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A
contribuição previdenciária para inativos e pensionistas em face da EC 20/98
Roberto Barbosa de Castro *
I - INTRODUÇÃO
A Lei nº 9.783, de 28 de janeiro de 1999, instituiu a
alíquota uniforme de 11% para todos os servidores ativos, inativos e pensionistas
da União. Além disso, instituiu adicionais temporários (até dezembro de 2002)
de 9% sobre a parcela de vencimentos e proventos compreendida entre R$ 1.200,00
e R$ 2.500,00 e de 14% sobre a parcela excedente a esse valor. Criou faixas de
isenção para as parcelas de até R$ 600,00 para inativos e pensionistas, isenção
que se eleva para R$ 3.000,00 quando o inativo ou pensionista tenha mais de 70
anos ou tenha sido inativado por invalidez.
Em resumo, estendeu a obrigação de contribuir aos inativos
e pensionistas e criou, verdadeiramente, uma escala progressiva de
contribuição, por via de adicionais temporários.
O cotejo do conteúdo da citada lei com as disposições
constitucionais, principalmente as regentes da matéria tributária e da matéria
previdenciária (esta reformada profundamente pela Emenda Constitucional nº 20,
de 1998) põe em evidência uma quantidade significativa de ilegitimidades do
que, fatalmente, decorrerá seu afastamento do mundo jurídico por declaração de inconstitucionalidade.
Um sumário das inconstitucionalidades encontradas poderia
ser listado como abaixo:
1 - ofensa ao direito adquirido do segurado, mediante o
pagamento prévio de um número definido de contribuições, à percepção de um
benefício igualmente definido no texto constitucional (art. 40, §§ 1º e 3º);
2 - ofensa ao princípio da causa eficiente para criação ou
majoração de contribuição, em razão da desvinculação custo-benefício no caso
dos aposentados (art. 40, c/c art. 195, § 5º), em razão da falta de prévia
definição legal de modelo atuarial (art. 40) e em razão de instituição de
alíquotas diferenciadas (art. 195, § 5º);
3 - ofensa à definição constitucional dos destinatários (e
contribuintes) do regime previdenciário, ou seja, servidores titulares de cargo
efetivo (art. 40, caput e § 12, c/c art. 195, II);
4 - ofensa ao princípio isonômico, em razão do tratamento
diferenciado entre segurados do regime especial e do regime geral (art. 40, caput,
c/c art. 195, II, art. 5º e art. 150, II) e entre segurados do regime do art.
40 em razão da imposição de alíquotas progressivas (art. 150, II);
5 - ofensa à obrigatoriedade de lei complementar para
instituição de fonte nova de custeio para a previdência (art. 195, § 4º, c/c
art. 154, I) ou, alternativamente, à obrigatoriedade de lei complementar e de
observância de anterioridade plena (art. 149, c/c art. 146, III e 150 III);
6 - ofensa à vedação de criação de novo tributo com fato
gerador ou base de cálculo próprios dos já existentes (art. 195, § 4º, c/c art.
154, I);
7 - ofensa à não autorização constitucional para
instituição de alíquotas diferenciadas (art. 195, § 9º);
8 - utilização de tributo com efeito de confisco (art.
150, IV);
9 - contrariedade à mens legis e à mens
legislatoris, apurada pela interpretação integrativa dos textos
constitucionais e pela interpretação dos registros históricos dos trabalhos
parlamentares na votação da Emenda Constitucional nº 20, de 1998.
II - EVOLUÇÃO HISTÓRICA
A Emenda 20 operou radical transformação na natureza do regime
de aposentadoria dos servidores públicos, que se iniciara no século passado
como benesse concedida aos militares, estendida aos funcionários civis invalidados
para o trabalho, sendo gradativamente ampliada para alcançar outras hipóteses,
como o simples cumprimento de determinado tempo de serviço ou atingimento de
certa idade.
O conceito, de início claro e depois subjacente, era de um
prêmio aos bons funcionários. O Estatuto de 1939 ainda subordinava a
concessão ao arbítrio do Governo: "...e forem julgados merecedores
desse prêmio, pelo bons e leais serviços prestados à administração pública."
(DL nº 4.693 e DL nº 8.253, este de 29-11-45). MÁRIO MASAGÃO definia a
aposentadoria como "a situação do funcionário público desligado definitivamente
do exercício do cargo, por invalidez, ou como prêmio por longo tempo de
serviço, e que continua a perceber, até o fim da vida, o estipêndio, integral
ou reduzido, conforme o caso" (Revista de Direito Administrativo, vol.
79, pág. 249). MARCELLO CAETANO, completa sua definição de aposentadoria com a
expressão "...mediante a atribuição de uma pensão vitalícia cuja
importância é proporcional ao número de anos de serviço prestado ou
correspondente a sacrifícios extraordinários feitos pelo interesse geral."
(Curso, vol. II, pág. 254). HELY LOPES MEIRELLES não distoa: "a
aposentadoria é a prerrogativa da inatividade remunerada, reconhecida aos
funcionários que já prestaram longos anos de serviço público, ou se
tornaram incapacitados para suas funções." (Direito Administrativo
Brasileiro, 1964, pág. 388).
Até o advento da Emenda 20, a natureza da aposentadoria
dos servidores sempre foi premial, sem embargo de que, sendo
fundada na Constituição e no sistema legal, fosse direito subjetivo dos
servidores. Contudo, sempre decorreu de liberalidade do Estado e nunca deixou
de ser um prêmio ao servidor que cumpria determinados pressupostos de
invalidação, de tempo de serviço ou de idade. Por comodidade contábil, ou não,
(visto que o Estado que paga os vencimentos que ele próprio fixa como ato de
príncipe é o mesmo que pagará os proventos) o fato é que, até a Emenda n.º 3,
de 1993, nunca houve a preocupação de se cobrar contribuição do servidor. (A
contribuição para o IPASE que anteriormente se cobrava, e continuou a ser
cobrada mesmo depois da extinção daquele instituto, era destinada a custear
despesas de saúde e o fundo de pensões dos dependentes). A despesa com inativos
sempre foi considerada (inclusive no orçamento e na contabilidade pública) como
despesa de pessoal. A doutrina e a jurisprudência sempre consideraram o inativo
como espécie do gênero servidor, tanto que, mesmo após inativado e
desligado do cargo, podia ser punido (inclusive com a cassação da
aposentadoria) assim como chamado a fazer reposições ou indenizações à Fazenda,
etc.. Enquanto na ativa, percebia pro labore facciendo. Uma vez
inativado, os estipêndios tinham a natureza de pro labore facto.
J. E. Abreu de Oliveira acentua o caráter de continuidade
da relação jurídica entre o Estado e o servidor, mesmo após a inativação. Nesse
contexto, "o provento do aposentado tem a mesma natureza jurídica do
vencimento, deste sendo uma continuação ou prolongamento". Citando
exemplos concretos e doutrina de países como a Bélgica, França, Espanha,
México, Argentina, Estados Unidos, conceitua o provento como uma parcela
diferida dos vencimentos devidos durante a fase ativa. (Aposentadoria no
Serviço Público, Freitas Bastos, 1970, pág. 149)
No Brasil, as Constituições simplesmente determinavam:
"o funcionário será aposentado:" (e seguiam-se os pressupostos).
Aliás, a Constituição de 1988 foi a primeira a trocar o termo funcionário
pelo de servidor.
A Emenda n.º 3, de 1993, introduziu no art. 40, da CF, o §
6º, iniciando a transição ao determinar que os servidores deveriam contribuir
para compartilhar a despesa com os aposentados. Iniciou-se, então, ainda
embrionário, um regime de repartição simples: os ativos contribuindo para
ajudar a manter os inativos. Todavia, o regime não deixou, mesmo assim, de ser premial.
Ou, pelo menos, os doutrinadores não registraram a mudança. O STF, ainda em
dezembro de 1994, editou acórdão considerando que o aposentado não poderia
exercer cargo público sob pena de incorrer em acumulação, aludindo claramente a
que se deveria considerar que, virtualmente, ele continuava servidor e ocupando
cargo.
Todavia, a Emenda n.º 20, de 1998, completou a transição,
e, vale dizer, radicalmente.
Não se trata de mero acaso. Na proposta inicial da reforma
da previdência, o Governo pretendia simplesmente extinguir o regime de
aposentadoria dos servidores, unificando-o no regime da previdência geral. No
curso do processo legislativo a proposta foi mitigada para um regime próprio,
porém o mais aproximado possível com o do regime geral. É bastante elucidativo
o seguinte trecho do Relator da reforma no Senado Federal, Senador Beni
Veras" ao descrever o projeto substitutivo que submetia à votação:
"...o
estabelecimento de critérios similares para os regimes do servidor público e do
INSS e a remissão ao artigo que trata do servidor público para as diversas
situações específicas, o que tornou meu Substitutivo uma proposta uniforme e
coerente para todos os cidadãos, ainda que contemplando diferentes
regimes;"
Além da natureza contributiva e atuarial, diversos
dispositivos fazem a ponte entre ambos. O mais explícito é o §12 do art. 40,
que manda aplicar, no que couber, "os mesmos requisitos e critérios
fixados para o regime geral de previdência social". A rigor
configura-se, hoje, um único regime geral, universal, de previdência social
(art. 201) que passa a conviver com regimes especiais para os servidores (art.
40), de características muito semelhantes. O regime geral fornece as normas
gerais, que se aplicam inclusive aos regimes especiais naquilo que não esteja
especificado em suas próprias normas especiais. Aplica-se, no caso, a mesma
doutrina pertinente à vigência simultânea de leis gerais e leis especiais.
Pela primeira vez na história, a CF subordinou a
aposentadoria de seus servidores a um regime previdenciário de base
contributiva e atuarial.
