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A doutrina da desconsideração da
personalidade jurídica e alguns de seus reflexos no ordenamento jurídico
brasileiro:
Lei nº 8.078/90, Lei nº
8.884/94, Lei nº 9.605/98 e Lei nº 10.406/02
Leandro Sarai*
Resumo
A
necessidade faz com que certos instrumentos sejam criados pelo ordenamento
jurídico com a finalidade de auxiliar nas relações sociais. Em reação a essa
adequação, novos problemas podem surgir, alguns decorrentes do uso indevido dos
próprios instrumentos criados. Com isso, novamente surgirá uma busca por
equilíbrio, seguida de outro desequilíbrio, e assim sucessivamente num ciclo
dialético. Assim ocorreu com os problemas gerados pela instituição da pessoa
jurídica, que ensejaram o nascimento da doutrina de sua desconsideração. Essa
doutrina se reflete, embora de formas diferentes, em alguns pontos do
ordenamento jurídico brasileiro.
Palavras-chave:
pessoa jurídica; desconsideração da personalidade jurídica;
responsabilidade; imputação.
SUMÁRIO:
Abreviaturas - Introdução – 1. Da pessoa jurídica: 1.1 Das pessoas e sua
classificação legal; 1.2 Principais teorias sobre a pessoa jurídica: 1.2.1
teoria da ficção legal; 1.2.2 teoria da realidade objetiva; 1.2.3 teoria da
realidade técnica1; 1.2.4 teoria institucionalista; 1.2.5 a posição de hans
kelsen; 1.2.6 síntese das teorias; 1.3 fundamentos zetéticos da pessoa
jurídica; 1.4 breve nota sobre a limitação da responsabilidade do empresário individual
- 2 a desconsideração da personalidade jurídica: 2.1 noções gerais; 2.2 alcance
dos efeitos da desconsideração; 2.3 histórico; 2.4 direito comparado
norte-americano; 2.5 o ordenamento jurídico brasileiro e a desconsideração - 3
desconsideração no código de defesa do consumidor - 4 desconsideração na lei
n.º 8884/9441 - 5 desconsideração na lei n.º 9605/9843: 5.1 pessoa jurídica
criminosa? - 6 a desconsideração no código civil: 6.1 princípios fundamentais
do código civil; 6.2 definição das hipóteses: 6.2.1 abuso; 6.2.2 fraude; 6.2.3
desvio de finalidade; 6.2.4 confusão patrimonial - 7 algumas figuras paralelas
de imputação: 7.1 a solidariedade dentro do grupo econômico no direito do
trabalho; 7.2 a responsabilidade de terceiros no direito tributário; 7.3
participação recíproca na lei das sociedades por ações; 7.4 a teoria ultra
vires e a teoria da aparência no código civil; 7.5 síntese do confronto com as
figuras paralelas - 8 breves comentários sobre a desconsideração no processo –
Conclusão - Bibliografia
ABREVIATURAS
CC
Código Civil
CLT
Consolidação das Leis do Trabalho
CPC
Código de Processo Civil
CR
Constituição da República Federativa do Brasil
CTN
Código Tributário Nacional
INTRODUÇÃO
O
direito sedimenta um acordo entre os homens sobre a conduta devida para
determinados casos. Conforme vão surgindo os entraves sociais, sejam eles
conflitos ou apenas impasses, busca-se, por meio da lei, regular a situação.
Quanto
aos impasses, a pessoa jurídica representa importante avanço no campo dos
instrumentos utilizados nas relações jurídicas. Basta imaginar quantas reuniões
e assinaturas seriam necessárias para um simples negócio jurídico praticado por
uma grande multinacional. Sem a pessoa jurídica, cada membro do grupo
precisaria outorgar uma procuração.
Quanto
aos conflitos, uma das formas de se manter o funcionamento pacífico da
sociedade é garantir o equilíbrio das relações.
Um
instituto utilizado para tanto é a responsabilização, que, em cada caso,
atribui a determinado indivíduo ou grupo um dever de restabelecimento ou
compensação.
Quando
se verificou que este restabelecimento do equilíbrio não estava sendo possível
em certos casos, em razão da utilização indevida da pessoa jurídica, buscou-se
corrigir este problema.
Essa
nova necessidade ensejou diversas soluções: ora o sistema jurídico utilizou a
responsabilização solidária da pessoa jurídica com seus membros; ora, serviu-se
da subsidiariedade.
Entretanto,
estas duas formas de corrigir o mau uso da pessoa jurídica podiam levar ao
prejuízo indevido de inocentes, entre os quais poderiam estar alguns membros, e
até a própria pessoa jurídica.
Em
razão disso, surge a doutrina da desconsideração da pessoa jurídica, que
possibilita a responsabilização do verdadeiro causador do ilícito.
O
presente trabalho analisa alguns reflexos dessa doutrina no ordenamento
jurídico brasileiro.
1 DA
PESSOA JURÍDICA
1.1
DAS PESSOAS E SUA CLASSIFICAÇÃO LEGAL
THOMAS
HOBBES (2003:123) liga a idéia de pessoa ao personagem que os homens
representam na sociedade:
"A
palavra ‘pessoa’ é de origem latina. Para lhe dar significado os gregos tinham prósopon,
que significa ‘rosto’, tal como em latim persona significa o disfarce ou
a aparência exterior de um homem, imitada no palco. Por vezes, mais
particularmente aquela parte dela que disfarça o rosto, como máscara ou viseira.
Do palco a palavra foi transferida para qualquer representante da palavra ou da
ação, tanto nos tribunais como nos teatros. Uma pessoa é o mesmo que um ator,
tanto no palco como na conversação corrente. Personificar é representar, seja a
si mesmo ou a outro."
Conclusão
semelhante foi obtida por MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:141), quanto à origem
etimológica da palavra:
"a
própria palavra pessoa, quer se a considere advinda de per sonare,
querendo referir-se à voz que saia através da máscara, segundo afirmado desde
Aulo-Gélio, ou do grego prósopon, como sugerido por Keller, quer se a
admita, como se mostra mais correto, vinda do verbo latino perso, personare,
originário do etrusco ρersu, que quer dizer máscara de teatro,
gente com máscara, expressa um modo de ser do homem, o homem como
personagem no ambiente social, o homem em suas relações intersubjetivas,
portanto, não apenas o próprio homem em sua natureza. Pessoa é a veste
social do homem, na feliz expressão de Miguel Reale."
A
teoria tradicional identifica pessoa com sujeito de direito. Essa teoria é
adotada, por exemplo, por PONTES DE MIRANDA, conforme lembra FABIO KONDER
COMPARATO (1976:272).
Para
PONTES DE MIRANDA (1954:153), os sujeitos de direito são pessoas titulares de
"direito" (abrangendo aqui direitos e obrigações). As pessoas, por
outro lado, são entes aos quais a lei atribui a possibilidade de se tornar
sujeitos de direito, ou seja, figurar em uma relação ou situação jurídica, ou
ainda, nas palavras do imortal jurista (1954:155):
"Pessoa
é o titular do direito, o sujeito de direito. Personalidade é a capacidade de
ser titular de direitos, pretensões, ações e exceções e também ser sujeito
(passivo) de deveres, obrigações, ações e exceções. Capacidade de direito e
personalidade são o mesmo."
Ainda
segundo ele, tendo a pessoa direitos inatos, a possibilidade de direitos
inerente aos sujeitos de direito diz respeito aos direitos não inatos
(1954:155).
Atualmente,
é inegável que aquele conceito de pessoa deve ser revisto, uma vez que,
conquanto "pessoa" seja sempre "sujeito de direito", a
recíproca não é verdadeira.
Essa
confusão, aliás, é mencionada por MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:126), que ressalta
a existência de sujeitos de direito que não são pessoas, como, por exemplo: a
sociedade não-personificada, a sociedade irregular, o espólio, a massa falida,
o condomínio, a herança jacente, a herança vacante, o nascituro e o nondum
conceptus.
Uma
diferença entre os sujeitos de direito personalizados e os não-personalizados é
apontada por FÁBIO ULHOA COELHO (2002:10), para quem, enquanto aqueles possuem
autorização genérica para a prática de atos jurídicos, exceto os que a lei
expressamente proibir, estes somente podem realizar "os atos essenciais
para o seu funcionamento e aqueles expressamente definidos".
Deve-se
ressaltar, todavia, que as pessoas de direito público apenas podem praticar o
que a lei expressamente autorizar, conforme assinala CARLOS ARI SUNDFELD
(1996:152):
"Esse
princípio – em verdade um subprincípio do direito público, decorrência que é da
submissão do Estado à ordem jurídica – determina que ato algum do Estado
surgirá senão como comando complementar da lei."
Quanto
às demais pessoas jurídicas, também sua atuação é limitada pelos fins previstos
em seus atos constitutivos.
As
pessoas, nos termos do Livro I do Código Civil, são as naturais e as jurídicas.
Entre aquelas, está o ser humano nascido com vida, nos termos do art. 2.º.
Por
sua vez, as pessoas jurídicas podem ser: a) de direito público interno (CC,
art.41) - União, Estados, Distrito Federal, Territórios, Municípios,
Autarquias, demais entidades de caráter público criadas por lei; b) de direito
público externo (CC, art. 42): os Estados estrangeiros e todas as pessoas que
forem regidas pelo direito internacional público; e c) de direito privado (CC,
art. 44): associações, sociedades, fundações, organizações religiosas e
partidos políticos.
Embora
MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:154) mencione que "pessoas jurídicas são
entidades criadas pelo homem às quais o ordenamento jurídico atribui
personalidade jurídica", merece destaque o fato de que certas pessoas
jurídicas são criadas por outras pessoas jurídicas. O que não se nega é que
sempre haverá intervenção humana, ainda que indiretamente.
Para
FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:272) a pessoa não tem direitos ou deveres, mas é
um conjunto direitos e deveres, assim como "a árvore não tem
tronco, ramos, folhas e flores, mas é o conjunto desses elementos".
Diante
dessa exposição, pode-se concluir ser a pessoa um sujeito de direito resultante
da eficácia legal atribuída a certos fatos jurídicos (MELLO,2003:140).
1.2
PRINCIPAIS TEORIAS SOBRE A PESSOA JURÍDICA
A
pessoa jurídica é produto da vida em sociedade. Assim como a sociedade, ela
resulta das deficiências da natureza humana (RODRIGUES,1995:64).
As
principais teorias que procuraram explicar este instituto, segundo SILVIO
RODRIGUES (1995:65), foram: a) ficção legal; b) realidade objetiva; c)
realidade técnica; d) institucionalista.
1.2.1
TEORIA DA FICÇÃO LEGAL
Esta
teoria teve como principal defensor Savigny (Traité de droit romain,
trad. Guéneoux, Paris, 1845, § 85 apud RODRIGUES, 1995: 65).
Segundo
ela, ao contrário da pessoa natural que existe por criação da natureza, a
pessoa jurídica só existe em razão de determinação legal, que a considera,
ficticiamente, um ser existente.
Conforme
assinala MIGUEL REALE (1988:230), "preferiu Savigny ver no conceito de
pessoa jurídica mais um exemplo de fictio juris, existente apenas como
artifício técnico imposto pelas necessidades da vida em comum".
SÍLVIO
DE SALVO VENOSA (2003:255) menciona que essa teoria sofreu críticas em razão de
não explicar adequadamente quem teria atribuído personalidade ao Estado, uma
vez que este é quem atribui personalidade aos entes, mesmo aos seres humanos.
Além
disso, MIGUEL REALE (1988:230) menciona diversas dificuldades enfrentadas pelo
judiciário para conciliar a pessoa jurídica como simples ficção ao mesmo tempo
que não se podia responsabilizar associados pelas dívidas de uma sociedade
civil, ou estender os efeitos da falência aos sócios da Sociedade Anônima.
1.2.2
TEORIA DA REALIDADE OBJETIVA
Também
chamada de realidade orgânica (VENOSA, 2003:256), nasceu na Alemanha com Gierke
e Zitelmann em reação à teoria da ficção legal (RODRIGUES, 1995: 66).
A
linha desta corrente considera a possibilidade de a vontade pública ou privada
ser capaz de dar vida a um organismo autônomo em relação a seus componentes,
uma realidade sociológica que pode participar das relações e situações
jurídicas (RODRIGUES, 1995:66).
Leciona,
sobre ela, MIGUEL REALE (1988:230-231):
"Segundo
a teoria organicista, quando os homens se reúnem para realizar qualquer
objetivo, de natureza política, comercial, civil, estética ou religiosa,
forma-se efetivamente uma entidade nova. Constitui-se um grupo que
possui existência inconfundível com a de seus membros, tendo sido, mesmo,
observado, por adeptos dessa teoria, que também nas combinações químicas o
corpo composto apresenta qualidades que nem sempre são as dos elementos que o
formam."
Destaca
SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:256) que esse posicionamento foi adotado no Brasil
por CLÓVIS BEVILÁQUA.
