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A posse: uma digressão histórico-evolutiva da posse e de
sua tutela jurídica
Marcelo Colombelli Mezzomo
Bacharel em Direito pela Universidade Federal de
Santa Maria (UFSM) - RS, Assessor Jurídico do Ministério Público do Estado do
Rio Grande do Sul
Síntese: O texto aborda a
evolução da tratativa jurídica da posse desde o Direito Romano até os dias atuais,
com especial ênfase para a proteção possessória, perpassando pelas diversas
teorias que forneceram sustentáculo para a tutela jurídica da posse.
Sumário: Introdução;
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 estabelece, no artigo 1º,
inc. III e IV, como fundamentos da República Federativa do Brasil a “dignidade
da pessoa humana” e “os valores sociais do trabalho de da Livre iniciativa”.
No artigo 3º, inc. I, II e III, constam como objetivos
fundamentais dessa mesma Republica Federativa do Brasil “construir uma sociedade livre, justa e igualitária, garantir o
desenvolvimento nacional e erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais”.
Já o artigo 5º, inc. XXII e XIII, da CF/88 contempla o
direito de propriedade, cujo exercício, porém, condiciona-se pela função
social.
Para que os objetivos e fundamentos estabelecidos na
Constituição Federal sejam observados uma série de fatores terá de se fazer
presentes. A propriedade e a posse e sua disciplina jurídica são mecanismos
fundamentais para esse desiderato.
Lastimavelmente, a perspectiva histórica dos institutos
jurídicos é normalmente olvidada nos cursos de Direito, com o que jamais
poderemos compactuar, pois o Direito também é história, e não pode ser
compreendido de forma estanque, cristalizado em um tempo-espaço.
É o resgate da dimensão histórica da posse sob o prisma
jurídico a meta a que me proponho na presente abordagem, pois somente quando
compreendermos os institutos jurídicos em sua inteireza, vale dizer, em uma
perspectiva histórica, é que poderemos corretamente aplica-los a nossa
realidade, cientes de que o Direito é uma ciência social e um fenômeno dinâmico.
1 A
origem da posse
As mais simples espécies animais e vegetais se valem de
elementos do meio circundante para obter meios de subsistência. Em um grau mais
adiantado, esta relação de utilização chega a fazer-se, inclusive, em caráter
excludente, com o estabelecimento de territorialidade de indivíduos ou grupos.
Com o homem, desde o seu surgimento, não foi diferente.
Jamais saberemos quando surgiu a noção de posse, que em sua concepção primitiva
é um vínculo estabelecido entre um indivíduo ou um grupo e um determinado bem
da vida. Este vínculo pode ter um caráter exclusivamente individual, através do
qual um indivíduo se reconhece com senhoria sobre um bem, ou pode apresentar
institucionalização, vale dizer, reconhecimento por terceiros.
A própria noção de Direito é variável na história. Mas
utilizando a atual visão que temos do Direito, podemos afirmar que, certamente,
a posse esteve presente desde as mais primitivas formas de organização humana.
Destarte, a descoberta de um cadáver mumificado de
aproximadamente 4000 anos nos Alpes austríacos revelou, por exemplo, que o
indivíduo conduzia objetos pessoais.
Outras descobertas arqueológicas ainda muito mais antigas,
que remontam a períodos de dezenas de milhares de anos[i] [1] , às vezes centenas de milhares,
igualmente revelam a existência de uma relação de posse de indivíduos ou grupos
em relação a objetos ou áreas.
Mas os reduzidos conhecimentos sobre detalhes da
organização destas primitivas sociedades, sobretudo pela falta de registros,
faz com que a consideração do que seria a posse para elas não passe de
especulações.
Somente com o advento da era histórica, que se marca pela
escrita, é que passamos a ter subsídios seguros para aferir instituições
jurídicas.
Neste passo, é pertinente a invocação do magistério de
Astolpho Rezende, que ao falar da propriedade e da posse, apostila que “a posse
e a propriedade aparecem em constante relação entre os homens; a posse é um
fato natural; a propriedade uma criação da lei. Como nasceram uma e outra? É
inútil investigar-se, através das diversas teorias imaginadas e desenvolvidas
pelos filósofos e pelos juristas, a origem da propriedade, porque, frente a
fenômenos jurídicos, é bastante que pesquisemos a origem desses fenômenos na
organização romana, porque foi Roma que organizou o Direito, com uma extensa
projeção sobre o futuro.”[ii] [2]
Razão assiste ao eminente jurista, visto que o direito
romano é a base da pandectística[iii] [3] ,
em cujo trabalho se assenta a moderna construção da propriedade e da posse.
2 A posse
no Direito Romano
Ainda mesmo no Direito Romano é preciso termos cuidado já
que sob esta categoria pode ser descrito o Direito de um período de
aproximadamente 12 séculos[iv] [4] .
A respeito, pondera Vittorio Scialoja: “É impossível
dar-nos conta da propriedade romana, se antes não conhecermos, pelo menos em
suas linhas gerais, o desenvolvimento histórico do domínio, desde os seus
primórdios até o tempo de Justiniano. A história do Direito Romano
desenvolve-se em 12 séculos, durante os quais ocorreu a mais completa
transformação econômica e social do mundo moderno. Roma, de pequena comuna,
tornou-se soberana da Europa, então conhecida, da África Setentrional e de
parte da Ásia, sofrendo a mais radical transformação. Quando se fala, pois de
prosperidade romana é mister distinguir, se se fala da de Rômulo ou da de
Justiniano ou da propriedade de uma época intermediária”[v] [5]
Em que pese esta distinção, podemos afirmar que a
propriedade inicialmente era das gens,
surgindo, posteriormente a propriedade do Estado.[vi] [6]
Com a propriedade estatal, surgiu o dominium, poder conferido pelo Estado aos particulares sobre as
terras, o qual tomava a forma de concessões que se faziam através de um dos
seguintes instrumentos: assinationes viritanae,
por solicitação dos cidadãos; assignationes
coloniae, visando a fundação de uma nova colônia; ou pelas agri questorii, através de venda em
leilões pelos “questores”[vii] [7] .
A posse sobre a terra era exercida, assim, por três
formas. Pelo exercício do dominium
pela ocupação de terras devolutas e por concessões que asseguravam a mera
fruição, sem transferência do domínio, sendo esta última forma a agri occupatori, mediante o pagamento de
uma “pensão”, denominada vectigal,
paga ao Estado[viii] [8] .
A propósito deste último instituto, leciona Maynz: “As
distribuições, assignações e vendas de imóveis, que o Estado fazia aos
particulares sob garantia do povo romano - dominium
ex iure Quiritum - tinham sempre lugar após uma medição oficial prévia. As
outras terras, porque permaneciam como ager
publicus, não eram sujeitas a igual medição. Cada pai de família ocupava a
parte livre que julgasse conveniente, com a única condição de se conformar às
prescrições que regulavam o modo de ocupação. Daí o dar-se a tais terras a
qualificação de agri arcifinii ou occupatorii. Essas ocupações que, de
resto, não eram permitidas senão aos membros do populus romanus, não conferiam direito de propriedade, mas somente
uma posse que o Estado podia revogar a seu arbítrio, ma que entretanto,
protegia enquanto durava.”[ix] [9]
A perfeita dicotomia da propriedade e da posse, porém,
parece somente ter surgido a partir da promulgação da Lei das XII Tábuas.
Destarte, “o que parece verossímil é que o reconhecimento da posse somente apareceu
com a sua proteção por meio dos interditos. Isso só pode ter sido possível após
o triunfo da plebe. Só então começou o parcelamento da propriedade, pela
distribuição e arrendamento das terras.”[x] [10]
Mas é importante lembrar, com Pontes de Miranda, que
existia uma profunda diferença entre a concepção romana de posse e a moderna.
Acerca do tema, leciona o festejado jurista: “A diferença entre a concepção da
posse no direito contemporâneo, e a concepção romana da posse não esta apenas
na composição do suporte fático (nem animus
nem corpus, em vez de animus e corpus, ou de corpus, à
maneira de R. von Ihering): está na própria relação (fática) de posse, em que
os sistemas antigos viam o laço entre a pessoa e a coisa, em vez de laço entre
pessoas. No meio do caminho, está a concepção de I Kant, que é a do empirismo
subjetivista (indivíduos e sociedade humana), a partir da posse comum
(Gesamtbesitz) dos terrenos de toda a terra.”[xi] [11]
Como se observa, a concepção romana ainda é a da relação
entre homem e coisa[xii] [12] ,
o que contraria o postulado que embasa o Direito Contemporâneo segundo o qual
inexiste relação entre homens e coisas, mas somente entre homens, tendo por
objeto coisas.
Mas como era a proteção posssessória no Direito Romano?
Respondendo, apostila Joel Dias Figueira Júnior[xiii] [13] : “Duas teorias procuram
justificar a origem histórica da proteção possessória no Direito Romano. A
primeira, criada por Niehbur, defendida por Savigny e mais modernamente por
Albertario e Burdese, defende a tese da providência de caráter administrativo à
tutela da antiga possessio dos
ocupantes do ager publicus, à medida
que, não sendo proprietários (a terra pública não poderia ser objeto de
propriedade dos particulares), ficavam sem a proteção judicial existente; por
este motivo, os pretores passaram a proteger a situação possessória através da
concessão dos interditos, proteção esta difundida posteriormente para as demais
posses. A segunda teoria, defendida por Ihering, dentre outros, e aceita pela
maioria dos estudiosos da atualidade, preconiza que a gênese da proteção
interdital encontra-se no poder outorgado ao pretor, nas ações
reivindicatórias, de conceder provisoriamente (até sentença final) a posse da
coisa litigiosa a um dos litigantes”
Consoante lembra o autor, citando a Moreira Alves, a
segunda teoria encontra escudo no fato de que “muitos institutos jurídicos em
Roma surgem graças a incidentes processuais”, sendo que a proteção possessória
nas ações reivindicatórias seria anterior ao ager publicus.
A respeito dos pretores, ensina Astolpho Rezende: “Nos
primeiros tempos, a justiça era exercida pelo rei, mais tarde pelos cônsules,
pelos decênviros e pelos tribunos consulares. Com o correr do tempo, o encargo
de administrar a justiça passou dos cônsules aos censores; e finalmente, quando
os plebeus foram admitidos ao Consulado, a casta dominante acreditou agir
habilmente, criando, ao lado dos cônsules, uma magistratura análoga,
exclusivamente acessível aos patrícios, com as atribuições antes exercidas pelo
prefeito da cidade. É a partir desta época (ano 387), que vemos figurar como
magistrado ordinário o Pretor Urbanus
isto é, o magistrado consular com poderes restritos á cidade de Roma.”[xiv] [14]
Pontes de Miranda, de seu turno, assevera que “a origem
dos interditos romanos prende-se à paz quanto à terra – à proteção da pessoa ou
das coisas contra a violência e o
arbítrio.(…) Longe já se estava dos interditos para a proteção da liberdade e
do status familiae, da democracia
grega e do movimento igualitário cristão. Stölzel (Jahrbücher für die Dogmatik,
VII, 147) tentou provar que todos os interditos protegiam na origem a pessoa, e
só indiretamente a coisa, mas incorria no erro de cindir a pessoa e suas
necessidades, para acentuar aquelas, tal como outros exageraram a proteção às
coisas. Os interditos, no fundo, serviam à vida, à vida tal como exsurgia, sem
peias das combinações conceptuais. Nem viam eles a diferença entre res nullius e res quae alicuius sunt (L, 1, pr., D, de interdictis, 43, 1).
