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A Ação Civil Pública refém
do autoritarismo
Ada Pellegrini Grinover*
SUMÁRIO:
1. A dimensão social, política e jurídica da tutela jurisdicional dos
interesses transindividuais. 2. Um novo Poder Judiciário. 3. O Executivo na
contramão da História. 4. A coisa julgada de abrangência nacional. 5. A coisa
julgada de abrangência nacional após a Lei nº 9.424, de 10.9.97. 6. Seguindo no
ataque à Ação Civil Pública : a Medida Provisória nº 1.798-1. 7. Conclusões.
1.A DIMENSÃO SOCIAL, POLÍTICA E JURÍDICA DA TUTELA JURISDICIONAL DOS INTERESSES
TRANSINDIVIDUAIS
A
tutela jurisdicional dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos
representa, neste final de milênio, uma das conquistas mais expressivas do
direito brasileiro. Colocados a meio caminho entre os interesses públicos e os
privados, próprios de uma sociedade de massa e resultado de conflitos de massa,
carregados de relevância política e capazes de transformar conceitos jurídicos
estratificados, os interesses transindividuais têm uma clara dimensão social e
configuram nova categoria política e jurídica.
Do
ponto de vista social, significaram o reconhecimento e a necessidade de tutela
de interesses espalhados e informais voltados a necessidades coletivas,
sinteticamente referíveis à qualidade de vida. Interesses de massa, que
comportam ofensas de massa e que colocam em contraste grupos, categorias,
classes de pessoas. Não mais um feixe de linhas paralelas, mas um leque de
linhas que convergem para um objeto comum e indivisível. Aqui se inserem os
interesses dos consumidores, ao meio ambiente, dos usuários de serviços
públicos, dos investidores, dos beneficiários da previdência social e de todos
aqueles que integram uma comunidade compartilhando de suas necessidades e seus
anseios.
O
reconhecimento e a necessidade de tutela desses interesses também puseram de
relevo sua configuração política. Deles emergiram novas formas de gestão da
coisa pública, em que se afirmaram os grupos intermediários. Uma gestão
participativa, como instrumento de racionalização do poder, inaugurando um novo
tipo de descentralização, não mais limitada ao plano estatal (como
descentralização político-administrativa), mas estendida ao plano social, com
tarefas atribuídas aos corpos intermediários e às formações sociais, dotados de
autonomia e de funções específicas. E isso também significou uma reorganização
da sociedade civil em torno de associações e de grupos.
Em consequência, a teoria das liberdades públicas forjou uma nova “geração” de
direitos fundamentais. Aos direitos clássicos de primeira geração,
representados pelas tradicionais liberdades negativas, próprias do Estado
liberal, com o correspondente dever de abstenção por parte do poder público;
aos direitos de segunda geração, de caráter econômico-social, compostos por
liberdades positivas, com o correlato dever do Estado a uma obrigação de dare,
facere ou praestare, acrescentou-se o reconhecimento dos direitos de terceira
geração, representados pelos direitos de solidariedade, decorrentes dos
interesses sociais. E assim foi que o que aparecia inicialmente como mero
interesse elevou-se à dimensão de verdadeiro direito, conduzindo à
reestruturação de conceitos jurídicos, que se amoldassem à nova realidade.
No
plano constitucional, renovou-se o sentido da jurisdição e da ação, enquanto
garantias fundamentais, como o contraditório, ganharam nova roupagem. Foi
necessário rever a noção clássica da responsabilidade civil, comensurada até
então pelos prejuízos sofridos, para introduzir o conceito de responsabilidade
civil pelos danos causados. No processo, foram revisitados institutos
consolidados, como a legitimação para agir, a coisa julgada, a identidade parcial
de demandas, os poderes e a responsabilidade do juiz e do Ministério Público.
