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A Lesão usurária nos sistemas jurídicos português e brasileiro

                                                                                                                                      

. Carlos Alberto Bittar Filho*

 

 

Hoje, em Portugal, a lesão, como fundamento de anulação ou modificação dos negócios, não consiste apenas, como consistia no antigo direito, numa desproporção das prestações (lesão ultra dimidium, ou enorme), mas sim numa exploração da situação da outra parte, em casos em que terá havido uma adulteração do modo de sã formação da vontade. Emprega-se, na caracterização dos contornos da figura em análise, uma formulação objetivo-subjetiva, cujo elemento objetivo é apreciado não por um critério matemático rígido, mas sim comportando uma certa liberdade de apreciação judicial (benefícios manifestamente excessivos ou injustificados) e cujos elementos subjetivos são dois: a) o estado de necessidade, inexperiência, dependência ou deficiência física em que se encontra a vítima do ato lesivo; b) o aproveitamento consciente dessa situação. 
No que toca ao Brasil, o Código Civil em vigência (Lei Federal 3.071, de 1º de janeiro de 1916) omitiu-se relativamente à figura da lesão, rompendo com a tradição das Ordenações. O silêncio da codificação civil foi proposital -- com ele, aboliu-se, pura e simplesmente, a velha figura, sob o fundamental argumento de que ela estava ultrapassada.

 

 

A disciplina da lesão, no direito lusitano, remonta às Ordenações Afonsinas (Livro IV, Título XLV) e Manuelinas (Livro IV, Título XXX), inspiradas indiscutivelmente no direito justinianeu, mas temperadas pela influência canônica.

Nas Ordenações Filipinas, a figura da lesão assumiu um caráter visivelmente objetivo, inspirando-se na fonte romana (laesio ultra dimidium). O campo de incidência era vasto, abrangendo as alienações de bens móveis ou imóveis.

Diferentemente do direito romano, que facultava a ação de lesão apenas ao vendedor, as Ordenações Filipinas permitiam ao comprador requerer a rescisão com o mesmo fundamento.

A epígrafe do Título XIII faz referência apenas à venda; seu parágrafo 6, no entanto, amplia o campo de incidência da lesão, abarcando todos os contratos comutativos -- arrendamentos, aforamentos, escambos, transações e “quaisquer outras avenças, em que se dá ou deixa huma coisa por outra”. Consoante M. A. COELHO DA ROCHA, a lesão nos contratos comutativos teria lugar sempre que uma das partes não recebesse o equivalente daquilo que desse (Instituições de Direito Civil Português, Rio de Janeiro, Garnier, 1907, v. II, § 737, p. 266).

Além da figura jurídica da lesão enorme (laesio enormis), previa-se também, nas Ordenações (Ord. cit., 10 §, in fine), a lesão enormíssima, que ocorria quando alguém recebesse somente a terça parte do justo valor da coisa (JOSÉ HOMEM CORRÊA TELES, Digesto Português, Rio de Janeiro, Livraria Cruz Coutinho, 1909, art. 253). A laesio enormissima não foi conhecida no direito romano, havendo sido concebida pelos canonistas (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Lesão nos Contratos, Rio de Janeiro, Forense, 1997, 6ª ed., pp. 45 e 81). A ação de rescisão por lesão enormíssima era reputada ação de dolo, dolo esse presumido (in re ipsa), sendo bastante a prova da diferença de preço, sem necessidade de demonstrar-se a intenção do agente (idem, ibidem, p. 82).

Ao comprador conferia-se a faculdade de, se o vendedor pleiteasse a rescisão do negócio, “ou tornar-lhe a cousa e receber o preço, que por ela deu, ou refazer-lhe o justo preço, que se provar que valia ao tempo do contrato” (Ord. cit., § 1). Como a possibilidade de pedir a rescisão lesionária tocava tanto ao vendedor quanto ao comprador, se este a requeresse, competia ao vendedor a escolha, “ou tornando-lhe o preço, que houve”, e cobrando a coisa vendida, ou lhe tornando a maioria recebida, “além do que a cousa justamente valia ao tempo do contrato”. Tratava-se, pois, não de uma obrigação alternativa em benefício do lesado, mas de uma obrigação facultativa; o vendedor só podia pedir a retomada da coisa, e o comprador apenas tinha ação para postular a rescisão do contrato. Tão-somente a parte contrária possuía o direito de optar por uma das duas soluções (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, ibidem, p. 83; JOSÉ HOMEM CORRÊA TELES, ob. cit., art. 257).

