que variam
conforme o lugar e o tempo. O que era sossego décadas atrás hoje já se mostra
inatingível. Da mesma forma, sossego para um morador de metrópole é um conceito
muito diferente para um morador de um pequeno condomínio numa cidadezinha do
interior. A respeito do tema:
Ponto crucial que tem causado embaraços a condôminos e aos intérpretes é
se definir quais os atos ou atividades são capazes de prejudicar o sossego,
salubridade e segurança dos possuidores, isto é, o que representa o ‘uso
nocivo’ e, ainda, quê ou quais situações, em tese, atentariam contra os ‘bons
costumes’. Afinal, o que são os bons costumes? Há alguma definição que se
aplique indistintamente a todas as regiões e a qualquer circunstância? Não há
como responder objetivamente essas questões, salvo se, a recomendação, for para
que seja usado o bom senso que é o senso comum, o entendimento médio que deve
prevalecer nas relações, em geral, e em especial no direito de vizinhança.[11]
De fato, a utilização do bom senso, do
critério do bonus pater familiae é
instrumento adequado a auxiliar a solução de casos como estes, mas nem sempre
se mostra suficiente.
Um exemplo cada vez mais comum
mostra-se bem característico para retratar os problemas envolvendo a limitação
da propriedade em condomínios edilícios: a limitação ao direito de locação do
imóvel. Mais precisamente, tem-se que alguns condomínios têm passado a adotar
em suas convenções restrições ou vedações ao direito de locação das unidades
habitacionais que os compõem, a maioria ao argumento de que tais atividades
comprometem a segurança do edifício, com o aumento da circulação de pessoas
estranhas ao local, bem como pelos danos causados às áreas comuns em mudanças
repetidas e descuidadas. Neste cenário, pergunta-se: pode a convenção limitar o
direito de propriedade do condômino ao ponto de impedi-lo de locar sua unidade
a terceiros?
Veja que por ambos os lados existem os
mais diversos fundamentos, inclusive de índole constitucional, a referendar a
pretensão inscrita na norma interna do condomínio. Se se trata de um comando
previsto por comum acordo entre os proprietários, numa assembléia que reúne as
características legais e com o quorum necessário
para tanto,[12] pode ser
encarado como ato jurídico perfeito, cuja autonomia de vontade merece
prevalecer.
Por outro lado, trata-se de uma severa
restrição ao direito de propriedade, cuja legalidade já é questionável diante
da simples leitura do texto raso do Código Civil. Ora, se tem o proprietário o
direito de usar, fruir e livre dispor de
suas unidades, não poderia a convenção realizar tamanha limitação.
Entretanto, essa mesma lei, que estabelece liberdades ao proprietário da
unidade condominial, também prevê o direito da convenção em regular a matéria.
E não só isso, tal lei também estabelece o dever de uso da propriedade sem
prejuízo à segurança, conceito este manifestamente aberto a várias interpretações.
Buscando então resposta no texto
constitucional, pode o interessado escorar-se na função social da propriedade
para derrubar a restrição prevista na Constituição. Ora, restringir o direito à
locação do bem impõe ao proprietário uma limitação severa ao direito de
propriedade, a qual inclusive lhe acarreta ônus poucos razoáveis em termos
econômicos. Isto porque, não obstante deixar o proprietário de auferir renda de
sua propriedade – e obtenção de renda a partir da propriedade é um primado
ainda vigente na atual sociedade capitalista – estará o mesmo obrigado a
custear as despesas do bem, tarefa esta que provavelmente incumbiria ao
locatário.
Tal locatário, por sua vez, em razão da
disposição convencional restritiva, fica proibido de utilizar-se de um bem para
moradia (direito este também de ordem
constitucional, inserido no art. 6º da Carta Maior), pelo simples fato de não
ter recursos financeiros suficientes para adquirir a propriedade em si, não
obstante tenha condições de locá-lo mensalmente. Ou seja, tem condições de
adquirir a posse temporária do bem –
melhor distribuindo a utilização do espaço urbano já tão disputado – mas
vê-se impedido de fazê-lo em razão de uma restrição decidida pelos demais comunheiros.
Some-se a isso o fato de que num país
com imenso défict habitacional como o Brasil, não parece nenhum pouco de acordo
com o princípio da função social da propriedade uma cláusula em convenção que
limite o direito do proprietário em locar o bem para terceiros, seja impedindo
totalmente a atividade, seja impondo multa ou contribuição para a hipótese.
Afinal, não é somente um direito, mas também um dever constitucional a
observação da função social da propriedade, a qual certamente não resta
cumprida quando um imóvel fica sem uso e sem gerar frutos em razão da limitação
imposta na convenção.