A
maior revolução talvez se tenha dado exatamente no campo do processo: de um
modelo individualista a um modelo social, de esquemas abstratos a esquemas
concretos, do plano estático ao plano dinâmico, o processo transformou-se de
individual em coletivo, ora inspirando-se ao sistema das class actions da
common law, ora estruturando novas técnicas, mais aderentes à realidade social
e política subjacente.
Tudo isso alterou o quadro do acesso à Justiça, facilitado por intermédio dos
portadores, em juízo, dos interesses transindividuais, que se substituem aos
litigantes a título individual, fracos do ponto de vista econômico e
organizacional, e que simplesmente não levavam suas pretensões ao Poder
Judiciário. E com isso também se desenhou uma nova realidade para o princípio
da universalidade da jurisdição, a qual se abriu a novas causas e a novos
titulares de conflitos.
2. UM NOVO PODER JUDICIÁRIO
Também
o Poder Judiciário foi beneficiado pelos processos coletivos, em termos de
projeção e racionalização do trabalho. A sobrecarga dos tribunais e a sensação
de inutilidade das decisões individualizadas eram agravadas pela frequente
contradição dos julgados e pela demora na solução das controvérsias. A
finalidade social da função jurisdicional, que é de pacificar com justiça,
perdia-se diante da fragmentação e pulverização dos conflitos, sempre tratados
a título individual. A substituição de decisões atomizadas (na expressão de
Kazuo Watanabe) pelo tratamento molecular das controvérsias, levando à solução
do Judiciário, de uma só vez, conflitos que envolvem milhares ou milhões de
pessoas, significou tornar o juiz a peça principal na condução de processos de
massa que, por envolverem conflitos de massa, têm sempre relevância política e
social. Graças aos processos coletivos, o Judiciário, saindo de uma posição
frequentemente distante e remota, tornou-se protagonista das grandes
controvérsias nacionais.
3. O EXECUTIVO NA CONTRAMÃO DA HISTÓRIA
Apesar
de tudo isso, as investidas do Poder Executivo – acompanhado por um Legislativo
complacente ou no mínimo desatento – têm atacado a Ação Civil Pública, tentando
diminuir sua eficácia por intermédio da limitação do acesso à justiça, da
compressão do momento associativo, da redução do papel do Poder Judiciário.
Manifestações eloqüentes dessas investidas são a Medida Provisória nº 1.570, de
26.3.97 (transformada na Lei nº 9.424, de 10.9.97) e a Medida Provisória nº
1.798-1, de 11.2.99, ainda não convertida em lei (até quando?).
Pelo
menos em parte, as intenções do governo ficaram francamente frustradas. A
aplicação das novas normas, por outra parte, depende de uma leitura
constitucional. E caberá ao Poder Judiciário, mais uma vez, construir uma interpretação
que leve em conta a unidade do sistema jurídico e a exegese que melhor se
coadune com os princípios gerais do direito.
É sobre essas intervenções autoritárias do governo que versará nossa análise.
4. A COISA JULGADA DE ABRANGÊNCIA NACIONAL
Antes
da Medida Provisória nº 1.570, de 26.3.97, transformada na Lei nº 9.494, de
10.9.97 (e sobre a qual voltaremos no nº 5), a coisa julgada erga omnes de
abangência nacional sofreu alguns percalços nos tribunais, que por vezes
limitavam os efeitos das liminares e da sentença segundo critérios de
competência.
Logo afirmamos não fazer sentido, por exemplo, que ações em defesa dos
interesses individuais homogêneos dos pensionistas e aposentados da Previdência
Social ao recebimento da diferença de 147% fossem ajuizadas nas capitais dos
diversos Estados, a pretexto dos limites territoriais dos diversos órgãos da
Justiça Federal. O problema não é de competência: o juiz federal, competente
para processar e julgar a causa, emite um provimento (antecipado ou definitivo)
que tem eficácia erga omnes, abrangendo todos os aposentados e pensionistas do
Brasil. Ou a demanda é coletiva, ou não o é; ou a coisa julgada é erga omnes ou
não o é. E se o pedido for efetivamente coletivo, haverá uma clara relação de
litispendência entre as várias ações ajuizadas nos diversos Estados da
Federação.