No intuito de protegê-lo, tratavam o próprio homem livre como coisa, res nullius.”[xv] [15]
Neste contexto de expansão do Direito Privado e dos
poderes interditais do praetor, é que
se firma a proteção possessória. A propósito, pertinente a lição de Astolpho
Rezende, verbis: “A exploração das
terras em comum já tinha desaparecido desde muito tempo, e a idéia da
propriedade privada se tinha estendido também ao solo, até chegar a quase
eliminar toda a diferença entre relações jurídicas sobre imóveis e os bens de
raiz, e se havia realizado uma certa mobilização da propriedade territorial, ao
estender-se aos imóveis a forma aquisitiva da propriedade sobre imóveis (a mancipatio). As terras do ager publicus eram arrendadas ou
deixadas á livre ocupação dos que quisessem pagar um tributo moderado. Não
obstante, o adquirente não obtinha deste modo a propriedade privada. Era uma simples posse, tolerada
pelo Estado (occupatio), ou regulada
administrativamente (ager publicus).[xvi] [16]
O que parece certo, portanto, é que a proteção possessória
está intimamente atrelada à ascensão dos plebeus e aos poderes interditais dos
pretores, que a ela sucedeu, em um quadro de crescente ampliação do direito
privado, sendo materializada através dos interditos.
Mas como funcionavam os interditos e quais eram eles?
Responde Astolpho Rezende: “A ordem contida no interdito, ao invés de ser
notificada ao juiz, como a que era incerta na fórmula de uma ação, era dirigida
ao réu (interdito simples) e por vezes às duas partes (interdito duplo). Estava
subordinado a condições determinadas. Em caso de contravenção, ou se não
julgasse o réu no caso visado pelo magistrado ou recusasse cientemente
obedecer, um juiz seria encarregado, nas formas ordinárias do processo, de
verificar se as condições do interdito existiam, e de pronunciar, caso
coubesse, uma condenação. As partes deveriam se apresentar as duas vezes
perante o magistrado: primeiramente para obter o interdito; depois para
organizar uma instância, a fim de fazer constatar se o interdito tinha sido
violado.”[xvii] [17]
Joel Dias Figueira Júnior, de seu turno, esclarece que os
interditos variavam de acordo com a espécie de posse. Diz ele:“No tocante aos
instrumentos judiciais propriamente ditos, destinados à proteção possessória,
encontramos variação de acordo com o tipo de posse objeto da lide (possessio civilis, possessio ad interdicta
e possessio naturalis) e conforme o
período da evolução do direito romano (clássico, pós-classico e justinianeu).”[xviii] [18]
Quanto aos tipos de interditos, apostila Francisco Antônio
Casconi, verbis: “Examinada a
excepcional defesa direta da posse, tradicionalmente a proteção opera-se
através de ações especiais denominadas interditos. O interdictum tem origem no direito romano como criação pretoriana
que consistia numa ordem do magistrado romano, solicitada por uma pessoa
privada, determinando a outra pessoa um fazer ou abster-se. O vocábulo
interdito advém de interim dicuntur,
traduzindo a efemeridade da decisão proferida no juízo possessório, cuja
finalização só se alcança no juízo petitório, representando as atuais ações
possessórias (manutenção, reintegração e intedito proibitório) formas evoluídas
de antigos interditos do direito romano.”[xix] [19]
Segundo o mesmo autor, três eram os interditos, a saber: adispiciendae possessionis, retinendae
possesionis e recuperandae possesionis[xx] [20] . O primeiro
destinava-se a conferir a posse àquele que estivesse litigando em juízo,
fazendo às vezes da ação de imissão de posse na atualidade. O intedictum retinendae possessionis como
a própria etimologia revela, destinava-se a manter a posse, evitando a
turbação, independentemente da propriedade, podendo ser de móveis (utrubi) ou de imóveis (uti possidetis).
Como lembra Joel Dias Figueira Júnior, “estes dois
remédios apresentavam duas características, quais sejam, a proibição e a
duplicidade, tendo em vista que ambas as partes eram proibidas de fazer alguma
coisa.”[xxi] [21]
Mais adiante, arremata, ainda a respeito do intedictum retinendae possessionis causa: “Também, via de regra, nem toda a
posse era tutelada, mas somente aquela que não tinha sido obtida por meio de vi, clam ou precário (na etimologia clássica denominada de possessio iusta em oposição àquela iniusta ou vitiosa), em
relação à parte contrária.”[xxii] [22]
Já o interdictum
recuperandae possessionis fazia a função da ação de reintegração de posse
hodierna. Eram de três espécies diferentes, quais sejam: unde vi, interdito de precarium
e interdito de clandestina possessione.
O primeiro era concedido, somente no período de um ano do esbulho, para
reintegrar na posse aquele que sofresse esbulho, ao “que era violentamente
expulso do imóvel”[xxiii] [23] .
Desdobrava-se em duas espécies de acordo com a forma de violência: interdito de
“vi cotidiana”, se fosse a violência
comum, e interdito de “vi armata”, caso
a violência fosse incomum.[xxiv] [24]
Mas o que caracterizava a violência como comum ou incomum?
A violência dita “comum” era aquela exercida diretamente
pelo réu, por seus escravos ou mandatário. A violência incomum, ou vi armata, era aquela na qual uma
multidão, ou ainda uma ou muitas pessoas armadas exerciam a violência.[xxv] [25] Posteriormente,
os dois interditos, que eram pertinentes somente para imóveis (somente no
direito bizantino foram estendidos aos móveis), fundiram-se em um só, o “de vi” ou “unde vi.”[xxvi] [26]
A segunda espécie era utilizada pelo
possuidor-proprietário em vista do possuidor precarista diante da existência de
um precarium, que era uma convenção
através da qual se permitia a utilização da coisa por outrem. Inicialmente, era
aplicado somente aos bens imóveis, mas posteriormente, na era clássica, foi
estendido aos móveis, tendo desaparecido na codificação justinianéia, quando
foi substituído pelo interdito de vi.[xxvii] [27] Caso
o proprietário, e possuidor indireto, pretendesse reaver a posse e não contasse
da aquiescência do precarista, poderia valer-se do interdito. Já o terceiro
interdito (de clandestina possessione)[xxviii] [28] ,
somente surgiu no final da idade clássica, e era utilizado contra o esbulho
clandestino.[xxix] [29]
No direito pós-clássico, foi criado o interdictum (ou actio) momentariae possessionis, meio mais
expedito e eficaz de permitir que o que fosse desapossado sem violência pudesse
reaver sua posse, mesmo trinta anos depois.[xxx] [30]
Perquirindo acerca da principiologia envolvida nos
interditos, salienta Serpa Lopes que “para os jurisconsultos romanos, sendo a
posse um simples fato, a despeito
disso devera de ser respeitado unicamente em face dos efeitos por ele produzidos.
O possuidor pela circunstância de o ser,
possui mais direitos do que o que não o é. O Pretor não indaga do possuidor
qual o tempo de sua posse nem o título em que se firma; é lhe bastante dizer: possideo quia possideo.”[xxxi] [31]
O Direito Romano terá grande influência, ecoando no
ocidente até hoje.
3 A Idade
Média
O período compreendido na Idade Média vai desde a queda de
Roma, por volta de 472 da Era Cristã até o Renascimento, cujo marco é a queda
de Constantinopla (século XV).
A organização político-social do período está estruturada
no feudalismo, cuja base reside, dentre outros fatores, na propriedade e na
posse da terra.
Não existem Estados como hoje os conhecemos, mas feudos,
nos quais o Senhor Feudal concede a posse da terra através do estabelecimento
de uma relação de “vassalagem”, na qual o vassalo presta serviço militar, e
ainda paga pela utilização da terra.
Ao lado da fragmentação política, assistimos à fusão de
elementos culturais e institutos jurídicos de diversas origens, especialmente
das denominadas “tribos bárbaras” (godos visogodos, astrogodos, suevos etc..),
povos de origem germânica cuja expansão está intimamente ligada à queda de
Roma, além da influência do Direito Canônico (além dos próprios elementos culturais
e jurídicos germânicos).
É a época dos glosadores e pós-glosadores, como Baldo de
Ubaldis e Bartolo de Saxoferrato. A respeito do conceito de posse dos
glosadores, calha invocação o magistério de Pontes de Miranda: “Nos glosadores,
com o método dialético inaugurado, nas Summae,
por Irenério (H. Fitting, Summa Trecensis,
VII s.), começou o labor científico mais sério após o dos grandes
axiomatizadores romanos (Nenhuma alusão dos glosadores ao animus domini, porque era estranho aos textos). A posse, para eles,
é relação fática, todavia sem que percebessem que, relação social, tinha de ser
com as outras pessoas. O autor da Summa
Trecensis via na posse o corpo do sujeito em contacto com o corpo da coisa.
Não se pode dizer que o étimo de possessio
tenha sido a causa de tal concepção, mas foi aproveitada para isso. Partindo da
relação tão material, tinham os glosadores de cair na distinção entre a possessio vera e a possessio interpretativa, artificialis
ou fictícia, criada essa pelo
direito.(...) A aquisição da posse tinha de ser pela apreensão corporal, o que
de si só faz ressaltar quão estreita era a concepção dos glosadores. O ato-fato
jurídico da tomada da posse tinha de ser para eles, Placentino à frente, actus corporalis, posto que se admitisse
a traditio ficta, a traditio por interpretationem (Summa Codicis, 417).”[xxxii] [32]
Conclui por fim, lembrando que “para a concepção romana e
da glosa, alieno nomine possidere não
era possuir; mas Placentino explicava que não só o possuir alieno nomine pré-exclui a posse: há os que têm para si e não
possuem. Não podemos exigir mais dos glosadores do que eles fizeram, fizeram o
que podiam.”[xxxiii] [33] Os
pós-glosadores seguiram nesta esteira, apenas dando maior atenção aos detalhes.
Quanto ao direito canônico, “aplicando embora os textos
das leis romanas e os interditos, introduziu-lhes algumas modificações. O
pensamento da Igreja era proteger a posse contra toda e qualquer violência,
mesmo contra aquelas que se apresentavam com aparências jurídicas.”[xxxiv] [34]
Segundo apostila Serpa Lopes, “uma radical transformação
da concepção de posse sobreveio por força de um novo sentido trazido com as
leis canônicas. Tal transformação manifestou-se em duas direções: primeiro,
pelo alargamento da posse, cujo conceito ampliou-se para compreender não só as
coisas corpóreas como ainda os próprios direitos; em segundo lugar, quanto a
certos princípios inerentes à espoliação, por haver consagrado o exceptio spolii.”[xxxv] [35]
O primeiro instituto acrescido pelo direito canônico foi a
exceptio spolii, sobre a qual
disserta Astholpo Rezende, in verbis:
“O primeiro remédio encontrado pela Igreja foi a exceptio spolii que foi introduzida pelos meados do século IX. A
idéia que deu nascimento a este remédio era que o bispo, expulso de sua sede e
despojado de seu poder e de seus bens, dificilmente podia se defender contra as
acusações de poderosos inimigos, e ficava exposto a sucumbir freqüentemente na
luta contra estes potentados. Então se dispôs que um bispo, expulso de sua sede
ou despojado de seus bens, não podia, neste estado de inferioridade, ser objeto
de procedimento criminal, enquanto não fosse reposto na sua situação; tinha
direito a se defender com a exceção de esbulho, alegando que não podia ser
processado enquanto não fosse recolocado na posse de tudo quanto lhe tinha sido
retirado. Era isso a exceptio spolii,
que não era uma simples exceção dilatória, mas um meio de defesa que implicava
uma ação de restituição da posse esbulhada.”[xxxvi] [36]
Tinha-se nesta época, as denominadas decretais, que eram
compilações de normas editadas pelos pontífices, como, por exemplo, a decretal pseudo-isidoriana, ou o Decreto de Graciano, sendo que a partir
deste último surgiram dois instrumentos de proteção: a actio spolii e a exceptio spolii.
