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A boa-fé objetiva e a mitigação do prejuízo pelo credor. Esboço do tema e primeira abordagem.

 

Flávio Tartuce *

 

Um dos pontos mais importantes da nova teoria geral dos contratos é o princípio da boa-fé objetiva, estribado na eticidade consagrada pela nova codificação. Tal regramento consta tanto no Código de Defesa do Consumidor (art. 4º, III, da Lei 8.078) quanto no novo Código Civil (art. 422), diante da aproximação principiológica entre os dois sistemas, o necessário “diálogo das fontes” entre o CDC e o nCC no que tange aos contratos.

Sobre essa aproximação, aliás, foi aprovado o Enunciado nº 167 na III Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em dezembro último, com o seguinte teor: “Com o advento do Código Civil de 2002, houve forte aproximação principiológica entre esse Código e o Código de Defesa do Consumidor, no que respeita à regulação contratual, uma vez que ambos são incorporadores de uma nova teoria geral dos contratos”.

As razões apontadas pelo magistrado paraibano e jovem civilista Wladimir Alcibíades Marinho Falcão Cunha, autor da proposta, são pertinentes, merecendo transcrição o seguinte trecho:

“Entretanto pode-se dizer que, até o advento do Código Civil de 2002, somente o Código de Defesa do Consumidor encampava essa nova concepção contratual, ou seja, somente o CDC intervinha diretamente no conteúdo material dos contratos.

Entretanto, o Código Civil de 2002 passou também a incorporar esse caráter cogente no trato das relações contratuais, intervindo diretamente no conteúdo material dos contratos, em especial através dos próprios novos princípios contratuais da função social, da boa-fé objetiva e da equivalência material.

Assim, a corporificação legislativa de uma atualizada teoria geral dos contratos protagonizada pelo CDC teve sua continuidade com o advento do Código Civil de 2002, o qual, a exemplo daquele, encontra-se carregado de novos princípios jurídicos contratuais e cláusulas gerais, todos hábeis a proteção do consumidor mais fraco nas relações contratuais comuns, sempre em conexão axiológica, valorativa, entre dita norma e a Constituição Federal e seus princípios constitucionais.

Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002 são, pois, normas representantes de uma nova concepção de contrato e, como tal, possuem pontos de confluência em termos de teoria contratual, em especial no que respeita aos princípios informadores de uma e de outra norma” (Proposta enviada por e-mail pelo próprio Conselho da Justiça Federal aos participantes da III Jornada).

Aliás, há certo tempo temos defendido essa aproximação, analisando o Direito Privado, com base no novo Código Civil, no Código de Defesa do Consumidor e, logicamente, na Constituição Federal de 1988 (concepção civil-constitucional). 

Em outras oportunidades também tivemos a chance de apontar que com o princípio da boa-fé objetiva surgem novos conceitos visando à integração do contrato, em sintonia com o Enunciado nº 26 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil, pelo qual “a cláusula geral contida no art. 422 do novo Código Civil impõe ao juiz interpretar e, quando necessário, suprir e corrigir o contrato segundo a boa-fé objetiva, entendida como a exigência de comportamento leal dos contratantes”. Sobre o tema tratamos em nosso livro (Função Social dos Contratos. Do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil. São Paulo: Método, 1ª Edição, 2005).

Uma dessas construções inovadoras, relacionada diretamente com a boa-fé objetiva é justamente o duty to mitigate the loss, ou mitigação do prejuízo pelo próprio credor.  Sobre essa tese foi aprovado o Enunciado nº 169 na mesma III Jornada de Direito Civil: “princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo”.

A proposta, elaborada por Vera Maria Jacob Fradera, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, representa muito bem a natureza do dever de colaboração, presente em todas as fases contratuais e decorrente do princípio da boa-fé objetiva e daquilo que consta do art. 422 do nCC. 

O enunciado está inspirado no artigo 77 da Convenção de Viena de 1980, sobre venda internacional de mercadorias, no sentido de que “A parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo resultante da quebra. Se ela negligencia em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída”.

Para a autora da proposta haveria uma relação direta com o princípio da boa-fé objetiva, uma vez que a mitigação do próprio prejuízo constituiria um dever de natureza acessória, um dever anexo, derivado da boa conduta que deve existir entre os negociantes.