Por isso sustentamos que a limitação operada por certos julgados afronta o
art.103 do CDC e despreza a orientação fornecida pelo art. 91, II, por onde se
vê que a causa que verse sobre a reparação de danos de âmbito nacional ou
regional deve ser proposta no foro da capital do Estado ou no Distrito Federal,
servindo evidentemente a decisão para todo o território nacional. Esse
dispositivo aplica-se aos demais casos de interesses que alcancem grupos e
categorias de indivíduos, mais ou menos determináveis, espalhados pelo
território nacional.
Por
isso mesmo, rigorosamente acertado foi o voto do Min. Relator Ilmar Galvão, no
Conflito de Competência nº 971-DF, julgado pela 1ª Seção do STJ aos 13.2.90,
reconhecendo a prevenção da competência da 30ª Vara Federal do Rio de Janeiro
para conhecer e julgar ação civil pública visando a proibir a mistura e
distribuição de metanol adicionado ao álcool para venda ao consumidor, em todo
o território nacional. Afirmava o Ministro Relator:
“Meditei
detidamente quanto à possibilidade de admitir-se que uma decisão de juízo
monocrático, da natureza da que se busca nas ações em tela, possa estender seus
efeitos para além dos limites do território onde exerce ele sua jurisdição, não
tendo encontrado nenhum princípio ou norma capaz de levar a uma conclusão
negativa.
A
regionalização da Justiça Federal não me parece que constitua óbice àquele
efeito, sendo certo que, igualmente, no plano da Justiça Estadual, nada impede que
uma determinada decisão proferida por juiz com jurisdição num Estado projete
seus efeitos sobre pessoas domiciliadas em outro.
Avulta,
no presente caso, tratar-se de ações destinadas à tutela de interesses difusos,
não sendo razoável que, v.g., eventual proibição de emanações tóxicas seja
forçosamente restrita a apenas uma região, quando todas as pessoas são livres
para nela permanecer ou transitar, ainda que residam em outra parte”.
O
voto do Relator foi acompanhado pelos Ministros José de Jesus e Geraldo Sobral,
mas prevaleceu no Tribunal a posição do Ministro Vicente Cernicchiaro, que
entendeu deverem os processos desenvolver-se separadamente, com eficácia das
respectivas decisões na jurisdição de cada juízo.
Essa
decisão, anterior ao Código de Defesa do Consumidor, ainda marcou a posição de
muitos tribunais, que limitaram a abrangência da coisa julgada erga omnes ou
ultra partes em função das regras de competência.
A
postura chegou a influir na formulação de alguns pedidos, que se cingiram, de
acordo com a referida orientação, ao âmbito territorial coberto pelas regras de
regionalização dos tribunais brasileiros.
Em outros casos, porém, continuaram os autores a postular corretamente em
termos mais abrangentes, pleiteando e obtendo liminares com extensão para todo
o território nacional. E em diversos processos a sentença condenatória de
primeiro grau começou a não fazer restrições territoriais à amplitude da coisa
julgada erga omnes.
Aos poucos, a jurisprudência foi se solidificando no sentido de a coisa julgada
ultra partes ou erga omnes transcender o âmbito da competência territorial,
para realmente assumir dimensão regional ou nacional.
A título meramente exemplificativo, vale lembrar algumas decisões de caráter
nacional.
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região manteve a liminar do Juízo da 17ª Vara
de São Paulo, em tema de cessação da cobrança de tarifas bancárias, autorizadas
pelo Banco Central, em contas de poupança inativas ou não recadastradas, com
eficácia para o território nacional (Agravo nº 96.03.064677-6, 3ª Turma, Rel.ª
Annamaria Pimentel, v.u., 30.10.96. O relatório destaca que os efeitos de uma
decisão ou sentença não se confundem com a fatia de competência do juízo que a
proferiu).