A excptio spolii
“tornou-se um simples meio dilatório, uma exceção dilatória, expediente
processual de que se podia prevalecer o possuidor, despojado de seus bens,
tanto no cível como no crime, para obter uma dilação, que o habilitasse a
previamente reclamar em juízo a restituição dos bens esbulhados.”[xxxvii] [37]
A actio spolii,
por outro lado “era a verdadeira ação de esbulho, era dada, pela glosa do
Decreto, a todo possuidor, esbulhado contra sua vontade; visava a restituição,
e intentava-se, não somente contra o esbulhador, mas também contra o terceiro
possuidor, posto que de boa fé.”[xxxviii] [38]
Quanto ao direito germânico, o principal legado no tocante
à posse é o instituto da Gewere[xxxix] [39] ,
a respeito da qual discorre Nelson Nery Júnior: “Instituto do direito germânico
distinto da posse (possessio) e
desconhecido dos romanos, a Gewere era a investidura justa (recht Gewere) que fazia de alguém na
posse da coisa (de início somente móvel, mas depois imóvel também), independentemente
da apreensão física (corpus) ou intenção de possuir (animus), fazendo com que se criasse uma aparência (presunção) de que o investido fosse realmente o
possuidor (princípio da publicidade). Exemplo: posse do herdeiro. Não se
limitava a afirmar que o investido era o titular do direito, porquanto a Gewere
também tinha função legitimadora dos negócios jurídicos que o investido
celebrava com terceiros de boa-fé, que com ele contratavam sob essa aparência,
constituindo-se em situação jurídica que independia da existência do verdadeiro
direito material.”[xl] [40]
Ainda a respeito da Gewere leciona Pontes de Miranda com a
percuciência que lhe é peculiar: “A abstração do animus é de origem germânica, pois a Gewere, a saisina, a vestidura, a investidura, do direito medieval alemão, é
puro poder fático sobra a coisa, de modo que, sem o animus dominationis, se podia ser possuidor(...). Não é de se
espantar que a palavra ‘Gewere’ também tivesse o sentido de posse-direito
(conjunto dos direitos e deveres derivados do poder fático sobre a coisa): a
diferença entre a concepção romana e a germânica já se caracteriza na
composição do suporte fáctico; o que uma considerava indispensável a outra
dispensava (o animus). Depois de
entrar no mundo jurídico o suporte fáctico, que podia ou não ser suficiente
para o direito romano, a irradiação de efeitos do fato jurídico era normal; e
daí falar-se em ‘Gewere’ como conjunto de direitos, deveres, pretensões,
obrigações, ações e exceções derivados do poder fáctico sobre a coisa.”[xli] [41]
As diferenças com o Direito Romano evidenciam-se, pois “no
Direito Romano antiguíssimo, a propriedade individual era obumbrada e
sobrepujada pela propriedade em comunhão, de modo que carecia de importância.
Era uma situação diversa d do Direito Romano, onde preponderava a propriedade
individual. Por isso, no Direito Germânico, sendo a posse apenas uma
manifestação exterior do direito, correspondentemente em valor ao próprio
direito representado, não podia por si mesma ser aparelhada de proteção.”[xlii] [42]
Da subordinação da posse ao domínio operada pelo direito
germânio resulta que “de início os germanos não conheceram senão uma
propriedade só e uma forma exclusiva de posse: a do proprietário, o qual foi
único a usar o imóvel por direito próprio, enquanto os braços, dos quais se
servia para a cultivação do solo, eram unicamente os dos servos. Todavia, na
época carolíngia, a propriedade foi sendo fracionada entre o senhor da coisa e
o denominado livelário. Então
sobreveio uma outra diferença entre o Direito Romano e o germânico; o primeiro
manteve a posse do proprietário sobre a coisa, e criou a iuris possessio do terceiro titular de um direito real, enquanto o
segundo deixou a idéia de posse se desenvolver e proliferar.”[xliii] [43]
Após o Renascimento, a fusão dos Direitos Romano,
Germânico e Canônico ainda continuava servindo de base, passando a viger, no
Brasil, as Ordenações Reinícolas (Afonsinas, Manuelinas e Filipinas).
Neste período, ocorre a descoberta do “novo mundo”, e
consolida-se o Estado Absolutista, que suplantou o feudalismo.
4 O
Direito Reinícola
O direito reinícola compreende um extenso período que se
estende desde antes da era das descobertas até o século passado, lapso no qual
três ordenações vigeram no direito português: Afonsinas, Manoelinas e
Filipinas.
Acerca da tratativa do tema nas Ordenações Afonsinas,
colhe-se o magistério de Joel Dias Figueira Júnior, segundo o qual “mantendo a
tradição romana do estabelecimento de um procedimento ‘sumário’ diferenciado
para as ações interditais, as Ordenações Afonsinas dispõem sobre a matéria no
Livro III, Títulos LII e LIII, admitindo a concessão de tutelas provisória
urgente em favor do esbulhado, desde que a ofensa tivesse ocorrido no prazo de
ano e dia. Em síntese, segundo se infere do caput, o citado em demanda de força nova, isto é, aquela ajuizada no
prazo de ano e dia, a contar da data da ofensa, deverá logo oferecer resposta,
não havendo outro prazo para tanto”[xliv] [44] (grifo do autor citado).
Tratando da tutela antecipatória, e reportando-se ao
Título III, parágrafo 1º, lembra que “em termos de tutela antecipatória, dispõe
claramente a primeira parte do dispositivo aludido no sentido de que o
esbulhado possa recuperar de início a posse, devendo a concessão ser deferida
pelo juiz sem maiores delongas, livrando o ofendido da situação de moléstia.”[xlv] [45]
O procedimento era breve, sumário, sendo, inclusive,
desnecessária a citação da parte para ouvir a sentença, que era prolatada no
estado em que se encontrasse o processo.
Já no Código Filipino, “a matéria pertinente à antecipação
da tutela possessória aparece regulada em três momentos distintos: no Livro
III, primeiramente no Título XL, que trata da situação ‘do que nega star em
posse da cousa que lhe demandam’; em segundo lugar, no Título LXVIII, que
dispõe ‘que em feito de força nova se proceda sumariamente sem ordem de Juízo”,
e, por último, no Livro IV, Título LVIII, que trata da hipótese ‘dos que tomam
forçosamente a posse da cousa que outrem possui.”[xlvi] [46]
Também estava contemplado o interdito proibitório sob a
forma dos denominados “embargos à primeira”.
As ordenações vigeram no Brasil praticamente até o advento
do Código Civil de 1916.
5 As
concepções modernas da posse e sua proteção
As concepções modernas da posse surgem da fusão do
pensamento neo-kantista com a pandectística. Trata-se de uma visão permeada
pelo suporte filosófico do iluminismo.
A propósito, lembra Pontes de Miranda que “a elaboração da
teoria da posse tal como chegou a ser no século XX, com os Códigos Civis
alemão, suíço e brasileiro, retrata a luta da psique humana por apanhar o
conceito mais conveniente e o conteúdo mais preciso da posse. Alguns conceitos
e algumas soluções de lege lata
revelavam que não se tratavam igualmente relações relativamente iguais, ou mais
merecedoras de tutela possessória (eg. o usufrutuário e o crédito
pignoratício). Foi pena que os glosadores e os pós-glosadores e os juristas da
renasncença não houvessem separado o problema de iure condito e o problema de iure
condendo. A evolução teve de operar-se dentro de exposições dialéticas e de
tentativas de adaptação do conteúdo dos textos ao direito que deveria ser.”[xlvii] [47]
A respeito do pensamento de Kant, que é um dos marcos na
evolução do concito de posse, leciona Pontes de Miranda, in verbis: “A concepção da posse, segundo I Kant, e a concepção
antiga da posse têm, entre si, todo o abismo que se cavou entre a filosofia
platônica e a filosofia moderna. Para os juristas antigos, a relação de posse
não só existe a priori,
independentemente do ordenamento social e jurídico, como, também é entre pessoa
e coisa, donde ser condicionada por aquela e por essa. Para a filosofia
kantiana, a relação possessória é entre pessoas, embora concernente à coisas.
Se alguém possui, os outros estão como que diante dessa posse, ou sofrem essa
posse. Quem possui tem, no espírito, a consideração de todos os que poderiam,
se se achassem de posse da coisa, de opô-la ao que ora a possui. Se alguma
coisa é minha, é porque posso presumir
que seja possível ser prejudicado pelo ato de outrem. Além, disso, para
I. Kant, a posse é o poder físico de usar, arbitrariamente, a coisa. Portanto:
têm os outros de abster-se, para que se não turbe, ou se não esbulhe a posse
que tenho. Essa posse é mais do que o corpus
dos juristas romanos, porque é mais do que o contacto com a substância física da coisa; supõe que os outros se
hajam de abster de tomar a coisa, ou de perturbar-me o poder que tenho sobre
ela. Via ele, além da posse sensível, a posse intelegível, independentemente do
elemento empírico, e baseada em determinação prática do arbítrio. Além da potestas, seria preciso, para a posse,
que no mundo do pensamento, se tivesse a coisa como sob o arbítrio de quem a
‘possui’”.[xlviii] [48]
Como se observa, Kant já progride ao estabelecer uma
relação entre pessoas em vista de uma coisa, e não entre pessoas e coisas. Mas
ainda falta substância e estruturação aos conceitos, o que somente vai ser
atingido com os estudos de Jhering e Savigny.
Consoante Astolpho Rezende, referindo-se ao tratado de
Savigny, “antes do aparecimento desse sábio e famoso livro, cuja primeira
edição foi publicada em 1803 e a Sexta em 1837, diz outro sábio tratadista J.P.
Molitor, uma confusão extrema reinava na matéria da posse em direito romano. Jurisconsultos
de mérito tinham mesmo pensado que as dificuldades eram insuperáveis, e não
hesitaram em atribuí-las a divergências de opiniões que teriam existido entre
os próprios jurisconsultos romanos. As contradições que se acreditavam
encontrar nos textos não tinham, entretanto, por causa senão a ignorância em
que estava da verdadeira significação das palavras possessio, civilis possessio, naturalis possessio, cuja arbitrária
interpretação foi fonte de erros sem número.”[xlix] [49]
Pontes de Miranda, por sua vez, afirma que “o século XVIII
passara sem que se enriquecesse a teoria da posse. A nova atitude volve ao animus domini, fundindo os conceitos de
posse ad interdicta e de posse ad usucapionem. A posse ad interdicta seria, em verdade, a única.