O câmbio é radical. O referencial doutrinário e
jurisprudencial que informavam o regime premial não é mais
adequado para o novo regime.
A aposentadoria do servidor deixa de ser um prêmio, uma
benesse do Estado, passa a ser contraprestação ao pagamento de contribuições,
as quais inclusive, devem ser calibradas de tal sorte a proporcionar equilíbrio
financeiro e atuarial ao regime.
O regime premial cede lugar ao regime de seguro social.
Antes, o Estado era devedor da aposentadoria por
liberalidade sua. Agora, é devedor porque se apossa da contribuição, mero
prêmio do seguro social. Antes, o Estado pagava prêmio de aposentadoria ao
servidor que se invalidava ou envelhecia. Agora, é o servidor que paga ao Estado
o prêmio do seguro e, em contrapartida, torna-se credor dos benefícios da
aposentadoria. Antes da Emenda nº 20, o aposentado continuava servidor,
inclusive para fins disciplinares. E agora? Ter-se-á tornado inconstitucional,
por exemplo, o instituto da cassação de aposentadoria?
Mais: pode o Estado, após a Emenda nº 20, de 1998,
instituir contribuição daquele a quem já é devedor, exatamente para cobrir
parte das despesas com o débito que ele, Estado, tem que pagar ao mesmo
contribuinte?
Ao assim fazer, não estará o Estado cometendo simples
confisco ou cobrança sem causa eficiente, visto que nenhuma contrapartida
oferece a essa contribuição arrecadada? Já que está contribuindo, o
aposentado poderá obter novo benefício, em contrapartida? Não, até porque isso
é expressamente vedado no § 6º do art. 40.
III - A NATUREZA PREVIDENCIÁRIA E CONTRIBUTIVA DO
REGIME
O art. 40 da CF, com a redação dada pela Emenda n.º 20,
determina que o aos servidores titulares de cargos efetivos é assegurado
"regime previdenciário de caráter contributivo".
Isso implica radical inovação na matéria, visto que, até
então as aposentadorias dos servidores federais enquadravam-se no conceito
"premial", em face do que todo o referencial doutrinário e
jurisprudencial antes aplicável se torna inadequado.
Antes, as Constituições diziam que "o servidor será
aposentado..." (em tais ou quais condições e requisitos). Agora, diz que o
servidor será aposentado se abrangido (§ 1º do art. 40) por um regime previdenciário
de caráter contributivo. Até então, o principal requisito era o "tempo
de serviço". Agora, o principal requisito é o "tempo de
contribuição".
Antes, o servidor recebia um prêmio pelos serviços
prestados.
Agora, ele paga, previamente, um prêmio de seguro social
para usufruir proventos na inatividade.
São da essência de um regime previdenciário contributivo o
prévio pagamento das contribuições, que correspondem ao custo do seguro e a
estrita vinculação causal entre tais contribuições e os benefícios, tal como se
verá a seguir:
1 - o prêmio do seguro, isto é, as prestações que
são ônus do segurado, são pagas previamente.
A Constituição impõe como requisito para auferir o
benefício a verificação prévia de que o segurado contribuiu antes
da concessão. Segundo o art. 40, o direito ao benefício, calculado segundo as
regras que especifica, se constitui (além do requisito combinado de
idade) com o recolhimento prévio da contribuição, durante tantos ou
quantos anos. A Constituição não prevê nenhuma hipótese de contribuição a
posteriori. Por exemplo, mesmo que o servidor cumpra, antes, o requisito de
idade, ainda assim não pode ser aposentado sob a condição de que continue
pagando a contribuição. O direito ao benefício somente se configura e se
constitui com seu prévio pagamento. Uma vez configurado, é direito adquirido.
Os benefícios podem, então, ser auferidos sem qualquer nova prestação, porque
já foram previamente pagas todas as contribuições exigidas e já se encerrou o
período aquisitivo de direitos. Nenhum direito novo nascerá para o segurado em
troca de novas contribuições.
Antes da Emenda nº 20, o direito à aposentadoria se
constituía com o implemento da condição de tempo de serviço. Uma vez
constituído, o direito se considerava adquirido e nenhuma outra obrigação
adicional ao pressuposto cuja condição já fora implementada, poderia ser criada
posteriormente. Por exemplo, seria claramente inconstitucional por ofensiva ao
direito adquirido uma lei que viesse a criar obrigação de prestação de
serviço para o servidor já aposentado, ou de sua reversão ao serviço
ativo (salvo por vício na concessão). Os pressupostos de invalidação
definitiva, de implemento de idade e de implemento de tempo de serviço eram condições
necessárias e suficientes para a constituição do direito. Nenhuma lei
poderia, após a constituição do direito, exigir complementos em relação àqueles
pressupostos.
Após a Emenda nº 20, o mesmo raciocínio se aplica aos novos
pressupostos agora inscritos no art. 40 da Constituição. Afora o
pressuposto de invalidação definitiva, agora o direito à aposentadoria se
constitui e ingressa no patrimônio jurídico do servidor com o implemento das
condições de idade e de tempo de contribuição. Essas são as novas condições
necessárias e suficientes para o aperfeiçoamento e aquisição do direito.
Assim como, antes, seria inconstitucional a lei que criasse obrigações de
prestação de serviço para os aposentados, agora é inconstitucional a lei que
cria nova contribuição em complemento ás contribuições já implementadas nos
termos do art. 40 da Constituição, com a redação da Emenda nº 20.
Sequer pode-se argumentar que muitos dos atuais servidores
e muitos dos atuais aposentados não contribuíram efetivamente durante todo o
tempo para adquirirem o direito à aposentadoria, nos novos termos exigidos pela
Constituição e que isso justificaria a imposição posterior do encargo. Acontece
que a Emenda nº 20 cuidou de estabelecer presunção juris tantum dessa
contribuição, pela equivalência do tempo de serviço cumprido, verbis:
"Art. 4º
Observado o disposto no art. 40, § 10, da Constituição Federal, o tempo de
serviço considerado pela legislação vigente para efeito de aposentadoria,
cumprido até que a lei discipline a matéria, será contado como tempo de
contribuição."
Isso significa que todos os atuais servidores ativos estão
em situação regular e que todos os atuais aposentados estão absolutamente
quites com sua obrigação contributiva, na exata proporção de seus respectivos
tempos de serviço considerados para a aquisição do direito ao benefício. Para
os efeitos do art. 40 da Constituição Federal, todos os atuais aposentados
contribuíram integralmente para a aquisição do direito aos proventos. Nada mais
lhes pode ser exigido.
Essa é a própria lógica do seguro, agasalhada pela
Constituição. Ofende a lógica e a Constituição que, depois de pagas as
condições para obtenção do benefício (que é previamente definido) possa o
segurador continuar cobrando o prêmio do seguro. Fazendo isso, ele está
simplesmente sonegando o pagamento de parte do benefício previamente definido
em norma constitucional e estendendo a obrigação do segurado para além
do que a Constituição determinou para a constituição do seu direito.
A Constituição diz que o servidor contribua durante trinta
e cinco anos para fazer jus aos proventos integrais. A Lei nº 9.783,
de 1999, instituidora de contribuição para o aposentado, das duas uma: ou está estendendo
o prazo de contribuição para trinta e seis, trinta sete, quarenta,
cinqüenta, setenta anos - ou está diminuindo aritmeticamente o valor dos
proventos, que, assim, deixam de ser integrais, configurando-se confisco
por via oblíqua. Aliás, na Exposição de Motivos que acompanhou a mensagem
presidencial que resultou no Projeto de Lei nº 4.898/99 e, posteriormente, na
Lei nº 9.783, o Governo indica claramente a intenção de confisco:
"A
instituição de contribuição previdenciária para os servidores públicos inativos
é da maior relevância para corrigir as distorções existentes. Como
atualmente eles deixam de contribuir ao se aposentarem, a remuneração
líquida dos inativos acaba sendo mais elevada que a dos ativos."
A Emenda nº 20, em dois momentos, fornece indicação clara
de que em matéria de contribuição do segurado, o seu pagamento por um
determinado número de anos é condição necessária e suficiente
para o aperfeiçoamento do direito à aposentadoria integral: tanto
o § 1º do art. 3º quanto o § 5º do art. 8º conferem imunidade contributiva ao
segurado que, tendo já contribuído pelo tempo suficiente, permaneça em serviço.
A Lei nº 9.783 também assim o reconhece, ao conferir
isenção de caráter idêntico. Todavia, merece registro enfático que, a título de
estimular o retardamento do pedido de aposentadoria, a citada lei incorre em
absurda e inexplicável contradição jurídica. Ao conceder a isenção (na verdade,
estendendo, no tempo a imunidade que a Emenda nº 20 já outorgara) ficou
reconhecido pelo legislador ordinário o que o constituinte já explicitara:
afora o pressuposto combinado de idade, a contribuição por determinado número
de anos é o quanto basta para aperfeiçoar o direito ao benefício. Tendo
contribuído por trinta e cinco anos, nem um centavo se há de exigir do
segurado, porque já pagou o que tinha de pagar; já quitou previamente o que lhe
competia pagar e adquiriu o direito de reclamar, quando lhe aprouver, o benefício
da aposentadoria integral. Ora, a Lei nº 9.783 reconhece que o segurado
já cumpriu a sua parte - a condição necessária e suficiente - mas volta a confiscar-lhe
parte do benefício quando finalmente ele se dispõe a usufruí-lo.
2 - há estrita vinculação causal entre contribuição
e benefício.
