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A boa-fé objetiva e a mitigação do prejuízo pelo credor. Esboço do tema
e primeira abordagem.
Flávio Tartuce *
Um dos pontos mais importantes da nova teoria geral dos contratos é o
princípio da boa-fé objetiva, estribado na eticidade consagrada pela nova
codificação. Tal regramento consta tanto no Código de Defesa do Consumidor
(art. 4º, III, da Lei 8.078) quanto no novo Código Civil (art. 422), diante da
aproximação principiológica entre os dois sistemas, o necessário “diálogo das fontes” entre o CDC e o nCC
no que tange aos contratos.
Sobre essa
aproximação, aliás, foi aprovado o Enunciado nº 167 na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça
Federal em dezembro último, com o seguinte teor: “Com o advento do
Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código
e o Código de Defesa do Consumidor, no que respeita à regulação contratual, uma
vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos”.
As razões apontadas pelo magistrado paraibano e jovem
civilista Wladimir
Alcibíades Marinho Falcão Cunha, autor da proposta, são pertinentes, merecendo
transcrição o seguinte trecho:
“Entretanto pode-se dizer que, até o advento do Código
Civil de 2002, somente o Código de Defesa do Consumidor encampava essa nova
concepção contratual, ou seja, somente o CDC intervinha diretamente no conteúdo
material dos contratos.
Entretanto, o Código Civil de 2002 passou também a
incorporar esse caráter cogente no trato das relações contratuais, intervindo
diretamente no conteúdo material dos contratos, em especial através dos
próprios novos princípios contratuais da função social, da boa-fé objetiva e da
equivalência material.
Assim, a corporificação legislativa de uma atualizada
teoria geral dos contratos protagonizada pelo CDC teve sua continuidade com o
advento do Código Civil de 2002, o qual, a exemplo daquele, encontra-se carregado
de novos princípios jurídicos contratuais e cláusulas gerais, todos hábeis a
proteção do consumidor mais fraco nas relações contratuais comuns, sempre em
conexão axiológica, valorativa, entre dita norma e a Constituição Federal e
seus princípios constitucionais.
Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de
2002 são, pois, normas representantes de uma nova concepção de contrato e, como
tal, possuem pontos de confluência em termos de teoria contratual, em especial
no que respeita aos princípios informadores de uma e de outra norma” (Proposta
enviada por e-mail pelo próprio Conselho da Justiça Federal aos participantes
da III Jornada).
Aliás, há certo tempo temos defendido essa aproximação, analisando o
Direito Privado, com base no novo Código Civil, no Código de Defesa do
Consumidor e, logicamente, na Constituição Federal de 1988 (concepção civil-constitucional).
Em outras oportunidades também tivemos a chance de apontar que com o
princípio da boa-fé objetiva surgem novos conceitos visando à integração do
contrato, em sintonia com o Enunciado nº 26 do
Conselho da Justiça Federal, aprovado na I
Jornada de Direito Civil, pelo qual “a
cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz
interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé
objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes”.
Sobre o tema tratamos em nosso livro (Função Social dos Contratos. Do Código de Defesa do Consumidor ao novo
Código Civil. São Paulo: Método, 1ª
Edição, 2005).
Uma dessas construções inovadoras, relacionada diretamente com a boa-fé
objetiva é justamente o duty to mitigate
the loss, ou mitigação do prejuízo pelo próprio credor. Sobre essa tese foi aprovado o Enunciado nº
169 na mesma III Jornada de Direito Civil:
“princípio da boa-fé objetiva deve levar
o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.
A proposta, elaborada por Vera Maria Jacob
Fradera, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, representa
muito bem a natureza do dever de colaboração, presente em todas as fases
contratuais e decorrente do princípio da boa-fé objetiva e daquilo que consta
do art. 422 do nCC.
O enunciado está inspirado no artigo
77 da Convenção de Viena de 1980, sobre venda internacional de mercadorias, no
sentido de que “A parte que invoca a
quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as
circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo resultante
da quebra. Se ela negligencia em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir
a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que
poderia ter sido diminuída”.