A ela opõe-se a detenção; e distinção entre elas apenas tem por fito responder
á questão de caber, ou não, na espécie, a proteção interdital. Só a detenção
com animus, intencional, produziria
posse; portanto no animus domini é
que estaria o elemento distintivo. Possuidor é quem tem o intuito de exercer o
direito de propriedade. Mas de exercer o seu direito de propriedade, não o de
outrem; por conseguinte, o animus
possidendi é apenas o animus sibi
hebendi. Só o poder fático do proprietário, que o não proprietário, tendo o
animus sibi habendi, também tem, criaria a posse”[l] [50] .
A teoria de Savigny, “denominada subjetivista, reconhece a
posse mediante a conjugação de dois elementos: corpus (efetivo contato físico com a coisa ou mera possibilidade de
exercer esse contato=detenção) e animus
(elementos subjetivo consistente na intenção de exercer sobre a coisa um poder
no interesse próprio). Em síntese, para Savigny por posse entende-se o poder de
dispor fisicamente de uma coisa, combinado com a convicção do possuidor de que
tem esse poder”[li] [51]
Um de seus fundamentos básicos “é que o conceito
originário da posse, tal como resulta do Direito Romano, referia-se unicamente
às coisas corpóreas, possessio a pedibus ou a sedibus; daí a regra já assinalada, possideri autem possunt quae sunt corporalia, quia nec possidere
intelligibur jus cincorporale.”[lii] [52]
A posse, portanto, no conceito de Savigny, compõe-se de
dois elementos, quais sejam o corpus
e o animus. “O corpus é o elemento
material que se traduz no poder físico sobre a coisa ou na mera possibilidade
de exercer este contato, ou melhor, na detenção do bem ou no fato de tê-lo a
sua disposição. O animus domini
consiste na intenção de exercer sobre a coisa direito de propriedade.”[liii] [53]
De lembrar, com Sílvio Rodrigues, que “os dois elementos
são indispensáveis para que se caracterize a posse, pois, se faltar o corpus, inexiste relação de fato entre a
pessoa e a coisa; e, se faltar o animus,
não existe posse, mas mera detenção.”[liv] [54]
Assim sendo, concluímos, com Astolpho Rezende, que “o que
Savigny doutrinou com o império de sua grande autoridade, foi que o animus possidendi, a vontade de possuir,
não é mais do que a intenção de exercer o direito de propriedade. Para, no seu
conceito, ser considerado possuidor, é necessário que aquele que detém a coisa
se comporte a seu respeito como proprietário dela; que pretenda dispor dela, de
fato, da mesma maneira que o faria o proprietário. Que trate a coisa como
própria, sem sujeição a outra vontade superior. De sorte que o possuidor, para
que como tal seja considerado, deve ter animus
domini, animus rem sibi habendi, intenção de dono, de ter a coisa como sua
própria; em outros termos, que pretende de fato dispor da coisa como o faria o
proprietário em virtude do seu direito de propriedade.”[lv] [55]
Savigny, consoante o mesmo autor, dividiu as pessoas em
quatro categorias a saber: o proprietário verdadeiro; o que detém a posse em
virtude de jus in re, denominado por
ele de usufrutuário; o que detém a coisa em virtude de vínculo contratual,
citando como exemplo o arrendatário, e, por fim, o que detém a coisa em nome de
outrem, ou seja, o mandatário.
Diversa é a concepção de Jhering, defendida em dois
trabalhos: “Fundamento dos Interditos Possessórios”, e do “Papel da Vontade na
Posse”.
Trata-se de Teoria Objetivista, que “prioriza o corpus na caracterização da posse,
assumindo o vocábulo, contudo, sentido outro, afastado do simples contato
físico ou possibilidade de ter a coisa à disposição, mas efetiva conduta de dono.
Possui quem age como dono, surgindo a posse como exteriorização da propriedade,
visibilidade do domínio ou uso econômico da coisa”[lvi] [56] . Ou seja, “para constituir a
posse basta o corpus, dispensado o animus, elemento de escasso valor, longe
de ser essencial. Jhering não contesta a necessidade do elemento intencional,
não sustenta que a vontade deva ser banida; apenas entende que esse elemento
implícito se acha no poder de fato exercido sobre a coisa.”[lvii] [57]
O porquê desta concepção é explicado por Washinton de
Barros Monteiro: “É que o corpus
constitui o único elemento visível e suscetível de comprovação, encontrando-se
inseparavelmente vinculado ao animus,
do qual é manifestação externa, como a palavra se acha ligada ao pensamento, do
qual é expressão.”[lviii] [58]
Destarte, “para Jhering o que importa é o uso econômico ou
destinação econômica do bem, pois qualquer pessoa é capaz de reconhecer a posse
pela forma econômica de sua relação exterior com a pessoa”[lix] [59] , já que “posse não significa
apenas detenção da coisa; ela se revela na maneira como o proprietário age em
face da coisa, tendo em vista sua função econômica, pois o animus nada mais é que o propósito de servir da coisa como
proprietário.”[lx] [60] E
pondera, Astolpho Rezende, acerca dos argumentos do jurista tedesco: “Se a
chave da discussão entre posse e a detenção residisse na vontade, a questão de
saber se há posse ou detenção ficaria abandonada à vontade individual daquele
que se encontrasse na relação possessória; se ele se pronuncia pela posse, há
posse. Se não, não há mais que detenção. Desta forma, ficaria inteiramente
dependente da vontade das partes ligar a posse a uma relação possessória que o
direito romano não tinha senão por detenção, e vice-versa(...). A conseqüência
última deste sistema seria abandonar-se completamente a natureza da relação
possessória ao puro capricho daquele que tem a coisa; teria ele, segundo a
vontade do momento, ora a posse, ora a detenção.”[lxi] [61]
A conclusão é que “os elementos constitutivos da detenção
são os mesmos da posse: o corpus e o animus existem, tanto no detentor, como
no possuidor. Mas não é sobre a vontade que se baseia a distinção entre a posse
e a detenção; a relação entre posse e a detenção é a seguinte: toda a relação
possessória é, em princípio, uma posse propriamente dita; mas em certas
relações possessórias determinadas, o direito obedecendo a motivos práticos,
tira os efeitos da posse, posto que as condições legais desta, corpus e animus, estejam reunidas. Tais são os casos de detenção: são as
relações possessórias em que motivos práticos obstam a que se produzam efeitos
da posse.”[lxii] [62]
Acerca a teoria de Jhering, escreveu Pontes de Miranda: “A
aparição da obra de R. von Jhering teve o êxito brilhante de tôda atividade que
destrói, mas, onde destruiu, algo constrói. Deve-se-lhe a crítica mais cerrada,
mais minudente, que jamais se fizera, às teorias subjetivas. De que vontade se
trataria? Da vontade de cada indivíduo, in
casu? Seria possível? Da vontade abstrata ou de teoria subjetiva da causa possessionis? Também o seria,
porque nem se presumia a causa
possessionis, nem se dava ao autor o ônus dessa posse. Donde a necessidade
de se examinarem as razões de legislar que levaram os juristas romanos a
distinguirem causae possessionis e causae destinationis. Mas a teoria que
aí ficasse teria o inconveniente de daro ao autor a prova da causa possessionis, contra Paulo (Sententiae receptae, V, 11); e isso
conduziu R. von Jhering a erigir teoria em que ao autor somente incumbisse
provar o corpus. Para ele não há
diferença de princípio entre a posse e a detenção: apenas a lei cria a cusae detentionis.”[lxiii] [63]
Característica fundamental desta teoria é que “ao mesmo
tempo em que separa a posse da propriedade, coloca a relação possessória ao
serviço integral da propriedade.”[lxiv] [64]
De notar que “Jhering admite o corpus e o animus da
teoria idealizada por Savigny e concorda que é através desses dois elementos
que a posse se concretiza, salvo as exceções legais. Mas entende não ser
relevante a distinção entre corpus e animus, pois a noção de animus já se encontra implícita na de corpus”[lxv] [65] . Ou seja, “a diferença principal é que, enquanto Savigny dava o ‘animus’ como elemento independente do ‘corpus’, e só aceitava a posse quando a
pessoa exercia os atos e manifestava a vontade de ter a coisa, denominando-se,
por isso, sua teoria de teoria subjetiva, Jhering dizia que o animus está ínsito no corpus, isto é, existe o animus quando existe corpus, denominado-se sua teoria de objetiva”[lxvi] [66] .
Após o embate destas duas teorias, houve divisão na
doutrina. A propósito, lembra Pontes de Miranda que “depois de Der besitzwille,
a literatura dividiu-se entre a teoria ou teoria subjetivas (B. Windescheid, H.
Dernburg, A. Randa) e a teoria objetiva (J. Baron, Zur Lehre vom Besetzwillen,
Jahr dücher für die Dogmatik, 29, 192 s; Noch Einmal der Besetzwille, 30, 197
s; Zoll, Grünhuts Zeitschrift, 17, 697-707; J. Appleton, Essai sur le Fondament
de
Inicialmente, porém, “a maioria dos romanistas alemães
seguiu a opinião de Savigny: Puchta, Muhlembruch, Burchardi, Vongerow, Thibaut,
Mackeldey, Zielonacki, Arndts, Unterholzner, Baron, Windescheid, Bruns,
Rudorff, Eck, Mazeroll, Kuntze e Randa. A quase totalidade dos romanistas e
civilistas franceses e belgas estão conformes com o animus domini de Savigny.”[lxviii] [68]
Astolpho Rezende ressalta que no Brasil, “a teoria foi
aceita não só pelos escritores como pelos tribunais. Basta, para comprová-lo,
citar as obras de Lafayette e Ribas e percorrer os repositórios de
jurisprudências.”[lxix] [69] Mas
posteriormente a teoria de Jhering ganhou espaço, e há, hoje divergência acerca
de sua preponderância no direito pátrio.
Boa parte dos doutrinadores assevera que a legislação
pátria, especialmente o revogado Código Civil, adotara a teoria de Jhering,
ainda que em alguns pontos dela se distancie. Assim, por exemplo, Washington de
Barros Monteiro[lxx] [70] ,
Maria Helena Diniz[lxxi] [71] ,
Sílvio Rodrigues[lxxii] [72] ,
César Fiuza[lxxiii] [73] ,
Francisco Antônio Casconi[lxxiv] [74] e
Orlando de Assis Corrêa[lxxv] [75] .
Outros, porém, afirmam que o revogado código não conseguiu
ser fiel a nenhuma das teorias. É o caso de Joel Dias Figueira Júnior, para
quem “na verdade, o Código brasileiro não conseguiu ser fiel a uma ou outra
teoria, não obstante a intenção do legislador. Nas sistemáticas normativas em
tema possessório, não se pode combater a necessidade de procurar a harmonização
entre as duas teorias: a falta de menção expressa da lei ao requisito do animus não pode ser interpretada como
adesão á corrente doutrinária que exclui da posse o elemento psicológico.”[lxxvi] [76]
Já Pontes de Miranda entende, reportando-se ao revogado
código civil, que “o Código Civil brasileiro fez-se, em matéria de posse, com
elementos romanos, germânicos e canônicos.”[lxxvii] [77]
Para o festejado jurista, “o que interessa à tutela da
posse é ser a posse relação fática, inter-humana, ainda que o conteúdo dessa
relação nem sempre seja o mesmo e a própria extensão da posse varie de povo a
povo, ou de século a século. Um dos equívocos foi, como temos de mostrar, o
equívoco do animus possidendi, com
que se subjetivou a relação fática, objetiva, se bem que inter-humana, da
posse. Tal equívoco não se desfaz quando se insinua que há no caso concreto,
imanente corpus”[lxxviii] [78] .