Aliás, conforme outro enunciado do mesmo CJF, a quebra dos deveres anexos decorrentes da boa-fé objetiva gera a violação positiva do contrato, hipótese de inadimplemento negocial que independe de culpa gerando responsabilidade contratual objetiva (Enunciado nº 24, da I Jornada).

E mesmo se assim não fosse a responsabilidade objetiva estaria configurada pela presença do abuso de direito, previsto no art. 187 do Código Civil em vigor e pela interpretação que lhe é dada por outro Enunciado da I Jornada de Direito Civil, o de nº 37. Visando esclarecer, cumpre transcrever tanto o art. 187 do nCC quanto o referido enunciado:

“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.

Enunciado nº 37 do CJF: “Art. 187: a responsabilidade civil decorrente do abuso do direito independe de culpa, e fundamenta-se somente no critério objetivo-finalístico”

Pelos dois caminhos acima percorridos, portanto, a quebra dos deveres anexos gera a responsabilidade objetiva daquele que desrespeitou a boa-fé objetiva.

Exemplificando a aplicação do duty do mitigate the loss, pensemos no caso de um contrato de locação de imóvel urbano em que houve inadimplemento. Ora, nesse negócio, haveria um dever por parte do locador de ingressar tão logo seja possível com a competente ação de despejo, não permitindo que a dívida assuma valores excessivos.

Mesmo argumento vale para os contratos bancários em que há descumprimento.  Segundo a nossa interpretação, não pode a instituição financeira permanecer inerte, aguardando que, diante da alta taxa de juros prevista no instrumento contratual, a dívida atinja montantes astronômicos.

Em casos tais,  propõe a doutrinadora que o não atendimento a tal dever traria como conseqüência sanções ao credor, principalmente a imputação de culpa próxima à culpa delitual, com o pagamento de eventuais perdas e danos, ou a redução do seu próprio crédito. Concordamos com tal entendimento e inclusive fomos favoráveis à sua aprovação na III Jornada de Direito Civil.

Mesmo concordando com tal proposta entendemos que, na verdade, não seria o caso de culpa delitual, mas de responsabilidade objetiva, pelos caminhos que acima trilhamos (quebra de dever anexo ou caracterização do abuso de direito). De qualquer forma, a simples aprovação do enunciado já significa um avanço importante.

Sem dúvidas, a tese é controvertida. E muito. Mas serve para reflexão. Para tanto transcrevemos ao final, na íntegra, as razões da proposta da Professora Vera Fradera, visando uma análise profunda pelo leitor.

Aguardamos, ansiosos, eventuais manifestações da doutrina e principalmente da jurisprudência quanto ao tema. Eventuais manifestações podem ser enviadas para fftartuce@uol.com.br.  

 

RAZÕES DA PROPOSTA DA PROFESSORA VERA JACOB FRADERA, DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL, APRESENTADAS QUANDO DA III JORNADA DE DIREITO CIVIL DO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. ENVIADA PEO CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL AOS PARTICIPANTES DA III JORNADA DE DIREITO CIVIL.

“Artigo: 422.  Autor: Véra Maria Jacob de Fradera, Advogada em Porto Alegre, RS, Professora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Enunciado: O CREDOR PODERIA SER INSTADO A MITIGAR O PRÓPRIO PREJUÍZO

Justificativa:

Introdução

Esta manifestação  tem o carácter de um  esboço, merecendo o tema, inegavelmente, uma análise mais aprofundada, tanto por sua relevância prática, quanto pelo fato de não ter o novo Código Civil Brasileiro de 2002 cuidado deste aspecto relativo ao comportamento do credor, ainda dispondo de  exemplos legislativos recentes e eficazes da adoção desta medida, como, por exemplo, o artigo 77 da Convenção de Viena de 1980, sobre Venda Internacional de Mercadorias[1].

O interesse pelo assunto surgiu-nos,  precisamente, da leitura desse  artigo 77, da CIGS, cujo texto é o seguinte:

A parte que invoca a quebra do contrato deve tomar as medidas razoáveis, levando em consideração as circunstâncias, para limitar a perda, nela compreendido o prejuízo  resultante da quebra. Se ela negligencia em tomar tais medidas, a parte faltosa pode pedir a redução das perdas e danos, em proporção igual ao montante da perda que poderia ter sido diminuída[2] .     

