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A
inconstitucionalidade do art. 1.276 do Código Civil
Thaysa Capsy Boga Ribeiro *
SUMÁRIO: RESUMO; INTRODUÇÃO; 1 FUNÇÃO SOCIAL DA
PROPRIEDADE, 1.1 Disposições Legais, 1.2 Função Social da Propriedade: Conceito
e Características; 2 O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS, 2.1 A
Supremacia Constitucional, 2.2 Controle de Constitucionalidade Formal e
Material: Diferenças, 2.3 Sistema de Controle de Constitucionalidade; 3 A
INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1.276 DO CÓDIGO CIVIL; CONCLUSÃO; REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
RESUMO
O presente estudo tem por escopo demonstrar a
inconstitucionalidade do artigo 1.276 do Código Civil. Para tanto,
primeiramente será conceituado o princípio constitucional da função social da
propriedade, citando os dispositivos legais pertinentes ao mesmo e as suas
características. Tratar-se-á, na seqüência, a respeito do controle de
constitucionalidade, no ordenamento jurídico brasileiro, e sobre o porquê da
inconstitucionalidade do dispositivo legal supramencionado, especificando o
procedimento para decretar essa invalidade. Tal pesquisa foi realizada com a
leitura e estudos minuciosos de vários livros e artigos científicos publicados
na internet, além de consultas à legislação em vigor. Como resultado, foi
comprovado mais um choque entre normas presentes no ordenamento jurídico e
indícios de que no mesmo ainda há sinais de autoritarismo por parte do Poder
Público.
INTRODUÇÃO
O direito de propriedade é uma garantia fundamental
prevista pela Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso XXII.
No artigo 1.276 do Código Civil, encontra-se uma violação
a esse princípio constitucional, pois o mesmo permite que o Estado tome para si
um imóvel, seja urbano ou rural, quando o proprietário não cumpre suas
obrigações fiscais.
É preceito constitucional a função social da propriedade,
ou seja, o proprietário de um imóvel tem a responsabilidade de dar à sua
propriedade um fim social, visando não somente o seu bem estar, mas o de toda a
coletividade.
Não se pode afirmar que a função social esteja sendo
descumprida, caso o proprietário fique ausente de sua propriedade por um
determinado lapso temporal, ou não tenha efetivado os pagamentos dos tributos
relativos à propriedade.
Deve-se ter em mente que o proprietário pode agir desse
modo por não possuir recursos financeiros e, temporariamente, opte por deixar o
imóvel para buscar subsídios, a fim de pagar os tributos correspondentes.
O Estado torna-se autoritário quando não analisa o aspecto
da função social da propriedade e a situação do proprietário, somente se
preocupando com a ordem tributária.
O artigo 1.276 do Código Civil representa uma
incompatibilidade com o disposto na Constituição Federal, ocasionando, desta
forma, a inconstitucionalidade. Pelo princípio da supremacia constitucional,
entende-se que as disposições previstas pelo ordenamento jurídico devem estar
de acordo com os princípios e preceitos da Carta Magna.
No caso em tela, o preceito do artigo 1.276 do Código
Civil contraria a Constituição Federal e, sendo incompatível, ele será
inválido, haja vista que esta se encontra no patamar superior do sistema
jurídico brasileiro.
Portanto, faz-se necessário utilizar o controle de
constitucionalidade para que seja decretada a inconstitucionalidade de tal
dispositivo presente no Código Civil.
1.A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
1.1.Disposições Legais
A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso XXIII,
declara que "a propriedade atenderá a sua função social", após
garantir o direito de propriedade no inciso anterior.
Como não bastasse, reafirmou a idéia de propriedade e sua
função social no artigo 170, II e III, ao tratar dos princípios da ordem
econômica, como se vê a seguir:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do
trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social, observando os seguintes
princípios:
(...)
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
(...).
Ainda com relação à Carta Magna, no capítulo referente à
política urbana, foi inserido o princípio da função social da propriedade
concernente à propriedade urbana no artigo 182, §2º, dizendo que "a
propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências
expressas no plano diretor".
