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A Ação Civil Pública refém do autoritarismo

 

Ada Pellegrini Grinover*

 

 

 

SUMÁRIO:


1. A dimensão social, política e jurídica da tutela jurisdicional dos interesses transindividuais. 2. Um novo Poder Judiciário. 3. O Executivo na contramão da História. 4. A coisa julgada de abrangência nacional. 5. A coisa julgada de abrangência nacional após a Lei nº 9.424, de 10.9.97. 6. Seguindo no ataque à Ação Civil Pública : a Medida Provisória nº 1.798-1. 7. Conclusões.

1.A DIMENSÃO SOCIAL, POLÍTICA E JURÍDICA DA TUTELA JURISDICIONAL DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS


            A tutela jurisdicional dos interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos representa, neste final de milênio, uma das conquistas mais expressivas do direito brasileiro. Colocados a meio caminho entre os interesses públicos e os privados, próprios de uma sociedade de massa e resultado de conflitos de massa, carregados de relevância política e capazes de transformar conceitos jurídicos estratificados, os interesses transindividuais têm uma clara dimensão social e configuram nova categoria política e jurídica.
            Do ponto de vista social, significaram o reconhecimento e a necessidade de tutela de interesses espalhados e informais voltados a necessidades coletivas, sinteticamente referíveis à qualidade de vida. Interesses de massa, que comportam ofensas de massa e que colocam em contraste grupos, categorias, classes de pessoas. Não mais um feixe de linhas paralelas, mas um leque de linhas que convergem para um objeto comum e indivisível. Aqui se inserem os interesses dos consumidores, ao meio ambiente, dos usuários de serviços públicos, dos investidores, dos beneficiários da previdência social e de todos aqueles que integram uma comunidade compartilhando de suas necessidades e seus anseios.
            O reconhecimento e a necessidade de tutela desses interesses também puseram de relevo sua configuração política. Deles emergiram novas formas de gestão da coisa pública, em que se afirmaram os grupos intermediários. Uma gestão participativa, como instrumento de racionalização do poder, inaugurando um novo tipo de descentralização, não mais limitada ao plano estatal (como descentralização político-administrativa), mas estendida ao plano social, com tarefas atribuídas aos corpos intermediários e às formações sociais, dotados de autonomia e de funções específicas. E isso também significou uma reorganização da sociedade civil em torno de associações e de grupos.
Em consequência, a teoria das liberdades públicas forjou uma nova “geração” de direitos fundamentais. Aos direitos clássicos de primeira geração, representados pelas tradicionais liberdades negativas, próprias do Estado liberal, com o correspondente dever de abstenção por parte do poder público; aos direitos de segunda geração, de caráter econômico-social, compostos por liberdades positivas, com o correlato dever do Estado a uma obrigação de dare, facere ou praestare, acrescentou-se o reconhecimento dos direitos de terceira geração, representados pelos direitos de solidariedade, decorrentes dos interesses sociais. E assim foi que o que aparecia inicialmente como mero interesse elevou-se à dimensão de verdadeiro direito, conduzindo à reestruturação de conceitos jurídicos, que se amoldassem à nova realidade.
            No plano constitucional, renovou-se o sentido da jurisdição e da ação, enquanto garantias fundamentais, como o contraditório, ganharam nova roupagem. Foi necessário rever a noção clássica da responsabilidade civil, comensurada até então pelos prejuízos sofridos, para introduzir o conceito de responsabilidade civil pelos danos causados. No processo, foram revisitados institutos consolidados, como a legitimação para agir, a coisa julgada, a identidade parcial de demandas, os poderes e a responsabilidade do juiz e do Ministério Público.
            A maior revolução talvez se tenha dado exatamente no campo do processo: de um modelo individualista a um modelo social, de esquemas abstratos a esquemas concretos, do plano estático ao plano dinâmico, o processo transformou-se de individual em coletivo, ora inspirando-se ao sistema das class actions da common law, ora estruturando novas técnicas, mais aderentes à realidade social e política subjacente.
Tudo isso alterou o quadro do acesso à Justiça, facilitado por intermédio dos portadores, em juízo, dos interesses transindividuais, que se substituem aos litigantes a título individual, fracos do ponto de vista econômico e organizacional, e que simplesmente não levavam suas pretensões ao Poder Judiciário. E com isso também se desenhou uma nova realidade para o princípio da universalidade da jurisdição, a qual se abriu a novas causas e a novos titulares de conflitos.