Isto se deve ao fato de que para o citado tratadista, “a
posse é estado de fato, em que acontece poder, e não necessariamente ato de
poder. A relação possessória é inter-humana e a posse exerce-se por atos ditos
possessórios; mas tem-se de distinguir, ainda no mundo fáctico, o poder e o
exercício do poder. A posse é poder, pot-sedere,
possibilidade concreta de exercitar algum poder inerente ao domínio ou a
propriedade. Não é o poder inerente ao domínio ou á propriedade; nem, tampouco,
o exercício desse poder.”[lxxix] [79]
Como se observa, para Pontes de Miranda, a posse é antes
de tudo uma relação puramente fática, na qual podem ser abstraídos o animus e mesmo o corpus, como, aliás, afirma que o Código Civil fez em alguns
pontos. Para ele, a proteção possessória está escudada no princípio “quieta non movere”.
Mas mesmo juristas que afirmam a adoção da teoria de
Jhering, admitem que em alguns pontos o Código Civil revogado agasalhada a
teoria de Savigny. É o caso, por exemplo, de César Fiúza que após se perguntar
qual das teorias teria sido acolhida, pondera: “O artigo 485 diz considerar-se
possuidor aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos
poderes inerentes ao domínio, ou propriedade. Vimos que os poderes inerentes ao
direito de propriedade são os de usar, fruir, dispor e reinvidicar. O exercício
de qualquer acarretará posse. Claro está, pois, que a teoria adotada é a de von
Jhering, muito mais adequada ao tráfego negocial contemporâneo. Não obstante,
em alguns momentos adota-se a teoria de Savigny. Tal é o caso do usucapião, que
exige a intenção de dono”[lxxx] [80]
Parece que razão assiste a Pontes de Miranda, pois no caso
da saisina, por exemplo, abstrai-se
tanto o corpus como o animus.
6 A
Concepção Contemporânea da Posse
As concepções do direito medieval, em especial do direito
canônico, vigeram até a Revolução Francesa. A respeito, invocável o magistério
de Astolpho Rezende: “Um dos primeiros atos da Revolução Francesa foi a
abolição do regime feudal. Abolido esse regime, extintos ficaram, por via de
conseqüência, todos os direitos reais nascidos dele, cuja existência era
inconciliável com os princípios em que ia repousar a nova organização da
sociedade. A Revolução deu a todas as rendas o caráter de simples direitos de
crédito, todos os privilégios e regalias incompatíveis com o novo regime e tirou
aos cargos públicos caráter de propriedade. Os direitos reais ficaram assim
reduzidos ao que eram entre os romanos”[lxxxi] [81]
O Código Civil Francês, publicado em 1804, consolidou esta
situação, priorizando uma visão privatista da propriedade e da posse. Na
esteira do Código Napoleônico, surgiram os códigos: austríaco (1811),
neoirlandês (1838), saxão (1863), italiano (1865) do Cantão de Zürich (1887).
Estas legislações, refletindo o pensamento jurídico então
vigente, agasalharam uma concepção da posse que espelhava o modelo filosófico,
político e jurídico próprio do Estado Liberal, oriundo da Revolução Francesa.
Após séculos de um nefasto modelo onde o Estado servia ao
monarca e somente secundariamente agia em prol do cidadão (sequer podemos
falar, tecnicamente em cidadania neste caso), a Revolução Francesa representou
a ruptura com ancestrais dogmas e a eclosão de um novo pensamento, no qual o
Estado não pode ter como finalidade oprimir ao indivíduo e servir a uma casta
ou classe.
Pensadores como Russeau, (retomando o pensamento
jusnaturalista e contratualista de Hobbes e Locke), e Descartes, fornecem a
base filosófica para um modelo de no qual o Estado surge como fruto da opção
dos homens, que abrem mão de parte de sua liberdade para constituir uma instituição
cuja finalidade é assegurar a paz necessária ao desenvolvimento das atividades
individuais. Em síntese, o Estado Liberal é um Estado mínimo, cuja maior
virtude deve ser a de interferir o menos possível na esfera de direitos do
cidadão.
Sob a ótica jurídica, o Estado Liberal apregoa a igualdade
de todos perante a lei, mas somente no plano formal, e apresenta uma visão
privatista e individualista.
Desta forma, embora construída a partir de postulados
científicos, a posse que emerge das legislações do início do século XIX não
difere muito da romana no que diz respeito ao enfoque em relação ao indivíduo.
Mas é preciso lembrar que a ruptura com o regime
absolutista é mais formal do que concreta. Em verdade, sob o prisma social,
apenas a denominada “burguesia” se beneficiou com a possibilidade de ascensão
social e acesso ao poder estatal. Esta camada, formada pelos beneficiados do
mercantilismo e, posteriormente, da revolução industrial que se iniciava, foi
paulatinamente ganhando espaço em vista do acumulo de riquezas, e foram, na
verdade, os grandes mentores do processo revolucionário.
Por isso, não e de surpreender que a igualdade seja
meramente formal. Não há uma vontade real de alterar o status quo social. O que se busca é assegurar uma esfera de
liberdade, vale dizer, de não interferência estatal, que possibilite o pleno
desenvolvimento das atividades comerciais e industriais.
Ocorre que este modelo não tardaria a apresentar
problemas. É que as camadas menos favorecidas da sociedade foram aglomerando-se
nos centros urbanos, em virtude do processo de industrialização, o que permitiu
a difusão de idéias e a mobilização.
As precárias condições de trabalho e a escassa urbanização
destes centros, que surgiram e cresceram sem controle, contribuíram ainda mais
para a eclosão de movimentos de protesto. É neste quadro histórico que surgem o
pensamento socialista e os movimentos sociais como a Comuna de Paris ou o
Anarquismo italiano. O quadro agrava-se ainda mais com a I Guerra Mundial, em
cujo fim verificamos a Revolução Russa. Também neste período, ou seja, segunda
década do século XX, acontece a Revolução Mexicana.
Este contexto do início do século XX, com movimentos
revolucionários na América, com a Europa combalida pelo conflito mundial, e com
a África e Ásia com quadros de instabilidade e, ainda, sob o jugo do
colonialismo, é que tem advento o constitucionalismo social.
Os marcos do constitucionalismo social são as
Constituições Mexicana (1917) e de Weimar (Alemanha 1919), marcadas pelo
surgimento dos denominados direitos de segunda geração[lxxxii] [82] .
É preciso, neste passo, estabelecer a correta dicotomia
entre Estado Social e Estado Socialista. O Estado Socialista está baseado em
uma visão estatizante e abole a propriedade privada, ao passo que o Estado
Social não é incompatível com o Capitalismo.
A consagração de um modelo de constitucionalismo social
não implicou, porém, alterações instantâneas no direito civil e na visão acerca
da posse. Tal somente passou a ocorrer a partir da segunda metade do século XX,
como se pode ver do Código Civil Italiano.
A Constituição Federal de 1988 indubitavelmente agasalhou
uma visão escudada nos primados de um Estado Social.
Mas o que caracteriza a visão de um Estado Social? O
aspecto fundamental do Estado Social reside na ampliação do papel do Estado, de
mero garantidor de direitos, e verdadeiro mecanismo de interferência na
realidade social. Enquanto o Estado Liberal é um Estado Mínimo, cuja maior
virtude é interferir o mínimo possível nas leis de mercado, o Estado social
representa um re-direcionamento do Estado, através do qual se busca estabelecer
uma série de atuações positivas pelas quais o aparelho Estatal efetivamente
atue em benefício da redução das desigualdades sociais. A conseqüência é uma
visão mais “solidarista”, menos individualista do Direito.
Especificamente no que diz com a posse e a propriedade,
ocorre a inserção do conceito da “função social” da propriedade e da posse, por
conseguinte. Mas o que é a função social da propriedade? Grosso modo, podemos
dizer que a função social da propriedade representa uma mitigação do poder
absoluto do proprietário e uma condicionante do exercício da posse,
caracterizando-se pela submissão da propriedade e da posse a uma utilidade que
transcende o mero interesse individual.
A propriedade e a posse e o seu exercício apresentam
repercussões sobre o meio ambiente, economia, condições de trabalho etc..., que
são dimensões tipicamente coletivas e que eram normalmente olvidadas.
Observando-se os ordenamentos ocidentais modernos “podemos
afirmar que teve acolhida bastante favorável na maioria dos ordenamentos
ocidentais. Precursoramente a Constituição Mexicana de 1917, art. 27, e Weimar
(Alemanha, 1919), art. 153, seguidas, depois, pela Constituição italiana de
1947, art. 42. Vista a proteção ambiental como face da função social, podemos
observar a Constituição da Espanha (1978), arts. 148 e
Analisando a legislação pátria, vemos que “as
Constituições de 1967 e 1969 deve-se à inserção da função social da
propriedade, e como condicionante da propriedade. Na primeira art. 150, § 22 e
157 e parágrafos, e na segunda, art. 153, § 22, e 161 . A
Constituição de 1988 dedicou diversos dispositivos à disciplina da propriedade.
José Afonso da Silva enumera os seguintes arts. 5º, inc. XXIV a XXX, 170, II e
III, 176, 177, 178, 182, 182, 183, 184, 185, 186, 191 e 222. Na verdade, o art.
5º nos incisos XXII e XXIII traz os princípios basilares da propriedade, o
primeiro garantindo-a., o segundo atrelando-a a função social.”[lxxxiv] [84]
O caráter público da função social é realçado por José
Afonso da Silva, que assevera que “os juristas brasileiros, privatistas e
publicistas concebem o regime jurídico da propriedade privada como subordinado
ao Direito Civil, considerado direito real fundamental" e emenda que
"essa é uma perspectiva dominada pela atmosfera civilista, que não levou
em conta as profundas transformações impostas às relações de propriedade
privada, sujeita, hoje, à estreita disciplina do Direito Público, que tem sua
sede fundamental nas normas constitucionais.”[lxxxv] [85]
Mais adiante, ao versar sobre o capítulo da ordem
econômica, lembra o citado jurista acerca da propriedade que “ela não mais
poderá ser considerada puro direito individual, relativizando-se seu conceito e
significado, especialmente porque os princípios da ordem econômica são
preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social."[lxxxvi] [86]
Especificamente no novo Código Civil, temos o artigo
1.228, que expressamente preconiza a adoção da função social da propriedade, e,
portanto, da posse, salientando que a propriedade deve ser exercida “em
consonância com suas finalidade econômicas e sociais e de modo que sejam
preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a
fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e
artístico, bem, como evitada a poluição do ar e das águas.”