No capítulo de política agrícola e fundiária, é disposto
no artigo 186:
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade
rural atende, simultaneamente segundo critérios e graus de exigência
estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis
e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações
de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem estar dos proprietários
e dos trabalhadores.
Caso a função social não seja cumprida, o caput do
artigo 184 assim determina:
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse
social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo
sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida
agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até
vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será
definida em lei.
O Código Civil também preleciona a respeito da utilização
da propriedade visando o bem comum, nos termos do artigo 1.228, §1º, a saber:
Art. 1.228. (...)
§1º. O direito de propriedade deve ser exercido em
consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam
preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a
fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e
artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
Dessa forma, verifica-se que a função social está
amplamente disciplinada no ordenamento jurídico pátrio. Todavia, tanto a
Constituição como o Código Civil não definem claramente o que vem a ser tal
instituto. É o que será apresentado no próximo item.
1.2.Função Social da Propriedade: Conceito e
Características
Hoje, no mundo atual, majoritariamente capitalista, a
propriedade representa uma vaidade humana, que se traduz no homem conquistar o
seu próprio patrimônio.
O ordenamento jurídico fornece condições para tal anseio,
garantindo ao cidadão instrumentos para que o mesmo possa defender e cuidar do
que é seu.
Ocorre que no Brasil – como em vários outros países –
preocupa-se não só com a satisfação pessoal da propriedade privada, mas também
com o benefício social que ela proporciona. É aí que entra a função social da
propriedade.
Quando uma pessoa adquire um imóvel, seja ele urbano ou
rural, além de utilizá-lo em seu proveito e de sua família, deve torná-lo
produtivo e útil.
Se assim não o fosse, de acordo com Venosa (1),
Bem não utilizado ou mal utilizado é constante motivo de
inquietação social. A má utilização da terra e do espaço urbano gera violência.
O instituto da desapropriação para finalidade social deve auxiliar e preencher
o desiderato da justa utilização dos bens.
Talvez pela imensa desigualdade na distribuição
imobiliária existente no país e pela má utilização da propriedade por alguns
existem vários conflitos de terras.
Destarte, não se pode enxergar a função social da
propriedade como uma limitação ao direito de propriedade. Conforme Silva
(2),
[...] a Constituição não estava simplesmente preordenando
fundamentos às limitações, obrigações e ônus relativamente à propriedade
privada, princípio também da ordem econômica e, portanto, sujeita, só por si,
ao cumprimento daquele fim. Limitações, obrigações e ônus são externos ao
direito de propriedade, vinculando simplesmente a atividade do proprietário,
interferindo tão-só com o exercício de direito, e se explicam pela simples
atuação do poder de polícia.
A função social se relaciona com a própria propriedade,
isto é, da mesma ser vista como operativa, funcionando para oferecer um
benefício à sociedade, nem que este seja somente atribuído ao proprietário.
Como todos os princípios constitucionais, o da função
social da propriedade possui aplicabilidade imediata, já reconhecido pela
jurisprudência.
Assim, o princípio da função social se faz imprescindível.
O direito de propriedade não deve ser mais visto como um direito individual, e
sim um direito da coletividade. Cabe ao ordenamento jurídico equilibrar os
interesses individual e coletivo.
2.O CONTROLE DA CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS
2.1.A Supremacia Constitucional
O controle da constitucionalidade das leis remete ao
princípio da supremacia constitucional, em que há uma superioridade da
Constituição em relação a outras normas.
A consideração de que a Carta Magna é o paradigma das leis
é fundamental para qualquer ordenamento jurídico, uma vez que é a Escritura
Constitucional que orienta como as normas devem ser criadas e executadas.
Nesse sentido, leciona Kelsen (3):
A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas
ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma
construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A
sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a
validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar
sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e
assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A
norma fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de
validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora.
Porém, de nada adiantaria acolher tal princípio se não
houvesse um efetivo controle do mesmo. Em outras palavras, deve-se sempre
verificar se uma lei ou ato normativo está compatível com as regras
constitucionais.
É nesse aspecto que existe o controle da
constitucionalidade das leis, mecanismo pelo qual é garantida a harmonia do
ordenamento jurídico.
