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A
Responsabilidade civil Subjetiva como Regra Geral do Novo Código Civil
Flávio Tartuce*
Texto elaborado em 23/06/2003.
A
responsabilidade civil surge em face do descumprimento obrigacional, pela
desobediência de uma regra estabelecida em um contrato, ou por deixar,
determinada pessoa, de observar um preceito normativo que regula a vida. Segundo
Maria Helena Diniz, a responsabilidade civil está relacionado com “a aplicação
de medidas que obriguem alguém a reparar dano moral ou patrimonial causado a
terceiros, em razão de ato próprio imputado, de pessoas por quem ele responde,
ou de fato de coisa ou animal sob sua guarda (responsabilidade subjetiva) ou,
ainda, de simples imposição legal (responsabilidade objetiva)”.[1]
Na realidade, o conceito de responsabilidade sempre esteve relacionado à lesão
do direito, segundo ensinava há muito tempo o clássico San Tiago Dantas:
“Quando é que existe lesão do direito? Existe em todas as vezes em que, o
direito de alguém é frustado pela circunstância de não ser cumprido o dever
jurídico que a ele correspondia.
................................................................................................................................
Esta noção de lesão do direito, é fundamental para compreender-se bem o tema
que se passará a estudar, o tema da defesa dos direitos.
Sempre que se verifica uma lesão do direito, isto é, sempre que se infringe um
dever jurídico correspondente a um direito, qual é a primeira conseqüência que
daí advém?
Já se sabe: nasce a responsabilidade.” (Programa de Direito Civil. Rio de
Janeiro: Editora Rio, 1979, p. 376).
Nesse contexto, tem-se, inicialmente, a responsabilidade civil contratual,
situada no âmbito da inexecução obrigacional e com o dever de cumprir com o
pactuado. Regra já prevista no Direito Romano, a força obrigatória dos contrato
traz princípio pelo qual as cláusulas contratuais devem ser respeitadas
rigorosamente, sob pena de responsabilidade daquele que as descumprir, por dolo
ou culpa. O contrato faz lei entre as partes, podendo o seu inadimplemento
gerar perdas e danos. O fundamento principal desta regra, na atual lei
codificada brasileira, está no artigo 389 do Novo Código Civil, que eqüivale ao
artigo 1.056 da Código Civil de 1.916.[2]
Paralela à responsabilidade obrigacional está a responsabilidade civil
extracontratual – denominada “aquiliana” pelos romanos diante da “Lex Aquilia
de Damno”, conceito que resiste -, oriunda do desrespeito ao direito alheio e
às normas que regem a conduta. Representando tal responsabilidade qualquer
inobservância de regra legal, tem previsão nos artigos 186 e 927, “caput”, do
Novo Código Civil.
Pela doutrina clássica francesa e pela tradução do art. 1.382 do Código
Napoleônico, os elementos tradicionais da responsabilidade civil são a conduta
do agente (comissiva ou omissiva), a culpa em sentido amplo (englobando o dolo
e a culpa “stricto sensu”), o nexo de causalidade e o dano causado.[3]
Seguindo essa concepção, nosso Direito Civil consagra como regra geral a
responsabilidade com culpa, tida como responsabilidade civil subjetiva. Ao
nosso ver essa era a regra geral anterior, totalmente mantida pela Lei nº
10.406, de 2002.
Afastando tal regra como preceito máximo, o Direito Comparado - principalmente
o Direito Francês, precursor da maior parte das idéias socializantes -, passou
a admitir uma outra modalidade de responsabilidade civil, aquela sem culpa. Dos
estudos de Saleilles e Josserand, pela aplicação da Teoria do Risco[4], surgem,
no ano de 1897, as primeiras publicações sobre a responsabilidade civil
objetiva.
O “estrondo” capitalista sentido na Europa com a chamada “Segunda Revolução
Industrial”, percursora de um novo modelo produtivo, trouxe conseqüências
jurídicas importantes: pela Teoria do Risco iniciou-se os debates para
responsabilização daqueles que fornecem atividades à coletividade.
Verificou-se, a par dessa industrialização, uma maior atividade estatal, bem
como a exploração econômica na sociedade massificada, o que justificaria a
aplicação daquela teoria emergente.
Mesmo com resistências na própria França, a teoria da responsabilidade sem
culpa vingou no Direito Comparado, atingindo também a legislação do nosso País.
O art. 15 do Código Civil de 1.916 representa a primeira tentativa “moderna” em
consagrar a nova regra, trazendo a responsabilidade civil do Estado por atos
comissivos de seus agentes. Emerge, portanto, a “responsabilidade civil por ato
de outrem”, conceito ligado à responsabilidade sem culpa.