Esta nova visão deu azo a concepções novas e recentes,
como a “teoria do fato socioeconômico potestativo”. A respeito desta concepção,
apostila Joel Dias Figueira Júnior: “A posse nada mais é do que uma relação
fática socioeconômica com carga potestativa (poder de ingerência) formada pelo
sujeito titular de um bem da vida para a obtenção da satisfação de suas
necessidades, suficientemente apta a excluir terceiros que possam prejudicar de
alguma forma o seu normal desenvolvimento, tornando-se geradora de efeitos que
se refletem no muno jurídico. Por poder de fato entende-se a sujeição da coisa
à pessoa e a senhoria da posse sobre a coisa: é o elemento mais evidente e
indispensável desse instituto.”[lxxxvii] [87]
Segundo este autor, “para identificar uma situação
possessória e a respectiva qualidade do possuidor não é necessário adentrar o
caminho espinhoso da análise do animus
e do corpus. O exame deverá basear-se
no poder do sujeito sobre determinado bem dentro de um contexto social e
econômico, em que a posição de senhoria exterioriza-se (exercício) ou
potencializa-se (possibilidade de exercício) através de uma relação potestativa
como desmembramento da propriedade ou de outro direito real, no mundo
jurídico.”[lxxxviii] [88]
Na esteira desta teoria, afirma o doutrinador, “a
caracterização da posse prescinde do exercício de atos (exteriorização material
que é própria, como dissemos, de uma concepção naturalista do corpus),
bastando, em qualquer hipótese, a existência de poder sobre um bem. Por isso,
exemplificando, é admissível a posse de um imóvel sem que o possuidor o
cultive, explore ou visite. Como não existem parâmetros ou diretrizes que
determinem a atuação máxima ou mínima do titular de um direito, pela mesma
razão, sendo a posse desmembramento fático de alguns dos poderes inerentes à
propriedade ou direitos reais, também não encontramos parâmetros legais que
determinem a atividade de quem exercita qualquer desses poderes.”[lxxxix] [89]
Logo, a conclusão é que “a posse não é o exercício do
poder; mas sim o poder sócio-econômico propriamente dito que tem o titular da
relação fática sobre um determinado bem. A posse caracteriza-se tanto pelo
exercício como pela possibilidade de exercício. Ela é disponibilidade e não
disposição; é a relação potestativa e não necessariamente o efetivo exercício.”[xc] [90]
Na mesma senda segue Ricardo Fuiza, que a comentar o
artigo 1.196 do novo Código Civil, afirma que “a posse é uma situação fática
com carga potestativa que, em decorrência da relação sócio-econômica formada
entre um bem e o sujeito, produz efeitos que se refletem no mundo jurídico. O
seu primeiro e fundamental elemento é, portanto, o poder de fato, que importa
na sujeição do bem à pessoa e no vínculo de senhoria estabelecido entre o
titular e o bem respectivo. A posição de senhoria exterioriza-se através do
exercício ou da possibilidade de exercício do poder, como desmembramento da
propriedade ou de outro direito real, no mundo fático. Por sua vez, o poder
exteriorizado ou a possibilidade do seu exercício estará , via de regra, em
consonância com o direito real que ele representa na órbita do mundo de fato.
Em outras palavras, a situação potestativa do mundo fático corresponderá àquela
pertinente ao mundo jurídico, dentro de suas limitações.”[xci] [91]
Como se observa, a vanguarda das teorias acerca da posse
abstrai a secular discussão acerca do animus
e do corpus.
7 A
proteção possessória no sistema jurídico brasileiro contemporâneo
No atual contexto do direito pátrio, a posse é tratada
como simples fato. A propósito, lembra Adroaldo Furtado Fabrício que: “Posse é
fato. Fracassaram as tentativas de caracteriza-la como um direito, inclusive a
de Jhering, líder da corrente. A própria doutrina germânica, de um modo geral,
manteve-se fiel à idéia de ser a posse simples fato, independente de qualquer
relação jurídica entre pessoa e coisa”.[xcii] [92]
E, após trazer a lume a doutrina de Pontes de Miranda, que
identifica o caráter fático da posse, conclui: “Sem dúvida, pode haver ‘direito
de possuir, ou direito a possuir’, ou ainda, ‘direito à posse’, mas este
direito positivamente não é posse, tanto que o titular daquele ius possidendi nem sempre é possuidor.
Por outro lado, toda tentativa de justapor a esse direito de possuir um
‘direito de posse’(ius possessionis)
esbarra na impossibilidade de se lhe atribuir um conteúdo determinado. O
‘direito de posse’ é direito a que, ou direito de quê? Qualquer resposta cairá
ou na tautologia ou na confusão com o ius
possidendi. Precisamente, o que caracteriza a posse é o prescindir, para
torná-la digna de proteção jurídica, de saber se corresponde ou não à
existência de um direito.”[xciii] [93]
Diversamente, Serpa Lopes, após mencionar as três
concepções doutrinárias da posse, conclui: “Não temos dúvida em que a posse é
um direito e não simplesmente uma pura relação de fato. Demais, ex facto oritur ius. Se formos
considerar a posse como um não direito pela circunstância de se basear num
fato, tal marca teríamos de lança-la em muitos outros institutos, porquanto do
mesmo modo, se fundam em relações de fato. E entendemos assim como um direito
por isso que se nos afigura incontestável a presença de uma relação jurídica em
todo e qualquer fato tutelado pela ordem jurídica e aparelhado da actio.”[xciv] [94]
De minha parte, vejo a posse como uma relação fática de
cuja juridicização dimanam direitos. Mas a posse em si não é um direito. É
suporte fático.
A posse apresenta dupla tratativa, ou seja, tanto a lei
processual como o direito material, versam sobre a matéria. Tanto a lei civil
como a processual, estabeleceram a proteção ao possuidor, direto ou indireto,
esbulhado ou turbado, ou em vias de sê-lo, inclusive de forma liminar (artigo
506 do CC revogado e 928 do CPC), distinguindo o CPC três hipóteses de ações,
quais sejam: reintegração de posse manutenção de posse e interdito proibitório.
A espécie de ação será determinada pelo grau de ofensa à
posse, correspondendo, as modernas ações, mutatis
mutandis, aos interditos do direito romano.
A ação de imissão de posse, que no CPC de 1939 era
considerada possessória, não mais ostenta este caráter, pois “em que pese
presente o caráter possessório, a ação é dominial e de natureza petitória, não
se confundindo com as possessórias típicas e, tampouco, com a reivindicatória”[xcv] [95] .
Esta dúvida deve-se “a confusão entre jus possessionis (ações possessórias) com jus possidendi (vindicação da
posse, CC. art. 521).”[xcvi] [96]
Há divergência doutrinária acerca do caráter real ou
pessoal das ações. A respeito, esclarece Marcelo Colombelli Mezzomo: “Diverge a
doutrina quanto ao caráter pessoal ou real das ações possessórias. Adroaldo Furtado Fabrício após afirmar que
a posse entra no mundo jurídico só quando ofendida sendo mero ‘meio suporte fático’ a que se soma a
violação, aduz que ‘com efeito, do nosso
ponto de vista as ações possessórias não envolvem de modo nenhum ius in re’.
Ovídio Baptista da Silva opina contrariamente, ou seja, pelo caráter real
e, após fazer menção as opiniões confusas e equivocadas acerca da ação (de
direito material) e do direito subjetivo; bem como acerca da necessária
presença de direito real nas ações reais, afirma que ‘se a posse é poder fático sobre um objeto, as pretensões que dela
nascem haverão de ser pretensões reais’. Também Theodoro Júnior opina pelo caráter real, pois: ‘Na verdade não há razão para questionar em
torno da natureza real da ação possessória, pelo menos em face do direito
positivo nacional, posto que o artigo 95 do CPC, ao cuidar da competência para
as ações reais imobiliárias, inclui expressamente entre estas, as
possessórias.’”[xcvii] [97]
Astolpho Rezende, após longa digressão acerca da discussão
do caráter pessoal ou real das ações possessórias acaba por concluir que “as
ações possessórias não são, portanto, ações reais; e não o são porque reais são
apenas as ações que nascem do jus in re, do direito real (domínio ou direito
real sobre coisa alheia).”[xcviii] [98]
Na mesma esteira anota Serpa Lopes: “No Direito atual,
pelo menos em relação aos sistema do nosso Direito positivo,a despeito de
certas opiniões contrárias, entendemos melhor orientada a corrente que qualifica como real a açãopossessória.”[xcix] [99]
Diversa a opinião de Joel Dias Figueira Júnior, que após
afirmar que a natureza jurídica da ação deve levar em conta a natureza jurídica
da relação de direito material, no plano substancial, e o pedido, no plano
instrumental, conclui: “Em síntese, por esses motivos, as ações possessórias
não podem ser consideradas como ações reais ou ações pessoais, em que pese o
entendimento contrário da doutrina e da jurisprudência dominantes. As demandas
possessórias revestem-se de natureza puramente interdital em razão do caráter
fático-potestativo que suas respectivas relações apresentam na órbita
substancial. Por isso, a natureza jurídica não pode ser senão
fático-potestativa.”[c] [100]
Também negando o caráter real das ações possessórias,
segue Adroaldo Furtado Fabrício, que apostila: “Ainda na perspectiva que nos
situamos inicialmente, qual seja a de ver na posse um fato e não um direito,
perde toda significação o problema, em torno do qual se acirra as
controvérsias, de ser ‘o direito de posse’ real ou pessoal. Se direito não é,
não há de ser real nem pessoal, e aí não se encontrará o critério para a
classificação da ação. Como entendemos, o ‘direito subjetivo material’ invocado
pelo autor, em ação de cunho possessório - direito de ser reintegrado ou
mantido na posse, ou ainda assegurado contra violência iminente -, não
preexiste à ofensa, mas nasce dela. A posse é apenas ‘meio suporte fático’, a
que precisa somar-se a violação ou ameaça para fazer incidir a regra protetiva.
É então e só então que a posse ingressa no mundo jurídico; o Direito dá atenção
à posse ofendida ou ameaçada, não à posse pacífica. Como pensar-se, nesse
quadro, em direito real, em ius in re?
A relação jurídica é entre o possuidor e o que ameaçou, embaraçou ou tomou a
posse, apenas.”[ci] [101]
Qualquer que seja sua natureza, as ações possessórias
apresentam características especiais, três das quais são identificadas por
César Fiúza como sendo: o caráter dúplice,
a fungibilidade, a possibilidade de cumulação com pedido
indenizatório.[cii] [102]
O caráter dúplice coloca o demandado em condições de
postular direito próprio no mesmo processo independentemente de reconvenção,
“mas esta reciprocidade de posição jurídica entre as partes, esta
alternatividade de atitudes entre autor e réu, na mesma demanda, só é possível
em relação ao mesmo objeto litigioso”[ciii] [103] . A respeito, lembra Francisco
Antônio Casconi: “De modo geral, a relação jurídico-processual mantém uma
polaridade bem definida no sentido de que uma das partes é a que pede para si
um bem da vida e a outra, em face de quem é pedido, apenas se defende.
Excepcionalmente, há situações em que os dois sujeitos da relação
jurídico-material podem propor a mesma ação um contra o outro, surgindo a
denominada ação dúplice. O art. 922 permite que o réu, na contestação, alegando
que foi ofendido em sua posse, demande, por sua vez, proteção possessória e
indenização pelos prejuízos resultantes
da turbação ou esbulho cometidos pelo autor da ação. Tal pedido é
possível em razão da natureza dúplice das possessórias. Podendo o réu formular
pedidos na contestação, não se admite, em regra, reconvenção nas ações
possessórias”[civ] [104] .
Neste caso “qualquer dos litigantes pode assumir a posição
de autor ou réu. Em tais condições, lícito é a este último pleitear seu direito
e reclamar perdas e danos na própria contestação. Pode, ainda, o autor, pelo
mesmo motivo, ser condenado a respeitar a posse do adversário, cominando-se-lhe
idêntica pena à pedida na inicial.”[cv] [105] . A duplicidade está prevista
para as três modalidades de ações[cvi] [106] , mas há necessidade de
pedido, não bastando mera improcedência da ação para beneficiar-se o réu.