A prescrição, em se tratando da ocorrência de lesão enorme, ocorria em quinze anos, contados do momento em que se completara o contrato, até o dia em que o réu fosse citado para a demanda. Na hipótese de lesão enormíssima, a doutrina defendia  a tese de que a prescrição ocorria em apenas trinta anos, com lastro na consideração de que a lesão enormíssima era equiparada ao dolo, tratando-se, assim, de contrato ipso iure nulo (M. A. COELHO DA ROCHA, ob. cit., § 737, p. 267).

Tratava o § 7 das vendas judiciais, sobre as quais igualmente incidia a figura da laesio ultra dimidium, dentro do prazo prescricional de quinze anos. Inatacável, no entanto, a venda, se observadas todas as formalidades de ordem processual.

Curiosa era a irrescindibilidade dos contratos celebrados com os mestres de ofícios, nas obras de seus ofícios, justificada pelo fato de que deveriam conhecer o verdadeiro preço de tais obras.

As Ordenações não admitiram a possibilidade de renúncia ao benefício da lesão, derrogando, pois, o direito comum.

Por fim, impunham as Ordenações, no décimo parágrafo, que, desfeita a venda ou a compra, bem como optando-se pela retomada da própria coisa, com ela deveriam ser restituídos os frutos, a partir da contestação da lide.

Em Portugal, o Código de 1867, rompendo com o direito anterior, deixou de considerar a lesão como motivo autônomo de invalidade dos contratos onerosos comutativos; ela só implicaria a anulabilidade do negócio quando envolvesse erro, dolo ou coação, de acordo com os parâmetros fixados para essas figuras.

No atual Código Civil lusitano, de 1966, a proscrição da lesão, sob a designação de usura, consta do artigo 282, por força do qual se reputa anulável o negócio jurídico quando alguém, aproveitando conscientemente a situação de necessidade, inexperiência, dependência ou deficiência psíquica de outrem, obtém a promessa ou a concessão de benefícios manifestamente excessivos ou injustificados. Prevê-se, no artigo seguinte, uma alternativa para a anulação dos negócios usurários: a sua modificação, segundo juízos de eqüidade, a requerimento do lesado ou da parte contrária. A problemática da lesão, pois, é arrostada não sob a perspectiva individualista do Código de Napoleão -- por mais elevada que seja a desproporção entre as prestações, há que ser aceita, em nome da liberdade de contratar --, mas à luz das valorações sociais.

Hoje, em Portugal, a lesão, como fundamento de anulação ou modificação dos negócios, não consiste apenas, como consistia no antigo direito, numa desproporção das prestações (lesão ultra dimidium, ou enorme), mas sim numa exploração da situação da outra parte, em casos em que terá havido uma adulteração do modo de sã formação da vontade. Emprega-se, na caracterização dos contornos da figura em análise, uma formulação objetivo-subjetiva, cujo elemento objetivo é apreciado não por um critério matemático rígido, mas sim comportando uma certa liberdade de apreciação judicial (benefícios manifestamente excessivos ou injustificados) e cujos elementos subjetivos são dois: a) o estado de necessidade, inexperiência, dependência ou deficiência física em que se encontra a vítima do ato lesivo; b) o aproveitamento consciente dessa situação (CARLOS ALBERTO DA MOTA PINTO, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1976, pp. 382 – 384).

No que toca ao Brasil, o Código Civil em vigência (Lei Federal 3.071, de 1º de janeiro de 1916) omitiu-se relativamente à figura da lesão, rompendo com a tradição das Ordenações. O silêncio da codificação civil foi proposital -- com ele, aboliu-se, pura e simplesmente, a velha figura, sob o fundamental argumento de que ela estava ultrapassada (EDUARDO ESPÍNOLA, Sistema do Direito Civil Brasileiro, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1938, v. I, 3ª ed., pp. 560 - 561, nota 133).

A razão última e profunda da abolição da figura em consideração, no entanto, é de fundo ideológico: o legislador brasileiro de 1916 foi fiel ao individualismo na elaboração do Código (RUBENS LIMONGI FRANÇA, Código Civil (Histórico), in Enciclopédia Saraiva do Direito, São Paulo, Saraiva, 1977, v. 15, p. 393), mostrando-se ainda mais radical do que a própria grande fonte de sua inspiração,  o legislador francês de 1804. Efetivamente, o Código brasileiro, que expressou a influência do individualismo e do liberalismo econômico, típicos do século XIX e corolários lógicos da Revolução Francesa, alçando à condição de pilastra básica do Direito Obrigacional o princípio pacta sunt servanda, eliminou, por isso mesmo, a possibilidade de rescisão dos contratos por lesão. Enfim, dentro da sistemática acolhida pela codificação civil, cada indivíduo no gozo da plena liberdade de contratar deve ser o único juiz de seu próprio interesse (ANTÔNIO CHAVES, Lesão - I, Enciclopédia Saraiva do Direito, São Paulo, Saraiva, 1977, v. 49, p. 215).