Para a autora da proposta haveria uma
relação direta com o princípio da boa-fé objetiva, uma vez que a mitigação do próprio
prejuízo constituiria um dever de natureza acessória, um dever anexo, derivado
da boa conduta que deve existir entre os
negociantes.
Aliás,
conforme outro enunciado do mesmo CJF, a quebra dos deveres anexos decorrentes
da boa-fé objetiva gera a violação positiva do contrato, hipótese de
inadimplemento negocial que independe de culpa gerando responsabilidade
contratual objetiva (Enunciado nº 24, da I
Jornada).
E mesmo se
assim não fosse a responsabilidade objetiva estaria configurada pela presença do
abuso de direito, previsto no art. 187 do Código Civil em vigor e pela
interpretação que lhe é dada por outro Enunciado da I Jornada de Direito Civil, o de nº 37. Visando esclarecer, cumpre
transcrever tanto o art. 187 do nCC quanto o referido enunciado:
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que,
ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico
ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes”.
Enunciado nº 37 do CJF: “Art. 187: a responsabilidade
civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se
somente no critério objetivo-finalístico”
Pelos dois
caminhos acima percorridos, portanto, a quebra dos deveres anexos gera a
responsabilidade objetiva daquele que desrespeitou a boa-fé objetiva.
Exemplificando
a aplicação do duty do mitigate the loss,
pensemos no caso de um contrato de locação de imóvel urbano em que houve
inadimplemento. Ora, nesse negócio, haveria um dever por parte do locador de
ingressar tão logo seja possível com a competente ação de despejo, não
permitindo que a dívida assuma valores excessivos.
Mesmo
argumento vale para os contratos bancários em que há descumprimento. Segundo a nossa interpretação, não pode a
instituição financeira permanecer inerte, aguardando que, diante da alta taxa
de juros prevista no instrumento contratual, a dívida atinja montantes
astronômicos.
Em casos
tais, propõe a doutrinadora que o não
atendimento a tal dever traria como conseqüência sanções ao credor, principalmente
a imputação de culpa próxima à culpa delitual, com o pagamento de eventuais
perdas e danos, ou a redução do seu próprio crédito. Concordamos com tal
entendimento e inclusive fomos favoráveis à sua aprovação na III Jornada de Direito Civil.
Mesmo concordando
com tal proposta entendemos que, na verdade, não seria o caso de culpa
delitual, mas de responsabilidade objetiva, pelos caminhos que acima trilhamos
(quebra de dever anexo ou caracterização do abuso de direito). De qualquer
forma, a simples aprovação do enunciado já significa um avanço importante.
Sem
dúvidas, a tese é controvertida. E muito. Mas serve para reflexão. Para tanto
transcrevemos ao final, na íntegra, as razões da proposta da Professora Vera
Fradera, visando uma análise profunda pelo leitor.
Aguardamos,
ansiosos, eventuais manifestações da doutrina e principalmente da
jurisprudência quanto ao tema. Eventuais manifestações podem ser enviadas para fftartuce@uol.com.br.
RAZÕES DA PROPOSTA DA PROFESSORA VERA JACOB FRADERA, DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, APRESENTADAS QUANDO DA III JORNADA DE DIREITO CIVIL DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. ENVIADA PEO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL AOS PARTICIPANTES DA III JORNADA DE DIREITO CIVIL.
Justificativa:
Introdução
Esta
manifestação tem o carácter de um esboço, merecendo o tema, inegavelmente, uma
análise mais aprofundada, tanto por sua relevância prática, quanto pelo fato de
não ter o novo Código Civil Brasileiro de 2002 cuidado deste aspecto relativo
ao comportamento do credor, ainda dispondo de
exemplos legislativos recentes e eficazes da adoção desta medida, como,
por exemplo, o artigo 77 da Convenção de Viena de 1980, sobre Venda
Internacional de Mercadorias[1].
O interesse pelo assunto surgiu-nos, precisamente, da leitura desse artigo 77, da CIGS, cujo texto é o seguinte:
“A parte que invoca a quebra do
contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as
circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo resultante da quebra. Se ela negligencia em
tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que
poderia ter sido diminuída[2]” .