A propósito, doutrina Arnaldo Rizzardo: “Vindo omissa a
contestação, não cabe conceder-se tal proteção, eis que o caráter dúplice está
no fato de o réu inserir na contestação seu direito de investir ou
contra-atacar. De modo que a simples improcedência, por si só, não representa
tutela judicial dispensada à posse do demandado. Não se deduz que está o réu
autorizado a ingressar na posse, ou que restaram legitimados os atos que
praticava, e atacados judicialmente. Mesmo quando o juiz afirma ser possuidor o
réu, e revelar-se justa e de boa-fé sua posse, não está dispensando tutela
possessória.”[cvii] [107]
Mas seriam as ações possessórias ações dúplices por
natureza? Responde Adroaldo Furtado Fabrício nos seguintes termos: “Parece-nos
que não. Em matéria de proteção possessória, supõe-se a existência de um
possuidor e de um ofensor da posse; as correspondentes legitimações ativa e
passiva são definidas por essas mesmas posições e não são intercambiáveis. O
que antes denominamos polaridade da relação processual acha-se predeterminada
antes mesmo da instauração do processo. Basta que se confronte a situação com
os exemplos anteriores das ações de divisão e demarcação para saltar a vista a
diferença. E, no entanto, a lei tornou dúplice a ação possessória, ao permitir
que o juiz, no mesmo processo e independentemente de reconvenção, dispensasse a
proteção possessória ao réu, se ele a requerer para si e provar os requisitos
que normalmente se exigem do autor.”[cviii] [108]
A fungibilidade das demandas possessórias tem origem no
caráter dinâmico da posse e na perspectiva instrumental do processo. A
fungibilidade permite que uma ação possessória seja recebida e processada em
lugar da outra, seja porque a primeira foi erroneamente ajuizada, seja porque a
situação de fato evoluiu. O CPC foi expresso ao atribuir fungibilidade às ações
possessórias, consoante se depreende do artigo 920, excepcionando a regra
segundo a qual o pedido vincula o juiz (princípio dispositivo que se traduz para o julgador no princípio da congruência ou simetria).
A respeito da fungibilidade, manifesta-se Arnaldo
Rizzardo, verbis: “De forma geral, o
erro na denominação correta do interdito provém, às vezes, do erro do
interessado quanto ao fato em si, ou de equívoco no referente à qualificação do
fato, ou mesmo de uma modificação quanto a apresentação do fato. Por outras
palavras, o prejudicado informa em sua inicial que lhe foi retirado o bem,
embora tenha ocorrido uma simples turbação, ou refere corretamente os fatos
acontecidos, mas avalia-os erroneamente, com dimensões não correspondentes à
realidade; ou, ainda, apesar da correta exposição dos fatos, ocorre após uma
mudança no rumo dos mesmos. Assim, no caso de ser o ato inicial do esbulhador
mera turbação, vindo somente mais tarde a tornar-se público o esbulho. São
estas umas das razões que justificam a conversibilidade dos interditos. Somam-se
outras, como a idêntica natureza das ações, sempre objetivando a proteção
possessória; e a dificuldade prática em se identificar ou dimensionar o tipo de
ofensa à posse.”[cix] [109]
No mesmo diapasão, afirma Adroaldo Furtado Fabrício que
“cada uma das ações possessórias tem como pressuposto uma forma específica de
hostilidade à posse, que, em escala crescente de gravidade, vai da simples
ameaça ao esbulho, passando pela turbação. Contudo, isso não inibe o juiz de
outorgar a proteção possessória, mesmo quando requerida sob denominação
inadequada ou com invocação de um por outro daqueles pressupostos. É
tradicional no Direito Brasileiro a regra nesse sentido, pois, já no tempo da
consolidação de Ribas, a doutrina e a jurisprudência a tinham como vigente.”[cx] [110]
Isto ocorre porque “sobreleva o caráter pragmático das
ações, o que exige uma pronta atuação do Estado, pois o possuidor que intenta o
pedido de amparo contra ofensa de sua posse, em verdade, pretende, pela
prestação jurisdicional, que seja interrompida a ação do ofensor, com a volta
da situação anterior, quando ele exercia plenamente a posse.”[cxi] [111]
A terceira característica é a cumulabilidade da tutela
interdital com a condenatória, visto que possível o pedido de perdas e danos,
conforme preconiza o artigo 921 do CPC. Mas, “as perdas e danos indenizáveis
segundo o artigo são os decorrentes da ofensa à posse, e somente estes.
Prejuízos outros, não relacionados com os atos ofensivos, não podem ser objeto
dessa especial forma de cumulação.”[cxii] [112] A cumulação pode ser intentada
sem prejuízo do rito especial.[cxiii] [113]
Tal possibilidade de cumulação estende-se ao réu. A
propósito, o escólio de Adroaldo Furtado Fabrício, reportando-se a Couto e
Silva: “Silencia o artigo quanto à possibilidade de cumulação dos outros
pedidos previstos no artigo 921, por parte do réu. Mas, dada a eadem ratio, não se percebe motivo para
que o réu se prive de pedir, se for o caso, também cominação de pena para
futuras agressões á posse e o desfazimento de plantações e construções.
Estabelecida ex lege a duplicidade da
ação, facultam-se ao réu as mesmas cumulações permitidas ao autor pelo art. 921
do Código.”[cxiv] [114]
Uma quarta característica das ações possessórias pode ser
apontada na preponderante carga executiva, a respeito da qual o processualista
gaúcho acima citado tece as seguintes considerações: “Seja de manutenção, seja
de reintegração, o julgado impõe por si mesmo os seus efeitos, sem necessidade
de um ulterior processo de execução; esta se restringe à expedição e cumprimento
de um mandado, sem necessidade de nova citação ou formalidades outras. A
‘auto-executabilidade’ da sentença deferitória da reintegração ou manutenção é
característica da proteção interdital e, portanto, independente do rito, assim
como independente da haver decorrido tempo maior ou menor de ano e dia desde a
ofensa à posse até o ajuizamento da ação.”[cxv] [115]
Esta característica é realçada por Orlando de Assis
Corrêa, que escreve: “A sentença que julga procedente o pedido tem força
executiva por si própria, não dependendo sua execução de pedido ‘de execução de
sentença’. Poderá haver execução, e até mesmo liquidação de sentença, como
vimos antes, quando houver pedidos cumulados, ou para recebimento de
honorários. A reintegração ou a manutenção,porém, decorrem da própria decisão,
mediante o mandado de reintegração ou manutenção.”[cxvi] [116]
De par com as ações possessórias stricto sensu, há outros remédios judiciais como os embargos de
terceiro e a nunciação de obra nova.
Além deles, há a possibilidade de desforço pessoal, que
foi mantida pelo Novo Código Civil, artigo 1210, parágrafo 1º.[cxvii] [117]
8 Liminar
Possessória
Há prevista a tutela liminar para a denominada “ação de
força nova”, assim entendida aquela intentada com menos de ano e dia[cxviii] [118] .
Inicialmente, insta consignar, com Joel Dias Figueira
Júnior, que “são inconfundíveis as liminares possessórias e as cautelares:
aquelas representam a entrega provisória e antecipada do pedido, enquanto estas
não realizam tal função.”[cxix] [119]
A respeito, comenta o citado autor: “A manutenção ou a
reintegração liminar concedida pelo juiz não se destina a garantir ou
viabilizar futura execução de sentença ou qualquer outro processo de
conhecimento. As ações possessórias exaurem-se em si mesmas, ou seja, atingem
suas finalidades precípuas dentro da própria demanda, fulcradas nas decisões
judiciais que são executivas lato sensu
ou mandamentais, seja através de decisão proferida na primeira fase
procedimental, seja em sentença de procedência.”[cxx] [120]
Trata-se de uma das poucas hipóteses de liminar
declaradamente satisfativa antes do advento do artigo 273 do CPC e que
compreende somente as eficácias executiva e mandamental, não a condenatória.
Também não podemos olvidar que o prazo de ano e dia diz
respeito somente ao rito que poderá ser utilizado, não atingindo o direito
material
Na mesma esteira, pondera Adroaldo Furtado Fabrício: “Com
efeito, não é e nem poderia ser a especialidade do rito o fator determinante do
conteúdo da pretensão de direito material deduzida. O que o autor busca, mesmo
quando não deseje ou já não possa postular a tutela pronta e provisória, é
ainda a proteção possessória, e o que se há de julgar é a posse.”[cxxii] [122]
Para Pontes de Miranda, tal prazo é preclusivo e
processual[cxxiii] [123] ,
diversamente do que afirma Joel Dias Figueira Júnior, para quem o prazo é
“decadencial e, portanto, substancial preclusivo.”[cxxiv] [124]
A contagem do prazo, ou seja, o termo a quo, giza Pontes de Miranda, “é desde o esbulho; ou desde a
última turbação, se repetida; desde o início, em se tratando de turbação
permanente. Se a ofensa à posse foi oral ou escrita, conta-se o prazo do conhecimento
dela pelo possuidor.”[cxxv] [125]
Mas esta fórmula aparentemente simples pode apresentar
alguns complicadores quando em vista de atos diversos e de diversa natureza,
podendo, então o prazo corresponder ao primeiro ou al último dia em que se
verificarem. A respeito, o magistério de Joel Dias Figueira Júnior é
pertinente. Diz ele: “Dentre as variantes, três situações podemos distinguir: a) quando os atos são autônomos entre si
e se configuram em hipóteses diferentes de esbulho ou de turbação, inclusive
praticados diretamente contra o mesmo bem e referentes à mesma relação
possessória - neste caso, o prazo flui ex
novo para cada um deles; b)
quando os atos são autônomos entre si, mas insuficientes a integrar,
singularmente, a moléstia da posse- o prazo, neste caso, começa a fluir a
partir do último dos atos praticados, ou seja, daquele que, finalmente,
concretizou a moléstia; c) quando os
atos são conexos entre si, de modo a formar uma ação única de caráter
continuativo, isto é,turbação permanente- nesta hipótese, o prazo se inicia com
a prática do primeiro ato, já, por si, em grau de concretizar a moléstia, com a
conseqüência de que os atos sucessivos a este representam apenas manifestação
ou continuação, não comportando uma nova contagem do prazo pertinente aos
respectivos atos.”[cxxvi] [126]
Feitas estas digressões, insta questionar quais os
requisitos para obtenção da tutela liminar possessória? A rigor, os mesmos que
são necessários para lograr-se acolhida na demanda, acrescidos de algumas especificidades.
São eles a prova da posse; da turbação ou do esbulho, através da indicação dos
atos concretos; e da data em que ocorreram, consoante se depreende do artigo
927 do CPC.
Francisco Antônio Casconi chama a atenção para o fato de
que são “compreensíveis as exigências, pois, não demonstrada a posse do autor,
descaracterizada a possessória. A prova da data da ofensa à posse permitirá
apurar qual o procedimento a ser adotado.”[cxxvii] [127]
Importante atentar que “a lei nem sequer cogita de
passagem a respeito da necessidade de comprovação de algum dano ou de periculum in mora”[cxxviii] [128] .