Chama a atenção um outro detalhe, relativamente ao artigo 77,  o fato de estar situado no capítulo V da Convenção, intitulado “ Disposições relativas às obrigações do vendedor e do comprador “ [3].

Esta particularidade  suscita  a prática da comparação e traz-nos à  lembrança uma  outra disposição relativa ao comportamento contratual, esta  com a peculiaridade de ser dirigida  ao vendedor, tendo a doutrina entendido sempre, tratar-se de disposição endereçada a ambos os contratantes.  Estamos nos referindo ao inúmeras  vezes citado e comentado  § 242 do BGB:  o devedor tem a obrigação de executar a prestação tal como o exigem a confiança e a fidelidade, levando em consideração os usos de tráfico (grifamos) [4].

Já o Código Civil brasileiro de 2002, em seu artigo 422,  aproxima-se da idéia do legislador da Convenção de Viena de 1980, ao impor certo comportamento  a ambos os contratantes. Assim, segundo o mencionado dispositivo legal,  Os contratantes são obrigados a guardar assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé ( grifo nosso ).

Isto posto, surge a indagação: seria possível o direito privado nacional  recepcionar o conceito do  duty to mitigate the loss em matéria contratual ?

Acreditamos ser possível esta recepção. Antes, porém, necessitamos realizar uma série de indagações, para chegar ao fundamento desta, por ora, apenas mera  probabilidade de acolhimento do conceito pela doutrina e pelos tribunais  brasileiros. O esforço deve valer  a pena, pois inúmeras vezes nos deparamos, na prática do foro, com situações em que o credor se mantém inerte face ao descumprimento por parte do devedor, cruzando, literalmente, os braços, vendo crescer o prejuízo, sem procurar evitar ou, ao menos, minimizar sua própria perda.

Caso exemplar, julgado pela Bundesgerichthof [5], em 1999, ilustra à perfeição o quanto é comum ocorrer situações, onde o conceito em análise tem aplicação.Uma empresa produtora de sementes de uva   adquiriu  um produto, mais precisamente, uma  cera especial, para evitar o ressecamento  das cepas e protegê-las contra os riscos de infecções. Neste ínterim, foi descoberto  estar a cera  causando danos às cepas, contudo,  a empresa continuou a utilizar-se daquele produto. A Corte Federal alemã decidiu no sentido de que   esta conduta viola o artigo 77 da CIGS, não podendo ser aceita, porquanto  contrária a  todas as regras de comportamento contratual, sejam elas de natureza moral, costumeira ( lex mercatoria ), principial ( boa fé)  ou legislativa.   

No desenvolvimento de nossa análise, trataremos, num primeiro momento, dos fundamentos pelos quais o credor pode ser instado a minimizar o próprio prejuízo (I); a seguir, examinaremos a possibilidade de ser este dever recepcionado pelo Direito brasileiro, no sistema atual de direito privado, criado pelo Código Civil de 2002 (II).

Ia. Parte:  Porque está o   credor  adstrito a mitigar a própria perda

O dever de mitigar, atribuído ao credor,  mitigate – tem origem no  direito  anglo-saxão, de onde passou para os sistemas jurídicos continentais. O vocábulo mitigate tem raiz francesa, provém do  verbo mitiger [6]. 

A  recepção deste conceito deu-se de maneira desigual e asistemática, pois alguns ordenamentos o utilizam frequentemente, como é o caso do alemão e do suiço, outros, nem tanto, havendo  ainda, aqueles que dele se servem,  sem dar-lhe essa denominação, como é o caso da França[7].

John HONNOLD, ao comentar o artigo 77 da Convenção de Viena de 1980 sobre venda internacional de mercadorias, assevera ser o duty to mitigate the loss geralmente reconhecido, apesar de   expresso das mais variadas  formas e aplicado com distintos  graus de ênfase [8].

Na verdade,  o dever de  o credor mitigar o dano tem maior amplitude e positivação no âmbito das Convenções Internacionais, por exemplo, a Convenção  de Haia  de  1º julho de 1964, a respeito da lei uniforme sobre a venda internacional de objetos móveis corporais[9], os Princípios Unidroit relativos aos contratos  de comércio  internacional, publicados na cidade de Roma, em  1994 [10],  o  Código europeu  de contratos[11]. Os princípios, regras e standards da lex mercatoria incorporaram, igualmente,  este dever [12].