A contribuição somente se explica e se justifica ante a
perspectiva da sua retribuição em forma de benefício, assim como o benefício
somente se torna direito mediante a prévia contribuição. São dois termos da
mesma equação. Um não existe sem o outro. Nem há contribuição sem benefício,
nem benefício sem contribuição. A cobrança de contribuição do aposentado fere
essa lógica e subverte a vinculação causal, porque não há nenhuma perspectiva
de benefício que lhe vá ser dada em contrapartida. A Lei nº 9.783, de 1999
trata, então, de cobrança sem causa eficiente.
Em um regime previdenciário contributivo, necessariamente,
há correlação entre custo e benefício. Regime contributivo é, por definição,
retributivo.
No regime anterior à Emenda nº 20, a contribuição não era
pressuposto para obtenção do direito aos proventos. Os pressupostos
limitavam-se ao cumprimento de tempo de serviço, idade ou invalidação. A
contribuição, introduzida pela Emenda nº 3, de 1993, era como uma obrigação
acessória e não, propriamente, um pressuposto para a concessão da
aposentadoria. Com a Emenda nº 20, não há mais benesse do Estado. A prévia
contribuição é requisito para a aquisição do direito. Uma vez adquirido
justamente com base na contribuição, o direito está protegido contra nova
obrigatoriedade contributiva.
Aplica-se, agora, plenamente, o que já se enunciava para a
previdência geral. No dizer do Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal
Federal, "a regra segundo a qual nenhum benefício da seguridade social
poderá ser criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio
total, corresponde à relativa exigibilidade de causa eficiente para a
majoração, sob pena de esta última discrepar do móvel que lhe é próprio, ligado
ao equilíbrio atuarial entre contribuições e benefícios, implicando, aí sim, um
adicional sobre a renda do trabalhador." (j. em 26-02-93, DJ 23-0493, pág.
06918).
No bojo da Representação nº 1.077, de 28-03-84, que feriu
a constitucionalidade de aumento de taxa judiciária no Estado do Rio de
Janeiro, no voto do Relator Ministro Moreira Alves afirmava: "Como já
se acentuou - a taxa judiciária, em face do atual sistema constitucional, taxa
que serve de contraprestação à atuação dos órgãos da justiça cujas despesas não
sejam cobertas por custas e emolumentos, tem ela - como toda taxa, um caráter
de contraprestação - um limite, que é o custo da atividade do Estado, dirigido
àquele contribuinte (...) O que é certo, porém, é que não pode taxa dessa
natureza ultrapassar uma equivalência razoável entre o custo real dos serviços
e o montante a que pode ser compelido o contribuinte a pagar, tendo em vista a
base de cálculo estabelecida pela lei e o quantum da alíquota por esta
fixado." (apud Contribuição de Servidores, Paulo José Leite
Farias, Correio Braziliense, 22-02-99).
Segundo a doutrina tributária, a contribuição
previdenciária tem o caráter de tributo vinculado. Na falta de perspectiva
futura do benefício correspondente não há que arcar o aposentado com a
contribuição. Muito menos para o custeio do seu próprio benefício. Seguro
social é, essencialmente, pacto entre gerações.
A natureza de tributo vinculado (à semelhança de taxa) da
contribuição previdenciária decorre de ensinamentos dos maiores tributaristas,
a exemplo de GERALDO ATALIBA (in Hipótese de Incidência Tributária, 2º
ed., 1975, pág. 202), ALFREDO AUGUSTO BECKER (in Teoria Geral do Direito
Tributário, S. Paulo, Ed. Saraiva, pág. 330), ROQUE ANTÔNIO CARRAZA (in Curso
de Direito Constitucional Tributário, 3º ed., 1991, pág. 304), IVES GANDRA
MARTINS (in Sistema Tributário na Constituição de 1988, 3º ed., 1991,
pág. 125) e PAULO DE BARROS CARVALHO (in Curso de Direito Tributário, 5º
ed., 1991, pág. 38).
A contribuição para o custeio da seguridade social do
servidor tem características de uma taxa paga em contrapartida a uma dada
prestação que lhe é posta à disposição. E, como bem lembra IVES GANDRA MARTINS,
"as contribuições especiais não podem ser cobradas, por sua vinculação,
além dos custos necessários aos serviços e finalidades a que se destinam."
Contrario sensu, se a contribuição é cobrada em desvinculação com o
futuro benefício, reveste-se, na verdade (a despeito de seu nomem juris)
de tributo desvinculado, à semelhança do imposto de renda. E como tal, sua
validade fica condicionada ao crivo dos pertinentes requisitos constitucionais.
O festejado Professor SACHA CALMON considera que a
contribuição social do segurado da previdência "é sinalagmática, é
paga justamente para que o pagante possa aposentar-se. Alcançada a
aposentadoria, cessa a obrigatoriedade de contribuir." (Correio
Braziliense, 03-02-99). Na verdade, reafirmação de sua posição doutrinária,
(de resto, excelente síntese da doutrina universal) tal como, por exemplo,
exarada no 1º Congresso Internacional de Direito Tributário - IBET, realizado
em Vitória (ES) em agosto de 1998, ao desenvolver o tema "As
"Contribuições Especiais no Direito Tributário Brasileiro": "Dentre
as sociais ressaltam as previdenciárias, pagas por todos os segurados
proporcionalmente aos seus ganhos, para garantirem serviços médicos, auxílios
diversos e aposentadorias. Estas são as verdadeiras contribuições que podem
ser incluídas na espécie dos tributos vinculados a uma atuação específica do
Estado, relativamente à pessoa do contribuinte (...) Nas contribuições
previdenciárias, o caráter sinalagmático da relação jurídica é irrecusável.
Nas demais contribuições, inclusive as sociais, este aspecto inexiste."
(in Justiça Tributária, coletânea dos temas tratados no citado Congresso. O
destaque não é do original).
O parágrafo único do art. 2º da Lei nº 9.783, ao conferir
caráter temporário aos adicionais de 9% e de 14% à contribuição, eleva ao
extremo a desvinculação entre contribuição e benefício e, por isso, ressalta
seu caráter de inconstitucionalidade. Não há como exigir acréscimo temporário
de contribuição se nenhum acréscimo temporário correspondente haverá no
benefício. A ofensa à retributividade é inegável e escancarada. Rompe-se
claramente a relação custo-benefício. Não há qualquer resquício de causa
eficiente para tal cobrança adicional.
Não merece acolhida o argumento de que, por ter direitos
iguais aos do servidor ativo, o inativo deva contribuir em igual medida. A uma,
porque não existe essa igualdade de direitos, vez que o aposentado, ao
contrário do servidor ativo, não tem o principal direito em um regime
previdenciário, que é uma futura aposentadoria (pois que já tem a sua,
adquirida segundo os requisitos legais e constitucionais exigidos) e, a duas,
porque a regra de paridade entre remuneração dos ativos e proventos dos
inativos, nada mais é que regra de atualização de valores. Eventual acréscimo
que sua aplicação provoque em relação à simples atualização de valores não deve
ser objeto de nova contribuição, pois que isso terá decorrido de regra antes
fixada e seu conteúdo, portanto, integrou o direito adquirido ao benefício.
Poderia até ser moralmente justificável exigir-se do aposentado uma
contribuição para sustentar os acréscimos de vantagem que viessem a ser
incorporados aos seus proventos, visto que a Súmula 359 do STF reza que tais
proventos são fixados quando da decretação da inativação, mas, obviamente, essa
contribuição teria que guardar relação com os acréscimos e jamais ser idêntica
à dos servidores ativos. Contudo, essa contribuição teria que ser autorizada
pelo texto constitucional, o que não ocorre.
Essa autorização constitucional inexiste e a não
existência decorreu de expressa vontade do Plenário da Câmara dos Deputados,
deliberando na qualidade de poder constituinte derivado, tal como se vê na
justificação do Destaque para Votação em Separado assinado por todos os líderes
da bancada governista, o qual acarretou a supressão do dispositivo que permitia
a cobrança de contribuição de inativos e pensionistas:
"Entendimentos
firmados entre os Líderes dos Partidos da base de apoio ao Governo, com a
expressa concordância do Poder Executivo, através de seu Líder, Deputado Luís
Eduardo, concluíram que a cobrança de contribuição previdenciária de
aposentados ou pensionistas da União, após o segurado ter cumprido todos os
requisitos funcionais pecuniários e temporais estabelecidos legalmente como
necessários à obtenção desse benefício, é indevida."
IV - A NATUREZA ATUARIAL DO REGIME
A Lei nº 9.783, de 28 de janeiro de 1999 é, também,
inconstitucional, por fixar alíquotas de contribuição sem definição do modelo
atuarial do regime de previdência dos servidores públicos, ou seja, sem atentar
para o princípio de causa eficiente.
Pela Emenda n.º 20, de 1998, ficou inscrito no art. 40 que
o regime previdenciário assegurado ao servidor titular de cargo efetivo, além
de seu caráter contributivo, deve observar "critérios que preservem
o equilíbrio financeiro e atuarial."
Repita-se que a Constituição, assim como as leis, não tem
palavras inúteis.
Necessário, então, pesquisar o sentido jurídico da
expressão. Segundo o Supremo Tribunal Federal (Ac. RE-166772/RS), "o
conteúdo político de uma Constituição não é conducente ao desprezo do sentido
vernacular das palavras, muito menos ao do técnico, considerados institutos
consagrados pelo Direito. Toda ciência pressupõe a adoção de escorreita
linguagem, possuindo os institutos, as expressões e os vocábulos que a revelam
conceito estabelecido com a passagem do tempo, quer por força de estudos
acadêmicos quer, no caso do Direito, pela atuação dos Pretórios."
Ocorre que, pela primeira vez, a Constituição brasileira
tem inserida, em seu texto, a expressão "equilíbrio financeiro e
atuarial", como determinante de organização e funcionamento dos
sistemas previdenciários (a expressão aparece, também, no art. 201, relativo à
previdência geral).