1.2.3
TEORIA DA REALIDADE TÉCNICA
A
pessoa jurídica seria uma realidade e não uma ficção, mas uma realidade técnica
e não sociológica, um instrumento para satisfação de certos interesses humanos
(RODRIGUES, 1995: 66).
Segundo
MARCOS BERNARDES DE MELLO (2003:144), essa teoria foi difundida por Gény.
É
um mero expediente para resolver certos impasses surgidos das necessidades
humanas. Assim como o direito reconhece a personalidade ao ser humano
isoladamente, a personalidade deve ser atribuída de maneira autônoma aos
agrupamentos humanos cujos interesses transcendem a esfera individual (VENOSA,
2003:257).
1.2.4
TEORIA INSTITUCIONALISTA
Para
MIGUEL REALE (1988:231), esta seria a teoria que tentou se situar entre os
pólos realidade e ficção.
Formulada
por Maurice Hauriou, prega que "a instituição preexiste ao momento em que
a pessoa jurídica nasce" (RODRIGUES, 1995:66).
Cuida-se
de uma organização com fins comuns aos membros que a compõem. É o grau de
concentração e de organização que converte automaticamente a instituição em
pessoa jurídica (RODRIGUES, 1995:67).
Independentemente
de a lei reconhecer a personalidade das instituições, é fato que elas
participam da vida social com personalidade moral (VENOSA, 2003:258).
Esclarece
MIGUEL REALE (1988:231) que essa teoria parte da tradição tomista que distingue
dois tipos de unidade, a física e a finalística. Naquela, há um todo homogêneo,
cujas partes não apresentam entre si diferenças fundamentais ou relevantes.
Esta, ao contrário, estabelece-se mediante a complementação de partes
diferençadas.
Assim,
"a pessoa jurídica é uma existência, mas uma existência teleológica, ou
seja, finalística" (REALE,1988:232).
1.2.5
A POSIÇÃO DE HANS KELSEN
O
entendimento de HANS KELSEN merece destaque especial devido à sua
peculiaridade. Anota FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:276-277), a propósito:
"Se
as idéias de Kelsen não foram aceitas integralmente por ninguém, é preciso, no
entanto, reconhecer que elas exerceram, e continuam a exercer, a importante
função de uma espécie de detergente do pensamento jurídico, ajudando-o, de fato,
a purificar-se de um certo número de ilusões. Não se pode deixar de reconhecer
que, a partir de Kelsen, a teoria da pessoa jurídica jamais voltará a ser o que
era antes. A sua influência, aliás, transparece de forma nítida no pensamento
de alguns importantes juristas coevos."
Como
se viu, para a teoria da ficção legal, a pessoa jurídica é uma criação do
direito. Sendo assim, não parece correto o entendimento de SILVIO DE SALVO
VENOSA (2003:255) de que HANS KELSEN seria um ficcionista.
Com
efeito, leciona HANS KELSEN (1994:211-212):
"O
resultado da análise precedente da pessoa jurídica é que esta, tal como a
pessoa física, é uma construção da ciência jurídica. Como tal, ela é tampouco
uma realidade social como o é – conforme, apesar de tudo, por vezes se admite –
qualquer criação do Direito. [...] Porém, esta personificação e o seu
resultado, o conceito auxiliar de pessoa jurídica, são um produto da ciência
que descreve o Direito, e não um produto do Direito." (destacou-se)
FÁBIO
KONDER COMPARATO (1976:276) assinala que a posição de KELSEN quanto à pessoa
não está ligada à idéia medieval de corpo espiritual, bem como não se confunde
com a ficção de SAVIGNY. Na realidade, considera ser uma criação do intelecto,
mas não do legislador, e sim dos juristas, que interpretam,
"canhestramente, esse centro de imputação normativa como sujeito de
direitos."
Apesar
de não se considerar KELSEN como adepto da corrente da ficção legal, é evidente
que a pessoa jurídica não é mero produto da ciência do direito. É, de fato, uma
parte do objeto desta, ou seja, uma pequena parte do ordenamento.
Para
KELSEN, segundo sustenta MIGUEL REALE (1988:234), as pessoas jurídica seriam
apenas "conjuntos normativos", "centros de imputação".
A
posição de KELSEN é adotada por FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:272) em seu "Poder
de controle da sociedade anônima", que define a pessoa como
"complexo de deveres".
1.2.6
SÍNTESE DAS TEORIAS
Para
tratar da pessoa jurídica, mister que se separe o mundo dos fatos do mundo
jurídico.
No
primeiro, nossa percepção apenas constata que existe um certo tratamento dado
pela sociedade (pelos homens) aos entes personalizados, e mesmo aos
despersonalizados, como se fossem um "ser existente", em certos
aspectos.
Nessa
linha, diz-se que o prédio é da "empresa tal", ou que o indivíduo X é
empregado "daquela firma", ou que é funcionário público da
"Prefeitura de tal cidade".
Talvez
os sócios vejam de uma forma um pouco diferente sua relação com os bens da
sociedade que compõe, podendo até chamá-los de "seus". Mas, de
qualquer forma, sabem que não podem usá-los privativamente e para fins
pessoais, uma vez que constituem um "condomínio".
Mas
toda essa aparente falta de clareza, essa profunda abstrrdação, torna-se
consistente se examinada no âmbito próprio, qual seja, no mundo jurídico.
A
pessoa jurídica é um instituto, assim como o é a enfiteuse, o fideicomisso, a
propriedade, a responsabilidade etc.
Assim,
se se considera como real apenas o que é tangível, estarão corretos os
ficcionistas.
Por
outro lado, se considerada a realidade algo mais que o simples mundo
perceptível, a pessoa jurídica será considerada existente.
Mas
essa existência, enquanto está no plano teleológico para os institucionalistas
(REALE,1988:232), para os realistas, ela se situa no plano físico (REALE,
1988:231).
Em
remate, note-se os esclarecimentos de CHÄIM PERELMAN (1998:86):
"A
ficção jurídica, diferentemente da presunção irrefragável, é uma qualificação
dos fatos sempre contrária à realidade jurídica. Se esta realidade é
determinada pelo legislador, sua decisão, qualquer que seja, jamais constitui
uma ficção jurídica, mesmo que se afaste da realidade de sentido comum. Assim é
que, ao atribuir personalidade jurídica a associações, o legislador não
institui uma ficção jurídica, mesmo que a assimilação dos grupos a pessoas
físicas se afaste da realidade psicológica e moral.
Mas,
se o juiz confere a um grupo que não tem personalidade jurídica o direito de
interpor uma ação judicial, quando tal direito é reservado pela lei apenas às
pessoas jurídicas, ele recorre à ficção."
1.3
FUNDAMENTOS ZETÉTICOS DA PESSOA JURÍDICA
Do
ponto de vista dogmático, o questionamento acerca dos fundamentos da pessoa
jurídica circunscrevem-se à sua validade, e se esgota na própria norma, de modo
que o estudo fica adstrito ao ordenamento.
A
propósito, leciona TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR (2003, p.48):
"Já
falamos dessa característica da dogmática. Ela explica que os juristas, em termos
de estudo estrito do direito, procurem sempre compreendê-lo e torná-lo
aplicável dentro dos marcos da ordem vigente. Essa ordem que lhes aparece como
um dado, que eles aceitam e não negam, é o ponto de partida inelutável de
qualquer investigação. Ela constitui uma espécie de limitação, dentro da qual
eles podem explorar as diferentes combinações para a determinação operacional
de comportamentos juridicamente possíveis."
Do
ponto de vista zetético, porém, vai-se além, para perquirir a razão da
existência e os valores utilizados na lei ao criar o instituto, com o que se
inferirá um mecanismo eficaz de interpretação, orientando a aplicação do
direito.
FÁBIO
KONDER COMPARATO (1976:271), baseado em KELSEN (1994), sustenta que inicialmente
tanto o conceito de pessoa como o de direito subjetivo foram uma proposta do
jusnaturalismo para defender a ordem capitalista e a instituição da propriedade
privada contra a ação estatal.
Conclui,
enfim, ser a personalização "uma técnica jurídica utilizada para se
atingirem determinados objetivos práticos – autonomia patrimonial, limitação ou
supressão de responsabilidades individuais – não recobrindo toda a esfera da
subjetividade, em direito" (COMPARATO, 1976:290).
Na
mesma linha, ressalta FÁBIO ULHOA COELHO (1989:13) que, dentre os principais
efeitos da criação da pessoa jurídica, destaca-se sua autonomia, inclusive
patrimonial, em relação à pessoa de seus membros ou sócios.
Sendo
certo que, nos termos do art. 391 do CC, o patrimônio do devedor responde por
seus débitos, os sócios ou membros da pessoa jurídica não são atingidos pelas
dívidas desta.
Na
lição de FÁBIO ULHOA COELHO (2002:13-14), em relação às sociedades empresárias:
"na
medida em que a lei estabelece a separação entre a pessoa jurídica e os membros
que a compõem, consagrando o princípio da autonomia patrimonial, os sócios não
podem ser considerados os titulares dos direitos ou os devedores das prestações
relacionados ao exercício da atividade econômica, explorada em conjunto. Será a
própria pessoa jurídica da sociedade a titular de tais direitos e devedora
dessas obrigações."
O
objetivo do legislador com esse princípio é promover o desenvolvimento
econômico, consoante salienta FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:359): "Não se
pode esquecer que a responsabilidade limitada é fator de progresso econômico,
pois, permitindo um maior afluxo de capitais para as atividades produtivas, contribui
para uma redução relativa de custos e preços".
Nesse
sentir, a pessoa jurídica pode ser vista como uma sanção premial (JUSTEN
FILHO,1987:46-51), ou seja, considerando a intenção do Estado em promover o
investimento e conseqüente desenvolvimento da nação, utiliza-se de instrumentos
como a pessoa jurídica como atrativo para tanto.
Com
isso, presente o suporte fático consistente no grupamento de pessoas ou bens
com a finalidade de atingir certos fins queridos pelo Estado, atribui-se-lhes o
efeito da personalização.
Diante
do atual ordenamento jurídico brasileiro, para FÁBIO ULHOA COELHO (2002:15-16),
parece ser esta a principal utilidade da pessoa jurídica na visão de seus
sócios, qual seja, proteger o patrimônio destes, estimulando o investimento, e
o desenvolvimento econômico:
"A
partir da afirmação do postulado jurídico de que o patrimônio dos sócios não
responde por dívidas da sociedade, motivam-se investidores e empreendedores a
aplicar dinheiro em atividades econômicas de maior envergadura e risco."
Merece
ser salientado, contudo, que apenas certas pessoas jurídicas, e desde que
constituídas atendendo aos termos legais, podem ter a responsabilidade dos
sócios efetivamente limitada.
Mas
não se restringe ao âmbito econômico a influência desse princípio. No tocante à
Administração Pública, caso os administradores respondessem pessoalmente,
independentemente de dolo ou culpa, por eventuais prejuízos causados no mero
exercício de suas competências funcionais, dificilmente alguém se proporia a
tal mister.
O
mesmo em relação a Associações e Fundações, inclusive aquelas com fins
humanitários.
Cabe
ainda neste tópico serem tecidas algumas considerações especificamente acerca
da autonomia patrimonial.
De
acordo com a lição de FÁBIO ULHOA COELHO (2002:20-22), nota-se que, em relação
às sociedades empresárias, foi levada em consideração a natureza das obrigações
para se estabelecer a autonomia da pessoa jurídica.
Assim,
enquanto no campo das obrigações negociáveis, existentes grosso modo no direito
privado, prestigia-se a autonomia, com o objetivo salientado supra; no âmbito
das obrigações não negociáveis, mormente situadas no direito público, especialmente
os tributos, verifica-se que o ordenamento restringiu a separação entre a
pessoa jurídica e seus sócios ou membros (COELHO,2002:21).
A
fundamentação dessa diferenciação está em que, enquanto nas relações
empresariais os empresários podem calcular seus riscos e embutir em seus preços
o valor destes, o mesmo não é possível, por exemplo, nas relações entre
empregado e empregador, ou entre contribuinte e fisco.
Nessa
esteira, quanto a estas últimas, existem previsões legais responsabilizando
entes não integrantes da relação jurídica, como, por exemplo, no art. 2.º,
§2.º, da CLT, que protege o empregado, e nos artigos 134 e 135 do CTN, que
resguardam o fisco.
Porém,
mesmo nas relações negociáveis, passou-se a flexibilizar a autonomia da pessoa
jurídica em busca de novos limites, a fim de se chegar a um ponto de equilíbrio
na aplicação do direito, conforme mencionado no início deste trabalho.
Isso
se deu quando se verificou o desvirtuamento do instituto da pessoa jurídica,
mesmo no âmbito das relações privadas, e as mazelas que gerariam na sociedade
(COELHO,2002:20).
Foi
eminentemente essa situação que ensejou o nascimento da doutrina da
desconsideração da personalidade jurídica.
1.4
BREVE NOTA SOBRE A LIMITAÇÃO DA RESPONSABILIDADE DO EMPRESÁRIO INDIVIDUAL
Consoante
tópico 1.3 supra, a constatação de que certas atividades demandariam um
maior número de pessoas e recursos para serem realizadas levou à personalização
das sociedades empresárias, com a limitação da responsabilidade patrimonial
(COMPARATO,1976:359; COELHO,2002:15-16;59-60).