Nossa primeira  reflexão terá por objeto, precisamente,  a natureza jurídica do dever, incumbência ou obrigação acessória,   do credor, de  mitigar  o seu  prejuízo.

A)    A natureza jurídica do dever de o credor  mitigar o prejuízo

Claude Witz[13], ao comentar o assunto, diz  ser  opinião largamente dominante a de  o dever de mitigar o próprio prejuízo não constituir uma obrigação, no sentido exato do termo, porquanto não poderia, caso descumprida, ser sancionada pela via da responsabilidade contratual,  tendo como sujeito passivo o credor. Tampouco seria possível, como esclarece o artigo 28 da C.V.I.M.[14], exigir a execução in natura.

Poder-se-ia  argumentar tratar-se, então, de uma espécie de obrigação natural  ou obrigação moral, mas estas classificações não se adaptam  perfeitamente ao caso, sobretudo em razão das conseqüências do descumprimento do dever de mitigar.

 Dois importantes sistemas jurídicos, o alemão e o suiço, encontraram uma outra qualificação para esse dever, o primeiro, atribuindo-lhe a condição de Obliegenheit[15] e o segundo, a de incombance.

a) A noção de Obliegenheit tem sua fonte no direito alemão de seguros, tendo Reimer SCHMIDT[16]  buscado realizar a sua sistematização, a partir da construção de um sistema geral de obrigações, onde seriam incluídas todas as obrigações anexas, os ônus ou incumbências e os deveres para consigo mesmo. Segundo afirmou Clóvis do COUTO e SILVA[17], esta tentativa não teve maior êxito. Contudo, o mesmo autor esclarece permanecerem atuais os estudos de Reimer SCHMIDT relativamente a certos deveres anexos,v.g., a descoberta de deveres anexos de menor intensidade de coação ou deveres de grau menor[18].

b)   Já os autores suiços cunharam a expressão incombance para designar este tipo de dever[19]. O termo provém do verbo latino incumbere, cujo sentido é o de  pesar, onerar. Sendo o Código suiço redigido em lingua francesa,  seu legislador  adotou o substantivo incombance  [20]. A possibilidade de reduzir as perdas e danos ou mesmo não concedê-las, está prevista   em seu artigo 44 [21].

c) Em França, apesar de o direito francês não utilizar esta terminologia, a jurisprudência  vem  aplicando esse conceito, com fulcro  no princípio da boa fé objetiva  e na noção de abuso de direito.

B) As peculiaridades da recepção do duty to mitigate the loss, pelos Tribunais franceses.

A doutrina francesa atual reconhece ser a falta de identificação desta obrigação a causa dessa diversidade de regimes. Béatrice JALUZOT, em seu importante estudo sobre a boa fé, reconhece nas situações ora analisadas,   a existência de uma culpa, muito próxima da culpa delitual, dando lugar a uma ação por perdas e danos por parte do devedor, conduzindo à compensação entre as somas devidas contratualmente e aquelas surgidas  da responsabilidade. Segundo essa autora, esta solução seria mais clara do que passar pela boa fé ou pelo abuso de direito[22]. Isto  revela a dificuldade que têm os juristas franceses com a utilização do princípio da boa fé objetiva, justamente devido a sua vagueza e imprecisão conceitual.

Ainda sendo um país bastante reticente na recepção do conceito de boa fé objetiva, a jurisprudência francesa vem adotando o dever de mitigar o próprio prejuízo, com fulcro  no princípio da boa fé.

O mais interessante de tudo isso, é que a jurisprudência francesa utiliza outro conceito, também derivado da boa fé, o da proibição de venire contra factum próprio, como justificativa para sancionar o comportamento do credor faltoso, em relação à l’obligation de mitigation[23].  A título de exemplo, vale referir o caso Baillleux c. Jaretty, onde um locador permaneceu durante 11 anos sem cobrar os aluguéis, e, ao invocar a cláusula resolutória, acaba sendo privado de exercer o seu direito, com fundamento na proibição de venire contra factum proprium.

Outra maneira encontrada pelos juízes franceses, para solucionar a problemática do descumprimento do dever de mitigar o próprio prejuízo, está na invocação da ocorrência de  abuso de direito, conceito tão caro à doutrina daquele país[24].

