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A oralidade nos
Juizados Especiais Cíveis Federais
Nazareno César Moreira Reis *
1. Oralidade e escritura
Quando se pensa em oralidade cogita-se logo de sua antípoda,
a escritura, e prontamente aparecem argumentos em favor de uma e de outra,
tendo em vista os mais diversos fins que a linguagem desempenha na cultura em
geral. Particularmente no âmbito do direito processual civil o assunto está em
voga desde o final do século XIX e início do século XX; para nós, de língua
neolatina, especialmente a partir das reflexões feitas por Giuseppe Chiovenda
(1), autor que designou pela primeira vez um agregado de regras (modus
faciendi) correspondentes a certa tradição de procedimento judicial pelo
nome de "princípio da oralidade".
Mas a oposição entre a linguagem oral e a escrita não é
algo exclusivo do Direito, muito menos do direito processual. Na Literatura e
na Filosofia, sobretudo, muito já se discutiu sobre as vantagens e os decessos
da escrita sobre a fala, e vice-versa.
Comumente, é argüido em favor da linguagem escrita o fato
de que ela infunde precisão, segurança e longevidade ao discurso. Por isso, não
é de admirar que seja a maneira eleita pelos cientistas para se expressarem,
visto como a busca da verdade exige rigor lógico, somente possível se se
estabelece um ajuste prévio entre os interlocutores acerca da terminologia
empregada, o que é pouco provável de ser conseguido sobre a base do improviso e
da imediatidade conatural à fala. Os pioneiros da retórica grega, Corax e
Tísias, de outro lado, argumentavam que quando o objetivo é persuadir um
magistrado ou um auditório, a verdade não é propriamente o objetivo da
exposição, e somente por meio da fala, com toda a gesticulação e expressividade
que a acompanha, é possível construir pronunciamentos convincentes,
persuasivos, que manipulam, em suma, com o fascínio verbal e com a poética da
voz.
A riquíssima tradição oral dos contos populares foi o
esteio sobre o qual nasceu e se consolidou alguns dos mais importantes relatos
e ficções da civilização ocidental, mas foi somente por meio de textos que tal
tradição pode ser plasmada sob uma forma clara e definitiva, para daí seguir o
caminho da universalização, mercê do trabalho de homens como os irmãos Grimm e
Hans Christian Andersen, por exemplo.
Não haveria qualquer resquício de Filosofia grega se não
fossem os escritos deixados, sobretudo, por Platão e Aristóteles. Mas Sócrates,
em compensação, nunca escreveu uma linha sequer, e o próprio Platão, na última
parte do diálogo Fedro (274 B – 278 E), desenvolve o tema da
superioridade do discurso oral sobre o escrito (2).
Vê-se, a partir dos exemplos acima, que a oposição
sistemática entre escritura e oralidade é contraproducente, em qualquer âmbito
da atividade humana. Oralidade e escritura complementam-se, sem que se possa
afirmar a prevalência absoluta de uma sobre a outra.
Na perspectiva puramente jurídico-processual, a oralidade,
em si mesma, não reflete sempre uma vantagem sobre a escritura — como podem
fazer crer alguns modismos —, e as razões históricas de sua adoção variam desde
aquelas ligadas a refinados graus de compreensão sobre os objetivos
político-institucionais do processo até aqueloutras relacionadas aos mais baixos
níveis culturais de que se ressentem alguns grupos sociais. É assim que, por
exemplo, os romanos, no esplendor do Império, adotaram a oralidade como forma
ordinária de solução dos litígios, tendo em conta a necessidade de atender aos
reclamos da complexidade e dinâmica de suas relações sociais; ao passo que os
povos germânicos, em extremo oposto, muitos séculos depois utilizavam também o
procedimento oral para a solução de seus conflitos, mas por razões mais
prosaicas, que podem ser resumidas na evidente limitação do uso da escrita
então vigorante entre eles.