2. UM NOVO PODER JUDICIÁRIO 


             Também o Poder Judiciário foi beneficiado pelos processos coletivos, em termos de projeção e racionalização do trabalho. A sobrecarga dos tribunais e a sensação de inutilidade das decisões individualizadas eram agravadas pela frequente contradição dos julgados e pela demora na solução das controvérsias. A finalidade social da função jurisdicional, que é de pacificar com justiça, perdia-se diante da fragmentação e pulverização dos conflitos, sempre tratados a título individual. A substituição de decisões atomizadas (na expressão de Kazuo Watanabe) pelo tratamento molecular das controvérsias, levando à solução do Judiciário, de uma só vez, conflitos que envolvem milhares ou milhões de pessoas, significou tornar o juiz a peça principal na condução de processos de massa que, por envolverem conflitos de massa, têm sempre relevância política e social. Graças aos processos coletivos, o Judiciário, saindo de uma posição frequentemente distante e remota, tornou-se protagonista das grandes controvérsias nacionais.

3. O EXECUTIVO NA CONTRAMÃO DA HISTÓRIA
            Apesar de tudo isso, as investidas do Poder Executivo – acompanhado por um Legislativo complacente ou no mínimo desatento – têm atacado a Ação Civil Pública, tentando diminuir sua eficácia por intermédio da limitação do acesso à justiça, da compressão do momento associativo, da redução do papel do Poder Judiciário.
Manifestações eloqüentes dessas investidas são a Medida Provisória nº 1.570, de 26.3.97 (transformada na Lei nº 9.424, de 10.9.97) e a Medida Provisória nº 1.798-1, de 11.2.99, ainda não convertida em lei (até quando?).
            Pelo menos em parte, as intenções do governo ficaram francamente frustradas. A aplicação das novas normas, por outra parte, depende de uma leitura constitucional. E caberá ao Poder Judiciário, mais uma vez, construir uma interpretação que leve em conta a unidade do sistema jurídico e a exegese que melhor se coadune com os princípios gerais do direito.
É sobre essas intervenções autoritárias do governo que versará nossa análise.