Chegamos, então, a uma primeira conclusão: a natureza do dever de o credor mitigar o seu prejuízo varia de acordo com o sistema jurídico enfocado: no BGB é considerada uma Obligenheit, isto é, uma obrigação cuja exigência de cumprimento reveste-se de menor intensidade; no direito francês, como antes mencionado, a justificativa estaria na boa fé ou no abuso de direito;  na Common Law, é uma decorrência do próprio sistema, isto é, aquele que viola um contrato é responsável pelos danos, sem consideração à culpa ou à negligência. Desta sorte, não é de se estranhar que a Convenção de Viena, por exemplo, em seu já citado artigo 77, estabeleça deva  a outra parte “tomar medidas”  para diminuir o prejuízo, decorrente da violação.

Uma parcela da doutrina, muito reduzida, conforme noticia Claude WITZ [25], vislumbra nesse dever uma verdadeira obrigação.

Uma vez perquirida a natureza do dever de diminuir o próprio prejuízo, passaremos   a examinar  a possibilidade de recepção do duty to mitigate the loss, no sistema do Código Civil brasileiro de 2002,  levando em conta, os termos do seu  artigo 422.

IIa. Parte: Da possibilidade de recepção do duty to mitigate the loss no direito brasileiro, face os termos do artigo 422 do CC/2002.

  A) Como poderia ser recepcionado o duty to mitigate the loss, no âmbito do Código Civil de 2002?

No sistema do Código Civil brasileiro de 2002, de acordo com o disposto no seu  artigo 422 [26],  o duty to mitigate the loss poderia ser considerado um dever  acessório, derivado do princípio da boa fé objetiva, pois nosso legislador, com apoio na doutrina anterior ao atual Código,  adota uma concepção cooperativa de contrato. Aliás, no dizer de Clóvis do Couto e Silva, todos os deveres anexos podem ser considerados como deveres de cooperação [27].

 No referente à incumbência a que está sujeito o credor, de mitigar o seu próprio prejuízo, já vimos ser  sua natureza jurídica  de difícil definição, podendo estar tanto na categoria dos deveres (se existe regra positiva a respeito, como na CISG), bem como incumbência,  segundo o entendimento  dos suiços, ou ainda, como uma obrigação de pequeno porte, conforme  a doutrina alemã.

De vez que o direito brasileiro vem sendo, há  longos anos, bastante influenciado pela doutrina e jurisprudência alemãs[28], a conseqüência lógica, ainda mais em sendo o Código Civil muito recente, seria a de ter incorporado o comportamento em análise.

Outro aspecto a ser destacado, é o da positivação do princípio da boa fé objetiva, no novo diploma civil, abrindo, então, inúmeras possibilidades ao alargamento das obrigações e /ou incumbências das partes, no caso, as do credor.

Como se isso não fora suficiente fundamento para adoção desse dever, restam ainda, sob o influxo da jurisprudência francesa, duas possibilidades de justificar a recepção: o conceito de venire contra factum proprium e o de abuso de direito, cuja previsão representa, segundo uma doutrina minoritária, um avanço do novo Código Civil, em relação ao anterior, omisso nesta parte. 

Deve ainda ser salientado o fato de  direito brasileiro, neste ponto relativo à concepção do abuso de direito qualificado como espécie de ato ilícito, previsto no artigo 187[29] do CC 2002, afastou-se da sistemática alemã, onde  o abuso de direito é reputado como uma violação ao princípio da boa fé objetiva.

B)  O comportamento do credor face ao dever  (ou incumbência) de mitigar o próprio prejuízo, decorrente do descumprimento contratual.

Diante da evidência  de uma violação do contrato, duas poderão as reações  prejudicado: a primeira delas, a de curvar-se à obrigação, ou incumbência, e tratar de minimizar seus prejuízos (a)  Se, diversamente,  o credor não observar a incumbência, deverá  suportar conseqüências, de natureza econômica (b).

a) O cumprimento da  incombance, pelo credor : o direito ao reembolso das despesas feitas em razão disto.

Suponhamos que o credor tenha tomado as medidas necessárias para  diminuir seu prejuízo, pelo fato do incumprimento do contrato. Tais medidas são de natureza muito variada, dependem do tipo de contrato e do teor da violação perpetrada pelo devedor. A jurisprudência alemã, francesa e dos tribunais arbitrais fornecem ricos exemplos.