Com
isso, o legislador quis estimular o investimento, pois assegurava aos
investidores ou empreendedores que, caso o negócio não vingasse, só perderiam
sua contribuição para o capital da sociedade.
Vale
ressaltar que a limitação de responsabilidade não tem ligação direta com a
personalização (COELHO,2002:7), mesmo porque existem sociedades em que os
sócios respondem ilimitadamente (OLIVEIRA,1979: 261).
Nada
obstante, ao que parece, a visão que levou a essa normatização, atualmente pelo
menos, não parece estar correta.
É
cediço que muitos indivíduos, sozinhos, têm recursos suficientes para desenvolver
atividades de grande porte.
Porém,
caso queiram, logicamente irão preferir a garantia da separação patrimonial e
limitação de responsabilidade, que são mais efetivas nas sociedades por ações.
Mas normalmente são escolhidas as sociedades limitadas por questões de ordem
prática.
Nota-se,
assim, que esses sujeitos acabam sendo forçados a instituírem sociedade quando,
na verdade, não necessitariam de ninguém para tanto.
Como
conseqüência dessa distorção entre a realidade e a visão legal, muitas vezes
são presenciadas sociedades onde um dos sócios chega a possuir 99% das ações.
Questiona-se,
então: por que a limitação da responsabilidade continua condicionada à criação
de uma sociedade?
De
outro lado, se o empresário individual responde ilimitadamente pelas dívidas da
atividade, não se vê razão para a exigência de indicação do capital. Seria,
então, mais coerente exigir que apresentasse sua declaração de bens e
rendimentos.
Assim,
talvez fosse o momento de o legislador brasileiro garantir ao empresário
individual a limitação de sua responsabilidade ante a ausência de conexão
razoável entre esta e a formação de sociedade. Já existe, a propósito, exemplo
no direito comparado, conforme aponta JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA
(1979:261).
2 A
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
2.1
NOÇÕES GERAIS
RUBENS
REQUIÃO (1969:17) explica no que consiste e qual o objetivo da desconsideração
da personalidade jurídica:
"[...]
com efeito, o que se pretende com a doutrina do disregard não é a
anulação da personalidade jurídica em toda a sua extensão, mas apenas a
declaração de sua ineficácia para determinado efeito, em caso concreto, em
virtude de o uso legítimo da personalidade ter sido desviado de sua legítima
finalidade (abuso de direito) ou para prejudicar credores ou violar a lei
(fraude)."
Desconsiderar
a personalidade jurídica significa flexibilizar a autonomia desta, ou seja,
atingir a eficácia da personalização. Nas palavras de FÁBIO KONDER COMPARATO
(1976:294), é uma sanção que consiste na "suspensão dos efeitos da
separação patrimonial in casu".
MARÇAL
JUSTEN FILHO (1987:57) formula a seguinte definição:
"É
a ignorância, para casos concretos e sem retirar a validade de ato jurídico
específico, dos efeitos da personificação jurídica validamente reconhecida a
uma ou mais sociedades, a fim de evitar um resultado incompatível com a função
da pessoa jurídica."
No
direito brasileiro, segundo FÁBIO ULHOA COELHO (2002:35), há duas teorias
acerca do assunto. Uma que ele denomina "teoria maior", que admitiria
a desconsideração da personalidade jurídica para evitar o mau uso desta; e
outra, que chama "teoria menor", segundo a qual a simples
insuficiência patrimonial da pessoa jurídica para arcar com suas obrigações
autorizaria a responsabilização de seus sócios.
A
teoria maior adota como pressuposto da desconsideração a fraude e o abuso da
personalidade jurídica. Em razão da insuficiência desses pressupostos para
resolver todos os casos, bem como da dificuldade de sua prova, dada sua
subjetividade (OLIVEIRA,1979:555), FÁBIO KONDER COMPARATO defendeu um critério
objetivo (OLIVEIRA,1979:552) para autorizar a desconsideração, consistente,
principalmente, na confusão patrimonial (COELHO,2002:43).
A
confusão patrimonial é apenas um dos motivos que FÁBIO KONDER COMPARATO
(1976:295) defendeu como ensejadores da desconsideração. Para ele a desconsideração
"é sempre feita em função do poder de controle societário", tendo por
critério os pressupostos da separação patrimonial: "de tipo formal, como
por exemplo, o respeito à espécie societária; ou o pressuposto substancial da
permanência do objeto e do objetivo sociais, como escopo inconfundível com o
interesse ou a atividade individual dos sócios." (1976:297).
Porém
o pressuposto de tipo formal apontado por FÁBIO KONDER COMPARATO foi criticado,
por exemplo, por JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:553), uma vez que, a
ausência de tal pressuposto levaria à irregularidade da sociedade e, por
conseguinte, à ausência de limitação de responsabilidade, razão pela qual não
se cogitaria da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica.
Enquanto
a teoria maior é bem próxima da formulação original da doutrina da
desconsideração, a menor chega a ser uma afronta ao atual ordenamento jurídico,
pois viola o princípio da separação patrimonial onde não deveria, minando o
instituto da pessoa jurídica (COELHO,2002:46).
Isso
porque é imprescindível ater-se a dois enfoques antes de se verificar se é
cabível a desconsideração. Em primeiro lugar, considerando, em abstrato, a
finalidade da pessoa jurídica como instituto, nos moldes mencionados no tópico
1.3 (COELHO, 2002:37). Em segundo, apreciar o caso concreto tendo em vista se
determinadas condutas desviaram do cumprimento do objeto social da pessoa
jurídica sob análise.
Merece
destaque o posicionamento de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:262), para
quem a doutrina da desconsideração da personalidade jurídica nasce em reação à
crise de função da pessoa jurídica, utilizada em contradição com os princípios
informadores do ordenamento jurídico.
Essa
é a base da teoria da desconsideração: a busca de um ponto de equilíbrio onde,
ao mesmo tempo em que se proteja a autonomia patrimonial e a própria existência
da pessoa jurídica, seja assegurada a sociedade contra o uso indevido deste
instituto.
Saliente-se
que, quando se diz sociedade, este termo pode abranger até mesmo sócios ou
membros da pessoa jurídica, quando estes são prejudicados por outro ou outros
sócios ou membros da corporação, ou instituição. Até mesmo a própria pessoa
jurídica, conforme o caso concreto, é protegida com a aplicação da
desconsideração. Isso ocorre porque, ao ser desconsiderada, seu patrimônio pode
ficar intacto, sendo atingidos somente os bens de seus membros.
2.2
ALCANCE DOS EFEITOS DA DESCONSIDERAÇÃO
MARÇAL
JUSTEN FILHO (1987:64) elabora uma classificação da desconsideração da
personalidade jurídica de acordo com dois critérios. Conforme o primeiro deles,
denominado intensidade, a desconsideração pode ser (1987:61): a) máxima: quando
se ignora totalmente a eficácia da personalização, de modo que o sócio ou
membro da sociedade seja colocado na relação jurídica que seria assumida pela
pessoa jurídica ou vice-versa, como se esta não existisse; b) média: quando,
embora se considere eficaz a autonomia da pessoa jurídica, seu membro ou sócio
é colocado juntamente com ela na relação jurídica, como se fossem uma só
pessoa, ou solidariamente; e c) mínima: quando, conquanto admitida a autonomia
da pessoa jurídica, seu sócio ou membro tenha responsabilidade subsidiária
pelos atos daquela, ou vice-versa.
Por
sua vez, segundo o critério da extensão (1987:62):
"Pode-se
distingui-la [a desconsideração] conforme incida sobre um específico ato
jurídico, sobre uma série de atos e relações jurídicas entre a sociedade e uma
pessoa específica e sobre todos os atos e relações jurídicas ocorridas dentro
de um certo período de tempo."
Essas
classificações, contudo, abarcam casos em que não se cuida de desconsideração
da personalidade jurídica, quando, por exemplo, ocorre a solidariedade entre
sócios e sociedade, ou sua responsabilização subsidiária.
Da
mesma forma, a posição de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:610) não pode
merecer acolhida. Segundo ele "para que se possa falar de verdadeira
técnica desconsiderante, em termo de responsabilidade, será necessária a
presença do princípio da subsidiariedade, explicitado à luz de uma concepção
dualista da obrigação: responsabilidade subsidiária por dívida de outrem".
Se
a desconsideração é a suspensão da eficácia da personalização, então a pessoa
jurídica não pode figurar na relação obrigacional de responsabilização, pois,
caso contrário, ela estaria "sendo considerada".
Tendo
em vista que em certas ocasiões a própria pessoa jurídica pode ser beneficiada
por certos atos abusivos ou fraudulentos de seus membros, justifica-se,
conforme seu proveito decorrente do ilícito, ser responsabilizada.
No
caso da confusão patrimonial, de outro lado, se há a desconsideração, o
patrimônio da pessoa jurídica é considerado como se fosse de seu membro, razão
pela qual não se pode dizer que a pessoa jurídica esteja respondendo solidária
ou subsidiariamente.
A
desconsideração da personalidade jurídica é uma outra técnica de
responsabilização que não se confunde com a solidariedade ou com a
subsidiariedade.
Nada
obstante, não se pode esquecer que a desconsideração nem sempre ocorre para
responsabilizar um sócio ou membro de uma pessoa jurídica, mas também para
responsabilizar esta por atos de seus membros ou sócios (COMPARATO, 1976:364).
FÁBIO ULHOA COELHO (2002:44) denomina essa hipótese de desconsideração inversa,
e exemplifica com um caso em que determinado sócio transfere seu patrimônio
para a pessoa jurídica para proteger seus bens quando dissolução do vínculo
conjugal.
Por
fim, ressalte-se que, para alguns autores, a desconsideração só ocorre quando a
pessoa jurídica se coloca como obstáculo à coibição da fraude ou do abuso de
direito, enfim, do uso indevido da autonomia. Isso porque, caso haja previsão
expressa no ordenamento de imputação direta de responsabilidade por certos atos
ao membro ou sócio, torna-se dispensável a desconsideração da personalidade
jurídica (COELHO,2002:42; LOPES,2003:40; OLIVEIRA,1979:610).
A
propósito, eis as palavras de JOÃO BATISTA LOPES (2003:40), para quem "as
hipóteses legais de responsabilidade dos sócios por atos ilícitos ou contrários
ao contrato social não devem ser qualificadas como desconsideração."
De
outro lado, há uma corrente que entende configurada a aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica quando o ordenamento atribui
responsabilidade aos sócios desta ou a outras pessoas jurídicas a ela ligadas
de alguma forma (JUSTEN FILHO,1987:102 e segs.; ALMEIDA, 2003).
Há
casos ainda em que a lei simplesmente diz expressamente que a
"personalidade jurídica será desconsiderada", sem contudo estarem
preenchidos os requisitos elaborados pela doutrina da desconsideração.
Essa
polêmica será analisada no decorrer do trabalho.
2.3
HISTÓRICO
O
caso Salomon vc. Salomon & Co., julgado pela justiça inglesa em
1897, e mencionado na monografia "Il Superamento della Personalità
Giuridica delle Società di Capitali" do Prof. Piero Verrucoli, da
Universidade de Pisa, é apontado por RUBENS REQUIÃO (1995:277) como a origem da
doutrina da desconsideração da personalidade jurídica.
Contudo,
segundo FÁBIO ULHOA COELHO (1989:9), as primeiras referências ao assunto teriam
sido feitas pelo jurista norte-americano Maurice Wormser em 1912, na obra
"Piercing the veil of Corporate Entity", que, aliás, é citada
pelo Prof. Piero Verrucoli.
AMADOR
PAES DE ALMEIDA (2003:186) anota que Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, em seu
livro "A desconsideração da personalidade jurídica (disregard doctrine)
e os grupos de empresas", 2. ed. Forense: 1995, p. 64, noticia como sendo
o primeiro caso de aplicação do instituto o Bank of United States vs.
Deveaux julgado nos Estados Unidos em 1809.
Ainda
de acordo com a posição de FÁBIO ULHOA COELHO (1989:9; 2002:36), a
sistematização da teoria teria ocorrido pela primeira vez na Alemanha, na tese
de doutorado apresentada por Rolf Serik à Universidade de Tübigen em 1953.
Apontam
para RUBENS REQUIÃO como o pioneiro na defesa da teoria (COELHO, 2002:37) no
Brasil, em conferência proferida na Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Paraná (REQUIÃO,1969).
Nesta
conferência, RUBENS REQUIÃO (1969:15) defende que a personalização deve ser
vista como relativa, e não como um efeito absoluto. Por isso, caso a pessoa
jurídica fosse utilizada com abuso de direito ou fraude, seria admissível
desconsiderar a separação entre ela e seus sócios.
Para
FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:295), a explicação que funda a desconsideração da
personalidade jurídica apenas na fraude e no abuso de direito não seria
admitida em sua totalidade, pois "ela deixa de lado os casos em que a
ineficácia da separação patrimonial ocorre em benefício do controlador, sem
qualquer abuso ou fraude...".