Após a Emenda nº 20, o caráter atuarial dos regimes
previdenciários passa a ser um valor constitucional. Até então,
era meramente um valor técnico. Antes, o equilíbrio atuarial era
uma mera postulação técnica, um objetivo gerencial a ser perseguido na
administração dos sistemas previdenciários. Agora, é um mandamento
constitucional. A tutela constitucional envolve implicações de segurança
jurídica, principalmente aqueles relacionados com a causa eficiente para a
cobrança das contribuições.
Para a aprovação da Lei n.º 9.783, de 1999, o Governo
divulgou e inseriu na mensagem presidencial números sobre supostos déficits no
regime de previdência dos servidores federais, dando a entender que o aumento
da taxação dos ativos e a instituição de cobrança dos inativos e pensionistas
se justificaria pela necessidade de promover o equilíbrio atuarial. Nisso,
cometeu erro palmar.
Com números muito sujeitos a crítica, conseguiu, no
máximo, mostrar que a arrecadação das contribuições dos servidores ativos (cuja
alíquota, até então, estava unificada em 11%) é, no momento, insuficiente para
cobrir a despesa atual, total, com inativos e pensionistas civis e militares.
Ou seja, conseguiu demonstrar, no máximo, um desequilíbrio
conjuntural entre receitas e encargos previdenciários. Seria isso
um desequilíbrio atuarial?
Absolutamente, não.
Na verdade, a ciência atuarial, que é calcada em técnicas
matemáticas, estatísticas e probabilísticas não tem apenas - ou tem muito pouco
- a ver com o desequilíbrio presente. No caso de um sistema previdenciário, a
atuária se preocupa com o equilíbrio de receitas e despesas a longo prazo. Para
isso, leva em conta a massa de contribuintes, sua composição, regras de entrada
e saída do sistema, tempo e volume de contribuição, probabilidades de evolução
desses fatores, a aplicação e rentabilidade das receitas, enfim, o volume e a
evolução do ativo atuarial; em confronto, o volume e a evolução do passivo
atuarial que decorre da massa de beneficiários, sua composição, regras de
entrada e probabilidades de saída, tempo médio de percepção de benefício,
volume do benefício, probabilidades de evolução, etc.
São, enfim, cálculos de extrema complexidade que vão muito
além do simples alinhamento de receitas e despesas no último exercício. O
Senador Beni Veras, Relator da Reforma da Previdência no Senado Federal chamava
a atenção para esse aspecto, em seu Relatório:
"O equilíbrio
financeiro e atuarial é necessário não apenas para dar segurança às pessoas que
contribuem mensalmente para o sistema, cuja expectativa é usufruir dos
benefícios no futuro, mas também para garantir o pagamento dos benefícios
àqueles que contribuíram no passado. Os cálculos dos atuários, portanto, são
feitos para várias gerações."
A propósito, cabe lembrar a seguinte manifestação do
Ministro MOREIRA ALVES, do Supremo Tribunal Federal, no Agravo Regimental em
Agravo de Instrumento AGRAG-212515/RJ, datado de 16-06-98 - Primeira Turma:
"Agravo
Regimental. Como salientado no despacho agravado, é mister examinarem-se
previamente cálculos atuariais que não se traduzem necessariamente a simples
confronto de proporções entre aumentos, mas é preciso levar em conta outros
fatos como o número de contribuintes e de beneficiários, além do tempo provável
de contribuição daqueles e o de percepção dos benefícios por parte
destes."
Principalmente, a projeção do equilíbrio atuarial exige
regras estáveis e a definição clara do modelo previdenciário adotado. Com base
nesse modelo previdenciário, pode, enfim, ser configurado um plano
atuarial, que no caso discutido, no mínimo tem que ser aprovado em lei
formal. Se a Constituição determina que haja equilíbrio atuarial, e esse
equilíbrio atuarial é decorrência de uma série de fatores predeterminados, tudo
isso tem que ser definido em lei. Não pode ficar ao sabor do governo de cada
momento que ache necessário aumentar ou criar novas alíquotas de contribuição
para o atingimento de um "equilíbrio atuarial" cujos cálculos (se é
que existem) ele guarda misteriosamente...
A busca do equilíbrio atuarial da previdência interessa
não apenas às finanças públicas e à solvência do sistema, mas também ao direito
subjetivo dos segurados. Num regime de benefícios definidos, como é a
previdência dos servidores, a incorreta ou nenhuma definição do plano atuarial
irá forçosamente produzir uma de duas conseqüências opostas:
1 - fixação de contribuições abaixo do necessário para
sustentar o regime a longo prazo, levando-o à insolvência, ou
2 - fixação de contribuições acima do necessário para
sustentar o regime a longo prazo, acarretando prejuízo aos segurados por
pagarem mais que o necessário para a percepção dos benefícios, e assim
desvirtuando o nexo causal entre contribuição e benefício.
A definição do modelo previdenciário leva em conta,
basicamente, os seguintes quesitos:
1 - contribuições definidas e benefícios variáveis, ou
contribuições variáveis e benefícios definidos;
2 - regime de repartição simples ou regime de capitalização.
A previdência dos servidores, por regra constitucional, já
tem resolvido o primeiro quesito, pois trata-se de um regime de benefícios
definidos, para cujo equilíbrio atuarial as contribuições devem, então,
se ajustar.
Todavia, não há definição sobre o segundo quesito. O
regime próprio de previdência dos servidores federais é de repartição simples
ou de capitalização? A Lei nº 9.717, de 27 de novembro de 1998, que "dispõe
sobre regras gerais para a organização e o funcionamento dos regimes próprios
de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, dos Militares dos Estados e do Distrito
Federal e dá outras providências", não oferece essa definição, apenas
indicando confusamente ora num, ora noutro sentido.
Assim é que, no art. 1º, sinaliza com o regime de capitalização, ao
determinar, no inciso VII, "registro contábil individualizado das
contribuições de cada servidor e dos entes estatais, conforme diretrizes
gerais." O registro individual somente faz sentido em regime de
capitalização, não tendo, no entanto, qualquer importância para o de repartição
simples.
Entretanto, no art. 2º, § 1º, dispõe sobre limite de despesa com pessoal
inativo e pensionistas, o que somente faria sentido em regime de repartição
simples pois, em regime de capitalização, a despesa decorre dos direitos
individuais dos segurados, apurados em sua conta individual e não pode ser
limitada.
Portanto, não existindo lei que previamente defina o modelo e os
parâmetros atuariais do regime previdenciário, é inelutável a declaração de
inconstitucionalidade da Lei nº 9.783, de 1999, ou de qualquer outra lei que
institua ou aumente alíquotas de contribuição, simplesmente porque, sem tais
modelo e parâmetros, é impossível estabelecer a relação custo-benefício, isto
é, a causa eficiente para a cobrança de contribuições.
Há dois aspectos adicionais de suma importância para a busca do
equilíbrio atuarial do regime previdenciário, o qual, por força da Emenda nº 20
passou a ter valor constitucional.
O primeiro diz respeito às tábuas biométricas (ou tábuas de mortalidade),
que são fundamentais e indispensáveis para o cálculo e projeção atuarial da
previdência. A partir delas calculam-se as probabilidades de morte dos
segurados e, principalmente, médias estatísticas de tempo de contribuição e de
fruição de benefícios.
Acontece, simplesmente, que não existem tábuas biométricas
calculadas segundo as peculiaridades da população brasileira, com índices de
mortalidade e de esperança de vida aferidos em razão das condições étnicas,
sanitárias, alimentares etc. do Brasil.
A propósito de regulamentar a Lei nº 9.717, de 1998, e de ditar
parâmetros para a organização de regimes de previdência para os servidores
públicos, o Senhor Ministro da Previdência baixou a Portaria nº 4.992, de 5 de
fevereiro de 1999 (DOU de 08-02-99) em cujo Anexo I - Das Normas de Atuária,
manda aplicar, para cálculo atuarial de mortalidade geral, tábuas
biométricas norte-americanas (CSO - 58, CSO - 80, AT - 49, AT - 80, EB7
- 75).
Ora, como tudo indica que os índices de esperança de vida nos Estados
Unidos da América sejam muito maiores que os do Brasil, da aplicação dessas
tábuas biométricas resultam alíquotas contributivas mais altas que necessárias
às peculiaridades brasileiras. Está, aí, caracterizada a cobrança sem causa
eficiente.
O segundo aspecto diz respeito às condições para equilíbrio atuarial do
regime de previdência dos servidores federais em modelo de repartição simples.
Nesse modelo, tem-se uma massa de contribuintes (os servidores ativos) e
uma massa de beneficiários (aposentados e pensionistas). Cada uma dessas massas
tem suas regras e tendências de ingresso, de fluxo e de saída. Em situação
normal, a massa de contribuintes tende a ser bem maior que a dos beneficiários,
pela simples razão de que a grande maioria dos contribuintes permanece trinta
anos ou mais nessa condição, enquanto que os beneficiários permanecem no máximo
em torno de quinze a vinte anos, na média (a idade média de aposentadoria, segundo
estatísticas oficiais, situa-se na casa dos cinqüenta e sete anos).
A despesa com inativos e pensionistas da União, que hoje situa-se em 42%
do total das despesas com pessoal, era de pouco mais de 20% até 1990. Diversos
fatores, desde então, promoveram o atual desequilíbrio conjuntural, contando-se
aí a implantação do Regime Jurídico Único e a política de pessoal do Governo
Collor, bem como a própria reforma da Previdência, as quais estimularam a
efetivação de milhares de aposentadorias represadas. O mais importante,
todavia, foi o fato de que o Estado brasileiro optou por uma linha de
encolhimento, deixando de repor integralmente os quadros, de tal sorte que, na
década de noventa a massa de contribuintes perdeu pelo menos duzentos mil
elementos que, evidentemente, foram-se somar à massa de beneficiários. A médio
prazo a tendência seria a de retorno à situação de equilíbrio anterior,
inclusive em face das novas e mais rigorosas regras de aposentadoria, contagem
de prazo, idade mínima, etc.