Importante lembrar que, em complemento a tal dispositivo civil, a Norma
Fundamental de 1988, em seu art. 37, §6º, reforça a responsabilidade civil objetiva
do Estado, regra geral no nosso ordenamento jurídico, aplicada aos entes
públicos. Interessante aferir, nesse contexto, que o Poder Público foi o
primeiro ente atingido pela responsabilidade sem culpa, pela amplitude de sua
atuação frente aos cidadãos, o que passou a criar riscos de eventuais
prejuízos.
Tal possibilidade sepulta de vez o conceito do “Estado Mal” da Idade Média,
aquele que punia o mal pagador de impostos, justamente pela sobreposição de um
novo conceito de Estado Soberano; o “Estado Provedor”, muitas vezes
intervencionista, reproduzido após as interferências intelectuais e filosóficas
da Revolução Francesa e da Independência Norte-Americana.
No Direito Comparado, com a massificação dos contratos e o surgimento da “mass
consumption society”, a Teoria do Risco mergulhou no âmbito privado, pela
previsão da responsabilidade civil objetiva dos prestadores e fornecedores, por
danos causados aos consumidores vulneráveis.
Passou-se a admitir, também, ao lado do dever de indenizar independente de
culpa, a tutela coletiva dos prejudicados e a prevenção de danos ao meio
social. Sente-se uma nova revolução das relações privadas, com o surgimento de
tendências socializantes, abraçadas aos direitos individuais homogêneos,
coletivos e difusos.
Em nosso País, o aperfeiçoamento destes direitos sociais dá-se após o “Milagre
Brasileiro” dos anos 70, com a massificação das atividades privadas e o
incremento do movimento consumerista. Em 1985, surge a Lei 7.347, que
possibilita a defesa coletiva, intentada por órgãos legitimados, como o
Ministério Público. Após, a Constituição de 1988 trouxe em seu bojo todas as
tendências socializantes, como a defesa dos consumidores como norma
principiológica, a reparação de danos imaterias ou morais, o conceito de função
social da propriedade e os direitos naturais da pessoa humana.
Mais tarde, em 1990, o Código de Defesa do Consumidor consagra a
responsabilidade sem culpa como princípio inerente à defesa dos vulneráveis
desse relação negocial. Com tal previsão, pode-se concluir que houve a
consagração da responsabilidade sem culpa também nas relações privadas.
Ao lado do movimento consumerista, surgiu no Direito Comparado a tendência de
proteção do Bem Ambiental, tendo como fiel escudeira a responsabilidade sem
culpa dos causadores de danos ambientais. A previsão legal de responsabilidade
civil objetiva por danos ao meio ambiente é anterior à própria Lei
Consumerista, pela regra sintomática do art. 14, §1º, da Lei 6.938, de 1.981.
Mais tarde, os ambientalistas encontraram reforço legal na “Lei da Ação Civil
Pública”, e também na Constituição Federal que traz a proteção ao ambiente como
norma fundamental, sem prejuízos de outras legislações ordinárias que previam a
imputação penal por crimes contra o ambiente natural e artificial.
Diante dessa nova realidade, a nova codificação não poderia cometer o grave
equívoco de não regular a responsabilidade independentemente de culpa, sendo
certo que o art. 927, parágrafo único, passou a prever em sentido amplo a
responsabilidade objetiva nos “casos previstos em lei e quando houver um risco
criado” para os direitos de outrem.
“Dúvidas pairam no ar” em relação à expressão “risco criado” constante no
comando acima visualizado, defendendo alguns autores, diante da nova
codificação, a possibilidade de doutrina e jurisprudência trazerem casos de
responsabilidade objetiva, tese com a qual concordamos.
Entretanto, esse não é o objeto do presente trabalho, cabendo aqui somente
transcrever a interpretação dada ao dispositivo pelo corpo de juristas
integrantes do grupo de trabalhos da “I Jornada de Direito Civil”, promovida
pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, a quem coube
interpretar e enunciar sobre tal artigo:
“Enunciado nº 38 – Art. 927: a responsabilidade fundada no risco da atividade,
como prevista na segunda parte do parágrafo único do art. 927 do novo Código
Civil, configura-se quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do
dano causar a pessoa determinada um ônus maior do que aos demais membros da
coletividade”.[5]
Afastado maior debate quanto ao tema, lembramos que outros dispositivos trazem
hipóteses de responsabilidade objetiva na nova codificação, de forma explícita
ou implicitamente, inclusive pela comum interpretação que se tem dado há tempos
a tais hipóteses, pela própria aplicação da Teoria do Risco.