Chama a atenção um outro detalhe, relativamente ao artigo
77, o fato de estar situado no capítulo
V da Convenção, intitulado “ Disposições relativas às obrigações do vendedor e
do comprador “ [3].
Esta particularidade
suscita a prática da comparação e
traz-nos à lembrança uma outra disposição relativa ao comportamento
contratual, esta com a peculiaridade de
ser dirigida ao vendedor, tendo a
doutrina entendido sempre, tratar-se de disposição endereçada a ambos os
contratantes. Estamos nos referindo ao
inúmeras vezes citado e comentado § 242 do BGB: o devedor tem a obrigação de executar
a prestação tal como o exigem a confiança e a fidelidade, levando em
consideração os usos de tráfico (grifamos) [4].
Já o Código Civil brasileiro de 2002, em seu artigo
422, aproxima-se da idéia do legislador
da Convenção de Viena de 1980, ao impor certo comportamento a ambos os contratantes. Assim, segundo o
mencionado dispositivo legal, Os contratantes são obrigados a
guardar assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de
probidade e boa-fé ( grifo nosso ).
Isto posto, surge a indagação: seria possível o direito
privado nacional recepcionar o conceito
do duty
to mitigate the loss em matéria contratual ?
Acreditamos ser possível esta recepção. Antes, porém,
necessitamos realizar uma série de indagações, para chegar ao fundamento desta,
por ora, apenas mera probabilidade de
acolhimento do conceito pela doutrina e pelos tribunais brasileiros. O esforço deve valer a pena, pois inúmeras vezes nos deparamos, na
prática do foro, com situações em que o credor se mantém inerte face ao
descumprimento por parte do devedor, cruzando, literalmente, os braços, vendo
crescer o prejuízo, sem procurar evitar ou, ao menos, minimizar sua própria
perda.
Caso exemplar, julgado pela Bundesgerichthof [5],
em 1999, ilustra à perfeição o quanto é comum ocorrer situações, onde o
conceito em análise tem aplicação.Uma empresa produtora de sementes de uva adquiriu
um produto, mais precisamente, uma
cera especial, para evitar o ressecamento das cepas e protegê-las contra os riscos de
infecções. Neste ínterim, foi descoberto
estar a cera causando danos às
cepas, contudo, a empresa continuou a
utilizar-se daquele produto. A Corte Federal alemã decidiu no sentido de
que esta conduta viola o artigo 77 da
CIGS, não podendo ser aceita, porquanto
contrária a todas as regras de
comportamento contratual, sejam elas de natureza moral, costumeira ( lex mercatoria ), principial ( boa
fé) ou legislativa.
No desenvolvimento de nossa análise, trataremos, num
primeiro momento, dos fundamentos pelos quais o credor pode ser instado a
minimizar o próprio prejuízo (I); a seguir, examinaremos a possibilidade de ser
este dever recepcionado pelo Direito brasileiro, no sistema atual de direito
privado, criado pelo Código Civil de 2002 (II).
O dever de mitigar, atribuído ao credor, – mitigate
– tem origem no direito anglo-saxão, de onde passou para os sistemas
jurídicos continentais. O vocábulo mitigate
tem raiz francesa, provém do verbo mitiger [6].
A recepção deste
conceito deu-se de maneira desigual e asistemática, pois alguns ordenamentos o
utilizam frequentemente, como é o caso do alemão e do suiço, outros, nem tanto,
havendo ainda, aqueles que dele se servem, sem dar-lhe essa denominação, como é o caso
da França[7].
John HONNOLD,
ao comentar o artigo 77 da Convenção de Viena de 1980 sobre venda internacional
de mercadorias, assevera ser o duty to
mitigate the loss geralmente
reconhecido, apesar de expresso das
mais variadas formas e aplicado com
distintos graus de ênfase [8].
Na verdade,
o dever de o credor mitigar o
dano tem maior amplitude e positivação no âmbito das Convenções Internacionais,
por exemplo, a Convenção de Haia de 1º
julho de
Nossa primeira
reflexão terá por objeto, precisamente,
a natureza jurídica do dever, incumbência ou obrigação acessória, do credor, de mitigar
o seu prejuízo.