Tal controle ora se faz formal, ora se faz material, como
será visto na seqüência deste estudo.
2.2.Controle de Constitucionalidade Formal e Material:
Diferenças
No que concerne ao controle formal, este se relaciona
exclusivamente ao âmbito jurídico de elaboração das leis. Na lição de Bonavides
(4):
Confere ao órgão que o exerce a competência de examinar se
as leis foram elaboradas de conformidade com a Constituição, se houve correta
observância das normas estatuídas, se a regra normativa não fere uma
competência deferida constitucionalmente a um dos poderes, enfim se a obra do
legislador ordinário não contravém preceitos constitucionais pertinentes à
organização técnica dos poderes ou às relações horizontais e verticais desses
poderes, bem como dos ordenamentos estatais respectivos, como sói acontecer nos
sistemas de organização federativa do Estado.
Em face disso, o controle formal analisa se as fases do
processo legislativo estão em conformidade com a Constituição.
Com relação ao controle material, pode-se afirmar que o
mesmo incide sobre o conteúdo normativo, ou seja, sobre o que a lei trata.
Nesse caso, é realizado o controle quando o conteúdo de uma lei ou de um ato
normativo contrariar um preceito ou princípio da constituição.
A Constituição de 1988 prevê em seu texto somente o
controle de constitucionalidade material, realizado pelo método difuso (via de
exceção ou defesa) ou pelo método concentrado (via de ação), que serão
explicados no próximo item.
Como é realizado o controle de constitucionalidade no
processo de elaboração das leis? A Constituição dispõe um controle de
constitucionalidade preventivo, e não formal, realizado pelos Poderes Executivo
e Legislativo. Esse controle incide sobre projetos de lei, com o propósito de
impedir que uma lei inconstitucional ingresse no ordenamento jurídico.
A atividade preventiva exercida pelo Poder Legislativo se
dá pela Comissão de Constituição e Justiça e pelo Poder Executivo, por meio de
veto.
Para que um projeto de lei se efetive, não basta a
aprovação do Poder Legislativo. O Poder Executivo deve se manifestar a
respeito, podendo não concordar com as disposições do projeto, conforme lhe
faculta o artigo 66, §1º, CF/88:
Art. 66. (...)
§1º Se o Presidente da República considerar o projeto, no
todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á
total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do
recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do
Senado Federal os motivos do veto.
O Chefe de Governo, portanto, só pode vetar o projeto se
entender que é inconstitucional ou contrário ao interesse público. Em outras
situações, não há que se falar em veto.
Deve-se lembrar que o Presidente tem quinze dias para manifestar
acerca do projeto de lei, e se assim não proceder, o seu silêncio importará
sanção (artigo 66, §3º, CF).
O veto presidencial poderá ser afastado se, quando
recebido, o Congresso Nacional votar, em maioria absoluta, pela sua rejeição,
nos termos do artigo 66, §4º, CF, que diz que "o veto será apreciado em
sessão conjunta, dentro de trinta dias a contar de seu recebimento, só podendo
ser rejeitado pelo voto da maioria absoluta dos Deputados e Senadores, em
escrutínio secreto".
No que tange à Comissão de Constituição e Justiça, é
prevista no regimento interno do Senado Federal, no artigo 101, I:
Art. 101. À Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania
compete:
I – opinar sobre constitucionalidade, juridicidade e
regimentalidade das matérias que lhe forem submetidas por deliberação do
Plenário, por despacho da Presidência, por consulta de qualquer comissão, ou
quando e virtude desses aspectos houver recurso de decisão terminativa de
comissão para o Plenário;
Ela é citada também no regimento interno da Câmara dos
Deputados, no artigo 53, III:
Art. 53. Antes da deliberação do Plenário, ou quando esta
for dispensada, as proposições, exceto os requerimentos, serão apreciadas:
(...)
III – pela Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania, para o exame dos aspectos de constitucionalidade, legalidade,
juridicidade, regimentalidade e de técnica legislativa, e, juntamente com as
Comissões técnicas, para pronunciar-se sobre o seu mérito, quando for o caso.