Também a justiça federal da Seção do Estado de Mato Grosso, em primeira
instância, beneficiou servidores federais inativos de todo o país, concedendo
liminares em matéria de proventos para reconhecer a inexigibilidade da
contribuição social e determinar à União que não procedesse ao lançamento de
débitos em contas de poupança ativas, inativas ou não recadastradas (Proc. nº
96.003183-5 da 1ª Vara e Proc. nº 96.0003379-0/7100 da 3ª Vara, liminares de
21.6.96 e 20.9.96, respectivamente. Nesta última decisão o magistrado utiliza o
argumento de que o juiz federal teria jurisdição afeta a todo o território
nacional, o que se distancia de nossa linha de raciocínio).
Em assunto ligado ao Sistema Financeiro, atinente à atualização dos saldos
devedores pelo INPC e não pela TR, a Justiça Federal de Mato Grosso concedera
liminares visando à suspensão da aplicação da TR como índice de correção
monetária em todos os contratos habitacionais, substituindo-a pelo INPC, com
fornecimento de demonstrativo dos saldos devedores e informação aos mutuários:
Procs. nºs 496.2838-9 (Primeira Vara, liminar de 4.9.96) e 96.0002974-1/7100
(Terceira Vara, liminar de 26.9.96), sendo diversos os bancos acionados
juntamente com a União Federal. Ambas as decisões aludem à competência
concorrente e opcional do Distrito Federal.
Na matéria referida, atuara do mesmo modo a 10ª Câmara do Primeiro Tribunal de
Alçada do Estado de São Paulo, em ação civil pública ajuizada pelo IDEC perante
a Justiça Estadual (Ac. nº 581.942-1), provocando reclamação ao Supremo
Tribunal Federal, ajuzada pelo Banco Mercantil de São Paulo, em que o Relator,
Min. Carlos Velloso, suspendeu liminarmente a decisão do Tribunal Estadual,
reportando-se a precedentes em que o STF já havia concedido liminares no mesmo
sentido. As liminares haviam sido concedidas pelo Juízo Federal da 1ª Vara de
Minas Gerais (Recls. nºs 559,564 e 557- MG), por entender existir o fumus boni
iuris no sentido de a ação civil pública, de âmbito nacional, fundada na
inconstitucionalidade, transformar-se numa declaração de inconstitucionalidade,
com usurpação da competência do STF (Reclamação nº 601-8/SP, in DJU 7. 5 .96,
p. 14.584). No mérito, contudo, várias reclamações foram julgadas
improcedentes, por ter a inconstitucionalidade sido argüida incidenter tantum,
embora a sentença tivesse eficácia erga omnes (Recl.nº 597-SP – rel. para o ac.
Min. Néri da Silveira, Recl. nº CL 600-SP (mesmo rel.), Recl.nº 602-SP – rel.
Min. Ilmar Galvão, j. 3.9.97, in Informativo nº 82, Brasília, 1 a 5.9.97).
Por aí se vê que o voto vencido do relator Min. Ilmar Galvão, supra transcrito,
influiu sensivelmente na jurisprudência dos demais tribunais.
5. A COISA JULGADA DE ABRANGÊNCIA NACIONAL APÓS A LEI Nº 9.424, DE 10.9.97
A
acolhida, cada vez mais ampla, da coisa julgada de abrangência nacional
qualificando a sentença dos processos coletivos e projetando os efeitos das
liminares acabou por contrariar os interesses fazendários, levando o Poder
Executivo a incluir, na Medida Provisória nº 1.570, de 26.3.97 – convertida na
Lei nº 9.494, de 10.9.97, a norma do art. 3º, que pretendeu restringir os
efeitos erga omnes aos limites territoriais da competência.
É o que se passa a examinar.
O Executivo – seguido pelo Legislativo – foi duplamente infeliz.