Mas o novo contexto sócio-jurídico do século XX não tardou em colocar em xeque a ortodoxia individualista da codificação civil. O edifício erguido sobre a plena liberdade contratual cedo começou a ser abalado por uma série de leis extravagantes de caráter emergencial, que, a pouco e pouco, se foram opondo aos princípios individualistas codificados, crestando-os.

Foi nesse contexto de profundas mudanças que adveio o Decreto-Lei 869, de 18 de novembro de 1938, cujo objetivo era reprimir os crimes contra a economia popular. Através desse diploma legal, a lesão fez seu retorno ao direito positivo brasileiro. Com efeito, dispunha o seu artigo 4º acerca do crime de usura (pecuniária ou real), assim se considerando: a) cobrar juros superiores à taxa permitida por lei, comissão ou desconto, fixo ou porcentual, sobre a quantia mutuada, além daquela taxa; b) obter ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte, lucro patrimonial que excedesse o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida. Ajuntava o parágrafo terceiro daquele dispositivo que a estipulação de juros ou lucros usurários seria nula, impondo-se ao juiz ajustá-los à medida legal, ou, caso já cumprida, ordenar a restituição da quantia paga em excesso com os juros legais a contar da data do pagamento indevido.

A redação do artigo 4º do Decreto-Lei 869 foi absorvida, sem alterações, pelo Decreto-Lei 9.840, de 11 de setembro de 1940 (art. 1º). Posteriormente, adveio, inspirada pelo critério de justiça distributiva (VICENTE RÁO, Ato Jurídico, São Paulo, Saraiva, 1981, 3ª ed., p. 263), a Lei Federal 1.521, de 26 de dezembro de 1951, que modificou disposições da legislação sobre crimes contra a economia popular, prevendo as figuras delituosas da usura pecuniária e da usura real, assim conceituadas: a) cobrar juros, comissões ou descontos porcentuais, sobre dívidas em dinheiro, superiores à taxa permitida por lei; cobrar ágio superior à taxa oficial de câmbio, sobre quantia permutada em moeda estrangeira; emprestar sob penhor que seja privativo de instituição oficial de crédito; b) obter ou estipular, em qualquer contrato, abusando da premente necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte, lucro patrimonial que exceda o quinto do valor corrente ou justo da prestação feita ou prometida (art. 4º). Estatui o parágrafo terceiro do dispositivo em tela que a estipulação de juros ou lucros usurários será nula, devendo o juiz ajustá-los à medida legal, ou, caso já haja sido cumprida, ordenar a restituição da quantia paga em excesso, com os juros legais a contar da data do pagamento indevido.

Cuida-se de disposição legal de natureza bifronte, pois apresenta reflexos tanto na esfera do Direito Público quanto na do Direito Privado. Pelo seu enunciado, a lei aplica-se às situações de que resulta dano, em conseqüência da vantagem excessiva que teve alguém, fulminando, igualmente, o dano potencial, que se pode observar na simples promessa de prestação exorbitante; assim, tanto pode invalidar-se o contrato perfeito e acabado quanto a promessa, pois que o patrimônio se empobrece, desde logo, da porção que passa ao lesante, de modo efetivo, como bem adquirido, ou, potencialmente, como direito (WILSON DE ANDRADE BRANDÃO, Lesão e Contrato no Direito Brasileiro, Rio de Janeiro, Aide Ed., 1991, p. 207).

Relativamente à questão do valor, o legislador adotou a sinonímia entre os vocábulos “justo” e “corrente”; destarte, o que o julgador há de levar em conta, ao apreciar o caso concreto, é o valor de mercado do bem objeto da avença sub judice, valor esse que pode ser obtido, por exemplo, através da realização de perícia no curso do processo. O preço corrente, enfim, é aquele ditado pela lei da oferta e da procura na ocasião e no lugar, representando a correspondência, com pequena margem de variação, com o valor de outros negócios semelhantes, em condições normais, sem a maléfica influência do abuso ou da necessidade premente de uma das partes (ELCIR CASTELLO BRANCO, Lesão - II, in Enciclopédia Saraiva do Direito, São Paulo, Saraiva, 1977, v. 49, p. 225).