A) A natureza jurídica do
dever de o credor mitigar o prejuízo
Claude Witz[13],
ao comentar o assunto, diz ser opinião largamente dominante a de o dever de mitigar o próprio prejuízo não
constituir uma obrigação, no sentido
exato do termo, porquanto não poderia, caso descumprida, ser sancionada pela
via da responsabilidade contratual,
tendo como sujeito passivo o credor. Tampouco seria possível, como
esclarece o artigo 28 da C.V.I.M.[14],
exigir a execução in natura.
Poder-se-ia
argumentar tratar-se, então, de uma espécie de obrigação natural ou obrigação moral, mas estas classificações
não se adaptam perfeitamente ao caso,
sobretudo em razão das conseqüências do descumprimento do dever de mitigar.
Dois
importantes sistemas jurídicos, o alemão e o suiço, encontraram uma outra
qualificação para esse dever, o primeiro, atribuindo-lhe a condição de Obliegenheit[15]
e o segundo, a de incombance.
a) A noção de Obliegenheit tem sua fonte no direito alemão de seguros, tendo
Reimer SCHMIDT[16] buscado realizar a sua sistematização, a
partir da construção de um sistema geral de obrigações, onde seriam incluídas
todas as obrigações anexas, os ônus ou incumbências e os deveres para consigo
mesmo. Segundo afirmou Clóvis do COUTO e SILVA[17],
esta tentativa não teve maior êxito. Contudo, o mesmo autor esclarece
permanecerem atuais os estudos de Reimer SCHMIDT relativamente a certos deveres
anexos,v.g., a descoberta de deveres anexos de menor intensidade de coação ou
deveres de grau menor[18].
b) Já os
autores suiços cunharam a expressão incombance
para designar este tipo de dever[19].
O termo provém do verbo latino incumbere,
cujo sentido é o de pesar, onerar. Sendo o Código suiço redigido em lingua francesa, seu legislador adotou o substantivo incombance [20].
A possibilidade de reduzir as perdas e danos ou mesmo não concedê-las, está
prevista em seu artigo 44 [21].
B) As peculiaridades da recepção do duty to mitigate
the loss, pelos Tribunais franceses.
A doutrina
francesa atual reconhece ser a falta de identificação desta obrigação a causa
dessa diversidade de regimes. Béatrice JALUZOT, em seu importante estudo sobre
a boa fé, reconhece nas situações ora analisadas, a existência de uma culpa, muito próxima da
culpa delitual, dando lugar a uma ação por perdas e danos por parte do devedor,
conduzindo à compensação entre as somas devidas contratualmente e aquelas
surgidas da responsabilidade. Segundo
essa autora, esta solução seria mais
clara do que passar pela boa fé ou pelo abuso de direito[22].
Isto revela a dificuldade que têm os
juristas franceses com a utilização do princípio da boa fé objetiva, justamente
devido a sua vagueza e imprecisão conceitual.
Ainda sendo
um país bastante reticente na recepção do conceito de boa fé objetiva, a
jurisprudência francesa vem adotando o dever de mitigar o próprio prejuízo, com
fulcro no princípio da boa fé.
O mais
interessante de tudo isso, é que a jurisprudência francesa utiliza outro
conceito, também derivado da boa fé, o da proibição de venire contra factum próprio, como justificativa para sancionar o
comportamento do credor faltoso, em relação à l’obligation de mitigation[23]. A título de exemplo, vale referir o caso Baillleux c. Jaretty, onde um locador permaneceu durante 11 anos sem cobrar os
aluguéis, e, ao invocar a cláusula resolutória, acaba sendo privado de exercer o seu direito, com fundamento na
proibição de venire contra factum
proprium.
Outra
maneira encontrada pelos juízes franceses, para solucionar a problemática do
descumprimento do dever de mitigar o próprio prejuízo, está na invocação da
ocorrência de abuso de direito, conceito
tão caro à doutrina daquele país[24].