Em primeiro lugar pecou pela intenção. Limitar a abrangência da coisa julgada
nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado,
contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a
resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e
pulverizá-los; e, de outro lado, contribui para a multiplicação de processos, a
sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais
quando uma só poderia ser suficiente. No momento em que o sistema brasileiro
busca saída até nos precedentes vinculantes, o menos que se pode dizer do
esforço redutivo do Executivo é que vai na contramão da história.
Em segundo lugar, pecou pela incompetência. Desconhecendo a interação entre a
Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor, assim como muitos
dos dispositivos deste, acreditou que seria suficiente modificar o art. 16 da
Lei nº 7.347/85 para resolver o problema. No que se enganou redondamente. Na
verdade, o acréscimo introduzido ao art. 16 da LACP é ineficaz.
Senão, vejamos.
Já foi exposta à saciedade a necessidade de se lerem de maneira integrada os
dispositivos processuais do Código de Defesa do Consumidor e as normas da Lei
da Ação Civil Pública, por força do disposto no art. 90 daquele e no art. 21
desta.
Desse modo, o art. 16 da LACP, na redação que lhe foi dada pela Medida
Provisória, não pode ser interpretado sem se levar em consideração os arts. 93
e 103 do CDC.
Reza o art. 16, alterado pela medida provisória:
“Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da
competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado
improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado
poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de novas provas”
(grifos no texto acrescido)
Mas o dispositivo há de ser lido em conjunto com os três incisos do art. 103,
que permaneceram inalterados.
Percebe-se, pela análise conjunta dos mencionados artigos, que o art. 16 da
LACP só diz respeito ao regime da coisa julgada com relação aos interesses
difusos (e, quando muito, coletivos), pois a regra permissiva do non liquet,
por insuficiência de provas, é limitada aos incisos I e II do art. 103,
relativos exatamente aos interesses transindividuais supra apontados. Na
verdade, a regra do art. 16 da LACP só se coaduna perfeitamente com o inciso I
do do art. 103, que utiliza a expressão erga omnes, enquanto o inciso II se
refere à coisa julgada ultra partes. Assim sendo, a nova disposição adapta-se
exclusivamente, em tudo e por tudo, à hipótese de interesses difusos (art. 103,
I), já indicando a necessidade de operação analógica para que também o art.
103, II (interesses coletivos) se entenda modificado. Mas aqui a analogia pode
ser aplicada, uma vez que não há diferenças entre o regime da coisa julgada nos
interesses difusos e coletivos.
No entanto, completamente diverso é o regime da coisa julgada nos interesses
individuais homogêneos (inc. III do art. 103), em que o legislador adotou
sistema próprio, revelado pela redação totalmente distinta do dispositivo: a
uma, porque a coisa julgada erga omnes só atua em caso de procedência do
pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores; a duas, porque para
esse grupo de interesses o legislador não adotou a técnica da inexistência de
coisa julgada para a sentença de improcedência por insuficiência de provas.
Resulta daí que não se pode dar por modificado o art. 103, III do CDC, por
força do acréscimo introduzido no art. 16 da LACP, nem mesmo pela interpretação
analógica, porquanto as situações reguladas nos dois dispositivos, longe de
serem semelhantes, são totalmente diversas.
Aliás, nem assim podia deixar de ser: a Lei nº 7.347, de 1985, só disciplina a
tutela jurisdicional dos interesses difusos e coletivos, como se vê pelo
próprio art. 1º (inc.IV) e pelo fato de a indenização pelo dano causado
destinar-se ao fundo por ela criado, para a reconstituição dos bens –
indivisíveis – lesados (art. 13). A criação da categoria dos interesses
individuais homogêneos é própria do Código de Defesa do Consumidor e deles não
se ocupa a lei, salvo no que diz respeito à possibilidade de utilização da ação
civil pública para a defesa de interesses individuais homogêneos, segundo os
esquemas do CDC (art. 21 da LACP).