a) O artigo 43 do Novo Código Civil, que eqüivale ao já citado artigo 15 do
Código de 1916, traz, de maneira implícita, a responsabilidade objetiva dos
entes públicos por atos de seus agentes, em reforço ao que já prevê a
Constituição Federal de 1988.
b) O artigo 931 do Novo Código Civil prevê a responsabilidade objetiva das
empresas que fornecem produtos ao mercado de consumo. Tal dispositivo não
revogou o que prevê a Lei nº 8.078/90, em seus artigos 12, 18 e 19; sendo certo
que somente foi mantido tal comando na nova codificação porque quando da sua
elaboração o Código de Defesa do Consumidor ainda não existia em nosso
ordenamento jurídico.
c) O artigo 932 traz as hipóteses, na esfera privada, de “responsabilidade
civil objetiva por atos de outrem”, mesmas situações antes previstas pelo
artigo 1.521 do Código de 1916. Inovação importante é que o artigo 933 do Novo
Código prevê agora que tais casos não são mais de responsabilidade subjetiva
por culpa presumida (“culpa in vigilando” e “culpa in eligendo”), mas de
responsabilidade independentemente de culpa. Tal orientação, na verdade, vai de
encontro com a evolução doutrinária e jurisprudencial que se teve quanto ao
tema, apontada inclusive Rui Stoco, citando o Grande Caio Mário da Silva
Pereira:
“No resumo desse excepcional autor, ‘a responsabilidade indireta do empregador
percorre uma curva de cento e oitenta graus, partindo da concorrência da culpa,
caracterizada pela culpa in eligendo ou in vigilando; passando pela presunção
da culpa do preponente, e marchando para a responsabilidade objetiva, que de
iure condenado, será a meta próxima com a aplicação da teoria do risco’ (Caio
Mário, cit., p. 96)’.” [6]
d) O artigo 936 do Novo Código Civil traz a responsabilidade objetiva do dono
ou detentor de animal. Contrariando alguns autores de renome – entre os quais
as Professoras Maria Helena Diniz (Código Civil Anotado. São Paulo: Editora
Saraiva, 2002) e Regina Beatriz Tavares da Silva (Novo Código Civil. São Paulo:
Editora Saraiva, 2003), ousamos entender não ser este mais caso de culpa
presumida (“culpa in custodiendo” ou “culpa in custodiando”), mas de
responsabilidade objetiva, por aplicação analógica do artigo 933 e pelo fato do
dispositivo prever como excludentes de responsabilidade somente a culpa da
vítima e a força maior.
e) O artigo 937 do Novo Código Civil prevê implicitamente a responsabilidade
objetiva do dono de prédio por sua ruína, quando for patente a sua falta de
conservação e a necessidade de obras urgentes. Aqui, seguimos o entendimento de
Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery que anotam ser este, caso
justamente de responsabilidade independentemente de culpa.[7]
f) O artigo 938 do Novo Código Civil prevê também implicitamente a
responsabilidade civil objetiva por desfrestamento (“efusis et dejectis”),
hipótese em que o possuidor de prédio rústico ou urbano responde por objeto
sólido ou líquido que do mesmo cair, atingindo e prejudicando terceiro. Como a
lei prevê a responsabilidade do habitante da moradia, está excluída a
responsabilidade do locador no caso de arrendamento do mesmo. Em casos em que
não se pode determinar de onde caiu o objeto, a jurisprudência tem
responsabilizado objetivamente o condomínio (STJ-RT 767/194 e RSTJ 116/258).
g) Os artigos 734 e 750 trazem a responsabilidade objetiva do transportador,
nos casos de transporte de pessoas e coisas, respectivamente; hipóteses já
prevista pela doutrina e jurisprudência, pela aplicação analógica do decreto-lei
nº 2.681/12 e do próprio Código de Defesa do Consumidor. Fica excluída a
responsabilidade do condutor no caso de transporte benévolo ou carona, pelo que
prevê o art. 736 da nova codificação, inovação interessante também já analisada
pela melhor jurisprudência.
h) A primeira interpretação que se dá ao conceito de Abuso de Direito como ato
ilícito, previsto no art. 187 do Novo Código e que será objeto de outro
trabalho, é que o mesmo gera a responsabilidade independentemente de culpa.