Acontece que estão em curso novas políticas de organização do Estado,
como decorrência da Emenda Constitucional nº 19 (Reforma Administrativa) e de
gestão de pessoal que tornarão simplesmente impossível qualquer equilíbrio
atuarial em regime de repartição.
Informe oficial do Governo (Cadernos MARE da Reforma do Estado, nº 11,
pág. 11) apregoa:
"A reorganização das
atividades do Estado tem um rebatimento no que diz respeito à composição do
quadro de pessoal. Os profissionais atuando em setores voltados para a produção
de bens e serviços para o mercado, setor que será transferido do Estado para o
setor privado por meio do processo de privatização, serão administrados com
base em regras vigentes para o setor privado, não constituindo-se em
funcionários públicos. O mesmo se aplica para os profissionais atuando na área
de serviços sociais e científicos, que será transferida mediante o processo de
publicização para entidades de direito privado sem fins lucrativos integrantes
do setor público não-estatal.
Os servidores públicos, e
portanto integrantes de carreiras de Estado, serão apenas aqueles cujas
atividades estão voltadas para as atividades exclusivas de Estado relacionadas
com a formulação, controle e avaliação de políticas públicas e com a realização
de atividades que pressupõem o poder de Estado. Esses servidores representarão
o Estado enquanto pessoal. Para a realização de atividades auxiliares como
manutenção, segurança e atividades de apoio diversas será dada continuidade ao
processo de terceirização, transferindo-as para entidades privadas."
Coerentemente, o Governo remeteu ao Congresso Nacional projeto de lei
(que tramita na Câmara dos Deputados sob o nº 4.811, de 1998) instituindo o
regime celetista para todos os novos servidores federais, à exceção apenas dos
integrantes das carreiras jurídicas, policiais e que sejam compostas de cargos
privativos de brasileiros natos.
A menção, aqui, dessas políticas de governo, não envolve qualquer juízo
de valor quanto a elas. Apenas se deseja chamar atenção para o fato de que, se
a massa de contribuintes não vai mais receber componentes, e se a massa de
beneficiários vai continuar recebendo componentes (à medida que se forem
aposentando os atuais servidores ativos) será impossível alcançar o equilíbrio
atuarial exigido pelo art. 40 da Constituição Federal, na redação da Emenda nº
20, a não ser que as alíquotas sejam sucessivamente elevadas até representar
confisco quase total da remuneração dos remanescentes servidores ativos. Ou que
se defina claramente que o regime não é de repartição, mas de capitalização.
A interpretação e a aplicação da Constituição não podem levar ao absurdo.
A política de encolhimento do Estado não pode ser contestada, mas os
servidores públicos não podem pagar o ônus decorrente. A política de
encolhimento é uma decisão da sociedade, através de seus representantes; logo,
o ônus há de ser suportado por ela própria.
V - A CLIENTELA (E OS CONTRIBUINTES) DO REGIME DO
ART. 40
O art. 40, caput, com a redação dada pela Emenda n.º 20, de 1998,
dispõe:
"Art. 40. Aos servidores
titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e
dos Municípios, incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime
de previdência de caráter contributivo, observados critérios que
preservem o equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste
artigo."
Como se vê da redação acima, o regime de previdência é assegurado aos
servidores titulares de cargos efetivos. Os servidores titulares de
cargos efetivos são os destinatários da norma. Eles constituem a clientela do
regime previdenciário de caráter contributivo mencionado no art. 40. Logo, eles
são seus contribuintes. Fora de qualquer dúvida que os aposentados não são
titulares de qualquer cargo efetivo, e muito menos os pensionistas. A eles
não se dirige a norma. Não são eles clientela nem tampouco contribuintes do
regime previdenciário mencionado. São beneficiários do regime.
Dir-se-á que a expressão relativa aos titulares de cargos efetivos aí
está apenas para contrastar com a expressão relativa aos titulares de cargos em
comissão (e outros cargos temporários), matéria tratada no § 13 do art. 40,
para remetê-los ao regime geral de previdência. O argumento é verossímil.
Contudo, o fato é que, restringindo-se aos titulares de cargos efetivos,
automaticamente operou-se a exclusão também dos aposentados.
De mais a mais, fosse a intenção do legislador apenas contrastar
titulares de cargos efetivos com ocupantes de cargos em comissão, a técnica
legislativa indicada seria outra. O correto seria, então, exprimir a regra geral
no caput (menção ao gênero "servidores") e a exceção no
parágrafo (menção aos titulares de cargos em comissão, etc.). É o que dispõe o
art. 11, III, c da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998
que dispõe sobre normas para a elaboração, a redação a alteração e a
consolidação das leis: "expressar por meio dos parágrafos os aspectos
complementares à norma anunciada no caput e as exceções à regra por este
estabelecida."
A interpretação sistemática comprova, também, que a exclusão dos
aposentados não foi meramente acidental. Muito pelo contrário.
O "servidor titular de cargo efetivo" do regime do art. 40
corresponde exatamente ao "trabalhador" do regime do art. 201,
combinado com o art. 195, II.
Além disso, de acordo com os parágrafos do art. 40, o direito à
aposentadoria é condicionada ao prévio pagamento de contribuição
durante determinado numero de anos. Ou seja, enquanto o segurado
é titular de cargo efetivo.
O § 1º do art. 40 busca definir ainda mais a clientela do regime de
previdência assegurado no caput. Reza, ele, que "os servidores abrangidos
pelo regime de previdência de que trata esse artigo serão aposentados..."
Ora, se o preceito constitucional precisou especificar quanto aos "servidores
abrangidos", resta evidente que há "servidores não
abrangidos". E, à toda clareza, os "não abrangidos" não
são os ocupantes de cargos em comissão, porque deles trata regra específica,
constante do § 13 do mesmo art. 40. Não haveria o menor sentido ou necessidade
de o redator constitucional salpicar em diversos dispositivos redação
discriminatória dos ocupantes de cargos em comissão. A lei não tem palavras
inúteis. Seria ridículo imaginar que o constituinte temesse que o § 13 não
tivesse clareza ou força suficiente para impedir que os comissionados fossem
abrangidos pelo regime do art. 40.
Mais, ainda. O § 12 do art. 40 determina que "além do disposto
neste artigo, o regime de previdência dos servidores titulares de cargo efetivo
observará, no que couber, os requisitos e critérios fixados para o regime geral
da previdência social.". Como já assinalado antes, esse
dispositivo é a ponte principal entre os dois regimes, lembrando que a intenção
do Governo (e do constituinte) sempre foi a de extinguir (objetivo não atingido)
ou pelo menos identificar ao máximo possível o regime aplicável aos servidores
com o regime geral. O § 12 explicita a configuração da convivência de normas
gerais do, regime geral, tratado no art. 201, com normas especiais, aplicáveis
aos regimes especiais, tratados no art. 40.
A interpretação gramatical do § 12 do art. 40 não oferece dificuldades,
pois ele é de meridiana clareza. O ponto fulcral de seu deslinde, todavia,
reside na expressão "no que couber". Em princípio, o "que
couber" compreende tudo o que exceder do regime dos servidores em relação
ao regime geral e não for com ele incompatível. Ambos os regimes são
assemelhados: são contributivos e de base atuarial.
A pesquisa pode ser facilitada indo-se pelo caminho inverso.
Eliminando-se o que escapa ao "que couber", chega-se ao que cabe.
Por exemplo, não cabe o que se relacione com a definição de segurados,
que já são claramente definidos no art. 40; idem quanto aos benefícios e muito
menos quanto aos critérios para concessão dos benefícios. A atualização do
valor dos benefícios também tem regras claras, bem definidas. Os cálculos
atuariais obviamente terão que ser específicos para cada regime, senão
deixariam de ser atuariais.
Regra exegética de ouro diz que a lei (muito menos a Constituição) não tem
palavras inúteis. O que cabe, então?
Por exclusão, verifica-se que a única lacuna do regime previdenciário do
art. 40 em relação ao regime previdenciário do art. 201 diz respeito à sua
natureza contributiva, isto é, à sua fonte de custeio na parte que toca aos
segurados.
O art. 40 determina a natureza contributiva do regime, porém não oferece
mais detalhes sobre isso. Para elucidação da lacuna, então, CABE a aplicação
supletiva da regra contributiva do regime geral, matéria tratada no art. 195.
E aí se vê que é critério inerente à natureza contributiva do
regime geral que somente os trabalhadores em atividade devem contribuir. É o
que salta aos olhos pela simples leitura do inciso II do art. 195, que trata
das contribuições que são fontes de custeio da previdência:
"II - do trabalhador e
dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição
sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência
social de que trata o art. 201."
A restrição da parte final, que poderia impressionar, não tem a menor
importância. No caso, o que interessa pesquisar no dispositivo são os requisitos
e critérios da natureza contributiva do regime do art. 201, para que
possam, supletivamente, ser aplicados à definição da natureza contributiva do
regime do art. 40. E os requisitos e critérios do regime do art. 201 informam
que somente os trabalhadores não aposentados são obrigados à
contribuição.
Logo, a Lei nº 9.783, de 1999 não poderia inovar, quando o texto
constitucional estabelece quem são os contribuintes do regime do art. 40. A
inconstitucionalidade material é flagrante.
