® BuscaLegis.ccj.ufsc.br
A natureza jurídica da obrigação assumida pelo consignatário no contrato estimatório.
Flávio Tartuce *
O novo Código Civil passa a tratar da
figura do contrato estimatório, entre os seus arts.
Apesar da
utilização da expressão venda em
consignação, não se trata de uma regra ou cláusula especial da compra e
venda, mas de um novo contrato tipificado pela codificação privada. Desse modo,
com a compra e venda não se confunde, apesar de algumas similaridades.
A grande
discussão que surge quanto ao tema refere-se à natureza jurídica da obrigação
assumida pela consignatário. Alguns autores entendem que a obrigação assumida
pelo mesmo é alternativa, outros que
se trata de uma obrigação facultativa.
A obrigação alternativa é espécie do
gênero obrigação composta, sendo esta
a que se apresenta com mais de um sujeito ativo, ou mais de sujeito passivo, ou
mais de uma prestação. A obrigação alternativa
ou disjuntiva é, assim, uma obrigação
composta objetiva, tendo mais de um conteúdo ou prestação. Normalmente, a
obrigação alternativa é identificada
pela conjunção ou, que tem natureza
disjuntiva, justificando a outra denominação utilizada pela doutrina.
Já a obrigação
facultativa não está prevista no Código Civil. De qualquer modo é
normalmente tratada pela doutrina. Maria Helena Diniz dá um exemplo didático
dessa obrigação in facultate
solutionis: “se
alguém, por contrato, se obrigar a entregar 50 sacas de café, dispondo que, se
lhe convier, poderá substituí-las por R$ 20.000,00, ficando assim com o direito
de pagar ao credor coisa diversa do objeto do débito” (Curso de Direito Civil
Brasileiro. 2º Volume, São Paulo: Saraiva, 2002,
p. 124).
Vale lembrar que nessa obrigação o credor
não pode exigir que o devedor escolha uma ou outra prestação, sendo uma
faculdade exclusiva deste. Conseqüência disso, havendo impossibilidade de
cumprimento da prestação, sem culpa do devedor, a obrigação se resolve, sem
perdas e danos. Mas se houver fato imputável ao devedor, o credor poderá exigir
o equivalente da obrigação, mais a indenização cabível.
Não
concordamos com o entendimento pelo qual o consignatário assume uma obrigação facultativa. Filiamo-nos,
portanto, a Paulo Luiz Netto Lôbo,
para quem “o consignatário contrai dívida
e obrigação alternativa” (Do contrato estimatório e suas vicissitudes. In Questões
Controvertidas no novo Código Civil. Coordenadores: Mário Luiz Delgado e Jones Figueirêdo Alves, São Paulo: Método, 2004, p. 327). Assim
também entendem Caio Mário da Silva Pereira e Waldírio Bulgarelli.
Mas a
questão é por demais controvertida, entendendo outros
tantos autores que a obrigação assumida pelo consignatário é facultativa (Maria
Helena Diniz, Sílvio Venosa e Arnaldo Rizzardo).
Todos esses posicionamentos são expostos por Sylvio
Capanema, que se filia à segunda corrente (Comentários ao Novo Código Civil. Volume
VIII. Coordenador: Sálvio de Figueiredo Teixeira. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 61).
De qualquer
forma, cientes da controvérsia, gostaríamos de expor
as razões pelas quais filiamo-nos ao primeiro entendimento (a obrigação do consignatário é alternativa).
Prevê o
Enunciado n. 32, aprovado na I Jornada de
Direito Civil do Conselho da Justiça Federal que “no contrato estimatório (art. 534), o consignante transfere ao
consignatário, temporariamente, o poder de alienação da coisa consignada com
opção de pagamento do preço de estima ou sua restituição ao final do prazo
ajustado".
Pelo que
consta do enunciado e dos arts. 536 e 537 do novo Código Civil, conclui-se que
o consignante mantém a condição de proprietário da coisa.[1]
Por outro lado, a obrigação do consignatário só pode ser alternativa,
justamente diante dessa transmissão temporária do domínio. Tanto isso é verdade
que, findo o prazo do contrato, o consignante terá duas opções: cobrar o preço
de estima ou ingressar com ação de
reintegração de posse para reaver os bens cedidos. A possibilidade de
propositura da ação possessória decorre da própria natureza da obrigação
assumida e diante do fato de o consignante, ainda não pago o preço, ser o
proprietário do bem.
Se
entendermos que a obrigação do consignatário é facultativa, havendo apenas o
dever de pagar o preço de estima e uma faculdade quanto à devolução da coisa, o
consignante não poderá fazer uso da ação de reintegração de posse.
Mas, muito
ao contrário, a possibilidade de reintegração de posse nos casos envolvendo o
contrato estimatório vem sendo reconhecida pela jurisprudência, conforme ementa
abaixo transcrita:
“POSSESSÓRIA - Reintegração de posse - Veículo entregue a uma revendedora para venda em consignação - Configuração como contrato estimatório - Art. 534 do novo Código Civil - Alienação, entretanto, do bem sem pagar o preço estipulado pela consignante - Desnecessidade de prévia ação de resolução contratual por traduzir possessória contra atividade delitual - Interpretação da função social do contrato - Art. 421 do Código Civil - Indeferimento determinado, examinando-se, com urgência, o pedido de liminar - Recurso provido para esse fim” (Primeiro Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, PROCESSO: 1226974-0, RECURSO: Apelação, ORIGEM: São José dos Campos, JULGADOR: 10ª Câmara de Férias de Janeiro de 2004, JULGAMENTO: 10/02/2004, RELATOR: Enio Zuliani, REVISOR: Simões de Vergueiro, DECISÃO: Deram Provimento, VU).
Interessante notar que o julgado até dispensa o ingresso
de ação visando a resolução do negócio, utilizando-se
para tanto da função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código
Civil. Assim, a ação de reintegração de posse pode ser proposta imediatamente.
Além disso, podemos concluir que a obrigação assumida
pelo consignatário é alternativa traçando um paralelo entre os arts. 253 e 535
do novo Código Civil.
De acordo com o art. 253 do nCC, na obrigação alternativa, se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se uma delas se tornar inexeqüível, subsistirá o débito quanto à outra. Esse dispositivo prevê a redução do objeto obrigacional, ou seja, a conversão da obrigação composta objetiva alternativa em obrigação simples (aquela com apenas uma prestação).
Assim
sendo, se uma das prestações não puder ser cumprida, a obrigação se concentra
na restante. Quanto ao contrato estimatório, há regra semelhante, no art. 535
do nCC, pelo qual “o
consignatário não se exonera da obrigação de pagar o preço, se a restituição da
coisa, em sua integridade, se tornar impossível, ainda que por fato a ele não
imputável”. Diante dessa
equivalência entre os comandos legais entendemos que obrigação assumida pelo
consignatário é alternativa e não facultativa.
Expostas as
nossas razões deixamos claro que a questão é controvertida e será muito
debatida nos próximos anos.
* Advogado
Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigos/Tartuce_estima.doc>
Acesso em: 08 de Jul. 2006.
[1] “Art.
“Art. 537. O consignante não pode dispor da coisa
antes de lhe ser restituída ou de lhe ser comunicada a restituição”.