Chegamos,
então, a uma primeira conclusão: a natureza do dever de o credor mitigar o seu
prejuízo varia de acordo com o sistema jurídico enfocado: no BGB é considerada uma Obligenheit, isto é, uma obrigação cuja
exigência de cumprimento reveste-se de menor intensidade; no direito francês,
como antes mencionado, a justificativa estaria na boa fé ou no abuso de
direito; na Common Law, é uma
decorrência do próprio sistema, isto é, aquele que viola um contrato é
responsável pelos danos, sem consideração à culpa ou à negligência. Desta
sorte, não é de se estranhar que a Convenção de Viena, por exemplo, em seu já
citado artigo 77, estabeleça deva a
outra parte “tomar medidas” para
diminuir o prejuízo, decorrente da violação.
Uma parcela
da doutrina, muito reduzida, conforme noticia Claude WITZ [25],
vislumbra nesse dever uma verdadeira obrigação.
Uma vez
perquirida a natureza do dever de diminuir o próprio prejuízo, passaremos a examinar
a possibilidade de recepção do duty
to mitigate the loss, no sistema do Código Civil brasileiro de 2002, levando em conta, os termos do seu artigo 422.
IIa. Parte: Da possibilidade de recepção do duty to
mitigate the loss no direito brasileiro, face os termos do artigo 422 do
CC/2002.
A) Como
poderia ser recepcionado o duty to mitigate the loss, no âmbito do Código Civil
de 2002?
No sistema
do Código Civil brasileiro de 2002, de acordo com o disposto no seu artigo 422 [26], o duty
to mitigate the loss poderia ser
considerado um dever acessório, derivado
do princípio da boa fé objetiva, pois nosso legislador, com apoio na doutrina
anterior ao atual Código, adota uma
concepção cooperativa de contrato. Aliás, no dizer de Clóvis do Couto e Silva, todos os deveres anexos podem ser
considerados como deveres de cooperação [27].
No referente à incumbência a que está sujeito
o credor, de mitigar o seu próprio prejuízo, já vimos ser sua natureza jurídica de difícil definição, podendo estar tanto na
categoria dos deveres (se existe regra positiva a respeito, como na CISG), bem como incumbência, segundo o entendimento dos suiços, ou ainda, como uma obrigação de
pequeno porte, conforme a doutrina
alemã.
De vez que
o direito brasileiro vem sendo, há
longos anos, bastante influenciado pela doutrina e jurisprudência alemãs[28],
a conseqüência lógica, ainda mais em sendo o Código Civil muito recente, seria
a de ter incorporado o comportamento em análise.
Outro
aspecto a ser destacado, é o da positivação do princípio da boa fé objetiva, no
novo diploma civil, abrindo, então, inúmeras possibilidades ao alargamento das
obrigações e /ou incumbências das partes, no caso, as do credor.
Como se
isso não fora suficiente fundamento para adoção desse dever, restam ainda, sob
o influxo da jurisprudência francesa, duas possibilidades de justificar a
recepção: o conceito de venire contra
factum proprium e o de abuso de direito, cuja previsão representa, segundo
uma doutrina minoritária, um avanço do novo Código Civil, em relação ao
anterior, omisso nesta parte.
Deve ainda
ser salientado o fato de direito
brasileiro, neste ponto relativo à concepção do abuso de direito qualificado
como espécie de ato ilícito, previsto no artigo 187[29]
do CC 2002, afastou-se da sistemática alemã, onde o abuso de direito é reputado como uma
violação ao princípio da boa fé objetiva.
B) O comportamento do credor face
ao dever (ou incumbência) de mitigar o
próprio prejuízo, decorrente do descumprimento contratual.
Diante da
evidência de uma violação do contrato,
duas poderão as reações prejudicado: a
primeira delas, a de curvar-se à obrigação, ou incumbência, e tratar de
minimizar seus prejuízos (a) Se,
diversamente, o credor não observar a
incumbência, deverá suportar
conseqüências, de natureza econômica (b).
a) O cumprimento
da incombance, pelo credor : o direito
ao reembolso das despesas feitas em razão disto.