VI - OFENSA AO PRINCÍPIO ISONÔMICO
Além disso, curial que a contribuição dos servidores tem arrimo no mesmo
art. 195 II da CF, que dá suporte à cobrança de contribuições dos segurados do
regime geral. O próprio art. 12 da Emenda 20 deixa claro que as leis "que
irão dispor sobre as contribuições (...) destinadas ao custeio da seguridade
social e dos diversos regimes previdenciários" são tratadas no art. 195.
Não o fosse, a contribuição teria que derivar do art. 149, do que resultaria
sujeição à forma de lei complementar e ao princípio da anterioridade plena, ou
seja, a Lei nº 9.783 resultaria igualmente inconstitucional.
Ora, se a raiz constitucional da contribuição dos segurados de ambos os
regimes é exatamente a mesma, o tratamento desigual aos aposentados de um
regime, comparativamente aos do outro regime fere o direito à isonomia,
mormente porque outro dispositivo constitucional (o § 12 do art. 40) manda que
se aplique, no caso, os mesmos requisitos e critérios.
Ylves José de Miranda Guimarães preleciona: "Como corolário da
natureza tributária das contribuições em tela, deflui ficarem sujeitas a todos
os princípios e normas constitucionais aplicáveis aos tributos, quer expressos,
quer implícitos. Assim, afora o princípio de legalidade, com a ressalva acima
feita, o que lhes dá um tratamento exclusivo, no tocante a sua natureza de
tributo vinculado, estão as contribuições também sujeitas ao princípio de igualdade
tributária..." (in Curso de Direito Tributário, diversos
autores, Ed. Saraiva, 1982, pág. 588).
O direito à isonomia decorre do primeiro e básico enunciado da declaração
dos Direitos e Garantias Fundamentais, inscrito no próprio caput do art.
5º da CF, cláusula pétrea nos termos do art. 60, § 4º, inc. IV. Em matéria
tributária, a Magna Carta foi mais explícita e particularizou o princípio
isonômico no Inciso II do art. 150, proibindo a União, os Estados, ao Distrito
Federal e aos Municípios de:
"II - instituir tratamento desigual
entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer
distinção em razão de ocupação profissional ou função por ele exercida,
independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou
direitos."
Fora de qualquer dúvida que, dos pontos de vista jurídico e
constitucional, os contribuintes do regime do art. 40 estão em "situação
equivalente" aos contribuintes do regime do art. 201. Será absolutamente
extra-jurídica e extra-constitucional qualquer argumentação calcada em
comparações entre magnitudes de benefícios de uns e de outros, assim como em
chavões do tipo "privilégio". Inclusive porque, a partir da Emenda nº
20, as responsabilidades dos segurados dos regimes especiais são absolutamente
iguais às dos segurados do regime geral, no que toca à natureza contributiva
atuarial, isto é, cada um deles deve contribuir na medida e proporção
necessária para a usufruição dos respectivos benefícios.
A invocação da parte final do inciso II do art. 195, como autorizativa do
tratamento diferenciado, no tocante às obrigações contributivas dos aposentados
do regime geral em relação aos aposentados dos regimes especiais faria aflorar
a discussão sobre a legitimidade do legislador constituinte derivado em criar
norma em flagrante arrepio de um princípio constitucional pétreo. O Supremo
Tribunal Federal já tem precedente claro, de considerar inconstitucional norma
superveniente de reforma constitucional que contrarie cláusula pétrea.
VII - INSTITUIÇÃO DE NOVA FONTE DE CUSTEIO: EXIGÊNCIA
DE LEI COMPLEMENTAR E DE DISTINÇÃO DE FATO GERADOR
Ainda que ultrapassada a questão relativa ao princípio isonômico, outro
corolário inevitável é que, ao instituir contribuição para o aposentado, a lei
desbordou da autorização constitucional no relativo às fontes ordinárias
de custeio da previdência dos servidores públicos (art. 195, II) e instituiu fonte
nova de custeio, com sede no § 4º do mesmo artigo, do que decorre a
manifesta necessidade de que isso devesse ser feito por via de lei
complementar. Isso, na melhor das hipóteses, abstraindo-se outros tipos de
análise que concluam por outras implicações no campo constitucional tributário.
O princípio contributivo inerente a ambos os regimes de previdência
rege-se pelos mesmos requisitos e critérios, por força da aplicação do §
12 do art. 40. Logo, a responsabilidade contributiva do segurado do regime do
art. 40 limita-se ao que for instituído para o titular de cargo efetivo,
que corresponde ao trabalhador, contribuinte do regime do art. 201, vedada
a cobrança de contribuição do aposentado.
Além disso, como visto antes, o art. 40 e seus parágrafos determinam que
o servidor titular de cargo efetivo deve contribuir por trinta e cinco anos - e
não mais que isso - para constituir direito à percepção integral dos proventos.
O mesmo raciocínio vale para as hipóteses de percepção proporcional.
Logo, é inarredável a constatação de que a lei n.º 9.783, na verdade,
instituiu nova fonte de custeio ao estender o tempo de contribuição ao
aposentado, assim como, para isso, equiparando-o ao "servidor titular de
cargo efetivo".
Não encontrando arrimo no inciso II do art. 195, a contribuição dos
aposentados teria de assentar-se no § 4º do mesmo art. 195 (redação não
alterada pela Emenda nº 20), que autoriza a instituição de outras fontes
destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social. Todavia, a
autorização é condicionada: o dispositivo conclui com a restrição de que deve
ser "...obedecido o disposto no art. 154, I." O qual, por sua
vez, reza:
"A União poderá instituir:
I - mediante lei complementar,
impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e
não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta
Constituição."
A conclusão óbvia é de que a contribuição dos aposentados, é nova
fonte de custeio para a previdência:
I - deveria ter sido instituída por lei complementar, estando,
então, configurada inconstitucionalidade formal visto que está sediada em lei
ordinária;
II - tem o mesmo fato gerador do imposto de renda da pessoa
física, configurando-se inconstitucionalidade material.
Eventual tentativa de deslocar-se o arrimo constitucional da nova exação
para o art. 149 levaria a conclusão de que, identicamente, teria havido erro de
forma por falta de lei complementar, com a agravante de que haveria necessidade
da observância da anterioridade plena, preconizada no art. 150, III.
VIII - PROGRESSIVIDADE
A Lei n.º 9.783, de 1999 estabeleceu escala progressiva de aliquotagem
para a contribuição dos segurados pelo regime de previdência do art. 40. Assim
fazendo, ofendeu o princípio de causa eficiente e de isonomia
entre os contribuintes do mesmo regime, além de, na verdade, criar disfarçado tributo
adicional sobre a renda.
Aplicam-se, ao caso, duas ordens de consideração.
Primeiro, que regras constitucionais básicas, em matéria tributária, são
a da isonomia e a da proporcionalidade.
Todas as hipóteses de diferenciação de alíquotas, previstas nos diversos
impostos, são expressamente autorizados pela própria Constituição. O Supremo
Tribunal Federal tem rechaçado todas as tentativas de se estabelecer
diferenciação constitucionalmente não autorizada. Por exemplo, não obstante o
disposto no § 1º do art. 156, formou-se torrencial jurisprudência naquela Corte
sobre a impossibilidade de qualquer laivo de progressividade no IPTU que não
corresponda ao desiderato constitucional de assegurar o cumprimento da função
social da propriedade.
Apenas em alguns casos, expressamente contemplados, a Magna Carta previu
fossem os tributos progressivos. Estabeleceu como princípio geral o da
proporcionalidade e como princípio específico o da progressividade. A
progressão das alíquotas dos impostos não é admitida pela Constituição de 1988,
senão nos casos expressamente especificados.
Preleciona AIRES FERNANDINO BARRETO (in Justiça Tributária,
coletânea de temas do 1º Congresso Internacional de Direito Tributário, Vitória
(ES), agosto de 1988):
"Especificamente quanto ao
tema da progressividade, é preciso, antes de tudo, afastar a apressada
conclusão, no sentido de que o disposto no art. 145, § 1º da Constituição
Federal, ao impor a gradação dos impostos segundo a capacidade econômica do
contribuinte, possa justificar a progressividade. (...) Versar o tema da
progressividade das alíquotas exige, preliminarmente, se tenha presente que, na
Constituição de 1988, há radical diferença entre graduação, progressão,
seletividade e diferenciação dos impostos. (...) A graduação dos impostos
decorre de sua proporcionalidade em relação à base tributável (imposto ad
valorem). Essa proporcionalidade é, como sabido, obtida pela aplicação de uma
alíquota única sobre base tributável variável; da aplicação desse mecanismo
(graduação) resulta imposto a pagar em montantes tanto maiores quanto maior for
a base tributável. Pela graduação, portanto, é que se realiza o princípio da
capacidade contributiva. (...) A progressão, todavia, é matéria inteiramente
diversa da simples graduação. (...) A progressividade opera-se pelo estabelecimento
de alíquotas tanto maiores quanto o forem os níveis de intensidade ou de
grandeza de um específico fator ou aspecto do fato tributário. A progressão,
portanto, implica desigualação, na medida em que extrapassa a mera graduação
(proporcionalidade) e, conforme o fator de discriminação utilizado,
desconsidera o princípio da capacidade contributiva. Daí por que a
progressividade somente pode ser legitimamente adotada: a) em razão de
critérios extrafiscais ou ordinatórios e b) se restrita às situações e formas
previstas, expressamente, na Constituição Federal."
De qualquer maneira, o dilema de se aplicar ou não a progressividade como
forma de aferição da capacidade contributiva somente se apresenta quando se
trata de impostos não vinculados. Não há que se falar em
capacidade contributiva em matéria de tributos vinculados, que
são decretados em razão de uma atividade específica do Estado e não em relação
a características do contribuinte ou de um fato econômico a ele relacionado.