Veloso (5) ensina que:
A Comissão de Constituição e Justiça se manifesta sobre as
proposições apresentadas ao Poder Legislativo através de pareceres. O parecer
pode concluir pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade da matéria em
apreciação.
Não se pode negar que esta análise da Comissão, a respeito
das proposições legislativas, representa uma fiscalização de
constitucionalidade, um controle prévio da adequação do projeto à Lei Maior.
Logo, entende-se que a atividade exercida pelo Congresso
Nacional quando da análise de projetos de lei, por meio da Comissão de
Constituição e Justiça, pressupõe um controle de constitucionalidade
preliminar, evitando que normas contrárias à lei constitucional adentrem no
ordenamento jurídico, ferindo a hierarquia do mesmo.
2.3.Sistema de Controle de Constitucionalidade
A Constituição Federal Brasileira adotou o sistema
judiciário, que de acordo com Moraes (6), "é a verificação da
adequação (compatibilidade) de atos normativos com a constituição feita pelos
órgãos integrantes do Poder Judiciário".
O sistema judiciário é combinado com os critérios difuso e
concentrado.
O critério difuso é caracterizado "pela permissão a
todo e qualquer juiz ou tribunal realizar no caso concreto a análise sobre a
compatibilidade do ordenamento jurídico com a Constituição Federal"
(7).
Nesse caso, a inconstitucionalidade configura-se como uma
questão prejudicial do processo, e sendo declarada pela autoridade judicial, o
dispositivo legal invocado na tutela pretendida não poderá ser utilizado. A
inconstitucionalidade fica restrita apenas ao processo em questão. Caso a lide
chegue ao STF, por meio de recurso, e este também decida pela
inconstitucionalidade, esta terá ainda eficácia inter partes, competindo
ao Senado Federal, por meio de resolução, suspender a execução da lei, nos
termos do artigo 52, X, CF.
No que tange ao critério concentrado, este é realizado por
meio de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn), cuja competência de
análise é do STF, tendo por objetivo declarar a inconstitucionalidade de lei ou
ato normativo federal ou estadual (artigo 102, I, a, CF). O que se discute não
é uma relação jurídica específica, mas sim a validade de uma norma, in
abstrato.
A Constituição Federal estabelece várias espécies de
controle concentrado, a saber: ação direta de inconstitucionalidade genérica (artigo
102, I, a); ação direta de inconstitucionalidade interventiva (artigo 36, III);
ação direta de inconstitucionalidade por omissão (artigo 103, §2º); ação
declaratória de constitucionalidade (artigo 102, I, a, in fine; Emenda
Constitucional nº 03/1993); argüição de descumprimento de preceito fundamental
(artigo 102, §1º; Emenda Constitucional nº 03/1993).
A ação direta de inconstitucionalidade genérica diz
respeito à declaração da inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal
ou estadual, objetivando a invalidação da norma em questão. A legitimidade para
propor a ação cabe ao Presidente da República, à mesa do Senado Federal, à mesa
da Câmara dos Deputados, à mesa da Assembléia Legislativa ou da Câmara
Legislativa do Distrito Federal, ao Governador de Estado ou do Distrito
Federal, ao Procurador Geral da República, ao Conselho Federal da Ordem dos
Advogados do Brasil, a Partido Político com representação no Congresso Nacional
e confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional. A apreciação
da matéria cabe ao STF.
A ação direta de inconstitucionalidade interventiva
refere-se à violação dos princípios sensíveis da Constituição, elencados no
artigo 34, VII, caso em que acarretará intervenção da União na autonomia
política dos Estados e Municípios. Tal intervenção dependerá de provimento do
STF da referida ação, proposta exclusivamente pelo Procurador-Geral da
República. Possui dupla finalidade, uma vez que pretende a declaração de
inconstitucionalidade formal ou material da lei ou ato normativo estadual
(finalidade jurídica) e a decretação de intervenção federal no Estado-membro ou
Distrito Federal (finalidade política).
