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A relativização das
decisões do Tribunal Marítimo nas lides forenses envolvendo o direito marítimo
Paulo Henrique Cremoneze
Pacheco; Rubens Walter Machado Filho *
As lides forenses envolvendo o Direito Marítimo têm, muitas vezes, a participação do Tribunal Marítimo, por
meio das suas decisões relativamente aos acontecimentos de um sinistro,
observando-se os limites impostos pela idéia de "atos e fatos da
navegação".
Ao se falar em lides forenses envolvendo o Direito
Marítimo, fala-se, principalmente, dos casos relativos ao não cumprimento de
contratos maritimistas (contrato de transporte e
contrato de afretamento). Nem toda lide dessa envergadura implica sinistro de
navegação. Nem todo sinistro de navegação importa transgressão aos referidos
contratos. Mas, em se tratando de um sinistro de navegação com descumprimento
dos contratos maritimistas, a co-existência de
procedimento junto ao Tribunal Marítimo e lide forense é
fato muito comum.
Esclarecemos que o objeto da apuração do Tribunal Marítimo
não é exatamente o mesmo da Justiça comum, sendo possível à solução da
pendência nesta sem qualquer interferência daquela. Mas, da mesma forma, não
descartamos que a decisão do Tribunal Marítimo pode, conforme as
particularidades do caso concreto, influenciar a decisão da Justiça comum, esta
sim a mais importante.
Nosso presente estudo concentra-se na importância da
decisão do Tribunal Marítimo numa lide forense sobre inadimplemento do contrato
de transporte de cargas, sendo certo que partimos de uma visão bem pragmática e
desfavorável à comentada influência.
Com efeito, partimos do pressuposto que as decisões do
Tribunal Marítimo não devem, a rigor, influenciar as decisões dos órgãos
jurisdicionais principalmente pela enorme diferença de propósitos, competências
e finalidades existentes entre o colégio julgador maritimista
e o Estado-juiz.
Valorar corretamente as decisões do Tribunal Marítimo é um
dos grandes desafios do operador do Direito que se defronta com o Direito
Marítimo.
Não defendemos o desprezo absoluto da decisão do Tribunal
Marítimo numa dada relação jurídico-processual; apenas argumentamos que não se
pode dar a mesma decisão, dado seu caráter especial, técnico,
peso de bigorna.
Em outras palavras: acreditamos que um juiz de Direito não
deve se deixar influenciar por uma decisão do Tribunal Marítimo, por mais que
seu conteúdo exale o odor perfumado da especialização, uma vez que a natureza
da lide em suas mãos é completamente diferente da apreciação dada pelo referido
Tribunal ao sinistro estudado, de tal sorte que a palavra
fortuito, por exemplo, assume dentro do Direito das Obrigações um
colorido diferente do que nas regras de marinharia, Direito da Navegação.
Não é tarefa fácil, já que o assunto é nebuloso e pouco
debatido no meio acadêmico.
Nossa proposta, como dito, é traduzir a experiência
profissional agregada de alguns elementos próprios do rigor científico.
Mas, para se falar da valoração da decisão do Tribunal
Marítimo enquanto meio de prova é necessário, antes, conhecer melhor a
instituição.
O Tribunal Marítimo, com sede na cidade do Rio de Janeiro,
foi criado em 1931, com dupla função, administrativa e judiciária. Embora
criado em 1931, seu fundamento legal somente foi estabelecido em 1954, com o
advento da Lei Federal nº 2.180.
Hoje, tem apenas função administrativa. De fato, apesar do
nome Tribunal, trata-se de uma instituição puramente administrativa, à margem
da estrutura do Estado-juiz.
O Tribunal Marítimo nunca pertenceu aos órgãos do Poder
Judiciário. Com efeito, mesmo à época em que exercia atividades judiciárias,
não integrava nenhum dos ramos do Poder Judiciário.
É muito importante ter isso em mente, pois ao Tribunal
Marítimo não cabe, nunca coube e jamais caberá a função de dizer o Direito ao
caso concreto, típica do referido Poder de Estado.
Pois bem, o Tribunal Marítimo encontra-se
administrativamente vinculado a União, mais precisamente ao Ministério da
Defesa, que hoje engloba o Ministério da Marinha. Sua competência é puramente
administrativa e está limitada aos atos e fatos da navegação.
Essa limitação de competência já é o bastante para indicar
que não é dado ao Tribunal Marítimo discutir questões outras de interesse do
Direito Marítimo, especialmente aqueles voltadas aos contratos de transporte.