Suponhamos
que o credor tenha tomado as medidas necessárias para diminuir seu prejuízo, pelo fato do
incumprimento do contrato. Tais medidas são de natureza muito variada, dependem
do tipo de contrato e do teor da violação perpetrada pelo devedor. A
jurisprudência alemã, francesa e dos tribunais arbitrais fornecem ricos
exemplos.
Face a uma
situação em que o credor tenha cumprido a incumbência, surge, de imediato, a
indagação: quem arcará com as despesas resultantes da tomada de medidas para
diminuir o prejuízo? Conforme elucida o professor WITZ[30],
com apoio na doutrina européia continental dominante a respeito deste assunto,
as despesas ocasionadas pelo emprego de medidas (razoáveis) seriam acrescidas aos danos suportados pelo credor.
O mestre de
Estrasburgo aventa, ainda, outra hipótese, sempre dentro do quadro do artigo 77
da Convenção de Viena de 1980, mas perfeitamente aplicável a situações fora
desse âmbito: as mencionadas medidas fariam surgir um crédito distinto das
perdas e danos.
Para chegar
a esta conclusão, Claude WITZ invoca o disposto no artigo 7.4.8, alínea 2, dos
Princípios Unidroit : o credor pode recobrar as despesas
razoavelmente ocasionadas, tendo em vista atenuar o prejuízo.
Uma questão
interessante pode se apresentar, face à existência de uma cláusula limitativa
de responsabilidade em determinado contrato: assim, se o credor realizou as despesas, para
cumprir o dever ( Obligenheit ou incombance ) de mitigar, ele teria ou não, direito ao reembolso das somas dispendidas?
A resposta
deve ser positiva, de acordo com o pensamento de Claude WITZ, que faz outra
observação importante: sob o ponto de vista teórico, o cumprimento de um dever
de mitigar pode gerar uma autêntica obrigação, a cargo do seu beneficiário, o
devedor ( grifo nosso), que teria
então uma verdadeira obrigação de reembolsar o credor.
b) O não cumprimento, pelo credor,
do dever de mitigar.
Não cumprido
o dever de mitigar o próprio prejuízo, o credor poderá sofrer sanções, seja com
base na proibição de venire contra factum
proprium, seja em razão de ter incidido em abuso de direito, como ocorre em
França.
No âmbito
do direito brasileiro, existe o recurso à invocação da violação do princípio da
boa fé objetiva, cuja natureza de cláusula geral, permite um tratamento
individualizado de cada caso, a partir de determinados elementos comuns: a
prática de uma negligência, por parte do credor, ensejando um dano patrimonial,
um comportamento conduzindo a um aumento do prejuízo, configurando, então, uma
culpa, vizinha daquela de natureza
delitual.
A
consideração do dever de mitigar como dever anexo, justificaria, quando violado
pelo credor, o pagamento de perdas e danos.
Como se trata
de um dever e não de obrigação, contratualmente estipulada, a sua violação
corresponde a uma culpa delitual.
CONCLUSÃO
Como antes
mencionado, o tema aqui analisado à vol
d’oiseau presta-se a grandes discussões, tanto é que não está pacificado na
jurisprudência européia, nem no âmbito
das Convenções Internacionais sobre contratos.
Apesar de
ensejar tão grandes e atuais discussões, tanto nas esferas nacional , como na
internacional, é de lamentar o fato de nosso Código de 2002 ter silenciado a
este respeito.
Esperemos,
pois, que, a exemplo do ocorrido no passado e
sob o império do Código de
* Advogado
Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigos/Tartuce_duty.doc> Acesso em: 08 de Jul. 2006
[1]
A partir de agora, CISG (Convention of International Sales of Goods).
[2] Na versão em inglês, The partie who relies on a breach of
contract must take such mesures as are reasonable in the circunstances to
mitigate the loss, including loss of profit, resulting from the breach. If he
fails to take such mesures, the party in breach may claim a reduction in the
damages in the amount by which the loss should have been mitigated.
Na versão francesa, esta última parte está
traduzida assim : ...