Em se tratando de ação direta de inconstitucionalidade por
omissão, possui cabimento quando o poder público se abstém de um dever que a
Constituição lhe atribuiu. São legitimados, para propor a ação, os mesmos da
ação direta de inconstitucionalidade genérica. A apreciação da matéria cabe ao
STF.
A ação declaratória de constitucionalidade tem por escopo
afastar a insegurança jurídica, tirar uma possível incerteza acerca da
constitucionalidade de uma lei ou ato normativo federal. Os legitimados para
proporem a ação, com a Emenda Constitucional nº 45, são os mesmos da ação
direta de inconstitucionalidade genérica.
A argüição de descumprimento de preceito fundamental está
situada no plano da inconstitucionalidade por omissão. De acordo com Bastos
(8), "descumprir um mandamento constitucional significa tanto um não
atuar, como um atuar de forma insuficiente, ou desobediente".
Caberá ao STF apreciar tal descumprimento mediante uma
argüição feita em petição escrita. A Constituição não diz quem é legitimado
para argüir o descumprimento de preceito fundamental.
A lei nº 9.882/99 – que dispõe sobre o processo e
julgamento dessa espécie de controle de constitucionalidade – informa, em seu
artigo 2º, inciso I, que podem propor argüição de preceito fundamental os
legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade (artigo 103, CF, e
artigo 2º, Lei nº 9.868/99). O inciso II do artigo 2º conferia legitimidade
também a qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato de Poder Público. Esse
inciso foi vetado pelo Presidente sob o fundamento de que essa disposição
insere um mecanismo de acesso direto, irrestrito e individual ao STF, sendo
esse acesso incompatível com o controle concentrado de legitimidade dos atos
estatais, e que a inexistência de qualquer requisito específico a ser ostentado
pelo proponente da argüição e a generalidade do objeto da impugnação fazem
presumir a elevação excessiva do número de feitos a reclamar apreciação pelo
STF, sem a correlata exigência de relevância social e consistência jurídica das
argüições propostas (9).
Veloso (10) traz uma crítica a respeito:
[...] o acesso individual jamais seria irrestrito, e nem o
proponente estaria dispensado de ostentar qualquer requisito específico. Em
primeiro lugar, a argüição tem por objeto evitar ou reparar lesão a preceito
fundamental, resultante de ato do Poder Público, o que já significa uma
rigorosa restrição. Em segundo lugar, não será admitida a argüição quando
houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade (artigo 4º, §1º, da Lei
nº 9.882/99), o que representa distinta e importante limitação.
A oposição do Presidente à concessão da legitimidade para
qualquer pessoa lesada ou ameaçada por ato do Poder Público, em face do
descumprimento de preceito fundamental não iria contribuir para um aumento das
atividades do STF e de atitudes protelatórias, tendo em vista que a Lei
9.882/99 traçou as limitações e os requisitos específicos para a propositura da
argüição. Tem-se, desse modo, um equívoco por parte do Chefe de Governo quando
da justificativa do seu veto.
3.A INCONSTITUCIONALIDADE DO ARTIGO 1276 DO CÓDIGO
CIVIL
O artigo 1.276 do Código Civil assim expõe:
Art. 1.276. O imóvel urbano que o proprietário
abandonar, com a intenção de não mais o conservar em seu patrimônio, e que se
não encontrar na posse de outrem, poderá ser arrecadado, como bem vago, e
passar, três anos depois, à propriedade do Município ou à do Distrito Federal,
se se achar nas respectivas circunscrições.
§1º. O imóvel situado na zona rural, abandonado nas
mesmas circunstâncias, poderá ser arrecadado, como bem vago, e passar, três
anos depois, à propriedade da União, onde quer que ele se localize.
§2º. Presumir-se-á de modo absoluto a intenção a
que se refere este artigo, quando, cessados os atos de posse, deixar o
proprietário de satisfazer os ônus fiscais.
Infere-se desse dispositivo, de acordo com Maria Helena
Diniz (11) que,
O proprietário despoja-se de seu direito com o propósito
de não o ter mais em seu patrimônio (CC, artigo 1.276, caput), cessando os atos
de posse e deixando de satisfazer os ônus fiscais (CC, artigo 1.276, §2º),
revelando desinteresse que se caracteriza como uma omissão anti-social, por não
atender à finalidade econômico-social da propriedade.