4. A COISA JULGADA DE ABRANGÊNCIA NACIONAL


            Antes da Medida Provisória nº 1.570, de 26.3.97, transformada na Lei nº 9.494, de 10.9.97 (e sobre a qual voltaremos no nº 5), a coisa julgada erga omnes de abangência nacional sofreu alguns percalços nos tribunais, que por vezes limitavam os efeitos das liminares e da sentença segundo critérios de competência.
Logo afirmamos não fazer sentido, por exemplo, que ações em defesa dos interesses individuais homogêneos dos pensionistas e aposentados da Previdência Social ao recebimento da diferença de 147% fossem ajuizadas nas capitais dos diversos Estados, a pretexto dos limites territoriais dos diversos órgãos da Justiça Federal. O problema não é de competência: o juiz federal, competente para processar e julgar a causa, emite um provimento (antecipado ou definitivo) que tem eficácia erga omnes, abrangendo todos os aposentados e pensionistas do Brasil. Ou a demanda é coletiva, ou não o é; ou a coisa julgada é erga omnes ou não o é. E se o pedido for efetivamente coletivo, haverá uma clara relação de litispendência entre as várias ações ajuizadas nos diversos Estados da Federação.
Por isso sustentamos que a limitação operada por certos julgados afronta o art.103 do CDC e despreza a orientação fornecida pelo art. 91, II, por onde se vê que a causa que verse sobre a reparação de danos de âmbito nacional ou regional deve ser proposta no foro da capital do Estado ou no Distrito Federal, servindo evidentemente a decisão para todo o território nacional. Esse dispositivo aplica-se aos demais casos de interesses que alcancem grupos e categorias de indivíduos, mais ou menos determináveis, espalhados pelo território nacional.
            Por isso mesmo, rigorosamente acertado foi o voto do Min. Relator Ilmar Galvão, no Conflito de Competência nº 971-DF, julgado pela 1ª Seção do STJ aos 13.2.90, reconhecendo a prevenção da competência da 30ª Vara Federal do Rio de Janeiro para conhecer e julgar ação civil pública visando a proibir a mistura e distribuição de metanol adicionado ao álcool para venda ao consumidor, em todo o território nacional. Afirmava o Ministro Relator:
             “Meditei detidamente quanto à possibilidade de admitir-se que uma decisão de juízo monocrático, da natureza da que se busca nas ações em tela, possa estender seus efeitos para além dos limites do território onde exerce ele sua jurisdição, não tendo encontrado nenhum princípio ou norma capaz de levar a uma conclusão negativa.
            A regionalização da Justiça Federal não me parece que constitua óbice àquele efeito, sendo certo que, igualmente, no plano da Justiça Estadual, nada impede que uma determinada decisão proferida por juiz com jurisdição num Estado projete seus efeitos sobre pessoas domiciliadas em outro.
            Avulta, no presente caso, tratar-se de ações destinadas à tutela de interesses difusos, não sendo razoável que, v.g., eventual proibição de emanações tóxicas seja forçosamente restrita a apenas uma região, quando todas as pessoas são livres para nela permanecer ou transitar, ainda que residam em outra parte”.
            O voto do Relator foi acompanhado pelos Ministros José de Jesus e Geraldo Sobral, mas prevaleceu no Tribunal a posição do Ministro Vicente Cernicchiaro, que entendeu deverem os processos desenvolver-se separadamente, com eficácia das respectivas decisões na jurisdição de cada juízo.
            Essa decisão, anterior ao Código de Defesa do Consumidor, ainda marcou a posição de muitos tribunais, que limitaram a abrangência da coisa julgada erga omnes ou ultra partes em função das regras de competência.
            A postura chegou a influir na formulação de alguns pedidos, que se cingiram, de acordo com a referida orientação, ao âmbito territorial coberto pelas regras de regionalização dos tribunais brasileiros.
Em outros casos, porém, continuaram os autores a postular corretamente em termos mais abrangentes, pleiteando e obtendo liminares com extensão para todo o território nacional. E em diversos processos a sentença condenatória de primeiro grau começou a não fazer restrições territoriais à amplitude da coisa julgada erga omnes.
Aos poucos, a jurisprudência foi se solidificando no sentido de a coisa julgada ultra partes ou erga omnes transcender o âmbito da competência territorial, para realmente assumir dimensão regional ou nacional.
A título meramente exemplificativo, vale lembrar algumas decisões de caráter nacional.
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região manteve a liminar do Juízo da 17ª Vara de São Paulo, em tema de cessação da cobrança de tarifas bancárias, autorizadas pelo Banco Central, em contas de poupança inativas ou não recadastradas, com eficácia para o território nacional (Agravo nº 96.03.064677-6, 3ª Turma, Rel.ª Annamaria Pimentel, v.u., 30.10.96. O relatório destaca que os efeitos de uma decisão ou sentença não se confundem com a fatia de competência do juízo que a proferiu).
Também a justiça federal da Seção do Estado de Mato Grosso, em primeira instância, beneficiou servidores federais inativos de todo o país, concedendo liminares em matéria de proventos para reconhecer a inexigibilidade da contribuição social e determinar à União que não procedesse ao lançamento de débitos em contas de poupança ativas, inativas ou não recadastradas (Proc. nº 96.003183-5 da 1ª Vara e Proc. nº 96.0003379-0/7100 da 3ª Vara, liminares de 21.6.96 e 20.9.96, respectivamente. Nesta última decisão o magistrado utiliza o argumento de que o juiz federal teria jurisdição afeta a todo o território nacional, o que se distancia de nossa linha de raciocínio).