A contribuição para a previdência é tributo vinculado à prestação de
benefícios previdenciários. Não tem qualquer correlação com redistribuição de
renda. Não é redistributivista, e sim retributivista.
São oportuníssimas as palavras do saudoso GERALDO ATALIBA, em Hipótese de
Incidência Tributária, 5º ed., Ed. Malheiros, 1980, pág. 171:
"Pode-se dizer que - da
noção financeira de contribuição - é universal o asserto no sentido de que se
trata de um tributo diferente do imposto e da taxa e que, por outro lado, de
seus princípios informadores, fica sendo mais importante o que afasta, de um
lado, a capacidade contributiva (salvo a adoção da h.i. típica e exclusiva de
imposto) e, doutro, a estrita remunerabilidade ou comutatividade relativamente
à atuação estatal (traço típico da taxa).
Outro traço essencial da figura
da contribuição, que parece ser encampado - pela universalidade de seu
reconhecimento e pela sua importância, na configuração da entidade - está na
circunstância de relacionar-se com uma especial despesa, ou especial vantagem
referidas aos seus sujeitos passivos (contribuintes). Daí as designações
doutrinárias special assessment, contributo speciale, tributo speciale, etc.
Em outras palavras, se o
imposto é informado pelo princípio da capacidade contributiva e a taxa
informada pelo princípio da remuneração, as contribuições serão informadas
por princípio diverso. Melhor se compreende isto, quando se considera que é
da própria noção de contribuição - tal como universalmente entendida - que os
sujeitos passivos serão pessoas cuja situação jurídica tenha relação, direta ou
indireta, com uma despesa especial, a ela respeitante, ou alguém que receba
da ação estatal um reflexo que possa ser qualificado como ´especial´."
No que concerne às fontes de custeio da previdência, a Magna Carta é
absolutamente clara ao restringir, no § 9º do art. 195 (introduzido pela Emenda
nº 20), autorização para diferenciação de alíquotas apenas das
contribuições previstas no inciso I:
"§ 9º As Contribuições
Sociais previstas no inciso I deste artigo poderão ter alíquotas ou
bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica ou da
utilização intensiva de mão-de-obra."
A contrario sensu, resta absolutamente clara a vedação de igual
tratamento para aquelas derivadas do inciso II, que são as contribuições
sociais dos trabalhadores, para o regime geral de que trata o art. 201, e dos
servidores públicos, para o regime próprio de que trata o art. 40. Além de
clara, coerente, porque as contribuições do inciso I têm a natureza jurídica de
tributos não vinculados, enquanto que as do inciso II têm a
natureza de tributos vinculados (como, aliás, avaliza Sacha
Calmon Navarro).
Segundo, a contribuição previdenciária, por natureza, é vinculada a uma
contrapartida. Não tem qualquer correlação com a capacidade contributiva do
segurado e sim com os benefícios que podem ser auferidos em retorno. Se os
benefícios não são progressivos, ipso facto se entende que também a
contribuição não o deva ser.
As aposentadorias e pensões dos servidores são concedidas e atualizadas
segundo a regra da proporcionalidade. Guardam paridade com os vencimentos dos
agentes públicos em atividade, sendo revistas sempre na "mesma
proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos
ativos..." (art. 40, § 8º, com a redação da Emenda nº 20).
Além disso, reza o § 5º do art. 195 que "nenhum benefício ou
serviço da seguridade social poderá ser criado, majorado ou estendido sem a
correspondente fonte de custeio total." A correspondência
custo-benefício apresenta dupla face. Por um lado, limita a concessão de
benefícios sem a prévia instituição das contribuições necessárias ou das fontes
de custeio suficientes; por outro, impõe limitação ao aumento de contribuições
sem causa eficiente, vale dizer, sem correlação com os benefícios.
Essas limitações têm perfeita e imediata aplicação quando são fixadas
alíquotas progressivas para contribuições previdenciárias. Evidencia-se, nestes
casos, o rompimento da relação custo-benefício, pois os benefícios não são
progressivos, mas proporcionais à remuneração do agente público. Claramente
importam em desvirtuamento da natureza da contribuição social, que passa
significar verdadeira tributação adicional sobre a renda, desfigurando a
natureza e a finalidade da exação, com infringência do princípio da isonomia
tributária.
No caso de contribuição dos servidores públicos federais, o STF já se
manifestou, ainda que indiretamente, pela impossibilidade constitucional de se
imporem alíquotas diferenciadas.
Na ADIN n.º 790-4 DF, proposta pelo Procurador-Geral da República,
discutiu-se a inconstitucionalidade do § 1º do art. 231 da Lei n.º 8.112, de
11-12-90, do seguinte teor:
"§ 1º A contribuição do
servidor, diferenciada em função da remuneração mensal, bem como dos órgãos e
entidades, será fixada em lei."
Na inicial e no parecer, o Procurador-Geral da República pugnou pela
inconstitucionalidade do dispositivo, vez que o montante da contribuição deve
atender à relação custo-benefício, sendo que estes não são progressivos, mas
proporcionais à remuneração do contribuinte. A progressividade, segundo ele,
implica o desvirtuamento da natureza da contribuição social, passando-se a ter
verdadeiro adicional sobre a renda, contrariando-se, assim, os artigos 149 e
153, III, da CF.
A alegada inconstitucionalidade do § 1º do art. 231 foi negada (por
maioria) apenas pelo fato de que os Senhores Ministros não viram, no texto
atacado, obrigatoriedade à diferenciação por via de alíquotas progressivas,
porque a diferenciação poderia ser feita exclusivamente por via de incidência
de uma mesma alíquota sobre bases de cálculo diferenciadas, ou seja, a
remuneração de cada servidor. Entretanto, restou bem claro que não seria
admitido que a diferenciação se operasse por meio de variação de alíquotas. A
seguir, alguns trechos de votos dos Senhores Ministros do STF:
I - Ministro Marco Aurélio (Relator): "Em um primeiro plano,
constata-se que o texto não é explícito relativamente à forma da diferenciação
nele contemplada, ou seja, junge-se à remuneração do servidor sem especificar,
em si, o fator percentual. (...) Nada impede que o legislador ordinário
venha a fazer a diferenciação preconizada de forma consequencial, isto é,
tendo-a como resultado único e exclusivo do fato de a alíquota incidir sobre
bases variáveis, considerados os níveis de vencimentos dos servidores."
(Os negritos não são do original);
II - Ministro Francisco Rezek: "Quanto ao § 1º do art. 231, meu
ponto de vista é aquele que o parecer (do Procurador-Geral da República)
exteriorizou. Esse § 1º induz à progressividade. Penso que o propósito social
que se estaria desejando prestigiar de tal maneira - fazendo variar não apenas
os montantes absolutos, em função de montantes também absoluto de retribuição
mensal, mas fazendo variar as próprias alíquotas - já é atendido pela diferença
de contribuição em seus números absolutos, e que a diferenciação de alíquota
configura, tal como ponderou o Ministério Público, uma tributação sobre a renda
que não se compatibiliza com as regras pertinentes da Constituição
Federal." (idem);
III - Ministro Carlos Velloso: "Poderá ocorrer
inconstitucionalidade material por parte do legislador, ao dar cumprimento ao
que nele se contém. O legislador ordinário poderá entender - porque o § 1º não
determina que haja de uma certa forma, nem ele está obrigado a respeitar o que
se contém no § 1º do art. 231, que a diferenciação dar-se-á em razão da
remuneração maior ou menor ou, em razão da base de cálculo e não da
alíquota. Nestes termos, não haverá inconstitucionalidade material."
(Idem).
O Governo tem plena consciência da inconstitucionalidade material da
progressividade. Tanto que, em risível tentativa de fugir àquela manifestação
da Suprema Corte, fez revogar o art. 231 da Lei 8.112, de 1990, exatamente no
contexto da Lei n.º 9.783, de 1999, que estabeleceu as alíquotas diferenciadas.
X - DESTINAÇÃO DO PRODUTO DA ARRECADAÇÃO E
CONSEQUÊNCIAS SOBRE A CAUSA EFICIENTE
Conforme já assinalado antes, a contribuição dos servidores públicos, tal
como instituída e agravada na Lei nº 9.783, de 1999, tem assento inconteste no
art. 195. Se antes poderia haver discussão a respeito disso, agora não mais. O
art. 12 da Emenda nº 20 deixa claríssima a subordinação, ao art. 195, das
contribuições "destinadas ao custeio da seguridade social e dos diversos regimes
previdenciários."
Acontece que a mesma Emenda nº 20 criou vedação absoluta para o emprego
dos recursos arrecadados em finalidades diversas do pagamento de benefícios do
regime geral. Eis o texto pertinente:
"Art. 1º A Constituição
Federal passa a vigorar com as seguintes alterações:
..................................
Art. 167. São vedados:
..................................
XI - a utilização dos recursos
provenientes das contribuições sociais de que trata o art. 195, I, a, e II,
para a realização de despesas distintas do pagamento de benefícios do regime
geral de previdência social de que trata o art. 201."
"Art. 12. Até que produzam
efeito as leis que irão dispor sobre as contribuições de que trata o art. 195
da Constituição Federal, são exigíveis as estabelecidas em lei, destinadas ao
custeio da seguridade social e dos diversos regimes previdenciários."
A leitura não deixa dúvida. Pelo art. 12, as contribuições então
vigentes, para o custeio da seguridade social e dos diversos regimes previdenciários,
continuaram exigíveis somente até a produção dos efeitos das novas
leis pertinentes às contribuições de que trata o art. 195 - obviamente
para custeio da mesma seguridade social e dos mesmos diversos regimes
previdenciários.
A Lei nº 9.783, de 1999, é uma dessas novas leis, relativa ao regime
previdenciário dos servidores públicos federais.