Nada
obstante seu trabalho se restringir à questão societária, FÁBIO KONDER
COMPARATO (1976:293-294) aponta quais seriam, no seu entender, os critérios
utilizados para admitir o afastamento do efeito da personalização:
"...quando
falte um dos pressupostos formais, estabelecidos em lei; e, também, quando
desapareça a especificidade do objeto social de exploração de uma empresa
determinada, ou do objeto social de produção e distribuição de lucros – o
primeiro como meio de se atingir o segundo; - ou, ainda, quando ambos se
confundem com a atividade ou o interesse individuais de determinado sócio."
Seja
qual for o critério, para ele (1976:295) "a desconsideração é sempre feita
em função do poder de controle societário".
Enquanto
a posição do primeiro é chamada de subjetiva, a do segundo é considerada
objetiva (COELHO,1989:41; LOPES,2003:39).
Como
se verá, no item 2.4 infra, esses dois autores brasileiros, juntamente
com JOSÉ LAMARTINE CORREA DE OLIVEIRA, seriam os maiores responsáveis pela
inclusão da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica no
ordenamento brasileiro, mormente no Código Civil.
2.4
DIREITO COMPARADO NORTE-AMERICANO
Em
razão da natureza do sistema federalista dos Estados Unidos, os Estados
americanos apresentam muitas diferenças, principalmente no âmbito jurídico, de
modo que as Cortes de cada unidade têm diferentes critérios para aplicar a
desconsideração da personalidade jurídica (NEVADA & OFFSHORE BUSINESS
FORMATION, INC., 2003).
Segundo
FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:295), os pressupostos de aplicação da desconsideração
da personalidade jurídica nos Estados Unidos são perqueridos casuisticamente,
mencionando o seguinte julgado:
"in determining whether
corporate entity should be disregarded, each case should be regarded as sui
generis (Industrial Research Corporation v. General Motors, D.C. Ohio, 29 F
2d 623). [Na determinação acerca de quando a pessoa jurídica deve ser
desconsiderada, cada caso deve ser considerado como sui generis]"
(tradução livre)
Apesar
do casuísmo, o ilustre comercialista (1976:296) menciona um julgado
freqüentemente citado, que estabelece uma regra geral para a aplicação do
instituto:
"Nos
Estados Unidos, é freqüentemente citada, como critério geral de disregard of
corporate entity, a seguinte declaração do voto do Juiz Sanborn, no caso
United States v. Milwaukee Refrigerator Transit Co., julgado no princípio do
século: ‘If general rule can be laid down, in the present state of
authority, it is that a corporation will be looked upon as a legal entity as a
general rule, and until sufficient reason to the contrary appears; but when the
notion of legal entity is used to defeat public convenience, justify wrong,
protect fraud, or defend crime, the law will regard the corporation as an
association of persons’.[Se uma regra geral pode ser assentada, no presente
estado de autoridade, é que a pessoa jurídica será, em regra, respeitada como
uma entidade legal, e até que surja razão suficiente em contrário; mas quando a
noção de entidade legal é usada para prejudicar a conveniência pública,
justificar um erro, proteger fraude, ou amparar crime, a lei considerará a
corporação como uma associação de pessoas]"(tradução livre).
No
mesmo sentido, em recente artigo, GRANT M. YOAKUM (2003) anota, basicamente, as
seguintes circunstâncias que autorizam a desconsideração da personalidade
jurídica nos Estados Unidos:
"Em
geral, um sócio pode ser responsável quando: 1. O controle da corporação por um
ou mais sócios é tão completo que ela não tem uma existência distinta; 2. Este
controle é exercido para cometer fraude ou ato ilegal contra terceiros; e 3.
Terceiros sofrem ofensas ou perdas injustas como resultado do nível de controle
e do mau procedimento do sócio." [tradução livre]
O
item 1 dessa citação guarda íntima relação com o critério da confusão
patrimonial, considerado como fundamental por FÁBIO KONDER COMPARATO
(1976:362):
"E
compreende-se, facilmente, que assim seja, pois a pessoa jurídica nada mais é,
afinal, do que uma técnica de separação patrimonial. Se o controlador, que é o
maior interessado na manutenção desse princípio, descumpre-o na prática, não se
vê bem porque os juízes haveriam de respeitá-lo, transformando-o, dessarte,
numa regra puramente unilateral."
Um
outro critério utilizado para desconsiderar a personalidade jurídica nos
julgados norte-americanos, lembrado por FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:362) é a
inadequada capitalização. Como exemplo de aplicação desse critério, ele cita a
decisão proferida no caso Arnold v. Phillips (117 F. 2d 497 (5th
Circ. 1941), cert. denied 313 U.S. 583, 61 S. Ct. 1102, 85 L.E. 1539 (1941)).
No
referido caso, o Sr. Arnold constituiu uma companhia com um capital autorizado
de determinada quantia. Ocorre que ele subscreveu apenas pequena parte das
ações, embora, de fato, tenha assumido o controle societário, uma vez que a
companhia só contava com mais dois sócios, que subscreveram uma ação cada um. O
aludido acionista majoritário emprestou dinheiro à companhia e recebeu uma
garantia real em troca. Após uma crise econômica, quando o mencionado acionista
já havia lucrado muito com juros de seu empréstimo e honorários por ser diretor
da companhia, ele a executou, e ela, em seguida, veio a falir. Nesse caso, o
tribunal julgou ineficaz essa execução, colocando o Sr. Arnold no quadro geral
de credores, ao lado dos demais quirografários. (COMPARATO,1976:363-364).
Atualmente,
um dos Estados americanos que proporciona maiores atrativos para as empresas é
o de Nevada, seja pela baixa carga tributária, seja em decorrência de outros
benefícios econômicos. Nessa linha de cultura, conforme informações de NEVADA
& OFFSHORE BUSINESS FORMATION, INC. (2003), a Corte daquele Estado é a mais
rigorosa de todas, permitindo a desconsideração da personalidade jurídica em
casos estritos, desde que preenchidos os seguintes requisitos, cumulativamente,
os quais devem ser provados pelo requerente:
"1.
A corporação deve ser influenciada e governada pela pessoa criada para ser o alter
ego [outro eu]; [...] 2. Deve existir uma tal unidade de interesses e
propriedades de modo que um seja inseparável do outro; e 3. Os fatos, se
atribuídos apenas à corporação como uma entidade autônoma, sob as
circunstâncias concretas, aprovariam a fraude e promoveriam a injustiça. Se
qualquer um desses três itens não estiver adequadamente provado, a
desconsideração não será deferida." (tradução livre)
Já
no Estado da Califórnia, consoante assinala MARY HANSON (1997), casos datados
do início de 1900 têm exigido de forma persistente dois requisitos antes de
responsabilizar os sócios: a) deve haver uma unidade de interesses e
propriedades entre a corporação e os sócios de modo que as personalidades ou
identidades não possam ser distinguidas; e b) o resultado de se considerar os
atos como sendo apenas da corporação deve ser injusto.
Como
se vê, a linha adotada nos Estados Unidos, de modo geral, não se afasta daquela
que inspirou o atual Código Civil, conforme se verá abaixo. Aliás, o Código
Civil é mais coerente do que as demais disposições do ordenamento brasileiro
que autorizam a desconsideração sem que a pessoa jurídica tenha sido utilizada
como instrumento de abuso ou fraude.
2.5
O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E A DESCONSIDERAÇÃO
RUBENS
REQUIÃO (1969:21), quando defendeu a aplicação da doutrina em nosso país,
esclareceu, na época, não haver no ordenamento jurídico brasileiro nenhum
dispositivo que a autorizasse, apesar de existirem diversos artigos que
poderiam ter o mesmo objetivo da desconsideração da personalidade jurídica.
Citou, a propósito, o grupo econômico mencionado na CLT, bem como os artigos
121, 122 e 167 do Decreto-lei n.º 2627/40, que dispõem respectivamente sobre
responsabilidade dos diretores por descumprimento da lei ou dos estatutos e
acerca da dissolução da sociedade quando exercer atividade ilícita.
Nessa
linha, assinala FÁBIO ULHOA COELHO (2002:49) que a doutrina da desconsideração
foi inserida no ordenamento jurídico brasileiro com o Código de Defesa do
Consumidor, que dispõe em seu art. 28, verbis:
"Art.
28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando,
em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração
da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A
desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de
insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má
administração.
[...]
§
5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua
personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores."
Ainda
de acordo com o referido autor (COELHO,2002:52), o segundo dispositivo legal a
adotar a teoria, embora sem obedecer sua formulação original, foi o art. 18 da
Lei n.º 8.884/94, cujo teor segue abaixo:
"Art.
18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica
poderá ser desconsiderada quando houver da parte deste abuso de direito,
excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos
estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando
houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa
jurídica provocados por má administração."
A
terceira menção à possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica
foi feita pelo art. 4.º da Lei 9605/98 (COELHO,2002:53), com a seguinte redação:
"Art.
4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for
obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio
ambiente."
Por
fim, chega-se ao Código Civil, Lei n.º 10406/02, que apresentou a seguinte
disposição em seu art. 50, verbis:
"Art.
50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento
da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que
os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos
bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."
Esse
dispositivo introduziu no ordenamento uma posição mais próxima da doutrina
melhor elaborada do instituto da desconsideração (COELHO, 2002:54).
Nota-se
no art. 50 do Código Civil as posições de RUBENS REQUIÃO e de FÁBIO KONDER
COMPARATO acerca da teoria da desconsideração da personalidade jurídica. De
fato, além das contribuições desses dois doutrinadores, a de JOSÉ LAMARTINE
CORRÊA DE OLIVEIRA também foi lembrada no parecer final n.º 749 de 1997
(FREITAS, 2002:265).
Apesar
de algumas críticas que possam surgir contra o art. 50, o fato é que, para
RUBENS REQUIÃO (1995:278), é dispensável a previsão legal para a aplicação da
desconsideração. No mesmo sentido, FÁBIO ULHOA COELHO (2002:54) afirma que a
aplicação da desconsideração independe de previsão legal, e a melhor interpretação
dos dispositivos legais acima:
"é
a que prestigia a contribuição doutrinária, respeita o instituto da pessoa
jurídica, reconhece a sua importância para o desenvolvimento das atividades
econômicas e apenas admite a superação do princípio da autonomia patrimonial
quando necessário à repressão de fraudes e à coibição do mau uso da forma da
pessoa jurídica."
O
entendimento exposto supra, acerca da ordem cronológica dos primeiros
dispositivos legais que consagraram a teoria da desconsideração no ordenamento
jurídico brasileiro, não é unânime.
AMADOR
PAES DE ALMEIDA (2003:186) opõe-se a ele, defendendo que a CLT teria sido o
primeiro diploma legal a prever o instituto no art. 2.º, § 2.º.
Esse
dispositivo também é citado por outros autores como sendo um exemplo de
aplicação da desconsideração da personalidade jurídica (JUSTEN FILHO,1987:102;
FREITAS, 2002:274).
Todavia,
a simples atribuição de responsabilidade solidária não pode ser considerada uma
hipótese de aplicação da doutrina da desconsideração, muito embora possa, às
vezes, ter objetivos análogos (REQUIÃO, 1969:21).
3
DESCONSIDERAÇÃO NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR
No
Código de Defesa do Consumidor, Lei 8078/90, a desconsideração aparece do art.
28, nos seguintes termos:
"Art.
28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando,
em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder,
infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato
social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado
de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por
má administração.
§
1.º (vetado)
§
2.º As sociedades integrantes dos grupos societários e as sociedades
controladas, são subsidiariamente responsáveis pelas obrigações decorrentes
deste Código.
§
3.º As sociedades consorciadas são solidariamente responsáveis pelas obrigações
decorrentes deste Código.
§
4.º As sociedades coligadas só respondem por culpa.
§
5.º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua
personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos
causados aos consumidores."
Essas
disposições são criticadas por conterem no caput casos de imputação
direta, que não se confundem com desconsideração da personalidade jurídica, bem
como por exigir no § 5º apenas a existência de prejuízos ao consumidor não
indenizados pela pessoa jurídica, indo de encontro ao princípio da autonomia
patrimonial (COELHO, 2002:52).
Além
disso, também apresentam hipóteses que podem se encaixar na teoria dos atos ultra
vires (vide tópico 7.4)
MOTAURI
CIOCCHETTI DE SOUZA (2000:226), a propósito, aponta que o dispositivo do §5.º
deve ser interpretado juntamente com o caput do art. 28, de modo que só
será autorizada a desconsideração se presentes os requisitos deste. No mesmo
sentido, ELIZABETH CRISTINA CAMPOS MARTINS DE FREITAS (2002:207).
Merece
destaque a menção feita por estes dois autores a um comentário de ZELMO DENARI,
em sua obra Código brasileiro de defesa do consumidor comentado pelos
autores do anteprojeto – Rio de Janeiro: Forense universitária, 1994,
p.159-, no sentido de que o veto do §1.º deveria ter sido direcionado ao §5.º.