Outra conclusão muito propalada e que também não pode ser
aceita senão com extrema reserva, é a de que a escrita conduz ao formalismo e a
oralidade não. É suficiente mencionar, a título de exemplo em contrário, que as
ordálias e os juízos de Deus, meios de prova plenamente legítimos
entre os bárbaros, consistiam num jogo de gestos e palavras oralmente
expressas, mas fundadas num formalismo cego e desprovido de qualquer sentido
racional. E isso para não referir aquele memorável exemplo de verdadeiro
ritualismo, tantas vezes citado, e que foi difundido por Gaio, doutrinador
romano do século II da era cristã − época sob a qual vigorava a oralidade
plena no procedimento civil romano. Segundo Gaio, a jurisprudência registrava
um caso no qual alguém, litigando sobre videiras cortadas, mencionou, perante o
magistrado, para designar a coisa litigiosa, a palavra vites (videira),
em vez do vocábulo arbor (árvore) e, por isso, perdeu a ação, pois a
lei, que lhe servia de fundamento, falava apenas em arbor para designar
árvores cortadas em geral (3).
Foi, na verdade, o domínio e a difusão da escrita, com
todas as conseqüências disso decorrentes, que permitiram mais largamente a
racionalização dos procedimentos judiciais, a aceitação de postulados objetivos
sobre o modo de sua condução, a transformação, em suma, do ofício de julgar em
algo com fundamento lógico, sem recursos apelativos ou liturgias inúteis. Se
depois o fetichismo documental subverteu esses princípios, não se pode debitar
à simples utilização da escrita semelhante transtorno.
2. A oralidade e seu significado para o
procedimento civil dos juizados
A Constituição Federal de 1988 não esgotou toda a
discricionariedade política que seria possível quanto ao modelo a ser adotado
na instituição dos juizados especiais, mas desde logo fixou dois princípios dos
quais o legislador não poderia se furtar (CF, art. 98, I): a) os juizados
cíveis somente deveriam ser competentes para a conciliação, o julgamento e a execução
de causas cíveis de menor complexidade, e os juizados criminais, nas
mesmas circunstâncias, para as infrações penais de menor potencial ofensivo; b)
o procedimento deveria ser oral e sumaríssimo. Foram facultados, ainda –
não impostos –, nos casos previstos em lei, a transação e o julgamento de
recursos por turmas de juízes de primeiro grau.
Para efeito das cogitações que aqui se empreendem,
interessa concentrar a atenção sobre o caráter oral e sumaríssimo
que o procedimento dos juizados obrigatoriamente tem que atender, segundo a
vontade do constituinte, de modo a refletir sobre a extensão e a profundidade
que essa escolha política traduz.
A primeira e mais óbvia conclusão a que se é conduzido
pela leitura do art. 98, I, da Constituição Federal, é a de que qualquer
aproximação teórica do modelo brasileiro de juizado precisa reportar-se
diretamente aos postulados do que se tem entendido por "procedimento
oral". Deduz-se também que a oralidade, entre nós, está associada à
celeridade e à desburocratização, fato traduzido pelo constituinte originário
na utilização da palavra "sumaríssimo", cuja morfologia remete
claramente para a celeridade e a simplicidade.
Em direito processual civil, a oralidade, mais que um
princípio contraposto à escrita, manifesta verdadeira postura específica quanto
ao modo de conceber a estrutura e a função do procedimento. Não se trata apenas
conferir à palavra falada primazia sobre a escrita – embora isso seja o aspecto
extrínseco e sensível da questão –, mas antes de confiar ao contato imediato e
pessoal entre os sujeitos do processo a resolução justa do conflito. No sistema
oral, a sentença não nasce do estudo meticuloso e calculado dos autos,
mas sim do diálogo franco e aberto entre o julgador, as partes e as
testemunhas, de modo que o livre convencimento do magistrado apareça firmemente
enraizado à situação concreta posta sob sua apreciação, e não decorra de alguma
reflexão fria sobre "o que se disse que é a causa", pois, nas
palavras de Thomas Joffré, antigo professor da Universidade de Buenos Aires,
"o predomínio do procedimento escrito tende a que se perca a noção da
realidade e que se trabalhe sobre uma armação artificiosa" (4).