Dessa forma, o Código Civil estipula o momento no qual o
proprietário não deseja ter mais seu imóvel, incubindo ao Estado o direito de
tomar para si a propriedade.
Mas como o legislador pode comprovar o desejo do
proprietário de não mais conservar em seu patrimônio o imóvel que abandonou ou
quando não cumpre suas obrigações fiscais?
O fato é que nem sempre o abandono e a não satisfação dos
ônus fiscais configuram tal intenção e, ainda, que o proprietário não está
respeitando o princípio da função social da propriedade. Vejamos o porquê.
Primeiramente, no tocante ao "abandono". O
proprietário possui pleno domínio sobre seu imóvel. Em virtude de algumas
circunstâncias, pode ocorrer do proprietário permanecer longe de seu imóvel,
sem que ninguém o utilize. A Constituição Federal assegura o direito à
propriedade privada, como uma garantia fundamental, além de fornecer
instrumentos para a defesa da mesma. Passados três anos, o Código Civil – lei
hierarquicamente inferior à Carta Magna – entende que o Município, no qual está
situado o imóvel, pode tomar para si o domínio do mesmo. Ora, se a Constituição
oferece ao proprietário recursos para manter sua propriedade, como o Código
Civil pode prever tamanha arbitrariedade do Poder Executivo?
Deve-se ter em mente que não é porque o proprietário sai
do imóvel por determinado lapso temporal – qualquer que seja – que o mesmo não
está de acordo com o princípio da função social da propriedade. Talvez esse
proprietário esteja agindo assim, na tentativa de aperfeiçoar tal princípio. Um
exemplo: o indivíduo "X" é proprietário de um imóvel, qual seja, um
terreno, na cidade de Uberaba/MG, e encontra-se desempregado. Surge para o mesmo
uma oportunidade de emprego na cidade Tóquio, Japão, que lhe trará muitos
benefícios, além de um salário significativo. O indivíduo "X",
portanto, com dificuldades, embarca para o Japão, a fim de arrecadar dinheiro
para construir uma casa, no mencionado terreno, aqui no Brasil. Passados cinco
anos, o proprietário do terreno retorna, com dinheiro suficiente para construir
sua casa. Assim, dará a sua propriedade uma destinação social.
Ocorre que o Código Civil não possibilita tal hipótese. O
proprietário deve ter a "sorte" de o Estado não perceber que não está
ocorrendo a utilização da propriedade há mais de três anos. Caso aconteça o
inverso, é permitido que o Poder Público exerça um verdadeiro ato ditatorial,
integrando ao patrimônio do Estado a propriedade que antes era do particular.
O artigo 1.276 do Código Civil trata o abandono de forma
subjetiva, visto que propõe a análise da intenção do sujeito em conservar ou
não o imóvel em seu patrimônio como elemento caracterizador do mesmo. Esse
sentido de formação discursiva "com a intenção de não mais o conservar em
seu patrimônio" é muito "vago" para o Direito. O Estado não
possui o condão de adivinhar o que passa pela cabeça do proprietário, os seus
objetivos, as suas vontades. Essa "intenção" não é mensurável, ou
seja, considera-se um vocábulo de difícil definição que não abre possibilidade
jurídica para comprovação.
Outro ponto é com relação ao não cumprimento dos ônus
fiscais. Com a crise que assola o país, nada mais normal que exista falta de
recursos, por parte da população. O fato de o proprietário não pagar os
impostos referentes ao seu imóvel não significa que o mesmo não esteja
atendendo sua finalidade social.
Mais uma hipótese: o indivíduo "X" mora na
cidade de Uberaba/MG, em uma casa própria, e tem um terreno, na cidade de
Campinas/SP, sua terra natal. O indivíduo "X" sonha em um dia voltar
para Campinas e construir uma casa em seu imóvel. Acontece que, ultimamente,
analisando o orçamento financeiro, ele se vê impossibilitado de cumprir com os
ônus fiscais referentes ao imóvel de Campinas. Passados quatro anos, a
prefeitura de Campinas entende que o não pagamento dos impostos incide em
abandono e procede a tomada do imóvel.