Isto se deve, segundo Joel Dias figueira Júnior, ao fato
de que “o próprio sistema, fiel à tradição que remonta ao direito romano e pela
própria importância socioeconômica do fenômeno possessório, que requer a sua
estabilidade no plano fático (pela manutenção ou restabelecimento da situação
ao status quo ante), prevê a
possibilidade jurídica de antecipação da tutela interdital, com eficácia
provisória, desde que formado juízo de verossimilhança. Ademais, trata-se de
medida de natureza sumária, satisfativa injuncional, ontológica, estrutural e
funcionalmente distinta das providências cautelares.”[cxxix] [129]
No que se refere às citadas provas, é preciso ter em linha
de conta que “com vistas à concessão da liminar possessória, não é de se exigir
prova cabal, completa e irretorquível dos requisitos alinhados no artigo.
Trata-se - não é demasia repetir - de cognição incompleta, destinada a um
convencimento superficial e a orientar uma decisão de caráter eminentemente
provisório. Não se poderia exigir, para uma provisão judicial destinada a
duração não maior que a do processo, o mesmo grau de convencimento necessário
ao julgamento definitivo do mérito.”[cxxx] [130]
A prova apta a comprovar de plano as alegações, consoante
assevera Joel Dias Figueira Júnior, é a documental, mas pondera que: “Como nas
demandas a lide gira em torno de
relações do mundo fático, em que a causa de pedir aparece, via de regra,
exclusivamente fulcrada no ius
possessionis, e não no das relações jurídicas, o documento é forma mais
difícil de satisfatoriamente provar o alegado, tendo em vista que nas situações
possessórias o título, por si só, aparece como causa possessionis.”[cxxxi] [131]
Na mesma esteira, Arnaldo Rizzardo afirma que:
“Considera-se devidamente instruída a inicial se acompanhada de prova
documental, que não pode consistir de declarações colhidas fora dos autos e
prestadas por terceiros sobre a situação de fato. Tais documentos são
desacreditados, mesmo que lavrados em cartório e sob a forma notarial.
Igualmente não bastam documentos comprobatórios de domínio ou de outro título jus possidendi, pois que não expressam
necessariamente o exercício de posse.”[cxxxii] [132]
A respeito, acresce Francisco Antônio Casconi que “títulos
de domínio, por sua vez, não implicam necessariamente no deferimento da
liminar, visto que a prova exigida é a da posse e não do direito de propriedade
sobra a coisa”[cxxxiii] [133] ,
o que se deve ao fato de que “o procedimento especial da possessória é
caracterizado tão-somente pela possibilidade de expedição de mandado liminar,
pois seja ou não expedido tal mandado, transforma-se a ação, após a decisão que
aceita ou indefere o pedido liminar em ação de procedimento comum”[cxxxiv] [134] .
Caso não comprovados de plano os requisitos, surge a
possibilidade de realização de justificação prévia.
Providência prévia sempre exigida em vista da concessão de
liminar é a oitiva das pessoas jurídicas de direito público quando partes na
relação processual
9 Conclusões
A relação do serem humanos com os bens é antiguíssima,
remontando, indubitavelmente, a tempos imemoriais.
Mas desde que se iniciou a estruturação do Direito
Ocidental, o que se deve basicamente ao Direito Romano, a posse tem recebido
tratamento jurídico, inclusive no que tange a sua proteção, em especial a
partir da Lei das XII Tábuas.
A queda de Roma transmitiu todo este legado cultural ao
Direito Medieval, que resulta da junção do Direito Romano, do Direito Canônico
e do direito consuetudinário das tribos que habitavam o norte da Europa.
Ressalvadas algumas modificações, podemos afirmar que os
instrumentos de proteção possessória mantiveram-se fiéis ao Direito Romano
desde então, não obstante as transformações operadas a partir da Revolução
Francesa e do Constitucionalismo Social.
O quadro atual revela uma visão nova da posse e suscita
novos problemas, muitos dos quais não encontram mecanismos seguros de resolução
na sistemática de proteção possessória vigente.
As invasões coletivas de terras, por exemplo, causam
notórias dificuldades quanto à legitimidade passiva e à execução dos mandados
de reintegração.
Com efeito, a percepção de uma dimensão social na posse
implica na necessidade de revisão de alguns postulados do processo possessório,
sabidamente erigido sob uma ótica do direito privado.
Fica a expectativa de que o ciclo de reformas do CPC que
ainda prossegue, venha, finalmente, atentar para os procedimentos especiais,
principalmente para o procedimento possessório, mormente diante da necessidade
de sintonia com o novo Código Civil e com institutos já introduzidos no próprio
processo civil.
[iv][4] A respeito, Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de Direito Civil. Direito das Coisas, 4a edição,
Rio de Janeiro, Freitas Bastos Editora, 1996. v. VI, p. 118, lembra que: “As
origens romanas, todavia, ainda se revelam envoltas em certa nebulosidade,
sendo ainda árdua e intricada a análise
das técnicas de ordem prática, tendo em vista, como bem ressalta o erudito
Prof. San Thiago Dantas, ‘o espírito dos romanos pouco amante das abstrações,
das construções teóricas e das definições’ para uma dogmática possessória”.
[xii][12] Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso
de Direito Civil. Direito das Coisas, 4a edição, Rio de Janeiro,
Freitas Bastos Editora, 1996. v. VI, p. 116-117.
[xxii][22] Op cit., p. 111. Quanto ao funcionamento dos interditos retinendae possessionis, prossegue
esclarecendo: “Procedimentalmente, ambas as formas de interditos
equiparavam-se. Em síntese, as partes litigantes efetuavam em relação ao imóvel
de comum acordo, um ato formal de força (vis
ex conventu) no qual rejeitavam sujeitar-se à proibição pretoriana.
Prometem reciprocamente em forma de stipulatio
uma soma em dinheiro, a título de multa para o caso em que o próprio ato de
força resulte ilegítimo (sponsiones)
e outra quantia também a título de multa para a hipótese contrária, em que
resulte legítimo o ato de força contra-parte (restipiulationes). As duas partes podem então reciprocamente
convencionar em juízo com base nessas quatro estipulações, obtendo assim uma
indireta pronúncia judicial sobre quem era, entre eles, o último possessior iustus, o qual resultará
absolvido nos dois juízos em que é autor. Nesse ínterim a posse provisória é
atribuída à parte que, em seguida a uma hasta (fructus licitatio), promete pagar à outra, a título de multa, a soma
maior no caso de sucumbência (stipulatio
fructuária)”. (Op. cit. p. 113)
[xxxi][31] Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso
de Direito Civil. Direito das Coisas cit.,p.
212-213. Conclui: Daí as seguintes conseqüências: a) a violação da posse
constituía um fato ilícito classificado entre os delitos, importando na
obrigação de reparação; b) como segunda conseqüência,a violação da posse dá
lugar a uma ação penal e,portanto, essencialmente pessoal, embora esse caráter
pessoal seja muito contestado...”
[xxxv][35] Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso
de Direito Civil. Direito das Coisas, 4a edição, Rio de Janeiro,
Freitas Bastos Editora, 1996. v. VI, p.129.
[xxxix][39] Consoante doutrina Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso de Direito Civil. Direito das Coisas,
4a edição, Rio de Janeiro, Freitas Bastos Editora, 1996. v. VI, p.
127, reportando-se ao magistério de F. Schupfer: “A denominação dada pelos bárbaros à posse foi a de Gewere, do gótico vasjan, significando vestir, traduzida nas fontes latinas como vestidura
ou investidura, de onde se originou a palavra manus ou manus vestita,
com que se indicava o mundio, quer sobre coisas, quer sobre as pessoas”
[xli][41] Tratado de Direito Privado cit., t.X, p. 67.
E adiante acresce:“No direito germânico imobiliário, aquele a que chamamos
detentor não podia ter liberdade, porque ser livre era ter algo próprio ou allodium (L. Jacobi, Miete und Pocht,
39). Não havia relação jurídica puramente obrigacional que correspondesse à locatio conductio do direito romano (A
Heusler, Instituitionen, I, 178, e 377 s): a quem cabe ter consigo a coisa, sem
que dela goze, não tem a Gewere e, pois, direito real. Assim todo direito de
utilização da coisa era real. Quem tinha a Gewere não era exposto a que outrem
lhe tirasse a coisa (eficácia defensiva); se alguém lhe tirara, podia o titular
da Gewere ir contra o esbulhador ou contra qualquer terceiro (eficácia
ofensiva). Como se vê, não se podem identificar as ações oriundas da Gewere e
as ações possessórias, mesmo porque os princípios jurídicos germânicos não
chegaram a distinguir , precisamente, como os romanos, posse e propriedade.”
(Op. cit. p. 109).
[xlii][42] Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso
de Direito Civil. Direito das Coisas cit., p. 127. E complementa: “O ponto
nodal da posse no Direito Germânico consistia nisto: diferentemente do sistema
romano, que separou posse do domínio, o Direito germânico confundia os dois
institutos, e, encarando a posse como manifestação exterior da propriedade, não
admitia caracterizada a sua violação senão tanto quanto supusesse a violação
desta. Por conseguinte, embora no Direito Romano a posse pressupusesse a defesa
da propriedade, todavia a proteção a ela dispensada tinha por esteio unicamente
o simples fato da posse, ao passo que, no Direito germânico, a sanção penal
pressupunha a propriedade e desaparecia a partir do momento em que o réu
demonstrasse ser realmente proprietário.”
[xliii][43] Idem ibidem, loc. cit. Acresce o civilista: “Assim, diversamente
do Direito Romano, passou-se a negar ao animus
domini o papel de elemento qualificador exclusivo do possuidor, senão em
geral, de todo aquele que tivesse a fruição das coisas, isto é, quem tivesse o animus sibi habend.i”
[lxxxii][82] Posteriormente a Constituição Italiana e a Constituição de Bonn
(1948), deram prosseguimento ao movimento que redundou nas atuais cartas
sociais, sejam elas originárias ou decorrentes de reformas. Com a consolidação
do constitucionalismo social, surgiram os direitos de terceira geração,
caracterizados pelos direitos difusos e coletivos (consumidor, ambiental
etc...), e os direitos de quarta geração, materializados pelos direitos
políticos.
[xciv][94] Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso
de Direito Civil. Direito das Coisas, 4a edição, Rio de Janeiro,
Freitas Bastos Editora, 1996. v. VI, p. 103.
[xcix][99] Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso
de Direito Civil. Direito das Coisas cit., p. 220.
[cxvii][117] Falando quando ainda vigente o antigo 50 do revogado Código Civil,
assertoa Serpa Lopes. Curso de Direito
Civil. Direito das Coisas cit.p. 247: “Esse direito de defesa compete a
todo e qualquer possuidor, direto ou indireto. Pode mesmo ser exercido pelo
possuidor direito contra atos turbativos ou espoliativos provindos do possuidor
indireto. Tudo quanto se exige é que o possuidor tome a sua autodefesa
imediatamente após a violência ou por ocasião dela. O possuidor que assim
procede não comete ato ilícito, e assim não fica responsável pelas perdas e
danos que possa causar se agir dentro nos limites do necessário” (sic).
[cxviii][118] Consoante o magistério de Serpa Lopes. Curso de Direito Civil. Direito das Coisas cit.p. 214. “A condição
da posse de ano e dia revestiu-se de muita importância e chegou até nossos
dias. É uma regra originária do Direito germânico em que, por força daquele
lapso de tempo, não só se adquiria a posse como ainda a propriedade.”
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