Disso tudo resulta uma primeira conclusão: o art. 16 da Lei nº 7.347/85, em sua
nova redação, só se aplica ao tratamento da coisa julgada nos processos em
defesa de interesses difusos e coletivos, podendo-se entender modificados
apenas os incisos I e II do art. 103 do CDC. Mas nenhuma relevância tem com
relação ao regime da coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses
individuais homogêneos, regulado exclusivamente pelo incisos III do art. 103 do
CDC, que permanece inalterado.
E, paradoxalmente, é justamente no campo da tutela jurisdicional dos interesses
individuais homogêneos que a jurisprudência vinha admitindo com maior firmeza a
abrangência em nível nacional da coisa julgada erga omnes (v. supra, nº 3),
provocando a reação do Executivo.
Mas há mais. Ineficaz, pelas razões expostas, com relação à coisa julgada nas ações
em defesa de interesses individuais homogêneos, o acréscimo introduzido pela
Medida Provisória ao art. 16 da LACP é igualmente inoperante, com relação aos
interesses difusos e coletivos. Já agora por força da alusão à competência
territorial.
É que a competência territorial, nas ações coletivas, é regulada expressamente
pelo art. 93 do CDC. E a regra expressa da lex specialis é no sentido da
competência da Capital do Estado ou do Distrito Federal nas causas em que o
dano ou perigo de dano for de âmbito regional ou nacional.
Assim, afirmar que a coisa julgada se restringe aos “limites da competência do
órgão prolator” nada mais indica do que a necessidade de buscar a especificação
dos limites legais da competência: ou seja, os parâmetros do art. 93 do CDC,
que regula a competência territorial nacional e regional para os processos
coletivos.
E, acresça-se, a competência territorial nacional e regional tanto no âmbito da
Justiça Estadual como no da Justiça Federal.
O que se disse arreda qualquer dúvida quanto à previsão expressa da competência
territorial, de âmbito nacional ou regional, nas ações coletivas em defesa de
interesses individuais homogêneos, o que configura mais um argumento para
sustentar a total inoperância do novo art. 16 da LACP para os objetivos que o
Executivo tinha em mente ao baixar o art. 3º da Medida Provisória.
E com relação aos interesses difusos e coletivos? Já admitimos que o acréscimo
introduzido pela Medida Provisória ao art. 16 da LACP se aplica aos incisos I e
II do art. 103, e somente a estes. Trata-se, agora, de saber qual é o alcance
da expressão “nos limites da competência territorial do órgão prolator” no
tocante aos interesses difusos e coletivos.
Em ultima análise, é preciso verificar se a regra de competência territorial,
nacional ou regional, do art. 93 do CDC é exclusiva dos processos em defesa de
interesses individuais homogêneos, ou se também incide na tutela jurisdicional
dos interesses difusos e coletivos.
Já firmamos nossa posição no sentido de que o art. 93 do CDC, embora inserido
no capítulo atinente às “ações coletivas em defesa de interesses individuais
homogêneos”, rege todo e qualquer processo coletivo, estendendo-se às ações em
defesa de interesses difusos e coletivos. Não há como não se utilizar, aqui, o
método integrativo, destinado ao preenchimento da lacuna da lei, tanto pela
interpretação extensiva (extensiva do significado da norma) como pela analogia
(extensiva da intenção do legislador).
Ubi eadem ratio, ibi eadem juris dispositio. É a necessária coerência interna
do sistema jurídico que exige a formulação de regras idênticas onde se verifica
a identidade de razão. Se o art. 93 do CDC fosse aplicável apenas aos
interesses individuais homogêneos, o resultado seria a regra da competência
territorial de âmbito nacional ou regional só para as ações em defesa dos
aludidos direitos, enquanto nos processos coletivos em defesa de interesses
difusos e coletivos ficaria vedada a competência nacional ou regional. O
absurdo do resultado dessa posição é evidente, levando a seu repúdio pela razão
e pelo bom-senso, para o resguardo da coerência do ordenamento.