O abandono, conforme o Diploma Civil, fica caracterizado
quando o proprietário não deseja mais conservar o imóvel em seu patrimônio,
presumindo-se também essa intenção quando o proprietário não satisfaz os ônus
fiscais.
No exemplo acima, vê-se que o proprietário não possui tal
propósito, mas passa por uma crise financeira que não o possibilita de pagar os
impostos.
Por conseguinte, não se pode deduzir que o não cumprimento
dos ônus fiscais caracteriza o abandono.
A Constituição Federal autoriza somente uma modalidade de
confisco: o do artigo 243, que diz respeito às glebas onde forem localizadas
culturas ilegais de plantas psicotrópicas. Nesse caso, haverá expropriação
imediata sem qualquer indenização ao proprietário.
No artigo 1.276, §2º, do Código Civil, é permitido que o
Estado realize outra modalidade de confisco, não respeitando o direito à
propriedade previsto constitucionalmente.
O não cumprimento dos ônus fiscais configura uma dívida do
proprietário com o Poder Público, devendo esse último, caso entenda ter havido
lesão ao erário, propor ação de execução de título extrajudicial, em
conformidade com o ordenamento jurídico. Contudo, deve ser defeso tomar
patrimônio alheio para satisfação da dívida. O Executivo, agindo dessa forma,
além de cometer uma infração constitucional, adentra em esfera que não é a sua,
mas do Poder Judiciário, fazendo, como se diz popularmente, "justiça com
as próprias mãos".
É certo que a propriedade deve ter uma destinação social,
entretanto tal finalidade deve conciliar com a garantia que o proprietário
possui com relação a seu imóvel.
Assim, o artigo 1.276 do Código Civil é arbitrário à
Constituição Federal, restando, desse modo, configurado inconstitucionalidade
de tal dispositivo.
O Código Civil, no que tange à classificação normativa, é
considerado lei ordinária. Ferreira (12) conceitua lei ordinária
como "um ato normativo primário editando normas gerais e abstratas, sendo
assim entendida em função de sua generalidade e caráter abstrato. A lei
ordinária é o ato normativo típico".
Pode-se entender, portanto, que a lei ordinária é aquela
que trata a respeito de várias coisas dentro de um determinado âmbito jurídico,
como o Código Civil assim o faz.
Com relação à posição das leis ordinárias dentro do
sistema hierarquizado das normas no ordenamento jurídico, Montoro (13)
explica que:
A posição hierárquica das leis ordinárias no ordenamento
jurídico é, de um lado, inferior à das normas constitucionais e complementares,
e de outro, superior a dos decretos regulamentares e a dos demais atos
normativos inferiores, como as convenções coletivas de trabalho, atos
administrativos, contratos, etc. Pode-se, por isso, discutir sobre a
"constitucionalidade" ou inconstitucionalidade dessas leis.
Logo, é perfeitamente plausível a decretação da
inconstitucionalidade de tal dispositivo presente no código civil.
Trata-se de uma inconstitucionalidade material, ou seja,
como já exposto, seu conteúdo contraria norma constitucional.
O modo como essa inconstitucionalidade será alegada poderá
ser pelo critério difuso ou pelo concentrado.
No critério difuso, quando a questão aqui abordada
aparecer em alguma lide processual, sendo declarada pela autoridade judicial –
caso entenda pela inconstitucionalidade – referente à instância na qual o
processo está tramitando. Como já estudado, a inconstitucionalidade aqui resulta
somente inter partes, e para que a mesma tenha eficácia erga omnes,
cabe ao Senado Federal, por meio de resolução, suspender a execução da lei
(artigo 52, X, CF).
Pelo critério concentrado, mais amplo, deverá ser proposta
uma ação direta de inconstitucionalidade genérica, uma vez que trata de uma
incompatibilidade de um dispositivo de lei ordinária com a Constituição Federal
e caberá ao STF que a competência para exercer o julgamento.