Daí a importância de se frisar que o Tribunal Marítimo
apenas processa e julga, administrativamente, os casos concretos (sinistros)
decorrentes de atos e fatos da navegação, nada mais além
disso.
Se o sinistro também envolver questões relativas ao
transporte de cargas, estas deverão ser resolvidas exclusivamente por órgãos
jurisdicionais, em se revelando impossível a transação ou liquidação por meios
alternativos de solução de litígios.
Na verdade, os "julgamentos" do tribunal
Marítimo são pareceres técnicos, ora de maior, ora de menor importância, mas,
sempre e tão-só, pareceres técnicos, donde se infere que a decisões do aludido
órgão colegiado administrativo são extremamente limitadas. Exatamente por isso
é que, no âmbito de sua limitada competência, pode aplicar penas
administrativas e pecuniárias aos envolvidos num determinado sinistro.
Sua atuação não tem o condão de afastar eventual
apreciação do Poder Judiciário. Nem mesmo em relação ao mérito, pois embora o
Tribunal Marítimo tenha natureza jurídica de órgão administrativo, sua decisão
não possui a mesma força de uma decisão administrativa em sentido estrito.
Como sabido e ressabido, o juiz não pode valorar o mérito
de uma decisão administrativa propriamente dita, sob pena de ofensa a garantia
constitucional diretamente ligada a importante princípio sensível da
Constituição Federal, qual seja, a harmonia e independência entre os três
Poderes de Estados (teoria dos pesos e contrapesos).
Mas a decisão do Tribunal Marítimo não se encontra
revestida de tal atributo, porque não é, em essência
uma decisão administrativa, mas mero parecer técnico, sobre matéria específica,
exarada por órgão colegiado de natureza administrativa.
Daí, dizer-se que suas decisões, embora abalizadas e
técnicas, estão sempre sujeitas à revisão jurisdicional e não vinculam o Juiz
no momento de decidir, como nada, em verdade, tem poder de orientar a decisão de
um Magistrado senão sua própria convicção (conforme e primazia do princípio da
livre convicção do julgador).
A competência material do Tribunal Marítimo é muito
limitada; todavia, a competência territorial é ampla, na medida em que abrange
todo o Brasil, atuando inclusive nos casos concretos havidos na navegação
fluvial.
Criticamos essa competência territorial ampla, pois dadas as proporções continentais do país, já não é sem tempo a
criação de um Tribunal Marítimo em Santos, cidade em que se situa o maior porto
brasileiro, ao qual caberia o tratamento dos casos havidos no Estado de São
Paulo e nos Estados do sul do Brasil, ficando o Tribunal Marítimo atual com
competência territorial voltada ao resto do país.
Os membros do Tribunal Marítimo são denominados juízes,
embora não sejam juízes na acepção correta do termo. O quadro geral do órgão
colegiado em estudo é formado por quatro juizes civis, dois militares e um
presidente, oficial da armada, num total de sete integrantes. Todos,
especializados
Vencida a apresentação sumária do Tribunal Marítimo, temos
condições suficientes para tratar de suas decisões e os impactos nas decisões
jurisdicionais.
Justificamos o interesse no assunto porque percebemos, ao
longo de dez anos militando no Direito Marítimo, que, muitas vezes, juízes de
Direito diminuem sua própria importância diante de uma decisão do Tribunal
Marítimo, conferindo um status imerecido ao dito órgão.
A decisão do Tribunal Marítimo não pode, salvo casos
especiais, influenciar direta e exclusivamente o convencimento do Estado-juiz
sob pena de, conforme o caso concreto, ferir os princípios básicos da
responsabilidade civil que regem o ordenamento jurídico.
Pode-se dizer que ela é apenas uma prova a mais a ser
considerada pelo juiz num caso concreto, sendo certo que outros meios
documentais ou periciais são, não raro, tão ou mais importantes do que a dita
decisão.
Basta dizer que os postulados da
responsabilidade civil objetiva imprópria são, por si mesmos, mais
significativos que a decisão do Tribunal Marítimo, qualquer que seja seu
conteúdo, numa lide forense versada sobre inexecução da obrigação de transporte
de cargas.
Num caso concreto em que o Tribunal Marítimo, analisando
estritamente os atos e fatos da navegação, decide por exculpar o comandante do
navio por um determinado evento danoso, subsiste, de qualquer forma, a
responsabilidade civil do transportador marítimo pelos danos às cargas, em face
do que dispõe a responsabilidade civil contratual. Aproveitar uma decisão para
fundamentar outra é ato, no mínimo, temerário, salvo em que a confusão se dá
não por questões formais, mas efetivamente substanciais.