Apenas
a primeira parte do caput do art. 28 se aproxima da formulação original
da doutrina da desconsideração, tendo em vista a utilização abusiva da pessoa
jurídica. Porém, acresce o elemento "em detrimento do consumidor"
como requisito para tanto (FREITAS, 2002:172).
Quanto
ao conceito de má administração, deve-se buscar no próprio ordenamento um delineamento
adequado.
Inicialmente,
dentro das normas gerais que cuidam da pessoa jurídica, está o CC, que, em seu
art. 1011, prevê o que se pode chamar de boa administração: "O
administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado
e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração
de seus próprios negócios."
De
outro lado, o art. 1016 do CC esclarece que os administradores respondem
perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de
suas funções. Também no mesmo sentido a disposição do art. 158 da Lei 6404/76:
"Art.
158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que
contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde,
porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:
I
– dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;
II
– com violação da lei ou do estatuto;"
Diante
dessas disposições, constata-se que, ao mesmo tempo em que a lei estabelece que
o administrador não é pessoalmente responsável "pelas obrigações que
contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão"
quando "tiver, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que
todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios
negócios", determina que será responsabilizado quando houver exercício
irregular da administração, improbidade, culpa ou dolo, infração da lei ou do
estatuto.
Basta,
assim, aplicar o argumento a contrario (PERELMAN,2000:11) às situações
em se seria injustificável estarem enquadradas como boa administração.
ELIZABETH
CRISTINA CAMPOS MARTINS DE FREITAS (2002:172) aponta a aparência de tratamento
desigual entre empresas bem administradas e mal administradas, pois somente no
caso destas seria permitida a desconsideração no caso de encerramento.
Ocorre
que, se não houve a má administração, se não houve abuso ou outro pressuposto
para a desconsideração, não há porque se cogitar de sua aplicação.
Por
fim, em relação aos parágrafos 2.º, 3.º e 4.º, não tratam da desconsideração da
personalidade jurídica, mas simplesmente de responsabilidade em sentido lato
(FREITAS, 2002:204).
4
DESCONSIDERAÇÃO NA LEI N.º 8884/94
A
Lei 8884/94 prevê em seu art. 18:
"Art.
18. A personalidade jurídica do responsável por infração da ordem econômica
poderá ser desconsiderada quando houver por parte deste abuso de direito,
excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos
estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando
houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica
provocados por má administração."
A
CR determinou em seu art. 173, § 5.º, que tanto pessoa jurídica, quanto seus
membros, devem ser responsabilizados por atos praticados contra a ordem
econômica e financeira e contra a economia popular.
A
primeira parte do art. 18 é um tanto quanto confusa. Quando diz que a
personalidade do infrator pode ser desconsiderada, parece estar fazendo menção
à pessoa jurídica. Porém, logo a seguir, refere-se a um abuso praticado por
esta. Ora, o abuso é praticado pelo membro da pessoa jurídica, e não por ela,
pois, se assim fosse, não haveria porque desconsiderá-la.
Ante
o absurdo que essa interpretação acarretaria, infere-se que "abuso de
direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos
estatutos ou contrato social" devem ser praticados pelos membros da pessoa
jurídica (PERELMAN,2000:11).
Salienta
FÁBIO ULHOA COELHO (2002:53) que, como o legislador reproduziu nesse
dispositivo o teor do art. 28 do Código de Defesa do Consumidor, merecem as
mesmas críticas, no sentido de incluir casos que não se confundem com a
doutrina da desconsideração, como no encerramento da empresa por má
administração.
No
que tange à má administração, já foi tratado quando da análise do art. 28 do
Código de Defesa do Consumidor, no tópico 3 supra.
5
DESCONSIDERAÇÃO NA LEI N.º 9605/98
Dispõe
o art. 4.º da Lei 9605/98, verbis:
"Art.
4.º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade
for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio
ambiente."
Esse
dispositivo cogita, obviamente, da hipótese em que é a pessoa jurídica que está
sendo responsabilizada por prejuízos causados ao meio ambiente, e não seus
sócios ou membros.
Isso
porque, se estes já estiverem sendo obrigados a ressarcir os danos, não haveria
falar em pessoa jurídica como obstáculo.
Salvo
se referidos membros houverem transferido seus bens à pessoa jurídica, de modo
a resguardá-los de eventual execução. Todavia, se essa transferência torná-los
insolventes, ensejará a aplicação do instituto da fraude contra credores, ou da
fraude à execução, dispensando-se a desconsideração.
Acresça-se,
contudo, que, se apesar da transferência, os membros continuarem a se utilizar
dos bens como se seus fossem, estará configurada a confusão patrimonial, máxime
se o aludido patrimônio não tiver qualquer serventia à finalidade da pessoa
jurídica. Desta maneira, ainda que não configurada fraude à execução ou a
credores, a personalidade poderá ser desconsiderada.
Entretanto,
se se atentar para a redação do art. 4.º, verificar-se-á que, conquanto seja
permitida a desconsideração da personalidade jurídica, essa permissão não se
sujeita ao preenchimento dos pressupostos da doutrina original.
Assinala
MOTAURI CIOCCHETTI DE SOUZA (2000:49) que bastará a pessoa jurídica representar
um obstáculo ao ressarcimento, ou seja, havendo um dano e esgotado seu
patrimônio, se não for possível alcançar os bens dos sócios em razão da
limitação legal de responsabilidade, ou da aplicação do princípio da autonomia
do ente jurídico, será possível a desconsideração.
De
outro lado, para FÁBIO ULHOA COELHO (2002:53), se a pessoa jurídica não tiver
bens para arcar com o ressarcimento de prejuízos ao meio ambiente, este fato,
isoladamente, não pode ser considerado um obstáculo a autorizar a
desconsideração. O referido autor entende que a interpretação deve ser feita de
acordo com a formulação teórica acerca do instituto da desconsideração, ou
seja, é indispensável perscrutar a utilização indevida da personalidade
jurídica, seu desvirtuamento.
A
primeira posição se mostra mais compatível com os princípios do direito
ambiental e com a teoria do risco. A segunda, afina-se com princípios
econômicos, pois consegue visualizar que, ao impor tal responsabilização, além
de o custo desta ser repassado para a produção, poderá afastar os
investimentos.
Deve-se
localizar um ponto de equilíbrio, onde convivam desenvolvimento e proteção ao
meio ambiente, ou seja, o desenvolvimento sustentável.
Um
sócio que, sabendo do risco de uma determinada atividade, vote contra sua
execução, poderá ser responsabilizado? Por um lado se argumentará que sua
vontade não deu causa a eventuais danos. Por outro, poderá ser levantado que,
nada obstante ser contrário a tal atividade, deixou seu capital disponível para
a empresa utilizá-lo e, caso houvesse lucro, ele receberia parte deste. Além
disso, tendo em vista que não há limite para o lucro próprio e para o prejuízo
ambiental, sua limitação de responsabilidade atrelada à participação societária
se mostra como um privilégio um tanto quanto sem razoabilidade.
Enfim,
sem embargo dessa reflexão, o fato é que a posição de MOTAURI CIOCCHETTI DE
SOUZA deva ser acatada, pois, do contrário, estar-se-ia negando vigência ao
disposto no art. 4.º. Além disso, se cada magistrado acabar por aplicar, no
caso concreto, o que achar mais justo, ora desconsiderando a personalidade, ora
não, isso implicará ofensa à isonomia, bem como insegurança jurídica.
5.1
PESSOA JURÍDICA CRIMINOSA?
O
art. 2º imputa responsabilidade, na medida da respectiva
culpabilidade, aos diretores, administradores, membros de conselho e de órgão
técnico, auditores, gerentes, prepostos ou mandatários que, "sabendo da
conduta criminosa de outrem, deixar de impedir a sua prática, quando podia agir
para evitá-la".
Esse
artigo só diz respeito a crimes, e não aos demais atos ilícitos. Na mesma linha
adotada pelo Código Penal, a omissão só tem relevo jurídico quando presentes
cumulativamente dever jurídico e possibilidade de agir.
Questiona-se,
todavia, acerca da responsabilidade penal da pessoa jurídica. Num trabalho em
que se investiga quais atos podem ou não ser atribuídos às pessoas jurídicas,
bem como a seus membros, essa questão não poderia deixar de ser mencionada.
O
§3.º do art. 225 da CR dispõe que "as condutas e atividades consideradas
lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou
jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação
de reparar os danos causados".
Alguns
autores negam a possibilidade de responsabilização penal das pessoas jurídicas
(JESUS, 1995:150; DELMANTO et alli, 1998:57-8).
O
argumento fundamental nessa corrente doutrinária é a ausência do elemento
psicológico na pessoa jurídica, que, por conseguinte, não permitiria
atribuir-lhe culpabilidade (DELMANTO et alli,1998:57).
Para
DAMÁSIO E. DE JESUS, só o homem pode cometer crime, pois "só ele possui a
faculdade de querer". Não seria possível admitir que a pessoa jurídica
possuísse consciência e vontade. Por isso, a interpretação do art. 225, § 3.º,
e do art. 173, §5.º, da CR, para referido autor, é no sentido de que as sanções
penais dizem respeito somente às pessoas físicas, ao passo que as
administrativas, às jurídicas (JESUS, 1995:150), ante a impossibilidade de
aplicação da pena restritiva de liberdade a estas (DELMANTO et alli,1998:57).
Este
último argumento, porém, é fraco. Obviamente que somente as sanções penais
compatíveis com a pessoa jurídica é que serão aplicáveis a ela. Aliás, o § 5.º
do art. 173 da CR é mais claro quanto a isso, ao prever que "a lei, sem
prejuízo da responsabilidade individual dos dirigentes da pessoa jurídica,
estabelecerá a responsabilidade desta, sujeitando-a às punições compatíveis
com sua natureza, nos atos praticados contra a ordem econômica e financeira
e contra a economia popular".(grifou-se)
A
propósito, para FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO (1991:137), é possível a
responsabilização penal da pessoa jurídica, desde que haja tipo penal que a
admita como sujeito ativo, e a pena cominada lhe seja compatível com sua
natureza.
A
polêmica maior, como se vê, decorre da posição filosófica penalista de que o
direito penal tem em mira a subjetividade dos agentes.
O
legislador, quando comina uma pena, espera, sinceramente, que esta não tenha
que ser aplicada, e que seu efeito de ameaça seja suficiente para impedir a
ocorrência dos delitos. O mesmo se pode dizer de toda sociedade. Daí, o caráter
preventivo do Direito Penal (TOLEDO,1991:3).
Porém,
somente os seres humanos, que compreendem o significado das leis e de seus
efeitos, é que podem corresponder ou não à expectativa do legislador, assim
como, somente eles podem, na prática, realizar os fatos típicos – ainda que não
venham a figurar na relação jurídica em nome próprio.
Apenas
o homem tem possibilidade de ter vontade, compreensão e discernimento da
realidade perceptível, e capacidade de se comportar de acordo com essa
percepção.
Com
isso, fica evidente não ser lógico que um preceito legal que imponha uma sanção
penal seja compreendido por uma pessoa jurídica.
Só
é cabível juridicamente a imputabilidade penal da pessoa jurídica se for
desconsiderado o elemento subjetivo do crime, ou seja, se ela for
responsabilizada objetivamente; ou se, por meio da teoria organicista, for
atribuída a ela a vontade de seus agentes.
Deve
ficar claro, porém, que os limites até onde se pode considerar a pessoa jurídica
como um ente existente e autônomo devem ser estabelecidos com razoabilidade.
Se
a autonomia da pessoa jurídica em relação a seus membros fosse absoluta, e se a
prática dos atos de seus órgãos fosse sempre atribuída a ela, a eficácia da norma
penal seria proporcional ao interesse dos sócios em relação ao patrimônio
social.
Isso
porque, na prática, somente este e a própria atividade da pessoa jurídica
seriam atingidos -com a pena de multa ou perda de bens, e a limitação de
exercício-, e não a liberdade ou o patrimônio pessoal dos sócios.
Diante
dessa constatação, as sanções penais previstas na Lei n.º 9605/98 procuraram
abarcar tanto a pessoa jurídica quanto os membros desta diretamente. Note-se,
outrossim, que só se falou em culpa destes últimos, e não da pessoa jurídica.
Além
disso, ela apenas responderá por crime quando tiver obtido algum benefício com
a infração, ou se esta for perpetrada em seu interesse, conforme art. 3.º da
Lei n.º 9605/98.
É
o mesmo que ocorre quando um indivíduo coage um terceiro a cometer um delito.
Quem realiza os elementos do fato típico é o coagido, mas quem responde é o
coator, nos termos do art. 22 do Código Penal.
De
qualquer forma, à pessoa jurídica deverá ser assegurado o devido processo
legal, mesmo porque, para que seja condenada, é essencial que ela figure como
réu na ação penal.