A oralidade subleva tão profundamente o modus operandi
de aplicação jurisdicional da lei, que produz discussões inusitadas. Tome-se
como exemplo a controvérsia, nascida no seio doutrinário, sobre se o juizado é
um órgão ou um procedimento. Alguém imaginaria semelhante disputa
acerca do "procedimento ordinário"? Certamente, não. Pois tal
controvérsia decorre do fato de que a oralidade − por encerrar a adoção
de uma postura extremamente peculiar quanto à forma de manobrar o procedimento
− exige do juiz que lida com tal modus operandi, atitudes
apropriadas para a tarefa, as quais são diversas, em boa medida, da rotina do
procedimento comum. Além disso, o procedimento oral é, até certo ponto,
atípico, demandando muito da criatividade do julgador. Daí a tendência
natural para a especialização do órgão em vista do procedimento, por isso
que a escaramuça em torno do problema de saber se o juizado é órgão ou
procedimento é estéril: o juizado é um procedimento que exige um órgão
adrede preparado para sua aplicação, que esteja sob o influxo do princípio da
oralidade e de seus consectários lógicos, o que não exclui, obviamente, que
um juiz possa, ao mesmo tempo, apreciar outros feitos, regidos por outros
procedimentos, como se passa nas localidades em que os juizados são
"adjuntos" às Varas comuns. Apenas se esclarece que, no juizado,
procedimento e órgão jurisdicional precisam estar em harmonia com os postulados
fundamentais da oralidade.
Na Idade Média - explica Jonh Henry Merryman (5)
- a falta de credibilidade em julgamentos proferidos por juízes que tivessem
acesso pessoal às partes fez com que prosperassem desmesuradamente as formas e
termos escritos. Acreditava-se que se interpondo uma "cortina
documental" entre o juiz e as partes, adviria daí naturalmente um
resultado imparcial e justo, porque se eliminariam as influências exercidas
sobre o julgador. A demanda, a defesa e todo o material probatório deveriam ser
reduzidos a escrito e entregues ao juiz para apreciação, sem que este travasse,
em momento algum, contato pessoal com os interessados. As provas recebiam
também de forma prévia e escrita o seu peso específico (sistema de prova legal
ou tarifária), de tal sorte que o julgamento do seu valor reduzia-se a uma
prestidigitação aritmética. "O jogo dos gestos – diz Radbruch (6),
referindo-se ao processo penal medievo -, o enrubescer e empalidecer do
acusado, a hesitação do depoimento testemunhal relutante e a tagarelice ágil do
testemunho decorado, todas as nuanças e imponderabilidades, contudo, perdem-se
no monótono estilo do protocolo". E no cúmulo do alheamento do julgador em
relação ao processo, os autos das causas complexas eram enviados para
faculdades de direito, a fim de serem apreciadas por jurisconsultos distantes
do local do litígio (7). Depositava-se, em resumo, nas formas
jurídicas rígidas, no isolamento social do juiz e na certeza do direito escrito
e interpretado pelos doutores, toda a esperança de um julgamento limpo, por
isso que a atividade judicante era quase um ritual litúrgico de interpretação
escrituras e o magistrado praticamente um sacerdote; tanto assim que, como
noticia Antoine Garapon (8), na "Idade Média o juiz usava toga
durante todo o dia e em qualquer ocasião, ‘até na sua residência’."
Chiovenda (9) lembra, por outro lado, que a
concepção patrimonial da jurisdição, sob o regime feudal, concorreu decisivamente
para reforçar o caráter individualista do processo e a indiferença do juiz ao
andamento dos feitos — aliás, tendo em vista o sistema então vigente de
remuneração dos magistrados, mediante espórtulas por cada ato praticado, era
financeiramente interessante para estes que o feito se demorasse pelo máximo de
tempo possível. Nessas circunstâncias, o processo arrastava-se lentamente,
"longe das vistas do juiz − escreveu José Alberto dos Reis (10)
em 1930 −, engordando dentro do ventre dos fastidiosos autos. Era
um mecanismo complicado, dispendioso e pesado, uma máquina de custo elevado e
de insignificante rendimento."