Mas há mais: o indigitado dispositivo da Medida Provisória tentou (sem êxito)
limitar a competência, mas em lugar algum aludiu ao objeto do processo. Ora, o
âmbito da abrangência da coisa julgada é determinado pelo pedido, e não pela
competência. Esta nada mais é do que a relação de adequação entre o processo e
o juiz, nenhuma influência tendo sobre o objeto do processo. Se o pedido é
amplo (de âmbito nacional) não será por intermédio de tentativas de restrições
da competência que o mesmo poderá ficar limitado.
Em conclusão: a) o art. 16 da LACP não se aplica à coisa julgada nas ações
coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos; b) aplica-se à coisa
julgada nas ações em defesa de interesses difusos e coletivos, mas o acréscimo
introduzido pela Medida Provisória é inoperante, porquanto é a própria lei
especial que amplia os limites da competência territorial, nos processos
coletivos, ao âmbito nacional ou regional; c) de qualquer modo, o que determina
o âmbito de abrangência da coisa julgada é o pedido, e não a competência. Esta
nada mais é do que uma relação de adequação entre o processo e o juiz. Sendo o
pedido amplo (erga omnes), o juiz competente o será para julgar a respeito de
todo o objeto do processo; d) em conseqüência, a nova redação do dispositivo é
totalmente ineficaz.
Essas considerações, reproduzidas de obra anterior, são agora reapresentadas,
para criteriosa reflexão, à consideração de todos os interessados nos caminhos
e descaminhos da Ação Civil Pública.
6. SEGUINDO NO ATAQUE À AÇÃO CIVIL PÚBLICA: A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.798-1, DE
11.2.99
Mais uma vez o governo serve-se do instrumento da Medida Provisória para minar
todo o trabalho edificado ao longo de anos no sentido de prestigiar o momento
associativo, de facilitar o acesso à justiça e de dotar o Poder Judiciário de
instrumentos processuais modernos e adequados à tutela dos direitos ou
interesses supra individuais. E agora o faz pela Medida Provisória nº 1.798-1,
de 11.2.99, que acresce alguns artigos à malfadada Lei nº 9.494/97, comentada
no tópico anterior.
O art.2º-A, introduzido na referida lei, tem a seguinte redação:
Art.2º-A. “A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por
entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados,
abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação,
domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator”.
Logo se vê que o dispositivo só encontra aplicação aos interesses coletivos e
individuais homogêneos, porquanto no campo dos interesses difusos os titulares
são, por definição, indeterminados e indetermináveis, ligados por
circunstâncias de fato, não havendo como saber onde estão domiciliados. O
art.81, parágrafo único, I, do CDC, que integra a Lei nº 7.347/85, é
incompatível com a restrição e imune à incidência da nova norma.
Mas, mesmo em relação aos interesses coletivos e individuais homogêneos, a
regra é ineficaz. Mais uma vez, o Poder Executivo foi inábil e todas as
considerações já expendidas a respeito da modificação do art.16 da LACP se
aplicam ao novo dispositivo. O problema não é de eficácia da sentença, mas de
pedido. E o “âmbito de competência territorial do órgão prolator” é o definido
no art.93, II, do CDC, tendo o órgão prolator competência nacional ou regional
nos expressos termos do Código.
O parágrafo único do mesmo art.2º-A, introduzido na Lei nº 9.494/97, tem a
seguinte redação:
“Parágrafo único. Nas ações coletivas propostas contra entidades da
administração direta, autárquica e fundacional da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, a petição inicial deverá obrigatoriamente
estar instruída com a ata da assembléia da entidade associativa que a
autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos
respectivos endereços”.
A restrição, que beneficia apenas o Estado, opera no âmbito do art.82, IV, do
CDC, que legitima às ações coletivas “as associações legalmente constituídas há
pelo menos uma ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos
interesses e direitos protegidos por este Código, dispensada a autorização
assemblear” (grifei).