Esse o entendimento do Enunciado número 37 da “I Jornada de Direito Civil”,
promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no
período de 11 a 13 de setembro de 2002. Também dessa maneira entende o casal
Nery, citando farta doutrina e jurisprudência, pretensiosamente aplicada a essa
hipótese. [8]
Como vários são os casos de responsabilidade independentemente de culpa no Novo
Código, alguns autores e articulistas passaram a defender que a objetivação é
regra geral de responsabilidade, pela própria adoção do Princípio da
Socialidade, tese com a qual não concordamos.
Primeiro, pela própria organização do Código, já que a Parte Geral traz como
regra, em seu artigo 186, a responsabilização somente nos casos em que a culpa
em sentido amplo estiver presente. Desse modo, para que o agente indenize o
prejudicado necessária a prova do elemento culpa, ônus que cabe, regra geral,
ao autor da demanda, pelo que prevê o artigo 333, inciso I, do Código de
Processo Civil.
Em reforço, cumpre lembrar que, de acordo com a ordem natural das coisas, a
regra vem sempre antes da exceção. Nesse sentido, percebe-se que o artigo 927,
“caput”, traz primeiro a responsabilidade com culpa, estando a
responsabilização objetiva prevista em seu parágrafo único, nos casos ali taxados,
justamente nas hipóteses em que não se aplica a primeira regra legal.
Segundo, porque entendemos que adotar a responsabilidade objetiva como regra
pode trazer abusos, beneficiando inclusive o enriquecimento sem causa, ato
unilateral vedado pela nova codificação, entre os artigos 884 a 886. Se hoje já
se fala em “Indústria do Dano Moral”, por exemplo, imaginemos então o impacto
social e político gerado pela adoção da corrente aqui repudiada.
Terceiro e por último, apontando razão histórica, cumpre lembrar que a “ Lex
Aquilia de Damno”, aprovada no III século antes de Cristo, previa como regra
geral a responsabilidade subjetiva, tendo surgido justamente em época em que se
tinha como regra a responsabilização independentemente de culpa, não aprovada pelos
romanos, pelo que mostrou a prática jurisdicional.[9]
Se a responsabilidade objetiva não foi aprovada em uma sociedade rudimentar
como a da época, imaginemos o estrago que poderia gerar se fosse adotada como
regra na sociedade atual, tão complexa e massificada.
Por tais razões, entendemos que a nova codificação continua adotando como regra
geral a necessidade do elemento culpa para fazer surgir a responsabilidade
civil e o conseqüente dever de indenizar. Isso, ao nosso ver, vai inclusive vai
de acordo com o Princípio da Socialidade, pelo caos que poderia gerar a adoção
de teoria ao contrário.
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fftartuce@uol.com.br
[1]Curso de Direito Civil Brasileiro. Volume VII. Responsabilidade Civil. São
Paulo: Editora Saraiva, 12ª Edição, 1998, p. 34.
[2] O artigo 1.056 do Código Civil de 1.916 foi objeto de obra de primeira
grandeza, de autoria do Professor Agostinho Alvim, intitulada “Da Inexecução
das Obrigações e sua Conseqüências”, referência sempre atual para todos
aplicadores do Direito.
[3] “Tout fait quelconque de l’homme, Qui cause à autrui un dommage, oblige
celui par faute duquel il est arrivé, a lé réparer”
[4] Caio Mário da Silva Pereira aponta que entre os franceses a conscientização
da teoria do risco deu-se porque não mais se acreditava quanto a efetividade da
teoria da culpa, insuficiente pelas mudanças sociais sentidas no começo do
século na Europa. (Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Editora Forense, 4ª
Edição, 1993, p. 19)
[5] Enunciado aprovado na I Jornada de Direito Civil, promovida pelo Centro de
Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, no período de 11 a 13 de
setembro de 2002.
[6] Responsabilidade Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, , 4ª
Edição, 199, p. 479.
[7] Código Civil Anotado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2ª Edição,
2003, página 494, nota 937. 2.
[8] Ob. cit. p. 255, notas 187.6 e 7.
[9] Correia Alexandre e Sciascia Gaetano. Manual de Direito Romano. Rio de
Janeiro: Sedegra Editora e Gráfica, 1968, páginas 223 a 228).
Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 02.07.2003.
*Advogado; Mestrando em Direito
Civil Comparado pela PUC/SP; Professor de Direito Civil do Instituto Exord e do
Curso Robortella.
TARTUCE, Flávio. A Responsabilidade Civil Subjetiva como regra geral no Novo
Código Civil. Disponível na Internet: http://www.mundojuridico.adv.br> Acesso
em 08 de agosto de 2006.