Vale
lembrar que, mesmo em relação às pessoas físicas, conquanto a pena não possa
passar da pessoa do condenado, essa regra admite, como exceção, que a obrigação
de reparar o dano e a decretação do perdimento de bens sejam estendidas aos
seus sucessores, a teor do disposto no inciso XLV do art. 5.º da CR.
"Art.
5.º [...]
XLV
- nenhuma pena passará da pessoa do condenado, podendo a obrigação de reparar o
dano e a decretação do perdimento de bens ser, nos termos da lei, estendidas
aos sucessores e contra eles executadas, até o limite do valor do patrimônio
transferido;"
Seja
como for, em termos práticos, é irrelevante o questionamento acerca de quem
deve figurar como praticante da conduta, mesmo porque isso não soluciona o
problema.
O
que importa, e é isso que a lei buscou fazer, é atribuir a responsabilidade.
Não é demais reiterar que somente com prévia determinação legal alguém pode ser
obrigado a fazer alguma coisa – art.5.º, II, CR.
Lembrando
que é a própria lei que atribui autonomia à pessoa jurídica, ela também pode
relativizar essa separação, por mais criticável que isso possa ser no plano
prático.
Quanto
à ontologia das penalidades, mormente as de caráter pecuniário, para se aferir
se seriam penais ou administrativas, e as diferenças práticas, jurídicas ou
fáticas, alongariam demais o presente trabalho, e se distanciariam do tema.
6 A
DESCONSIDERAÇÃO NO CÓDIGO CIVIL
6.1
PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DO CÓDIGO CIVIL
Diante
do que foi aduzido até aqui, nota-se que há perfeita consonância entre a
doutrina da desconsideração da personalidade jurídica e os princípios que
sustentam a Lei n.º 10.406/02, o Código Civil.
MIGUEL
REALE (2002), quanto às diretrizes adotadas para a elaboração do então
anteprojeto do atual Código Civil, apontou a necessidade de modificação geral
do Código Civil de 1916 "no que se refere a certos valores considerados
essenciais, tais como o de eticidade, de socialidade e de operabilidade".
O
primeiro princípio permite que se recorra "a critérios
ético-jurídicos" permitindo "chegar-se à ‘concreção jurídica’,
conferindo-se maior poder ao juiz para encontrar-se a solução mais justa ou
equitativa" e também "resolver, onde e quando previsto, de
conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou
inajustável à especificidade do caso concreto" (REALE, 2000).
A
eticidade para MIGUEL REALE (2000) está baseada "no valor da pessoa humana
como fonte de todos os valores".
Nota-se
que, tornando o ordenamento um instrumento mais maleável, permite-se uma
aproximação maior do ideal de justiça social.
Pode-se
suscitar, de outro lado, que um sistema aberto ensejará injustiças, uma vez
que, diante de situações idênticas poderão surgir decisões divergentes, máxime
quando proferidas por juízes diversos.
Contudo,
no sistema fechado que vinha vigendo até então esse mesmo problema já ocorria.
Nessa linha, mostra-se válida, ainda que a título de tentativa, a alteração do
CC. Aliás, caso não seja adequado, poderá novamente ser alterado, sempre
buscando evoluir e, por conseguinte, melhorar, mesmo porque, para acompanhar a
evolução social, ordenamentos rígidos se mostram lacunosos.
Voltando
aos princípios adotados no novo CC, ressalta o jusfilósofo (2000) que, apesar
de o socialismo não ter conseguido vencer, a "socialidade" teria
conseguido, fazendo prevalecer valores coletivos sobre os individuais. Trata-se
de um ideal que vem em reação ao individualismo que inspirou o CC de 1916.
Por
fim, a operabilidade foi buscada com base na lição de JHERING de que o direito
deve existir para ser aplicado, e não para confundir e impedir sua execução,
conforme esclarece MIGUEL REALE (2000), citando o seguinte exemplo:
"Quem é que, no Direito Civil brasileiro ou estrangeiro, até hoje, soube fazer uma distinção nítida e fora de dúvida, entre prescrição e decadência? Há as teorias mais cerebrinas e bizantinas para se distinguir uma coisa de outra. Devido a esse contraste de idéias, assisti, uma vez, perplexo, num mesmo mês, a um Tribunal de São Paulo negar uma apelação interposta por mim e outros advogados, porque entendia que o nosso direito estava extinto por força de decadência; e, poucas semanas depois, ganhávamos, numa outra Câmara, por entender-se que o prazo era de prescrição, que havia sido interrompido! Por isso, o homem comum olha o Tribunal e fica perplexo. Ora, quisemos pôr um termo a essa perplexidade, de maneira prática, porque o simples é o sinal da verdade, e não o bizantino e o complicado."
Uma
simples análise do Código Civil leva à constatação da influência desses
princípios também no âmbito das pessoas jurídicas. Iniciando-se pelo art. 422
do referido diploma legal, tem-se que:
"Art.
422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,
como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé."
Como
é cediço, as sociedades, em regra, são constituídas por contrato. Em uma
análise mais ampla, é inquestionável que toda e qualquer pessoa jurídica é
instituída por ato de vontade. Daí o art. 113 do Código Civil ampliando ainda
mais a aplicação da boa-fé nos institutos de que trata:
"Art.
113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos
do lugar de sua celebração."
Conclui-se,
destarte, que a eticidade estará presente sempre que for analisada a utilização
da pessoa jurídica. A operabilidade garantirá flexibilidade ao aplicador da lei
para a realização de tal análise. E a socialidade fundamentará a proteção da
sociedade contra a defesa de interesses particulares egoísticos e escusos.
Sendo
certo que é nesse sentido que caminha o ideal perseguido pela legislação civil,
as condutas contrárias à esperada justificam a sanção contida no art. 50 do
Código Civil:
"Art.
50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de
finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento
da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que
os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos
bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica."
A
propósito, SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:303) ressalta que a
"despersonalização é aplicação de princípio de eqüidade trazida
modernamente pela lei."
Vale
ressaltar que o fato de o dispositivo em questão mencionar que o juiz
"poderá" atribuir efeitos de certas relações a bens dos sócios
retrata bem a operalidade, pois deixa uma margem flexível para uma decisão
justa conforme o caso apresentado.
6.2
DEFINIÇÃO DAS HIPÓTESES
Quando
se analisou o histórico da doutrina da desconsideração da personalidade
jurídica no tópico 2.2, verificou-se que, no Brasil, havia duas correntes
sustentando sua aplicabilidade: a subjetiva, fundada no abuso de direito e na
fraude; e a objetiva, fundada na irregularidade formal e confusão patrimonial.
Apesar
dessa separação (teoria subjetiva e objetiva), o Código Civil enquadrou a
confusão patrimonial e o desvio de finalidade como espécies de abuso, conforme
se depreende da leitura do art. 50.
Como
forma de deixar mais clara a análise do dispositivo, as hipóteses legais serão
analisadas separadamente.
6.2.1
ABUSO
No
Código Civil, o abuso se apresenta no art. 187 como um ato ilícito consistente
no exercício de um direito, por seu titular, que "excede manifestamente os
limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons
costumes".
MARÇAL
JUSTEN FILHO (1987:129-130) assinala que a abusividade não é uma questão
estrutural, mas funcional, de modo que sua caracterização não estaria na constituição
da pessoa jurídica, mas na sua utilização.
Assere
ELIZABETH CRISTINA CAMPOS MARTINS DE FREITAS (2002:220) que "o abuso de
direito deve ser analisado à luz da teoria segundo a qual o Direito possui uma
função social ativa que objetiva atingir os fins do Estado, que, antes de tudo,
referem-se ao bem-estar da coletividade". E acresce, a seguir:
"De
qualquer forma, o posicionamento pátrio dominante é no intuito de que o abuso
de direito reflete prática que foge à normalidade, à regularidade com a
intenção de causar prejuízo a outrem. Diante de tais metas, além da função
social do Direito e de seu próprio conceito (que, de privatístico, hoje tenta
harmonizar o privado com o público), não haveria como não ‘revisitar’ o
conceito de pessoa jurídica. Devem-se diferenciar o livre-arbítrio e os poderes
que o Estado se atribui, mediante a instituição de um ordenamento
jurídico."
Anota
SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:602) que o problema maior na aferição do abuso é
que sua noção seria supra legal.
Embora
o eminente doutrinador assim entenda, talvez essa flexibilidade adotada por
influência dos princípios sociais do Código, determinando a conduta ética e
protegendo a sociedade contra comportamentos egoísticos contrários ao bem-estar
social, seja mais adequada do que o rigorismo de um sistema de tipicidade
fechada.
Isso
porque, apesar da alegada segurança que este sistema propiciava, ele deixava
sem solução diversas hipóteses não previstas, conforme já assinalado no tópico
6.1 supra.
6.2.2
FRAUDE
A
fraude, segundo SÍLVIO DE SALVO VENOSA (2003:489) "é todo artifício
malicioso que uma pessoa emprega com intenção de transgredir o Direito ou
prejudicar interesses de terceiros".
Uma
única ressalva quanto a esse entendimento é a intenção de prejudicar terceiros
ou violar o Direito.
O
que normalmente ocorre é a busca da satisfação dos próprios interesses. Mesmo
quando se tenha em mira um prejuízo a terceiro, isso é feito para um deleite
próprio.
Da
mesma forma, a violação do Direito é apenas meio, e não o fim em si.
Tendo
em vista que o Direito coíbe de certa forma a má conduta, a má-fé, o fraudador
busca uma forma de seu objetivo ser alcançado com aparência de não violação da
lei.
Aliás,
fraude, em sua origem latina, fraudatio, é a "ação de enganar,
má-fé". O fraudator, é o "embusteiro, trapaceiro,
velhaco" (TORRINHA, 1982, p.347).
A
fraude é um instrumento que o indivíduo utiliza para a satisfação de um
interesse. Esse instrumento consiste na tentativa de enganar, de fazer passar
por lícita ou legítima uma atividade ilícita ou ilegítima, com o objetivo de
não ser impedido de alcançar seu interesse, ou ser mantido numa situação de
satisfação.
A
fraude à lei é uma espécie de fraude em que se tenta fazer parecer legal o que
é ilegal. É a fraude utilizada no campo jurídico.
Note-se
que, nessa linha de raciocínio, a simulação é uma espécie de fraude à lei.
6.2.3
DESVIO DE FINALIDADE
O
desvio de finalidade pode ser analisado sob dois prismas, conforme assinalado
no tópico 2.1 supra.
No
primeiro deles, confronta-se com os fundamentos do instituto da personalização,
para que se constate se é ou não útil, no caso concreto, a separação
patrimonial. O desvio de finalidade sob esse ponto de vista se confunde com o
abuso acima tratado, nos tópicos 6.2.1 e 2.1.
No
segundo, toma-se o objeto social da pessoa jurídica para que se analise se ele
está ou não sendo atendido, consoante análise de FABIO KONDER COMPARATO
(1976:292), para quem "essa importância fundamental do objeto social,
enquanto causa do negócio, que constitui a chave de interpretação da problemática
societária, de modo geral".
6.2.4
CONFUSÃO PATRIMONIAL
Se
há confusão patrimonial, a situação é tratada como se houvesse um único
patrimônio.
Note-se,
contudo, que, não se sabendo onde começa e onde termina determinado patrimônio,
mesmo aplicando a desconsideração da personalidade jurídica, pode ocorrer que o
patrimônio de um dos envolvidos nem venha a ser comprometido.
Ora,
se não se sabe de quem é o patrimônio, não se pode dizer que é o patrimônio do
sócio que foi atingido ou se é o patrimônio da pessoa jurídica.
Assim,
a desconsideração vai ficar no nível do tratamento, e não no da aplicabilidade
prática.
Nada
obstante, segundo FÁBIO KONDER COMPARATO (1976:362), se o próprio sócio, que é
beneficiário da separação patrimonial e correspondente limitação de
responsabilidade, não trata o patrimônio social como se fosse alheio, não se
justifica manter a autonomia nas relações com terceiros.
7
ALGUMAS FIGURAS PARALELAS NO TRATAMENTO DA PESSOA JURÍDICA
Conforme
explicitado no tópico 2.1 supra, em algumas hipóteses o ordenamento
jurídico atribui responsabilidade ao membro ou sócio de modo a proteger os
interesses de terceiros, independentemente de a pessoa jurídica ter sido
utilizada de maneira abusiva.
Embora
se possa dizer que nesses casos se está de certa forma
"desconsiderando" o fato de os sócios não terem participado da
relação jurídica original, é certo que isso não necessariamente implicará
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica propriamente
dita.
Para
esclarecer essas assertivas, serão analisados abaixo apenas alguns casos
previstos no ordenamento para apontar as divergências em relação à doutrina
desconsideração da personalidade jurídica.
Como
o art. 50 do CC é a disposição que mais se aproxima do instituto, e tem ampla
abrangência, seja com relação aos danos causados, seja no que pertine ao tipo
de pessoa jurídica, ele será usado como parâmetro de comparação.