Em assunto ligado ao Sistema Financeiro, atinente à atualização dos saldos devedores pelo INPC e não pela TR, a Justiça Federal de Mato Grosso concedera liminares visando à suspensão da aplicação da TR como índice de correção monetária em todos os contratos habitacionais, substituindo-a pelo INPC, com fornecimento de demonstrativo dos saldos devedores e informação aos mutuários: Procs. nºs 496.2838-9 (Primeira Vara, liminar de 4.9.96) e 96.0002974-1/7100 (Terceira Vara, liminar de 26.9.96), sendo diversos os bancos acionados juntamente com a União Federal. Ambas as decisões aludem à competência concorrente e opcional do Distrito Federal.
Na matéria referida, atuara do mesmo modo a 10ª Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo, em ação civil pública ajuizada pelo IDEC perante a Justiça Estadual (Ac. nº 581.942-1), provocando reclamação ao Supremo Tribunal Federal, ajuzada pelo Banco Mercantil de São Paulo, em que o Relator, Min. Carlos Velloso, suspendeu liminarmente a decisão do Tribunal Estadual, reportando-se a precedentes em que o STF já havia concedido liminares no mesmo sentido. As liminares haviam sido concedidas pelo Juízo Federal da 1ª Vara de Minas Gerais (Recls. nºs 559,564 e 557- MG), por entender existir o fumus boni iuris no sentido de a ação civil pública, de âmbito nacional, fundada na inconstitucionalidade, transformar-se numa declaração de inconstitucionalidade, com usurpação da competência do STF (Reclamação nº 601-8/SP, in DJU 7. 5 .96, p. 14.584). No mérito, contudo, várias reclamações foram julgadas improcedentes, por ter a inconstitucionalidade sido argüida incidenter tantum, embora a sentença tivesse eficácia erga omnes (Recl.nº 597-SP – rel. para o ac. Min. Néri da Silveira, Recl. nº CL 600-SP (mesmo rel.), Recl.nº 602-SP – rel. Min. Ilmar Galvão, j. 3.9.97, in Informativo nº 82, Brasília, 1 a 5.9.97).
Por aí se vê que o voto vencido do relator Min. Ilmar Galvão, supra transcrito, influiu sensivelmente na jurisprudência dos demais tribunais.