Assim, é errada a "crença" de que um determinado
feito judicial deve ser sobrestado até que se tenha uma decisão pelo Tribunal
Marítimo, como errado também é "crer" na influência preponderante
desta sobre aquela.
Os componentes do Tribunal Marítimo, exatamente porque não
seguem a regra do princípio da investidura, encontram-se despidos de
jurisdição. Logo, eles não "dizem o direito ao caso concreto", mas
apenas emitem opinião técnica a respeito dos fatos que lhes são levados a
conhecimento. Embora denominados juízes, são, no máximo, árbitros.
Portanto, não se pode conferir caráter absoluto e
incontroverso à decisão do Tribunal Marítimo, uma vez que esta nada mais é,
repetimos, do que um mero parecer técnico, voltado apenas e exclusivamente aos
atos e fatos da navegação.
E se assim não fosse, grave vício haveria na decisão,
posto que técnicos estariam sendo indevida e
absurdamente equiparados a magistrados, tendo-se por ofendida a ordem jurídica,
com grave violação ao princípio constitucional da indelegabilidade
da jurisdição.
Tanto assim que as decisões do Tribunal Marítimo não fazem
"coisa julgada". Em verdade, sequer a garantia constitucional do
segundo grau de jurisdição encontra-se presente nas decisões do Tribunal
Marítimo, sendo isso mais um argumento favorável a
delimitação de sua natureza como a de simples pareceres técnicos.
Com efeito, das decisões do Tribunal Marítimo, consoante o
disposto no artigo 106 da Lei n.º 2.180/54, o único
recurso cabível são os embargos, desde que estes versem sobre matéria nova, ou
baseiem-se em prova posterior ao encerramento da fase probatória, ou ainda,
quando se tratar de decisão não unânime, que não é a hipótese.
"Art. 106 - É passível de embargos a decisão final
sobre o mérito do processo, versando os embargos exclusivamente sobre matéria
nova, ou baseando-se em prova posterior a encerramento da fase probatória, ou
ainda, quando não unânime a decisão, e, neste caso serão os embargos restritos
à matéria objeto da divergência."
De tal sorte, não resta outra alternativa
aos interessados, senão aguardarem sua revisão pela Justiça comum, uma vez que,
a par de eventual existência de novos fatos e provas, é medida imprescindível
que se dê nova interpretação a matéria discutida no âmbito administrativo.
Na mesma esteira SEABRA FAGUNDES (1) afirma:
"Hoje, por conseguinte, o Tribunal Marítimo é um
órgão de feição exclusivamente administrativa, não interferindo com o monopólio
jurisdicional do Poder Judiciário. As suas decisões, que são, em substância,
atos administrativos, caem sob a apreciação judicial como quaisquer outros atos
da administração pública".
E, sempre é bom lembrar que a natureza administrativa do
parecer-decisão do Tribunal Marítimo não contém a proteção dada ao mérito dos
atos administrativos em geral, de tal forma que o Poder Judiciário, em sendo o
caso, pode e deve rever o mérito de parecer-decisão, não se limitando, como no
caso dos atos administrativos em geral, apenas aos aspectos formais.
Se é possível a revisão do mérito
em si, com mais razão não se deve dar ao conteúdo do parecer-decisão caráter
absoluto, sendo mínima sua influência dentro de uma lide forense.
Há de se reconhecer a necessidade de reexame pelo Poder
Judiciário de decisão proferida pelo Tribunal Marítimo, vez que esta se
encontra desprovida da segurança jurídica necessária para por fim ao trauma
social, mesmo que somente
Ainda no âmbito das atribuições do Tribunal Marítimo,
importante se destacar o posicionamento de WALDEMAR FERREIRA (2):
"É tribunal técnico, sustentando-se, pois, que lhe
cabe definir a natureza, a amplitude e a causa determinante dos acidentes e
fatos da navegação; e esse atributo evidentemente não se lhe pode negar.