Face a uma situação em que o credor tenha cumprido a incumbência, surge, de imediato, a indagação: quem arcará com as despesas resultantes da tomada de medidas para diminuir o prejuízo? Conforme elucida o professor WITZ[30], com apoio na doutrina européia continental dominante a respeito deste assunto, as despesas ocasionadas pelo emprego de medidas (razoáveis) seriam  acrescidas aos danos suportados pelo credor.

O mestre de Estrasburgo aventa, ainda, outra hipótese, sempre dentro do quadro do artigo 77 da Convenção de Viena de 1980, mas perfeitamente aplicável a situações fora desse âmbito: as mencionadas medidas fariam surgir um crédito distinto das perdas e danos.

Para chegar a esta conclusão, Claude WITZ invoca o disposto no artigo 7.4.8, alínea 2, dos Princípios Unidroit :  o credor pode recobrar as despesas razoavelmente ocasionadas, tendo em vista atenuar o prejuízo.

Uma questão interessante pode se apresentar, face à existência de uma cláusula limitativa de responsabilidade em determinado contrato: assim,  se o credor realizou as despesas, para cumprir o dever ( Obligenheit ou incombance ) de mitigar, ele teria ou não,  direito ao reembolso das somas dispendidas?

A resposta deve ser positiva, de acordo com o pensamento de Claude WITZ, que faz outra observação importante: sob o ponto de vista teórico, o cumprimento de um dever de mitigar pode gerar uma autêntica obrigação, a cargo do seu beneficiário, o devedor ( grifo nosso),  que teria então uma verdadeira obrigação de reembolsar o credor.  

b) O não cumprimento, pelo credor,  do dever de mitigar.

Não cumprido o dever de mitigar o próprio prejuízo, o credor poderá sofrer sanções, seja com base na proibição de venire contra factum proprium, seja em razão de ter incidido em abuso de direito, como ocorre em França.

No âmbito do direito brasileiro, existe o recurso à invocação da violação do princípio da boa fé objetiva, cuja natureza de cláusula geral, permite um tratamento individualizado de cada caso, a partir de determinados elementos comuns: a prática de uma negligência, por parte do credor, ensejando um dano patrimonial, um comportamento conduzindo a um aumento do prejuízo, configurando, então, uma culpa, vizinha daquela de natureza  delitual.

A consideração do dever de mitigar como dever anexo, justificaria, quando violado pelo credor, o pagamento de perdas e danos.

Como se trata de um dever e não de obrigação, contratualmente estipulada, a sua violação corresponde a uma culpa delitual.  

CONCLUSÃO

Como antes mencionado, o tema aqui analisado à vol d’oiseau presta-se a grandes discussões, tanto é que não está pacificado na jurisprudência  européia, nem no âmbito das Convenções Internacionais sobre contratos.

Apesar de ensejar tão grandes e atuais discussões, tanto nas esferas nacional , como na internacional, é de lamentar o fato de nosso Código de 2002 ter silenciado a este  respeito.

Esperemos, pois, que, a exemplo do ocorrido no passado e  sob o império do Código de 1916, a Doutrina e a Jurisprudência nacionais, mediante o auxílio do direito comparado, e com fundamento no princípio da boa fé objetiva, reconheçam a existência de um dever, imposto ao credor, de mitigar o seu próprio prejuízo.

 

 

* Advogado em São Paulo (SP), mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP, professor do Curso FMB, coordenador e professor dos cursos de pós-graduação da Escola Paulista de Direito (SP).

 

 

Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigos/Tartuce_duty.doc> Acesso em: 08 de Jul. 2006

 



[1]  A partir de agora, CISG (Convention of International Sales of Goods).

[2]  Na versão em inglês, The partie who relies on a breach of contract must take such mesures as are reasonable in the circunstances to mitigate the loss, including loss of profit, resulting from the breach. If he fails to take such mesures, the party in breach may claim a reduction in the damages in the amount by which the loss should have been mitigated.

Na versão francesa, esta última parte está traduzida assim : ... . Si elle néglige de le faire, la partie en défaut peut demander une réduction des dommages-intérêts égale au montant de la perte qui aurait dû être évitée  (da perda que poderia ter sido evitada ). O grifo é nosso.