. Si elle néglige de le faire, la partie en défaut
peut demander une réduction des dommages-intérêts égale au montant de la perte qui
aurait dû être évitée (da perda que poderia ter sido evitada ). O grifo é nosso.
[3] -Provisions common to the obligations
of the seller and of the buyer.
[4] -No original : der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu
und Glauben, mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern.
[5] Abstract: CLOUT case
An Austrian owner of a
vine nursery (the buyer) was in a longstanding business relationship with a
German company (the seller) for the purchase of a special kind of wax, which it
regularly used in order to prevent excessive drying out and limit danger of
infection. As in the past, the buyer asked the seller to send an offer
concerning "ca.
While the first instance court rejected the claim, on appeal the judgment was
reverted in the buyer's favor. The seller appealed to the Supreme Court. The Supreme Court confirmed the lower
instance decisions as to the existence of a lack of conformity of the goods
under Art. 35(2)(a) CISG, since the wax did not meet the industry standards
that were known to and applied by both parties. As to the seller's claim that
the buyer had used part of the wax for a purpose other than that intended, i.e.
for treatment of young vines, the Court remanded the case to the lower courts
in order to ascertain the facts. If this were indeed the case, there would be
no causal connection between the lack of conformity and the damage and
consequently no liability of the seller concerning young vine fields. The Court
rejected the contention that the seller had not produced the wax itself and
therefore it should not be liable for its lack of conformity. In reaching this
conclusion, the Court avoided to decide expressly whether Art. 79 CISG covers
all possible cases of non-performance, or whether its application has to be
excluded for lack of conformity. In any event, Art. 79 CISG was not considered
applicable because the seller did not prove that the impediment lay beyond its
control. Art. 79 CISG does not alter the contract's distribution of risks, by
which the seller is obliged to deliver (conforming) goods. According to Art.
79(2) CISG, the seller has to bear the risk of a lack of conformity deriving
from its own suppliers' non-performance, unless it brings evidence that the
impediment did not lie in its and its supplier's control. This was not proved
in the case at hand, nor had the seller successfully excluded liability through
its standard terms, both because they were not part of the contract, and
because such a general exclusion would be invalid according to German domestic
law. The Court moreover observed that the seller's failure to inspect the goods
before delivery was of no consequence (contrary to the lower court's opinion),
because its obligation is to be construed as a warranty and does not depend on
fault.
Finally the Court held that the lower instance court should have dealt with the
issue of mitigation of damages by the buyer (Art. 77 CISG), and should not have
remanded it to separate proceedings concerning the amount of the claim. In the
Court's opinion this is supported by the German domestic law rules on
contributory negligence, which are applicable notwithstanding the principle of
autonomous interpretation of CISG (Art. 7(1) CISG), since the issue is a
procedural one. Art. 77 CISG must be considered ex officio and may lead to
exclude the seller's liability altogether. The case was thus remanded to the
appellate court for decision on the alleged buyer's failure to mitigate damages
by not stopping to use the wax as soon as it became aware of its damaging
effects.
V.também as interessantes obs. de Claude WITZ,sobre esta decisão, in D. 2000, 24 março 1999, p. 425 .
[6]-Do lat. mitigare, adoucir, rendre moins rigoureux, cf. o dictionnaire Le Robert, éd. 1993, págs.
1 417.
[7] Cf. Referido por Béatrice JALUZOT, in La bonne foi dans les contrats, Dalloz, 2001, págs. 521, nº 1796.
[8] -Uniform Law for International Sales, Kluwer Law International,
Third Edition, págs. 416-419.
[9] Art. 88: The party who relies on a breach of contract shall adopt all reasonable
measures to mitigate the loss resulting from the breach. If he fails to adopt
such measures, the party in breach may claim a reduction in dammages.
[10] Art. 7.4.8 : (1) The non-performing party is not liable for
harm suffered by the aggrieved party to the extent that the harm could have
been reduced by the latter party’s taking reasonable steps.
(2) :
The aggrieved party is entitled to
recover any expenses reasonably incurred in attempting to reduce the harm.