O legislador, aqui, lançou mão da tarifação legal para a caracterização da quebra do sinalagma, através da cifra de 1/5 (20%). Assim, fica o magistrado impedido de proceder a uma análise in concreto da ocorrência da quebra do sinalagma, impondo-se-lhe a verificação da desproporção previamente estipulada pelo legislador.

O campo de incidência do dispositivo em apreciação, por sua vez, a despeito de sua dicção (“em qualquer contrato”), deve ser circunscrito, logicamente, aos negócios jurídicos que comportem a idéia de lesão. Conseguintemente, a expressão legal “em qualquer contrato” há de ser entendida como “em qualquer contrato comutativo”. Repele-se, pois, a incidência do dispositivo sobre os contratos aleatórios (contra, admitindo a lesão em contrato aleatório, ANTÔNIO JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Negócio Jurídico e Declaração Negocial -- Noções Gerais e Formação da Declaração Negocial (tese), São Paulo, 1986, pp. 207 – 208). Mas, no que tange aos contratos comerciais, estão eles perfeitamente abrangidos pela latitude do dispositivo legal, que limita o proveito contratual em qualquer avença, sem distinções, mesmo porque a legislação protetora da economia popular nasceu da imperiosa necessidade de reprimir a especulação realizada, caracteristicamente, pelos comerciantes com relação aos gêneros de subsistência.

Mas a lesão que o legislador disciplina na Lei 1.521/51 é a qualificada, em que, ao lado do elemento objetivo (desproporção das prestações, fixada em 1/5), exsurge o elemento subjetivo, ou dolo de aproveitamento, consistente no abuso da premente necessidade, inexperiência ou leviandade da outra parte. Por “necessidade” deve-se entender “necessidade contratual” em que se encontre a parte; não se trata de uma condição inseparável da pobreza, que é apenas sua causa mais comum; em determinadas circunstâncias, não é, de modo algum, da falta de meios econômicos que se cogita, mas da impossibilidade de forrar-se ao entabulamento do contrato, que se tornou imperativo (CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, Lesão..., cit., p. 165). A necessidade está a abranger o estado de perigo e o estado de precisão econômica, havendo de ser atual, premente e inevitável, sob pena de grave dano patrimonial relativamente ao contrato de que se trate (VICENTE RÁO, ibidem, pp. 260 – 261). Em se tratando de “inexperiência”, o que esse termo significa, para o legislador, não é a ausência completa de trato das pessoas e das coisas, não é o oposto à experientia mundi, não é a falta de cultura intelectual, mas sim a “inexperiência contratual”, a falta de aptidão para contratar. Finalmente, a leviandade é a inconseqüência. Exige-se que tanto a leviandade quanto a inexperiência sejam atuais (idem, ibidem, p. 261).

Para que emerja, por conseguinte, em um dado caso concreto, a lesão usurária (também denominada lesão qualificada, ou usura real), tal como prevista e regulamentada pela Lei 1.521/51, urge concorram os elementos objetivo e subjetivo. Em outras palavras, não é suficiente o desequilíbrio das prestações, sendo imperioso que se prove cabalmente a existência do aproveitamento doloso, que assume a forma de exploração da evidente inferioridade contratual de um pactuante pelo outro.

Relativamente às quaestiones facti, deve-se produzir prova regular: a) do estado de necessidade de quem o prejuízo padeceu; b) da atualidade e premência dessa situação; c) da inevitabilidade do contrato, sob pena de grave dano patrimonial; d) do conhecimento dessa situação de necessidade premente, atual e inevitável, pelo aproveitador; e) do abuso, por parte deste, da necessidade, inexperiência ou leviandade da parte e da imposição e obtenção de prestações usurárias (idem, ibidem, p. 262).

No que se refere à sanção imposta ao contrato lesionário, existe grande vacilação jurisprudencial. Com efeito, como bem resume CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, a partir da análise dos arestos contidos na Revista Forense (vol. 80, p. 395, vol. 82, p. 748, vol. 87, p. 199, vol. 96, p. 705, e vol. 97, p. 133), a jurisprudência toma três rumos diferentes no tocante à conseqüência cível da verificação da usura real: nulidade total, nulidade parcial do negócio e silêncio quanto a uma ou a outra (Lesão..., cit., pp. 170 – 171).

 


 

* Procurador do Estado de S.Paulo (Brasil)
Doutor em Direito pela Universidade de S.Paulo

 

 

 

Disponível em: < www.verbojuridico.net/doutrina/brasil/preexecutividade.html>. Acesso em: 02/10/06.