5. A COISA JULGADA DE ABRANGÊNCIA NACIONAL APÓS A LEI Nº 9.424, DE 10.9.97


            A acolhida, cada vez mais ampla, da coisa julgada de abrangência nacional qualificando a sentença dos processos coletivos e projetando os efeitos das liminares acabou por contrariar os interesses fazendários, levando o Poder Executivo a incluir, na Medida Provisória nº 1.570, de 26.3.97 – convertida na Lei nº 9.494, de 10.9.97, a norma do art. 3º, que pretendeu restringir os efeitos erga omnes aos limites territoriais da competência.
É o que se passa a examinar.
O Executivo – seguido pelo Legislativo – foi duplamente infeliz.
Em primeiro lugar pecou pela intenção. Limitar a abrangência da coisa julgada nas ações civis públicas significa multiplicar demandas, o que, de um lado, contraria toda a filosofia dos processos coletivos, destinados justamente a resolver molecularmente os conflitos de interesses, ao invés de atomizá-los e pulverizá-los; e, de outro lado, contribui para a multiplicação de processos, a sobrecarregarem os tribunais, exigindo múltiplas respostas jurisdicionais quando uma só poderia ser suficiente. No momento em que o sistema brasileiro busca saída até nos precedentes vinculantes, o menos que se pode dizer do esforço redutivo do Executivo é que vai na contramão da história.
Em segundo lugar, pecou pela incompetência. Desconhecendo a interação entre a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor, assim como muitos dos dispositivos deste, acreditou que seria suficiente modificar o art. 16 da Lei nº 7.347/85 para resolver o problema. No que se enganou redondamente. Na verdade, o acréscimo introduzido ao art. 16 da LACP é ineficaz.
Senão, vejamos.
Já foi exposta à saciedade a necessidade de se lerem de maneira integrada os dispositivos processuais do Código de Defesa do Consumidor e as normas da Lei da Ação Civil Pública, por força do disposto no art. 90 daquele e no art. 21 desta.
Desse modo, o art. 16 da LACP, na redação que lhe foi dada pela Medida Provisória, não pode ser interpretado sem se levar em consideração os arts. 93 e 103 do CDC.
Reza o art. 16, alterado pela medida provisória:
“Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de novas provas” (grifos no texto acrescido)
Mas o dispositivo há de ser lido em conjunto com os três incisos do art. 103, que permaneceram inalterados.
Percebe-se, pela análise conjunta dos mencionados artigos, que o art. 16 da LACP só diz respeito ao regime da coisa julgada com relação aos interesses difusos (e, quando muito, coletivos), pois a regra permissiva do non liquet, por insuficiência de provas, é limitada aos incisos I e II do art. 103, relativos exatamente aos interesses transindividuais supra apontados. Na verdade, a regra do art. 16 da LACP só se coaduna perfeitamente com o inciso I do do art. 103, que utiliza a expressão erga omnes, enquanto o inciso II se refere à coisa julgada ultra partes. Assim sendo, a nova disposição adapta-se exclusivamente, em tudo e por tudo, à hipótese de interesses difusos (art. 103, I), já indicando a necessidade de operação analógica para que também o art. 103, II (interesses coletivos) se entenda modificado. Mas aqui a analogia pode ser aplicada, uma vez que não há diferenças entre o regime da coisa julgada nos interesses difusos e coletivos.
No entanto, completamente diverso é o regime da coisa julgada nos interesses individuais homogêneos (inc. III do art. 103), em que o legislador adotou sistema próprio, revelado pela redação totalmente distinta do dispositivo: a uma, porque a coisa julgada erga omnes só atua em caso de procedência do pedido, para beneficiar todas as vítimas e seus sucessores; a duas, porque para esse grupo de interesses o legislador não adotou a técnica da inexistência de coisa julgada para a sentença de improcedência por insuficiência de provas.
Resulta daí que não se pode dar por modificado o art. 103, III do CDC, por força do acréscimo introduzido no art. 16 da LACP, nem mesmo pela interpretação analógica, porquanto as situações reguladas nos dois dispositivos, longe de serem semelhantes, são totalmente diversas.
Aliás, nem assim podia deixar de ser: a Lei nº 7.347, de 1985, só disciplina a tutela jurisdicional dos interesses difusos e coletivos, como se vê pelo próprio art. 1º (inc.IV) e pelo fato de a indenização pelo dano causado destinar-se ao fundo por ela criado, para a reconstituição dos bens – indivisíveis – lesados (art. 13). A criação da categoria dos interesses individuais homogêneos é própria do Código de Defesa do Consumidor e deles não se ocupa a lei, salvo no que diz respeito à possibilidade de utilização da ação civil pública para a defesa de interesses individuais homogêneos, segundo os esquemas do CDC (art. 21 da LACP).
Disso tudo resulta uma primeira conclusão: o art. 16 da Lei nº 7.347/85, em sua nova redação, só se aplica ao tratamento da coisa julgada nos processos em defesa de interesses difusos e coletivos, podendo-se entender modificados apenas os incisos I e II do art. 103 do CDC. Mas nenhuma relevância tem com relação ao regime da coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos, regulado exclusivamente pelo incisos III do art. 103 do CDC, que permanece inalterado.
E, paradoxalmente, é justamente no campo da tutela jurisdicional dos interesses individuais homogêneos que a jurisprudência vinha admitindo com maior firmeza a abrangência em nível nacional da coisa julgada erga omnes (v. supra, nº 3), provocando a reação do Executivo.
Mas há mais. Ineficaz, pelas razões expostas, com relação à coisa julgada nas ações em defesa de interesses individuais homogêneos, o acréscimo introduzido pela Medida Provisória ao art. 16 da LACP é igualmente inoperante, com relação aos interesses difusos e coletivos. Já agora por força da alusão à competência territorial.
É que a competência territorial, nas ações coletivas, é regulada expressamente pelo art. 93 do CDC. E a regra expressa da lex specialis é no sentido da competência da Capital do Estado ou do Distrito Federal nas causas em que o dano ou perigo de dano for de âmbito regional ou nacional.
Assim, afirmar que a coisa julgada se restringe aos “limites da competência do órgão prolator” nada mais indica do que a necessidade de buscar a especificação dos limites legais da competência: ou seja, os parâmetros do art. 93 do CDC, que regula a competência territorial nacional e regional para os processos coletivos.
E, acresça-se, a competência territorial nacional e regional tanto no âmbito da Justiça Estadual como no da Justiça Federal.
O que se disse arreda qualquer dúvida quanto à previsão expressa da competência territorial, de âmbito nacional ou regional, nas ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos, o que configura mais um argumento para sustentar a total inoperância do novo art. 16 da LACP para os objetivos que o Executivo tinha em mente ao baixar o art. 3º da Medida Provisória.
E com relação aos interesses difusos e coletivos? Já admitimos que o acréscimo introduzido pela Medida Provisória ao art. 16 da LACP se aplica aos incisos I e II do art. 103, e somente a estes. Trata-se, agora, de saber qual é o alcance da expressão “nos limites da competência territorial do órgão prolator” no tocante aos interesses difusos e coletivos.
Em ultima análise, é preciso verificar se a regra de competência territorial, nacional ou regional, do art. 93 do CDC é exclusiva dos processos em defesa de interesses individuais homogêneos, ou se também incide na tutela jurisdicional dos interesses difusos e coletivos.
Já firmamos nossa posição no sentido de que o art. 93 do CDC, embora inserido no capítulo atinente às “ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos”, rege todo e qualquer processo coletivo, estendendo-se às ações em defesa de interesses difusos e coletivos. Não há como não se utilizar, aqui, o método integrativo, destinado ao preenchimento da lacuna da lei, tanto pela interpretação extensiva (extensiva do significado da norma) como pela analogia (extensiva da intenção do legislador).
Ubi eadem ratio, ibi eadem juris dispositio. É a necessária coerência interna do sistema jurídico que exige a formulação de regras idênticas onde se verifica a identidade de razão. Se o art. 93 do CDC fosse aplicável apenas aos interesses individuais homogêneos, o resultado seria a regra da competência territorial de âmbito nacional ou regional só para as ações em defesa dos aludidos direitos, enquanto nos processos coletivos em defesa de interesses difusos e coletivos ficaria vedada a competência nacional ou regional. O absurdo do resultado dessa posição é evidente, levando a seu repúdio pela razão e pelo bom-senso, para o resguardo da coerência do ordenamento.
Mas há mais: o indigitado dispositivo da Medida Provisória tentou (sem êxito) limitar a competência, mas em lugar algum aludiu ao objeto do processo. Ora, o âmbito da abrangência da coisa julgada é determinado pelo pedido, e não pela competência. Esta nada mais é do que a relação de adequação entre o processo e o juiz, nenhuma influência tendo sobre o objeto do processo. Se o pedido é amplo (de âmbito nacional) não será por intermédio de tentativas de restrições da competência que o mesmo poderá ficar limitado.
Em conclusão: a) o art. 16 da LACP não se aplica à coisa julgada nas ações coletivas em defesa de interesses individuais homogêneos; b) aplica-se à coisa julgada nas ações em defesa de interesses difusos e coletivos, mas o acréscimo introduzido pela Medida Provisória é inoperante, porquanto é a própria lei especial que amplia os limites da competência territorial, nos processos coletivos, ao âmbito nacional ou regional; c) de qualquer modo, o que determina o âmbito de abrangência da coisa julgada é o pedido, e não a competência. Esta nada mais é do que uma relação de adequação entre o processo e o juiz. Sendo o pedido amplo (erga omnes), o juiz competente o será para julgar a respeito de todo o objeto do processo; d) em conseqüência, a nova redação do dispositivo é totalmente ineficaz.
Essas considerações, reproduzidas de obra anterior, são agora reapresentadas, para criteriosa reflexão, à consideração de todos os interessados nos caminhos e descaminhos da Ação Civil Pública.