[11] Art. 9: 505 : reproduz o texto do artigo 7.4.8 dos Principles UNIDROIT.
[12] -(63) : A
party who relies on a breach of contract must take such measures as are
reasonable in the circonstances to mitigate
the loss of profit, resulting from
the breach. If it fails to take such measures, the party in breach may claim a
reduction in the damages in the
amount by which the loss should have mitigated.
[13] -In “ L’Obligation de minimiser son
propre dommage dans les conventions internationales: l’exemple de
[14] -
Se, de acordo com as disposições da presente Convenção, uma parte tiver direito
de exigir da outra a execução de uma obrigação, um tribunal não está obrigado
a ordenar a execução in natura, a menos que o faça em virtude da
aplicação de seu próprio direito, relativamente a contratos de compra e
venda semelhantes, não regulados pela presente Convenção. No original :
If, in accordance with the
provisions of this Convention, one party is entitled to require performance of
any obligation by the other party, a court is not bound to enter a judgement
for specific performance unless the court would do so under its own law in
respect of similar contracts of sale not
governed by this Convention.
[15] - A expressão Obligenheit surgiu no âmbito do direito dos seguros, no direito alemão, tendo o sentido de um dever de menor intensidade, contudo, a sua obediência está no interesse desta pessoa. Segundo adverte Christoph FABIAN, o sistema jurídico não prevê um direito à indenização, apenas uma sanção, de natureza mais leve, como por exemplo, a perda de uma posição jurídica favorável. In Dever de Informar no Direito Civil, Ed. Revista dos Tribunais, 2002 , págs. 53.
[16] -Die Obliegenheiten, cit. por C.do COUTO
e SILVA, in A Obrigação como Processo,
José Bushastky Editor, São Paulo, 1976, págs. 103.
[17] - In A Obrigação como Processo, José Bushastky Editor, 1976, São Paulo, págs. 112-113.
[18] -A
respeito, consultar Christoph FABIAN, op.cit. págs. 53.
[19] - A expressão incombance ( incumbência), do latim incumbere ( pesar sobre ) faz parte do vocabulário jurídico suiço. O dicionário jurídico alemão Michaelis tech, traduz Obleigenheit , como incumbência.
[20]- Voc. signif. peser,
retomber sur qqn, être imposé à qqn.
Dictionnaire Le Robert, p. 1 148.
[21] Réduction de l’indemnité 1- Le juge peut
réduire les dommages-intérêts, ou même n’en point allouer, lorsque la partie
lésée a consenti à la lésion ou lorsque des faits dont elle est responsable ont
contribué à créer le dommage, à l’augmenter, ou qu’ils ont aggravé la situation
du débiteur.2- Lorsque le préjudice n’a
été causé ni intentionnellement ni par l’effet d’une grave négligence ou
imprudence, et que sa réparation exposerait le débiteur à la gêne, le juge peut
équitablement réduire les dommages-intérêts.
[22] - In La bonne foi dans les contrats, Dalloz, 2001, nº 798, págs. 523.
[23] - Vide Cass. Com., 07 janv. 1963, caso Bailleux c. Jaretty, Bull. Civ. III, nº16, p.14. V.comentário do caso, por G.CORNU, R.T.D.civ., 1974, págs. 833. Consultar, igualmente, Béatrice JALUZOT, op. cit. págs. 521, nos. 1795 e 1796.
[24] -Caso Époux D. c .Époux G.,, Cass.com., 05 décembre,1995. Comentários na R.T.D.civ.,1996, págs. 899, por J. MESTRE.
[25] -Op. cit. págs. 50 .
[26] - Os contratantes são obrigados a guardar,
assim na conclusão do contrato, como em
sua execução, os princípios da probidade e da boa fé.
[27] -Op. cit. págs. 112 segs.
[28] - A sua recepção deve-se, entre nós, sobretudo a dois grandes juristas do século XX, F.C. PONTES DE MIRANDA e Clóvis do COUTO e SILVA, ambos cultores da doutrina jurídica clássica alemã.
[29] -Também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu
fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes.
[30] -Op. cit. págs. 51.