Recorde-se que acima foi estabelecido
que no presente texto o conceito de função social da propriedade era adotado
num sentido lato, numa acepção de que a propriedade deve garantir à sociedade –
e não só ao indivíduo proprietário – o máximo de retorno. No exemplo em comento
– limitação do direito de locação – tal função não resta cumprida. Neste caso,
o direito da pequena coletividade condominial resta superado pelo direito da
sociedade em geral em ver cumprida a plena utilização do bem, socializando-se o
acesso de forma irrestrita ao uso pacífico e sadio de propriedades em
condomínios edilícios não só àqueles que tem condições de adquirir tal bem, mas
também àqueles cujos limites financeiros permitem apenas sua locação. Assim:
Uma
concepção nova de propriedade surge, erigida em função social. Os bens são
dados aos homens, que os devem usar em termos que correspondam a esta
concessão. O exercício da propriedade tem por limite o cumprimento destes deveres
e o desempenho de sua função. Se um indivíduo explora o bem de seu domínio fora
desta órbita, afronta um dever superior e sai da linha de conduta compatível
com a organização social.[13]
Ou seja, no atual cenário
político-econômico, a propriedade deve ser sinônimo de rentabilidade e não de
ônus. Contrariar isso é contrariar a Constituição. Não havendo prejuízo de
grande ordem, imediato e plenamente constatável, com a locação aos demais
condôminos, tal direito não poder ser negado, devendo portanto o condomínio
lançar mão de outros instrumentos legais para coibir os eventos que a regra
pretendia evitar. Tais instrumentos existem e estão na legislação. Deve o
condomínio, portanto, procurar a aplicação de uma resposta adequada à cada
hipótese apresentada, a qual não pode, de forma alguma, ferir uma série de
direitos constitucionais do condômino e de outros integrantes da sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do
acima exposto, denota-se que a existência de limitações ao uso da propriedade
nos condomínios edilícios é tema sempre polêmico e cuja interpretação deve
levar em conta, caso a caso, o valor dos interesses em questão.
Com efeito, se é certo que a convenção
do condomínio é instrumento poderoso de legislação interna do bem comum,
mormente por se tratar regulamentação de uma propriedade privada – o que revela
um direito muito maior aos comunheiros de decidir o que é melhor para si dentro
de uma propriedade cujo acesso e utilização de áreas comuns pode ser
severamente limitado – certo é também que tal instrumento deve respeitar regras
de hierarquia superior, aí incluída a legislação ordinária e a constitucional.
Nesta última seara, ganha relevo o
instituto da função social da propriedade, que se apresenta como instrumento
adequado ao estabelecimento de critérios para diferenciar uma regular limitação
ao direito de propriedade nos condomínios edilícios de uma verdadeira afronta a
princípios constitucionais protetores de tal direito.
Ao estabelecer a necessidade de
exploração adequada da propriedade de modo a garantir o maior retorno social
possível, a função social da propriedade apresenta-se como elemento adequado a
servir de baliza na interpretação da legalidade da limitação prevista numa
convenção de um condomínio edilício. Partindo-se de tal premissa constitucional
e de observação obrigatória, pode o intérprete atingir de forma mais fácil e
coerente o resultado pretendido na busca da solução ao caso concreto que lhe
for apresentado a respeito do tema.
REFERÊNCIAS DAS FONTES CITADAS
AVVAD, Pedro Elias. Condomínio em
edificações no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004
BACCIOTTI, Lívia. A função social da propriedade. In
Direito e Justiça: http://www.suigeneris.pro.br/direito_dci_funprolb.htm.
Acessado em 21.fev.2006.
FRANCO, J. Nascimento. Condomínio.
5a ed., São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Condomínio
e Incorporações. 9a ed. Rio de Janeiro, Forense, 1995
[1] AVVAD, Pedro Elias. Condomínio em edificações no
novo Código Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p.19
[2] A propósito, diz o art. 1.331 do Código Civil (Lei
n.º 10.406/2002): “Art. 1.331. Pode haver, em edificações, partes que são propriedade exclusiva, e
partes que são propriedade comum dos condôminos.”
[3] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Condomínio e
Incorporações. 9a ed. Rio de Janeiro, Forense, 1995, p. 24
[4] BACCIOTTI, Lívia. A função social da propriedade. In Direito e Justiça: http://www.suigeneris.pro.br/direito_dci_funprolb.htm. Acessado em 21.fev.2006.
[5] PEREIRA, Caio Mario da Silva, idem, p. 33.
[6] AVVAD, Pedro
Elias. Condomínio em edificações no novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p.62
[7] PEREIRA, Caio Mario da Silva, idem, p. 47
[8] FRANCO, J. Nascimento. Condomínio. 5a
ed., São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 168
[9] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Condomínio e Incorporações. 9a
ed. Rio de Janeiro, Forense, 1995, p. 151
[10] AVVAD, Pedro Elias. Condomínio em edificações no
novo Código Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 180
[11] AVVAD, Pedro Elias. Condomínio em edificações no
novo Código Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2004, p. 83
[12] Presume-se no presente exemplo que a norma
convencional que limita a locação seja advinda de uma alteração em seu texto
que respeite todo o procedimento previsto em lei, quanto a quorum, forma, etc.
A pensar de modo contrário, a norma presente na convenção coletiva sequer
necessitaria ultrapassar a clareza do Código Civil quanto ao tema para ser tida
como inválida.
[13] PEREIRA, Caio Mario da Silva. Condomínio e Incorporações. 9a
ed. Rio de Janeiro, Forense, 1995, p. 40