Desse modo, resta aos legitimados previstos no artigo 103
da Carta Magna proporem essa ação, já que a inconstitucionalidade do artigo
1.276, do Código Civil é evidente.
CONCLUSÃO
A Constituição Federal de 1988 apresentou tamanha inovação
ao inserir, em seu texto legal, o princípio da Função Social da Propriedade,
que declara a preocupação estatal com o bem comum no tocante ao direito à
propriedade.
Ocorre que os benefícios da coletividade não podem se
sobrepor a um direito fundamental do cidadão, qual seja, o da propriedade
privada. É necessário haver um equilíbrio entre a propriedade privada e a
função social, para encontrar uma perfeita harmonia jurídica na sociedade.
O que não se pode permitir é o autoritarismo do Poder
Público em um Estado Democrático de Direito. E é isso que ensejou o presente
estudo, porque constatou-se, no artigo 1.276 do Código Civil, absurda
incompatibilidade com os preceitos da Constituição. Esse diploma legal deixa
que o Executivo presuma o momento em que o proprietário de um imóvel – urbano
ou rural – não deseja conservá-lo em seu patrimônio, de uma forma
diametralmente subjetiva.
Como se não bastasse, ainda autoriza que o Estado tome
para si esse patrimônio, a partir dessa presunção, e também quando o mesmo não
cumpre com os ônus fiscais, com o tal "abandono presumido",
estipulando o período de três anos para a concretização do mesmo.
O poder executivo não possui o mérito de descobrir quais
são as verdadeiras intenções do proprietário.
O fato de o proprietário não se fazer presente no imóvel,
por algum tempo, ou deixar de pagar os impostos devidamente, não constitui
indicativos absolutos de descumprimento da destinação social da propriedade.
Quando um cidadão adquire um imóvel, esse fenômeno denota
uma conquista da finalidade social, ou seja, significa dizer que esse indivíduo
representa menos uma pessoa, dentre milhares, que não possuem sequer uma
moradia.
No Brasil – país em desenvolvimento – a maioria das
pessoas encontra-se em crise financeira. Assim, torna-se incompatível a idéia
de alguém não querer preservar um imóvel, vindo, por qualquer motivo, a
abandoná-lo.
Se o Estado deseja receber os impostos que lhe são devidos
(no caso do §2º do artigo 1.276 do Código Civil), ele que utilize as vias
judiciárias normais, respeitando o ordenamento jurídico, e não realizando
"confisco" sem ter a noção exata do que se passa com o proprietário.
Não se pode olvidar dos instrumentos que a Constituição
fornece para a proteção da propriedade privada. Logo, o Código Civil não deve
contrariar vários dos próprios preceitos e o princípio da supremacia
constitucional, conferindo ao Estado o poder de "tomada" de imóveis
nas situações arroladas pelo artigo 1.276. Destarte, como a Constituição se
encontra no topo da pirâmide jurisdicional, verifica-se a inconstitucionalidade
do dispositivo em análise.
Portanto, utilizando-se do controle de
constitucionalidade, seja por meio difuso ou concentrado, esse preceito civil
deve ser considerado inválido, tendo o Estado que renovar os seus critérios, no
que tange ao direito à propriedade privada concomitante ao princípio da Função
Social.
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NOTAS
01 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direitos Reais.
2003, p. 154.
02 AFONSO DA SILVA, José. Curso de Direito Constitucional
Positivo. 2002, p. 281.
03 KELSEN, Hans. Teoria Pura
do Direito. 1998, p. 247.
04 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional.
2002, p. 268.
05 VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de
Constitucionalidade. 2000, p. 313.
06 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 2001, p. 572.
07 Ibid., p. 577.
08 BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários
à Constituição do Brasil. Volume 4. Tomo III. 2000, p. 240.
09 VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de
Constitucionalidade. 2000, p. 302.
10 Ibid., p. 303.
11 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro.
Direito das Coisas, 2002. p. 169.
12 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional.
1996, p. 336.
13 MONTORO, André Franco. Introdução à Ciência do Direito.
2000, p. 337.
* Acadêmica do curso de Direito pela Universidade de Uberaba.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6998>. Acesso em: 30 mai. 2006.