Entretanto, o produto de sua arrecadação, por força do inciso XI,
acrescentado ao art. 167, somente pode ser utilizado para pagamento de
despesas do regime geral de previdência de que trata o art. 201.
Ora, desta forma a própria Emenda nº 20 tira a causa eficiente para a
cobrança da contribuição dos servidores e inviabiliza qualquer possibilidade de
equilíbrio atuarial do regime previdenciário derivado do art. 40.
X - CONFISCO
Ao criar contribuição previdenciária para o aposentado, a Lei nº 9.783,
de 1999, afrontou o art. 150, IV da Constituição Federal, verbis:
"Art. 150. Sem prejuízo de
outras garantias asseguradas aos contribuintes, é vedado à União, aos Estados,
ao Distrito Federal e aos Municípios:
..................................
IV - utilizar tributo com efeito
de confisco."
A ilegitimidade constitucional da imposição contributiva aos aposentados
é corolário inevitável a que se chega por qualquer dos caminhos trilhados nas
análises precedentes. Aliás, como já mencionado, nem se pejou o Poder
Executivo, autor do projeto, de camuflar seu intento na própria Exposição de
Motivos que acompanhou a Mensagem Presidencial:
"A instituição de
contribuição previdenciária para os servidores públicos inativos é da maior
relevância para corrigir as distorções existentes. Como atualmente eles
deixam de contribuir ao se aposentarem, a remuneração líquida dos inativos
acaba sendo mais elevada que a dos ativos."
Meridianamente claro que o Senhor Presidente da Republica propôs, e o
Congresso Nacional foi coagido a aprovar como penhor de credibilidade no calor
da crise financeira que assolava o país, um instrumento tributário para,
mediante via indireta, confiscar parte da renda dos aposentados para que sua
remuneração líquida fosse igualada aos dos ativos. Olvidando-se, entretanto, de
que, certo ou errado, a remuneração líquida dos aposentados decorre de comandos
constitucionais.
A nítida noção de confisco, no caso, emerge, também, do valor da exação.
Por sua indisfarçável natureza de tributação adicional da renda ela deve ser
somada ao imposto de renda pessoa física. Verifica-se então que, na maioria dos
casos, nada menos que 44,1% dos proventos serão descontados.
Paralelamente à infringência ao princípio do não-confisco, a taxação
adicional da renda confere também um caráter nítido de quebra da igualdade de
direitos com os demais contribuintes de imposto de renda pessoa física, assunto
tratado no já transcrito inciso II do art. 150 da Magna Carta.
XI - MENS LEGISLATORIS
O legislador constituinte derivado desejou, inequivocamente, que o
aposentado não contribuísse para a previdência, ao aprovar a Emenda n.º 20, de
1998. Quanto ao segurado da previdência geral o texto final assim o expressou,
na redação do inc. II do art. 195, in fine: "II - do trabalhador
e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição
sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de que trata o art.
201."
Quanto ao segurado do regime do art. 40, de ver que, na versão da PEC-33,
na forma do Substitutivo do Senado Federal, levada a votação em primeiro turno
na Câmara dos Deputados, conforme ata da sessão publicada no Diário da Câmara
dos Deputados, de 12 de fevereiro de 1998, constava o § 1º do art. 40, com o
seguinte teor:
"§ 1º As aposentadorias e
pensões serão custeadas com recursos provenientes das contribuições dos
servidores e pensionistas e do respectivo ente estatal, na forma da lei, não
incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão de valor igual ou inferior
ao limite máximo estabelecido para os benefícios do regime geral de previdência
social de que trata o art. 201."
Esse dispositivo foi rejeitado em plenário, ao se deliberar o Destaque
para Votação em Separado da bancada governista, na forma abaixo (Pág. 04218 do
Diário da CD):
"DESTAQUE DE BANCADA.
Senhor Presidente da Câmara dos
Deputados, Nos termos do art. 161, inciso I, § 2º do Regimento Interno,
requeremos a Vossa Excelência, destaque para votação em separado - DVS, para
supressão do § 1º, do art. 40, constante do art. 1º do Substitutivo do Senado
Federal à PEC n.º 33-G, de 1995. -
JUSTIFICAÇÃO - Entendimentos
firmados entre os Líderes do Partidos da base de apoio ao Governo, com a
expressa concordância do Poder Executivo, através de seu Líder, Deputado Luís
Eduardo, concluíram que a cobrança de contribuição previdenciária de
aposentados ou pensionistas da União, após o segurado ter cumprido todos os
requisitos funcionais pecuniários e temporais estabelecidos legalmente como
necessários à obtenção desse benefício, é indevida. Entendeu-se, também que
essa decisão ao nível de Estados e Municípios compete aos respectivos entes, em
absoluto respeito ao princípio da autonomia federativa, para o que, é essencial
que a desoneração dos servidores federais inativos e pensionistas seja definida
em lei específica e não na Constituição Federal.
Sala das Sessões, 11 de fevereiro
de 1998. Dep. Gerson Peres, 1º Vice-Líder do PPB - Dep. Odelmo Leão, Líder do
PPB - Dep. Inocêncio de Oliveira, Líder do PFL - Dep. Aécio Neves, Líder do
PSDB - Dep. Geddel Vieira Lima, Líder do Bloco Parlamentar PMDB/PSD/PRONA -
Dep. Paulo Heslander, Líder do PTB - Dep. Luís Eduardo, Líder do Governo."
Como se vê na página 04229 do mencionado Diário da Câmara dos Deputados,
o dispositivo em votação (§ 1º do art. 40) foi rejeitado por 481 votos contra
5, contando-se, ainda, 5 abstenções.
Sem embargo de todas as restrições que as regras de hermenêutica jurídica
impõem à apuração da vontade do legislador como condicionante da mens legis,
de ver que o direito brasileiro não refuga a interpretação histórica do texto
constitucional, conforme precedentes do próprio Supremo Tribunal Federal.
No Acórdão prolatado no MS 20.069, (RDA, v. 135, 1979, pág .64-65), o
qual é baseado em lições de Carlos Maximiliano, sendo relator o Ministro
Moreira Alves, são enumerados os princípios que devem nortear o intérprete na
utilização dos elementos históricos na tarefa hermenêutica, quais sejam:
"a) só devem servir de guia
da exegese os materiais legislativos quando o pensamento diretor, o objetivo
central, os princípios que dos mesmos ressaltam encontram a expressão no texto
definitivo;
b) proceda também o intérprete ao
exame do dispositivo, em si e em relação ao fim a que se propõe; tente, sempre
e complementarmente, o emprego de processo sistemático e o confronto do
resultado com os princípios científicos do Direito;
c) admita o sentido decorrente
dos trabalhos preparatórios quando plenamente provado, evidente, acima de
qualquer dúvida razoável;
d) se um preceito figurava no
Projeto primitivo e foi eliminado, não pode ser deduzido, nem sequer por
analogia, de outras disposições que prevaleceram, salvo quando a supressão se
haja verificado apenas por o considerarem desnecessário ou incluído
implicitamente no texto final." (o negrito não é do original).
Inequivocamente, os princípios acima enunciados ajustam-se perfeitamente
ao caso presente. Resta plenamente provado, acima de qualquer dúvida razoável
que o preceito figurava no projeto de reforma constitucional e foi retirado
como resultado de vontade claramente manifestada pelos legisladores e não pode
ser deduzido nem por analogia, de outras disposições que prevaleceram. Pelo
contrário, a interpretação sistemática da Emenda Constitucional nº 20, não só
de seus próprios dispositivos, mas deles com os demais dispositivos
constitucionais não alterados, leva à única interpretação possível: da
impossibilidade de se impor contribuição previdenciária, pois, "após o
segurado ter cumprido todos os requisitos funcionais pecuniários e temporais
estabelecidos legalmente como necessários à obtenção desse benefício é
indevida" (cf. justificação do Destaque de Votação em Separado).
E, pode-se acrescentar, muito menos mediante lei ordinária e com
estabelecimento de alíquotas progressivas.
XII - CONCLUSÃO
As notas precedentes decorreram da preocupação central de examinar o
enquadramento constitucional da Lei nº 9.783, de 28 de janeiro de 1999 no
regramento introduzido pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998,
principalmente no que se refere ao encargo criado para os aposentados. As
incompatibilidades apontadas emergiram como as mais evidentes. Sem embargo,
outras poderão surgir do exame percuciente pelos doutrinadores e por todos
aqueles que carregam a responsabilidade de interpretar, aplicar e construir o
Direito.
Não se afasta, também, o apontamento de discrepâncias com outros
dispositivos e princípios da Carta Magna. O escopo desse documento era,
basicamente, demonstrar que as alterações trazidas pela Emenda nº 20 ao regime
de aposentadoria dos servidores públicos foi de tal monta que a inelutável
obsolescência condenou ao desuso todo o arsenal doutrinário e jurisprudencial
que antes informavam o conceito de prêmio que embasava o antigo regime. O
conceito previdenciário, contributivo e atuarial que agora fornece os alicerces
para o novo regime estão a desafiar a argúcia e a ciência jurídica para a
construção de um novo referencial interpretativo. As apontadas incongruências
da Lei nº 9.783 decorrem, basicamente, da incapacidade (ou impossibilidade
prática) dos legisladores em atentarem para isso. Certamente caberá ao Poder
Judiciário restabelecer a normalidade jurídica, para segurança dos cidadãos e
gáudio dos que foram diretamente atingidos pela malsinada lei.
* Auditor
fiscal do Tesouro Nacional aposentado, ex-diretor-geral da ESAF,
ex-coordenador-geral de Recursos Humanos do Ministério da Fazenda.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1456>. Acesso em: 02 jun. 2006.