7.1
A SOLIDARIEDADE DENTRO DO GRUPO ECONÔMICO NO DIREITO DO TRABALHO
Costuma-se
apontar o § 2.º do art. 2.º da CLT, como um exemplo no ordenamento brasileiro
de previsão da desconsideração da personalidade jurídica (JUSTEN FILHO, 1987:
102; ALMEIDA, 2003: 189; FREITAS, 2002: 274). Eis o que dispõe o referido
dispositivo legal:
"Art.
2º - Considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo
os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação
pessoal de serviço.
[...]
§
2º - Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas,
personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou
administração de outra, constituindo grupo industrial, comercial ou de qualquer
outra atividade econômica, serão, para os efeitos da relação de emprego,
solidariamente responsáveis a empresa principal e cada uma das
subordinadas."
Esse
dispositivo regula uma hipótese de relativização do princípio da autonomia
patrimonial. Não cuida, todavia, de aplicação da doutrina da desconsideração da
personalidade jurídica.
Tem-se,
em realidade, simples imputação de solidariedade entre entes (TOMAZETTE,2002).
Vale
lembrar que, de acordo com o art. 265 do CC, "a solidariedade não se
presume; resulta da lei ou da vontade das partes." Tem-se, portanto,
simples caso de solidariedade resultante da lei.
O
objetivo da norma insculpida no principal diploma trabalhista é assegurar um
equilíbrio na relação empregatícia fundado no seguinte preceito: se todo o
grupo econômico obtém, ainda que indiretamente, proveitos decorrentes da
atividade do trabalhador, deve, por outro lado, responder por sua remuneração.
Com
isso, na linha da ideologia adotada no Direito do Trabalho, apenas se pretendeu
proteger o empregado (JUSTEN FILHO, 1987:106).
Tendo
em vista que a aludida norma já assegura a solidariedade dos entes do grupo
econômico, nem se cogita da aplicação da doutrina da desconsideração da
personalidade jurídica propriamente dita (COELHO,2002:43).
Importante
aspecto a ser ressaltado é o fato de que a CLT nem cogita de fraude ou abuso da
pessoa jurídica, ou mesmo de confusão patrimonial, para que torne solidários os
componentes do grupo econômico.
Caso
não haja um grupo econômico, mas tão-somente uma pessoa jurídica isolada, será
possível aplicar o art. 50 do CC para responsabilizar seus sócios pelos
direitos do empregado, caso comprovado o abuso da personalização.
7.2
A RESPONSABILIDADE DE TERCEIROS NO DIREITO TRIBUTÁRIO
Outro
dispositivo mencionado como representando hipótese de desconsideração é o art.
134, VII, do CTN (FREITAS, 2002:275).
Esse
dispositivo atribui responsabilidade solidária aos sócios, no caso de
liquidação de sociedade de pessoas, em relação aos atos em que intervierem ou
pelas omissões de que forem responsáveis, na hipótese de impossibilidade de
exigência do cumprimento da obrigação tributária pelo contribuinte. Acresce o
parágrafo único do art. 134 que, quanto às penalidades, a solidariedade só se
aplica àquelas de caráter moratório.
Em
primeiro lugar, deve-se definir o que seja sociedade de pessoas.
Para
RUBENS REQUIÃO (1995:261-2), quando se utiliza a estrutura econômica como
critério para classificar as sociedades, elas se dividem em:
"sociedades
de pessoas, constituídas em função da qualidade dos sócios – "porque o que
forma uma sociedade somente se liga com pessoa de sua eleição" (Tít. n.º
XXV, 5, Institutas de Justiniano) [...] e sociedades de capitais, constituídas
tendo em atenção preponderantemente o capital social."
No
mesmo sentido, SÉRGIO SÉRVULO CUNHA (2003:236) aponta que na composição das
sociedades de capitais "são irrelevantes critérios pessoais", ao
passo que, nas de pessoas, "prevalecem critérios pessoais na escolha dos
sócios e nas suas relações".
Ressalvados
os casos que a lei eventualmente tenha determinado expressamente em qual dos
tipos acima determinada sociedade esteja enquadrada, na prática essa
classificação deverá ser feita analisando o caso concreto.
Quando
RUBENS REQUIÃO (1995:262), por exemplo, estabelece que seriam sociedades de
pessoas as limitadas, esquece-se de que estas podem assumir caráter de
sociedade de capitais.
Esclarece,
a propósito, FÁBIO ULHOA COELHO (2002:25) que "as sociedades em nome coletivo,
comandita simples e limitada podem ser de pessoas ou de capital, de acordo com
o previsto no contrato social; as sociedades anônimas e em comandita por ações
são sempre de capital."
Feita
essa análise, segue-se que, para ser considerado como responsável solidário, o
sócio deve, na liquidação da sociedade de pessoas, ter praticado conduta
comissiva ou omissiva que torne impossível a exigência do tributo.
Assim
deve ser, uma vez que, se ele respondesse mesmo quando não tivesse dado causa à
impossibilidade, seria irrelevante mencionar sua omissão ou intervenção.
Contudo,
o que ocorrerá na hipótese de haver um órgão, não ocupado por sócio, que seja
responsável pelo recolhimento de tributo na liquidação, mas falte com seu
dever, quando poderia tê-lo cumprido?
Nesse
caso, o sócio não interveio. Será necessário perquirir se o sócio tinha o dever
legal de agir para impedir a infração e se poderia ter agido no caso concreto,
de modo a verificar a caracterização de sua omissão.
Deve-se
ater à premissa segunda a qual a responsabilidade depende de imposição legal,
uma vez que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei, nos termos do art. 5.º II da CR.
Por
isso, não tendo o órgão efetuado recolhimento de tributo não resultante de
infração que tenha cometido, não será aplicável o art. 134 do CTN.
Mas
como fica a obrigação tributária não adimplida?
O
não recolhimento de tributo constitui ato ilícito, conforme art. 186 do Código
Civil.
A
sociedade é responsável pelos atos de seus órgãos, conforme art. 932, III, do
CC, ainda que não haja culpa de sua parte, nos termos do art. 933 do CC.
Sendo
certo que o tributo é devido pela sociedade e não pelo órgão, ela deverá
efetuar o recolhimento. Todavia, os acréscimos decorrentes da infração poderão
ser cobrados do infrator, na hipótese de culpa ou dolo deste, na forma do art.
934 do CC.
E
se não for possível exigir da sociedade o tributo não decorrente de infração do
órgão? Será permitido cobrar do sócio?
Se
essa impossibilidade não decorrer de uma omissão ou ação do sócio, não se
poderá cogitar da solidariedade de que trata o art. 134 do CTN, ressalvada a
responsabilidade decorrente da natureza da sociedade (limitada ou ilimitada).
Porém,
caso o tributo seja decorrente de infração legal, contratual ou estatutária, o
infrator responderá pessoalmente, e não solidariamente, nos termos do art. 135
do CTN, verbis:
"Art.
135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações
tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração
da lei, contrato social ou estatutos:
I
– as pessoas referidas no artigo anterior;
II
– os mandatários, prepostos e empregados;
III
– os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito
privado."
Novamente,
tem-se presente hipótese legal de flexibilização da autonomia da pessoa
jurídica, mas não necessariamente de aplicação da doutrina da desconsideração
(JUSTEN FILHO, 1987:112).
Nessa
linha é o entendimento de JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:520) para
quem, no caso do art. 134, VII, do CTN, não há quebra no princípio da separação
entre pessoa jurídica e seu membro. Com muito mais razão nos casos de
responsabilidade dos diretores em caso de comportamento doloso ou culposo ou
que viole diretamente a lei ou os estatutos sociais, pois aqui há simples
imputação. Isso porque, quando age desta maneira, não age como órgão, salvo a
questão da aparência (1979:520).
Com
efeito, certos atos, pela sua grave discrepância em relação ao objeto social,
ou pela evidente ausência de poderes para representação da sociedade, nunca
poderiam ser atribuídos à pessoa jurídica. Por conseguinte, ela não poderia
servir de instrumento para fraudes ou outras formas de abuso.
Somente
nos casos em que a própria pessoa jurídica figura na relação é que se deve
perquerir se os efeitos desta devem ou não ser imputados aos seus membros.
Deve-se
lembrar que a teoria da desconsideração da personalidade jurídica nasceu diante
do impasse decorrente da impossibilidade de se responsabilizar o sócio ou
membro da pessoa jurídica por atos praticados por eles em nome desta. Esta
impossibilidade existia em razão do radicalismo com que surgiu o princípio da
separação entre a pessoa jurídica e seus membros, o qual impregnou a legislação
desde então.
Nessa
linha, constata-se que o art. 135 do CTN retrata um aspecto fundamental no
tratamento da pessoa jurídica: somente a prática de atos legais, decorrentes de
seus fins, pode ser imputada a ela.
Com
isso não se quer dizer que a pessoa jurídica não responda pelos atos de seus
agentes. Nem sempre quem pratica determinado ato responde por suas
conseqüências. Da mesma forma, pode ocorrer a hipótese em que alguém, embora
não tenha realizado algum ato, tenha de responder por ele.
A
título de exemplo, pode-se citar a situação em que um menor causa um dano, pois
são seus pais que respondem pela reparação (art. 932, I e art. 934 do CC).
Feita
essa distinção entre sujeição ativa na realização de ato de um lado; e
responsabilização de outro, nota-se que, na hipótese do art. 135 do CTN, o
legislador optou por resguardar a pessoa jurídica.
Nada
obstante, se o órgão desta, ao praticar um ilícito, trouxer proveito para a
pessoa jurídica, esta também poderá vir a ser responsabilizada, conforme o
caso.
Imagine-se
a situação em que um administrador, violando proibição expressa do ato
constitutivo, adquire empréstimo para a pessoa jurídica. O imposto sobre esta
operação de crédito é devido pelo referido agente, nos termos do art. 135 do
CTN.
Entretanto,
quem deverá pagar pelo empréstimo? E se a pessoa jurídica utilizou o dinheiro
para pagar dívidas próprias?
Dependendo
da análise do caso concreto, a pessoa jurídica poderá ser responsabilizada pelo
pagamento da quantia utilizada.
Assim,
verificada a aplicação dos artigos 134 e 135 do CTN, pode-se realizar uma
comparação com o disposto no art. 50 do CC.
Nota-se
que a hipótese de prática de ato com excesso de poderes prevista no caput do
art. 135 do CTN restringe-se à responsabilidade por obrigações tributárias que
resultem de ato realizado com excesso de poderes, ao passo que o art. 50
abrange todas as relações resultantes do abuso.
Além
disso, enquanto no CTN a imputação da responsabilidade é peremptória, no CC é
facultado ao juiz decidir se aplica ou não a desconsideração.
De
qualquer maneira, em ambos os casos há o uso indevido da personalidade
jurídica, bem como a imputação de responsabilidade a sujeito diverso daquele
que normalmente responderia.
Um
outro caso que mais se aproxima dos ideais da doutrina da desconsideração é
mencionado por MARÇAL JUSTEN FILHO (1987:112), previsto no art. 60 e seguintes
do Decreto-lei n.º 1.598/77, ao tratar da distribuição disfarçada de lucros.
Nesse
caso, verifica-se que a lei cuidou de hipóteses onde pessoas ligadas à pessoa
jurídica obtém, por intermédio do uso fraudulento dela, rendimentos.
Tendo
em vista que ninguém pode ser obrigado a fazer alguma coisa senão em
decorrência de lei, conforme já dito supra, e sendo certo que vigora no
Direito Tributário o princípio da legalidade estrita, o legislador procurou
resguardar o fisco contra esse tipo de fraude evitando que o contribuinte
alegasse faltar disposição legal para ensejar sua responsabilização.
Nada
obstante, na linha defendida por FÁBIO ULHOA COELHO (2002:42), se a própria lei
permite que se coíba a fraude, responsabilizando diretamente os membros ou
sócios da pessoa jurídica, ou mesmo outras pessoas ligadas a ela, não se
cogitará da aplicação da doutrina da desconsideração.
Contudo,
isso não significa que na prática as conseqüências sejam diversas daquelas
decorrentes da aplicação da doutrina da desconsideração.
7.3
PARTICIPAÇÃO RECÍPROCA NA LEI DAS SOCIEDADES POR AÇÕES
Um
caso tido como exemplo de desconsideração total da personificação por MARÇAL
JUSTEN FILHO (1987:147) é a previsão do art. 244, §2.º, da Lei das Sociedades
Anônimas, onde se suspende o direito a voto das ações de propriedade de uma
sociedade controlada, que componham o capital da sociedade controladora. O
fundamento dessa restrição é evitar que o mesmo capital seja utilizado para
controlar mais de uma pessoa jurídica.
Como
se vê, o entendimento de MARÇAL JUSTEN FILHO é no sentido de que a própria lei
possa determinar a desconsideração em abstrato.
Ao
contrário, para FÁBIO ULHOA COELHO, a desconsideração só ocorre em concreto,
nos casos autorizados por lei, ou mesmo em hipóteses em que não haja esta
autorização explícita, uma vez que a doutrina do instituto se aplica
independentemente de previsão legal (2002:54).