6. SEGUINDO NO ATAQUE À AÇÃO CIVIL PÚBLICA: A MEDIDA PROVISÓRIA Nº 1.798-1, DE 11.2.99
Mais uma vez o governo serve-se do instrumento da Medida Provisória para minar todo o trabalho edificado ao longo de anos no sentido de prestigiar o momento associativo, de facilitar o acesso à justiça e de dotar o Poder Judiciário de instrumentos processuais modernos e adequados à tutela dos direitos ou interesses supra individuais. E agora o faz pela Medida Provisória nº 1.798-1, de 11.2.99, que acresce alguns artigos à malfadada Lei nº 9.494/97, comentada no tópico anterior.
O art.2º-A, introduzido na referida lei, tem a seguinte redação:
Art.2º-A. “A sentença civil prolatada em ação de caráter coletivo proposta por entidade associativa, na defesa dos interesses e direitos dos seus associados, abrangerá apenas os substituídos que tenham, na data da propositura da ação, domicílio no âmbito da competência territorial do órgão prolator”.
Logo se vê que o dispositivo só encontra aplicação aos interesses coletivos e individuais homogêneos, porquanto no campo dos interesses difusos os titulares são, por definição, indeterminados e indetermináveis, ligados por circunstâncias de fato, não havendo como saber onde estão domiciliados. O art.81, parágrafo único, I, do CDC, que integra a Lei nº 7.347/85, é incompatível com a restrição e imune à incidência da nova norma.
Mas, mesmo em relação aos interesses coletivos e individuais homogêneos, a regra é ineficaz. Mais uma vez, o Poder Executivo foi inábil e todas as considerações já expendidas a respeito da modificação do art.16 da LACP se aplicam ao novo dispositivo. O problema não é de eficácia da sentença, mas de pedido. E o “âmbito de competência territorial do órgão prolator” é o definido no art.93, II, do CDC, tendo o órgão prolator competência nacional ou regional nos expressos termos do Código.
O parágrafo único do mesmo art.2º-A, introduzido na Lei nº 9.494/97, tem a seguinte redação:
“Parágrafo único. Nas ações coletivas propostas contra entidades da administração direta, autárquica e fundacional da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, a petição inicial deverá obrigatoriamente estar instruída com a ata da assembléia da entidade associativa que a autorizou, acompanhada da relação nominal dos seus associados e indicação dos respectivos endereços”.
A restrição, que beneficia apenas o Estado, opera no âmbito do art.82, IV, do CDC, que legitima às ações coletivas “as associações legalmente constituídas há pelo menos uma ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código, dispensada a autorização assemblear” (grifei).
A exigência de autorização assemblear, acompanhada da relação nominal dos associados e da indicação dos respectivos endereços, que representa um obstáculo para o acesso das associações à justiça e que é limitada às demandas intentadas contra o Estado e suas entidades autárquicas e fundacionais, é uma clara demonstração de privilégio que não se coaduna com o princípio da igualdade processual, decorrente da isonomia garantida pela Constituição. Não se trata de prerrogativa, que poderia se justificar em face da complexa organização dos órgãos estatais ou paraestatais e que autoriza que se tratem desigualmente os desiguais. Nenhuma facilitação da atividade defensiva surgirá para o Estado dessa exigência, que tem apenas o intuito de dificultar o acesso à justiça das associações que contra ele litigam.
Finalmente, o art.2º-B, igualmente introduzido na Lei nº 9.494/97, impede as cautelares satisfativas (rectius, a antecipação de tutela) nas hipóteses de liberação de recurso, inclusão em folha de pagamento, reclassificação, equiparação, concessão de aumento ou extensão de vantagens a servidores da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, inclusive de suas autarquias e fundações. A questão transcende o âmbito dos processos coletivos e deve ser examinada em conjunto com outras normas que limitam a regra geral do art.273 do CPC. Mas o certo é que nessa matéria, assim como em outros temas (v.g., a ação rescisória), fica violentamente atacado o princípio constitucional da isonomia, de que a igualdade processual é reflexo.