Cabe-lhe, ainda, fixar as responsabilidades em todos
acidentes e fatos da navegação a fim de, administrativamente, punir os
responsáveis. Mas não é o Tribunal Marítimo, de modo algum, órgão
jurisdicional. (... )"
Assim, é forçoso concluir que a decisão do Tribunal
Marítimo não restringe a matéria submetida a
apreciação do Poder Judiciário. O julgamento do Tribunal Marítimo estabelece
apenas uma presunção de certeza, mas não é absoluta e incontestável, sendo
absolutamente refutável, principalmente se o que estiver em análise pelo Poder
Judiciário for uma questão envolvendo o contrato de transporte (Direito das
Obrigações), universo totalmente distinto do contexto e da competência do
Tribunal Marítimo: "atos e fatos da navegação".
Neste sentido, destaca-se também o posicionamento de
THEOPHILO DE AZEREDO SANTOS (3):
"As decisões do Tribunal Marítimo, quanto à matéria
técnica referente aos acidentes e fatos da navegação têm valor probatório e se
presumem certas, sendo suscetíveis de reexame pelo Poder Judiciário (... )"
"A jurisprudência tem-se manifestado, de há muito, no
sentido de que as decisões do tribunal Marítimo são de natureza adminsitrativa, podendo ser apreciadas e revistas pelo
Poder Judiciário. Esta é, também, a lição de Seabra Fagundes".
Ressaltando-se as atribuições do Tribunal Marítimo, este
tem caráter sui generis,
sem qualquer eficácia vinculativa aos órgãos do Poder Judiciário, embora o
Tribunal Marítimo seja, em última análise, considerado órgão auxiliar deste.
Daí porque sua jurisdição é anômala dentro da sistemática jurídica brasileira,
da mesma forma que permite o emprego da expressão "processo" apenas
para fins didáticos no tratamento dos procedimentos adotados por esse Tribunal.
No julgamento das causas relativas aos fatos e acidentes
de navegação, o Tribunal Marítimo não pode exceder os limites de suas
atribuições e competência, sob pena de incorrer no arbítrio e ilegalidade.
Por outro lado, há de se enfatizar que ao Poder Judiciário
é dado conhecer toda a matéria arguida nos autos — em
toda a sua extensão — servindo de mero parâmentro a
decisão do Tribunal Marítimo que se encontra acostada nos autos, a fim de se
interpretar o já mencionado artigo 18 da Lei nº
2.180/54 combinado com o inciso XXXV do artigo 5º da Constituição Federal.
Neste sentido, destaca-se a parte final do voto do Juiz
Carvalho Viana (4), proferido em sede de Agravo de Instrumento:
"Se é verdade que o transportador responde
objetivamente pelo transporte da carga, também é verdade que ele pode se
exonerar da obrigação de indenizar, se provar o caso fortuito, ou a força
maior, que ora se alega. Portanto, não se pode desprezar a produção de provas,
no caso feita em sede própria, e que convém aguardar, ainda que o Poder
Judiciário não esteja obrigado a endossar a conclusão do Tribunal. Trata-se de
prova presumivelmente correta, e que só não subsistirá se for cabalmente
contrariada pela prova judicial."
Destarte, enfatizamos que a apreciação de uma decisão do
Tribunal Marítimo deve ser feita em consonância com o artigo 131 do Código de
Processo Civil, que informa o princípio do livre convencimento motivado do juiz
por ocasião do seu decidir.
Até porque se presume a existência nos autos de um dado
processo judicial provas técnicas mais robustas e confiáveis que a própria
decisão-parecer do Tribunal Marítimo, bem como a incidência, por meio de várias
fontes legais, da teoria objetiva imprópria e todo o seu rigor em termo de
responsabilidade civil por inexecução de contratos maritimistas.
Respeitar o posicionamento do Tribunal Marítimo é uma
coisa, concordar com ele é ofender a própria inteligência.
Defendemos, por fim, que o
parecer-decisão do Tribunal Marítimo só se presta para os atos e fatos
da navegação no âmbito puramente administrativo. Ao ser
migrada para uma lide forense envolvendo questões contratuais, seu
conteúdo deve ser relativo, rotulado como mero meio de prova, nem além, nem
aquém.
Notas
1 O Controle dos Atos
Administrativos pelo Poder Judiciário, Revista Forense 70/165
2 Revista de Direito
Mercantil, nº 04 - Ano I, p. 798/799
3 Direito da
Navegação, 2ª edição, Rio de Janeiro: Forense, p. 428
4Superior Tribunal de Justiça, RE nº 38.082 do Paraná, Rel. Min. Ari
Pargendler
* Advogado especializado
* Administrador
de Empresas, Especialista em logística e administração de transportes de
cargas, Diretor do IBDTrans
– Instituto Brasileiro de Direito dos Transportes.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6856>. Acesso em: 08 ago. 2006.