Tem-se,
in casu, autêntica hipótese em que o ordenamento, evitando o
desvirtuamento da personalidade jurídica, aplica uma sanção de adequação, que,
conquanto possa até mesmo ter objetivos coincidentes com o da teoria da
desconsideração, com esta não se confunde (REQUIÃO,1969:21).
7.4
A TEORIA ULTRA VIRES E A TEORIA DA APARÊNCIA NO CÓDIGO CIVIL
Ao
criar a pessoa jurídica, seus instituidores descrevem as finalidades desta, bem
como atribuem as funções que serão exercidas por seus membros. A omissão acerca
de quem representará ou administrará a pessoa jurídica é suprida pela lei na
maioria dos casos. Assim, por exemplo, no art. 12 do CPC e no art. 1013 do CC.
Ocorre
que, em certas ocasiões, é possível que um membro da sociedade, seja ele sócio,
administrador, gerente ou simples empregado, pratique, sem ter poderes para
tanto, certos atos em nome dela. Pode ainda ocorrer que, embora tenha
aparentemente atribuição para a realização de determinado ato, realiza-o em
discrepância com os objetivos sociais.
Nesses
casos, surge o seguinte problema: se simplesmente for defendido que é o membro
da pessoa jurídica que responderá pelos efeitos do ato praticado, isso poderá
prejudicar o terceiro que com ele tenha contratado.
De
outro lado, se for imputada à pessoa jurídica a responsabilidade, ela e,
indiretamente, seus outros membros, serão prejudicados.
Tanto
em um caso, como no outro, em princípio, é plenamente cabível o regresso contra
aquele que efetivamente praticou o ato.
Nota-se
que, colocado assim o problema, a busca da melhor solução é extrajurídica.
Juridicamente, basta averiguar o que prevê o ordenamento.
Segundo
FÁBIO ULHOA COELHO (2002:445), esse problema fez com que surgisse nas cortes
inglesas, em meados do século XIX, a ultra vires doctrine, segundo a
qual, qualquer ato praticado sem vínculo com o objeto social seria nulo.
Como
se vê, prestigiou-se nessa formulação a proteção dos investidores. O problema
que essa doutrina gerou foi o medo de contratar com as pessoas jurídicas ante o
risco de não ver honrado o contrato (COELHO,2002:446).
Cabe
ressaltar que, segundo sua origem inglesa, a doutrina ultra vires diz
respeito tão-somente aos atos da sociedade em relação ao objeto social
(REQUIÃO,1995b:177), não se confundindo com a violação do ato constitutivo por
parte do administrador (REQUIÃO,1995b:178).
JOSÉ
LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:282) faz um paralelo no direito
norte-americano entre a teoria dos atos ultra vires e a doutrina da disregard.
Naquela "a personalização e a capacidade de uma pessoa jurídica são
limitadas às finalidades em virtude das quais ela foi criada".
"Ao
contrário, a doutrina da disregard criaria verdadeiros limites de
capacidade não em função das finalidades específicas de uma pessoa jurídica
determinada, mas das finalidades genéricas em virtude das quais a ordem
jurídica criou tal ficção, justificando-se a desconsideração em nome de idéias
de justiça, de public policy, e dos direitos da parte inocente."
(OLIVEIRA, 1979:282)
No
direito brasileiro, de acordo com FÁBIO ULHOA COELHO (2002:447), a teoria dos
atos ultra vires não teria sido adotada.
Porém,
é questionável esse posicionamento diante do que prevê o art. 47 do CC:
"Art. 47. Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos
nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo".
Se
os atos dos administradores, praticados fora dos limites de seus poderes,
também vinculassem a sociedade, não teria qualquer utilidade o disposto nesse
artigo.
Além
disso o art. 1015, parágrafo único, do CC, admite hipóteses em que o excesso de
poderes do administrador na Sociedade Simples pode ser oposto a terceiros, e,
desta forma, não obrigar a pessoa jurídica.
Embora
não se possa dizer que a teoria dos atos ultra vires tenha sido adotada
para todo e qualquer ato dos membros da pessoa jurídica, verifica-se que, pelo
menos no caso específico do inciso III do parágrafo único do art. 1015 do CC
ela se aplica. Com relação aos atos que extrapolem a limitação de poderes,
sejam ou não considerados dentro do conceito de ultra vires, o que
importa é que também não vincularão a Sociedade Simples nas hipóteses dos
incisos I e II do art. 1015 do CC.
Segundo
MARLON TOMAZETTE (2003), o artigo 1015, parágrafo único, do CC, representaria
um retrocesso e confrontaria a tendência mundial de proteger os terceiros de
boa-fé, bem como a celeridade nos negócios.
Entretanto,
esse problema, pelo menos em relação aos administradores, só ocorrerá se as
sociedades limitadas vierem a adotar o regime das sociedades simples (COELHO,
2002:447), uma vez que aquelas, e não estas, são a maioria no Brasil
(COELHO,2002:22-3)
Também
FÁBIO ULHOA COELHO (2002:447) defende que deva ser aplicada a teoria da
aparência, ou seja, embora o administrador não tenha poderes no caso para a
prática do ato, ele aparenta ter, razão pela qual se deve proteger terceiros
que com ele firmem negócios.
Lembrando
que para JOSÉ LAMARTINE CORRÊA DE OLIVEIRA (1979:610) a responsabilidade
subsidiária é a verdadeira técnica despersonalizante, esta não estaria presente
no caso de aparência, ou comportamento contraditório –venire contra factum
proprium–, pois aqui a responsabilidade é por ato próprio.
Em
remate pode-se dizer que, não sendo cabível in casu a aplicação da
teoria ultra vires, prevalecerá a teoria da aparência.
Porém,
em último caso, se mesmo com esta teoria a situação ainda não estiver
equilibrada, o interessado poderá se socorrer da desconsideração da
personalidade jurídica.
7.5
SÍNTESE DO CONFRONTO COM AS FIGURAS PARALELAS
Após
essa análise da doutrina da desconsideração da personalidade jurídica, e de sua
comparação com os dispositivos legais acima, pode-se concluir que o art. 50 do
CC é uma arma de reserva, que veio para prestar socorro nas situações que
escapavam das previsões legais existentes e permitiam a utilização indevida da
personalidade jurídica de forma danosa para a sociedade.
A
doutrina da desconsideração da personalidade jurídica tem por fundamento evitar
que se sirva da pessoa jurídica para finalidade diversa daquela prevista tanto
no ato constitutivo quanto no próprio ordenamento.
Ela
resolve os casos em que o sócio ou membro de pessoa jurídica causa danos a
terceiros e se esconde atrás do véu da personalidade. A doutrina imputa a
responsabilidade a quem merece realmente responder.
Não
é meramente responsabilizar outrem sem qualquer questionamento acerca do abuso
praticado no uso da pessoa jurídica.
Seja
como for, parece irrelevante o questionamento acerca de determinado dispositivo
legal tratar ou não de uma hipótese de aplicação da doutrina da desconsideração
da personalidade jurídica.
O
que importa é saber se, no caso concreto, é ou não permitido atribuir a
responsabilidade a sujeito diverso do que figura em determinada relação ou
situação jurídica.
O
que releva é buscar equilibrar as relações e impedir que se desvirtue as
instituições, que se viole o ordenamento, que se faça injustiça.
Entender
a doutrina da desconsideração é fundamental para a aplicação dos dispositivos
abertos, de modo a fixar, conforme o caso concreto, quais os limites adequados
da autonomia da pessoa jurídica.
Mas
é dispensável tal conhecimento quando o ordenamento, conquanto diga que permita
a desconsideração, não estabelece qualquer requisito para tanto, uma vez que
nessa situação basta responsabilizar quem a lei determinar.
8
BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A DESCONSIDERAÇÃO NO PROCESSO
Após
analisar o direito material e os casos em que se permite seja desconsiderada a
personalidade jurídica, merecem ser tecidas algumas considerações sobre a
aplicabilidade prática do instituto.
Para
tanto, indispensável visitar o campo do direito processual, mormente o civil.
A
questão central é: como deve ser feita a desconsideração da personalidade
jurídica? É necessário um processo de conhecimento específico para tanto ou
pode ser feita por simples requerimento em processo existente?
Para
FÁBIO ULHOA COELHO (2002:55), "o juiz não pode desconsiderar a separação
entre a pessoa jurídica e seus integrantes senão por meio de ação judicial
própria, de caráter cognitivo, movida pelo credor da sociedade contra os sócios
ou seus controladores".
Para
o autor, havendo execução baseada em título contra a pessoa jurídica, não é
permitido por simples despacho direcionar o processo contra os sócios, pois
isso representaria uma "inversão do ônus probatório" (2002:55).
Sem
dúvida que a simples inclusão de sócios no pólo passivo da execução, sem que
eles figurem no título, pode representar até mesmo ofensa à CR, especialmente
ao art. 5.º, LV.
Ainda
que se alegue que será possível exercer a defesa por meio dos embargos, não se
deslembre que estes dependem da prévia garantia do juízo.
Nessa
linha, a constrição efetuada sobre bens dos sócios, que não figurem no título,
também afronta o inciso LIV do art. 5.º da CR, pois não deixa de representar
uma restrição à propriedade sem o devido processo legal.
Qual
seria então o processo legal?
Num
primeiro momento, poder-se-ia alegar que, não havendo especificação na lei,
dever-se-ia seguir a regra geral, ou seja, o rito comum do processo civil.
Seria sumário ou ordinário segundo as peculiaridades do caso, como, por
exemplo, o valor da obrigação que se pretende imputar.
Nessa
linha, seria suscitado que não caberia simples requerimento, por ausência de
previsão legal específica quanto ao rito, razão pela qual se aplicaria a regra
geral. Em segundo, geraria tumulto processual. Terceiro: cada juízo processaria
de modo diferente o requerimento, gerando ofensa à isonomia dos
jurisdicionados.
Além
disso, se o objetivo primordial da desconsideração da personalidade jurídica é
atingir o patrimônio de uma membro da pessoa jurídica, este deve figurar na
lide, ou seja, deverá ser citado para apresentar sua defesa. Só haverá sentido
em manter a pessoa jurídica na relação processual se ela também tiver alguma
responsabilidade.
Porém,
uma última questão antes de terminar: como fica a prescrição com relação à
obrigação que se pretende imputar por meio da desconsideração?
É
certo que antes de desconsiderada a pessoa jurídica não há pretensão contra os
membros desta. Porém, a favor da pessoa jurídica, em princípio, estará fluindo
o prazo prescricional para exigir o adimplemento da obrigação.
Se
como decorrência da desconsideração houver solidariedade do membro da pessoa
jurídica, a ação movida em face desta irá interromper a prescrição também em
relação ao sócio. Vale lembrar que, na linha defendida neste trabalho, a
desconsideração da personalidade jurídica, em sua formulação original, não pode
ter como efeito a solidariedade.
Quando
se pretender a desconsideração da personalidade jurídica para que se reconheça
ser a obrigação de responsabilidade unicamente do membro da pessoa jurídica,
sem qualquer vínculo com esta, então o mais adequado parece ser o ingresso de
ação com cumulação de pedidos, sendo o primeiro deles o de desconsideração e,
sendo acolhido este, o de condenação ao adimplemento da obrigação.
Ressalte-se
que para esta ação a legitimidade passiva é do membro ao qual se pretende
imputar a obrigação, e não da pessoa juridica (COELHO,2002: 55).
CONCLUSÃO
A
pessoa jurídica nasce como forma de suprir certas necessidades nas relações
sociais.
Várias
teorias procuraram explicá-la, discutindo sobre sua existência ou não, bem como
sobre a própria natureza de sua realidade.
Conquanto
tenha solucionado diversos problemas, ante seu caráter instrumental, passou a
ser utilizada indevidamente.
Isso
ensejou o nascimento da doutrina da desconsideração da pessoa jurídica, uma
forma de estabelecer limites de uso do instituto da pessoa jurídica.
Essa
doutrina gerou diversos reflexos que acabaram sendo acolhidos pelo ordenamento
brasileiro, porém de forma diferente de acordo com o ramo do direito.
Assim,
verifica-se ser menos rígida a autonomia da pessoa jurídica no direito
ambiental. No direito do consumidor e no da concorrência há um grau um pouco mais
elevado na separação patrimonial e, no direito civil, é ainda mais difícil a
desconsideração.
Se
a desconsideração representa ausência dos efeitos da personalização para
determinados atos, não cabe dizer que a solidariedade seria efeito de sua
aplicação, pois para um sujeito de direito ser solidário é pressuposto sua
existência.
Obviamente
que a possibilidade de no caso concreto ser atribuída a responsabilidade por
determinada obrigação à própria pessoa jurídica e a seus membros conforme a
participação nos proveitos ou nos ilícitos causados é uma solução mais adequada
do que a buscada pela doutrina original da desconsideração.
Por
isso, mais importante do que saber se determinado dispositivo representa ou não
hipótese de desconsideração da personalidade jurídica é buscar a solução
adequada para cada caso, nos termos da legislação vigente.
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