 

[3] -Provisions common to the obligations of the seller and of the buyer.

[4] -No original : der Schuldner ist verpflichtet, die Leistung so zu bewirken, wie Treu und Glauben, mit Rücksicht auf die Verkehrssitte es erfordern.

[5] Abstract: CLOUT case 318, in A/CN.9/SER.C/ABSTRACTS830; Country: Germany; Number: VIIIZR 121/98: Court: Bundesgerichtshof; Parties: Unknown:

An Austrian owner of a vine nursery (the buyer) was in a longstanding business relationship with a German company (the seller) for the purchase of a special kind of wax, which it regularly used in order to prevent excessive drying out and limit danger of infection. As in the past, the buyer asked the seller to send an offer concerning "ca. 5000 kg. black vinewax". The wax was neither received nor inspected by the seller before delivery. It was delivered to the buyer in its original packaging directly from a third party, which the seller's supplier had entrusted with the production. The buyer partly used the delivered wax on its own vines fields and partly sold it on to other vine nurseries. After a large quantity of plants treated with the wax had suffered severe damage, the buyer complained thereof to the seller, then filed an action for damages. The seller objected, inter alia, that the vines had been damaged by a cause beyond its control.
While the first instance court rejected the claim, on appeal the judgment was reverted in the buyer's favor. The seller appealed to the Supreme Court.    The Supreme Court confirmed the lower instance decisions as to the existence of a lack of conformity of the goods under Art. 35(2)(a) CISG, since the wax did not meet the industry standards that were known to and applied by both parties. As to the seller's claim that the buyer had used part of the wax for a purpose other than that intended, i.e. for treatment of young vines, the Court remanded the case to the lower courts in order to ascertain the facts. If this were indeed the case, there would be no causal connection between the lack of conformity and the damage and consequently no liability of the seller concerning young vine fields. The Court rejected the contention that the seller had not produced the wax itself and therefore it should not be liable for its lack of conformity. In reaching this conclusion, the Court avoided to decide expressly whether Art. 79 CISG covers all possible cases of non-performance, or whether its application has to be excluded for lack of conformity. In any event, Art. 79 CISG was not considered applicable because the seller did not prove that the impediment lay beyond its control. Art. 79 CISG does not alter the contract's distribution of risks, by which the seller is obliged to deliver (conforming) goods. According to Art. 79(2) CISG, the seller has to bear the risk of a lack of conformity deriving from its own suppliers' non-performance, unless it brings evidence that the impediment did not lie in its and its supplier's control. This was not proved in the case at hand, nor had the seller successfully excluded liability through its standard terms, both because they were not part of the contract, and because such a general exclusion would be invalid according to German domestic law. The Court moreover observed that the seller's failure to inspect the goods before delivery was of no consequence (contrary to the lower court's opinion), because its obligation is to be construed as a warranty and does not depend on fault.
Finally the Court held that the lower instance court should have dealt with the issue of mitigation of damages by the buyer (Art. 77 CISG), and should not have remanded it to separate proceedings concerning the amount of the claim. In the Court's opinion this is supported by the German domestic law rules on contributory negligence, which are applicable notwithstanding the principle of autonomous interpretation of CISG (Art. 7(1) CISG), since the issue is a procedural one. Art. 77 CISG must be considered ex officio and may lead to exclude the seller's liability altogether. The case was thus remanded to the appellate court for decision on the alleged buyer's failure to mitigate damages by not stopping to use the wax as soon as it became aware of its damaging effects.

                V.também as interessantes obs. de Claude WITZ,sobre esta decisão, in  D. 2000, 24 março 1999, p. 425 .

[6]-Do  lat. mitigare, adoucir, rendre moins rigoureux,  cf. o dictionnaire Le Robert, éd. 1993, págs. 1 417.

[7] Cf. Referido por Béatrice JALUZOT, in La bonne foi dans les contrats, Dalloz, 2001, págs. 521, nº 1796.

[8] -Uniform Law for International Sales, Kluwer Law International, Third Edition, págs. 416-419.

[9] Art. 88: The party who relies on a breach of contract shall adopt all reasonable measures to mitigate the loss resulting from the breach. If he fails to adopt such measures, the party in breach may claim a reduction in     dammages.

[10] Art. 7.4.8 : (1) The non-performing party is not liable for harm suffered by the aggrieved party to the extent that the harm could have been reduced by the latter party’s taking reasonable steps.

