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Miguel Sales
*Promotor de Justiça em
Pernambuco, professor de Direito
Em
dois momentos, a Constituição de 1988, rompendo com a tradição da doutrina
penal, considera a pessoa jurídica, sem distinguir se pública ou privada, como ente
capaz de cometer crime. A primeira previsão está situada no capítulo que trata
dos princípios gerais da atividade econômica; a segunda, no que disciplina o
meio ambiente. Quer dizer, no concernente às relações econômicas ou de natureza
ambiental a Lei Maior entendeu que pode haver conduta da pessoa jurídica a se
tipificar como crime.
Na primeira situação, diz
a Constituição: “A lei, sem prejuízo da responsabilidade individual dos
dirigentes da pessoa jurídica, estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a
às punições compatíveis com a sua natureza nos atos praticados contra a ordem
econômica e financeira e contra a economia popular.” (art. 173, § 5º). Por sua
vez, na outra hipótese, preceitua: “as condutas e atividades consideradas
lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou
jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação
de reparar os danos causados.” (art. 225, § 3º).
Historicamente, o
princípio Societas delinquire non potesta, que ainda é adotado
no ordenamento jurídico da maioria das nações, foi quebrado após o fim da II
Guerra Mundial, quando o Tribunal Militar de Nuremberg admitiu a
responsabilidade criminal de corporações ou agrupamentos nazistas, como, por
exemplo, a Gestapo, ao condená-la pelos denominados crimes de guerra contra a
humanidade.
O Brasil, ao lado da
França, Portugal e Espanha, foram pioneiros em admitir a responsabilidade penal
da pessoa jurídica. Pelo Código Penal Francês de 1994, que substituiu o
ultrapassado de 1810, à exceção do Estado, o ente jurídico responde penalmente
por vários tipos de delitos. Os Códigos Penais de Portugal, reformado em 1995,
e o da Espanha, revisto em 1996, embora prevejam a possibilidade de
cometimentos de crimes pela pessoa jurídica de direito privado, não apresentam
em seus textos disposições objetivas a respeito dos tipos penais a ela
atribuídos.
Mesmo antes da
Constituição de 1988, na legislação brasileira, mas não no Código Penal, há, em
diversas passagens, a referência ao cometimento de crime pela pessoa jurídica,
notadamente se essa for de direito privado. A propósito, leia-se o contido no
art. 1º da Lei 7.492/86, o art. 14 c/c o parágrafo único do art. 18 da Lei
6.938/81, todos recepcionados pela nova Carta Magna, e após a edição desta,
têm-se, agora, as disposições contidas nos arts. 1º, 2º e 4º da Lei
8.137/90, no art. 15 da Lei 8.884/94 e, de forma mais clara e ampla, o que
estabelece o art. 3º da 9.605/98 - a Lei de Crimes Ambientais -, ao prescrever
que "As pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e
penalmente, conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja
cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão
colegiado, no interesse ou benefício de sua entidade." Diz ainda, no
parágrafo único deste artigo que "A responsabilidade das pessoas jurídicas
não exclui a das pessoas físicas, autoras, co-autoras ou partícipes do mesmo
fato." E indo além, adotando a teoria contemporânea da
desconsideração da pessoa jurídica, preceitua em seu art. 4º, que essa
personalidade poderá ser desprezada, caso ela seja obstáculo ao ressarcimento
de prejuízos causados à qualidade de vida do meio-ambiente.
Diz a Lei 8.884, de
11.06.94, ao dispor sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a
ordem econômica, em seu art. 15, que ela se aplica às pessoas físicas ou
jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de
entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que
temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade
sob regime de monopólio legal.
Em resumo, a legislação
brasileira e de alguns países europeus, para certas situações, vêm incorporando
ao direito penal, em contraponto à velha teoria da culpabilidade pessoal, a
responsabilidade penal da pessoa jurídica, mesmo que agregada ao poder público,
mormente nos casos relativos aos delitos contra o meio-ambiente, às relações de
consumo, à ordem financeira e tributária, objetivando coibir a impunidade que
pode decorrer de sua complexidade organizacional.
A lei é filha do tempo e
o seu fim é o Bem Comum. E no sentir de Isidoro, em suas Etimologias,
"Não é em vista de um interesse privado, mas da comum utilidade dos
cidadãos que uma lei deve ser escrita". Hoje, num mundo globalizado,
crivado pelo materialismo consumista, pela força econômica e financeira de
grupos econômicos, as pessoas humanas vão, infelizmente, se tornando
inferiorizadas em relação às pessoas jurídicas, notadamente as de cunho
multinacional, que, por vezes, ensejam delitos complexos, acobertados na fraude
e na ânsia do lucro desmedido, sem falar nos crimes cometidos contra a
Natureza, em detrimento dos direitos elementares dos cidadãos e dos interesses
mais legítimos da sociedade.
É claro que não se vai
colocar num presídio uma pessoa jurídica, até mesmo porque segundo Savigny,
esta não passa de uma ficção criada pelo sistema legal. Contudo, não resta
dúvida que ela é um pólo em torno do qual se estabelece, hoje, a maioria das
relações jurídicas. Porém, como se sabe, ao lado da velha pena da restrição da
liberdade, o Direito Penal moderno criou outras formas de penalização, como, à
guisa de exemplificação, a multa, a dissolução, a interdição, a suspensão da
atividade, o confisco, a perda de benefícios fiscais, entre outros, plenamente
em condições reais de serem aplicadas à pessoa jurídica.
Andou bem o legislador
pátrio em atribuir responsabilidade penal à pessoa jurídica, seja privada
ou vinculada ao poder público, caso esta venha praticar condutas lesivas a
direitos de interesse maior da sociedade, onde não basta tão-somente a
responsabilização civil. Não se pode esquecer que, por vezes, muitos
indivíduos, sob o manto de uma pretendida impunidade e com suporte em teorias
carcomidas pelo tempo, aglomeram-se para cometer crimes, notadamente os que
dizem respeito às relações de consumo ou que atentam contra a ordem econômica,
financeira ou tributária. Já os delitos de natureza ambiental são mais
praticados em razão da própria atividade da entidade empresarial, que cada vez
mais carece de maior reprimenda, a fim de que todos possam viver com sadia
qualidade de vida, conforme preceitua o art. 225 da Constituição da República.
SALES, Miguel. A pessoa jurídica como autora de crimes. Disponível
em http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=902.
Acesso em 20/10/2006.