7. CONCLUSÕES


            Alguns anos após a introdução, no Brasil, da tutela jurisdicional dos interesses difusos e coletivos, passando pela linha evolutiva que levou ao reconhecimento dos direitos individuais homogêneos, o balanço seria francamente positivo, não fossem as investidas autoritárias do governo. Depois de alguma tergiversação e de certas idas e vindas, até previsíveis em face da natural dificuldade de apreender plenamente toda a complexidade das novas normas, pode se afirmar que os processos coletivos, apesar dos ataques, integram hoje a práxis judiciária. A notável quantidade de demandas e a adequada resposta jurisdicional iluminaram as novas técnicas processuais e demonstraram o empenho dos legitimados – primeiro dentre todos, o Ministério Público ?? a ampla gama das ações ajuizadas, o reconhecimento do corpo social. Pode se afirmar, por certo, que os processos coletivos transformaram no Brasil todo o processo civil, hoje aderente à realidade social e política subjacente e às controvérsias que constituem seu objeto, conduzindo-o pela via da eficácia e da efetividade. E que, por intermédio dos processos coletivos, a sociedade tem podido afirmar, de maneira mais articulada, seus direitos de cidadania.
Nesse quadro se inseriu significativamente o Poder Judiciário brasileiro, consciente de seu novo papel e de sua renovada importância, sabendo marcar, com seus julgamentos, uma posição de vanguarda, que aponta auspiciosamente para os futuros desafios.
            Única nota dissonante, nesse cenário, é a atitude do governo, que tem utilizado Medidas Provisórias para inverter a situação, com investidas contra a Ação Civil Pública, tentando diminuir sua eficácia, limitar o acesso à justiça, frustrar o momento associativo, reduzir o papel do Poder Judiciário. O Legislativo, complacente ou desatento, não tem sabido resistir aos ataques, secundando a ação do Governo. A salvação só pode estar nos tribunais, devendo os advogados e o Ministério Público a eles recorrer, alimentando-os com a interpretação adequada das novas normas, a fim de que a resposta jurisdicional reflita as linhas mestras dos processos coletivos e os princípios gerais que os regem, que não podem ser involutivos.

*Professora Titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo

 

GRINOVER, Ada Pellegrini. A ação civil refém do autoritarismo. Disponível em < http://www.jcadvocacia.com/index2.htm?cont=publicacoes&publicacao=19&categoria=2 >. Acesso em 01 de novembro de 2006.