(2) : The aggrieved party is entitled to recover any expenses reasonably incurred in attempting to reduce the harm.

[11] Art. 9: 505 : reproduz o texto do artigo 7.4.8 dos Principles UNIDROIT.   

[12] -(63)  : A party who relies on a breach of contract must take such measures as are reasonable in the circonstances to mitigate the loss of profit, resulting from the breach. If it fails to take such measures, the party in breach may claim a reduction in the damages in the amount by which the loss should have mitigated.

[13] -In “ L’Obligation de minimiser son propre dommage dans les conventions internationales: l’exemple de la Convention de Vienne sur la Vente Internationale” , Petites Affiches, 21 mars 2002, págs. 50 e segs.

[14] - Se, de acordo com as disposições da presente Convenção, uma parte tiver direito de exigir da outra a execução de uma obrigação, um tribunal não está  obrigado  a ordenar a execução in natura, a menos que o faça  em virtude da  aplicação de seu próprio direito, relativamente a contratos de compra e venda semelhantes, não regulados pela presente Convenção. No original :   If, in accordance with the provisions of this Convention, one party is entitled to require performance of any obligation by the other party, a court is not bound to enter a judgement for specific performance unless the court would do so under its own law in respect of similar contracts  of sale not governed by this Convention.

[15] - A expressão Obligenheit surgiu no âmbito do direito dos seguros,  no direito alemão, tendo  o sentido de um dever de menor intensidade,  contudo, a sua obediência está no interesse desta pessoa. Segundo adverte Christoph FABIAN,  o sistema jurídico não prevê um direito à indenização, apenas uma sanção, de natureza mais leve, como por exemplo, a perda de uma posição jurídica favorável. In Dever de Informar no Direito Civil, Ed. Revista dos Tribunais, 2002 , págs. 53.

[16] -Die Obliegenheiten, cit. por C.do COUTO e SILVA, in A Obrigação como Processo, José Bushastky Editor, São Paulo, 1976, págs. 103.

[17] - In A Obrigação como Processo, José Bushastky Editor, 1976, São Paulo, págs. 112-113.

[18] -A respeito, consultar  Christoph FABIAN, op.cit. págs. 53.

[19] - A expressão incombance ( incumbência), do latim incumbere ( pesar sobre )  faz parte do vocabulário jurídico suiço. O dicionário jurídico alemão Michaelis tech, traduz Obleigenheit , como incumbência. 

[20]- Voc. signif. peser, retomber sur qqn, être imposé à qqn. Dictionnaire Le Robert, p. 1 148.

[21]  Réduction de l’indemnité 1-  Le juge peut réduire les dommages-intérêts, ou même n’en point allouer, lorsque la partie lésée a consenti à la lésion ou lorsque des faits dont elle est responsable ont contribué à créer le dommage, à l’augmenter, ou qu’ils ont aggravé la situation du débiteur.2-  Lorsque le préjudice n’a été causé ni intentionnellement ni par l’effet d’une grave négligence ou imprudence, et que sa réparation exposerait le débiteur à la gêne, le juge peut équitablement réduire les dommages-intérêts.

 

 

[22] - In La bonne  foi dans les contrats, Dalloz, 2001, nº 798, págs. 523.

[23] - Vide Cass. Com., 07 janv. 1963, caso Bailleux c. Jaretty, Bull. Civ. III, nº16, p.14. V.comentário do caso, por   G.CORNU, R.T.D.civ., 1974, págs. 833. Consultar, igualmente, Béatrice JALUZOT, op. cit.  págs. 521, nos. 1795 e 1796.

[24] -Caso Époux D. c .Époux G.,, Cass.com., 05 décembre,1995. Comentários na R.T.D.civ.,1996, págs. 899, por J. MESTRE.

[25] -Op. cit. págs. 50 .

[26] - Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato,  como em sua execução, os princípios da probidade e da boa fé. 

[27] -Op. cit. págs. 112 segs.

[28] - A sua recepção deve-se, entre nós, sobretudo a dois grandes juristas do século XX, F.C. PONTES DE MIRANDA e Clóvis do COUTO e SILVA, ambos cultores da doutrina jurídica clássica  alemã.

[29] -Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes.

[30] -Op. cit. págs. 51.