A exigência de autorização assemblear, acompanhada da relação nominal dos associados
e da indicação dos respectivos endereços, que representa um obstáculo para o
acesso das associações à justiça e que é limitada às demandas intentadas contra
o Estado e suas entidades autárquicas e fundacionais, é uma clara demonstração
de privilégio que não se coaduna com o princípio da igualdade processual,
decorrente da isonomia garantida pela Constituição. Não se trata de
prerrogativa, que poderia se justificar em face da complexa organização dos
órgãos estatais ou paraestatais e que autoriza que se tratem desigualmente os
desiguais. Nenhuma facilitação da atividade defensiva surgirá para o Estado
dessa exigência, que tem apenas o intuito de dificultar o acesso à justiça das
associações que contra ele litigam.
Finalmente, o art.2º-B, igualmente introduzido na Lei nº 9.494/97, impede as
cautelares satisfativas (rectius, a antecipação de tutela) nas hipóteses de
liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação,
equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive de suas
autarquias e fundações. A questão transcende o âmbito dos processos coletivos e
deve ser examinada em conjunto com outras normas que limitam a regra geral do
art.273 do CPC. Mas o certo é que nessa matéria, assim como em outros temas
(v.g., a ação rescisória), fica violentamente atacado o princípio
constitucional da isonomia, de que a igualdade processual é reflexo.
7. CONCLUSÕES
Alguns
anos após a introdução, no Brasil, da tutela jurisdicional dos interesses
difusos e coletivos, passando pela linha evolutiva que levou ao reconhecimento
dos direitos individuais homogêneos, o balanço seria francamente positivo, não
fossem as investidas autoritárias do governo. Depois de alguma tergiversação e
de certas idas e vindas, até previsíveis em face da natural dificuldade de
apreender plenamente toda a complexidade das novas normas, pode se afirmar que
os processos coletivos, apesar dos ataques, integram hoje a práxis judiciária.
A notável quantidade de demandas e a adequada resposta jurisdicional iluminaram
as novas técnicas processuais e demonstraram o empenho dos legitimados –
primeiro dentre todos, o Ministério Público ?? a ampla gama das ações
ajuizadas, o reconhecimento do corpo social. Pode se afirmar, por certo, que os
processos coletivos transformaram no Brasil todo o processo civil, hoje
aderente à realidade social e política subjacente e às controvérsias que
constituem seu objeto, conduzindo-o pela via da eficácia e da efetividade. E
que, por intermédio dos processos coletivos, a sociedade tem podido afirmar, de
maneira mais articulada, seus direitos de cidadania.
Nesse quadro se inseriu significativamente o Poder Judiciário brasileiro,
consciente de seu novo papel e de sua renovada importância, sabendo marcar, com
seus julgamentos, uma posição de vanguarda, que aponta auspiciosamente para os
futuros desafios.
Única
nota dissonante, nesse cenário, é a atitude do governo, que tem utilizado
Medidas Provisórias para inverter a situação, com investidas contra a Ação
Civil Pública, tentando diminuir sua eficácia, limitar o acesso à justiça,
frustrar o momento associativo, reduzir o papel do Poder Judiciário. O
Legislativo, complacente ou desatento, não tem sabido resistir aos ataques, secundando
a ação do Governo. A salvação só pode estar nos tribunais, devendo os advogados
e o Ministério Público a eles recorrer, alimentando-os com a interpretação
adequada das novas normas, a fim de que a resposta jurisdicional reflita as
linhas mestras dos processos coletivos e os princípios gerais que os regem, que
não podem ser involutivos.
*Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação
civil refém do autoritarismo. Disponível em < http://www.jcadvocacia.com/index2.htm?cont=publicacoes&publicacao=19&categoria=2
>. Acesso em 01 de novembro de 2006.