Hoje, ao contrário, a preparação de um expediente escrito
por alguém distinto do juiz que deverá decidir o caso se considera um defeito,
justamente porque priva aquele que vai decidir o litígio da oportunidade de ver
e escutar as partes, observar seu comportamento e avaliar diretamente suas
declarações. Além disso, a laicização das formas judiciárias atualmente é
completa, sendo comum a proclamação nas legislações processuais de princípio
segundo o qual a desobediência às formas somente produz nulidade se for
demonstrado algum prejuízo para a consecução dos fins práticos do processo.
Não se pode perder de vista também que o processo, como atividade
estatal, compõe um mosaico mais amplo, o das atividades públicas em geral; e,
para estas, a escrita, esteve historicamente associada ao nascedouro das burocracias
modernas. Isso se verificou porque a arte de governar, à medida que aumenta
o contingente de súditos ou que se expande territorialmente o Estado, envolve
necessariamente a obtenção sistemática e a manipulação ordenada da informação,
e tal só é tecnicamente factível por meio da escrita, mais precisamente de um
amplo e organizado acervo de documentos públicos, característico da
burocracia. Sucede que esta mesma burocracia, sob o peso de suas rotinas
inflexíveis e do aumento geométrico das necessidades ligadas à autogestão,
possui uma assombrosa capacidade de replicação interna, e seu manejo tende a
convertê-la em um fim em si, distanciando ou mesmo suprimindo o contato entre o
centro de decisão e seus destinatários, cooptando o próprio governante em
burocrata, e todos os agentes em funcionários públicos – e aqui reside o
grande defeito do excesso de papel. O exemplo clássico é o de Felipe II, da
Espanha, cuja obsessão por escritos foi motivo para a alcunha de "el
rey papelero". Mas não só ele. Peter Burke afirma que nos primórdios
da Idade Moderna quase todas as monarquias européias transformaram-se em
"Estados do Papel". Assim se passou com Frederico, o Grande, da
Prússia; Catarina, da Rússia; e Maria Teresa e José II, da Áustria (11).
Já se vê aí o porquê de o processo, em tal conjuntura, ter
dado passos firmes no sentido da escrita, em um primeiro momento; depois, da
documentação sistemática; por fim, da burocratização completa.
Percebe-se também que a opção atual pela oralidade, em
campo oposto, envolve escolhas muito mais complexas que aquelas que decorreriam
simplesmente do resultado da afeição por esse ou aquele tipo de procedimento.
Trata-se, no fundo, de confiar mais nos juízes; de exigir maior comprometimento
do julgador com a causa e as pessoas nela envolvidas; de dar conteúdo político
evidente à atuação da Justiça. Sem maniqueísmo teórico, pode-se dizer, com
razoável precisão, que o processo escrito, em sua forma pura, hoje está
associado em linhas gerais ao ritualismo burocrático, à debilitação dos poderes
judiciais, ao descompromisso do julgador com a causa e à lentidão; enquanto a oralidade
compartilha de um ideário ligado à deformalização, ao aumento da autoridade da
jurisdição, ao empenho pessoal do juiz na solução da causa e à celeridade nos
julgamentos, em suma, à humanização do processo, porque, como disse o
insigne professor Gelsi Bidart (12), "o melhor meio de
humanizar o processo consiste em implantar o contato direto entre os homens,
como o mais adequado para compreender nossos defeitos e virtudes (a
imediação)".
Está claro que, como toda opção axiológica, a precedência
da oralidade sobre a escrita, no âmbito do procedimento judicial civil, não é
algo que se possa considerar "certo" ou "errado",
notadamente se analisada a questão em perspectiva histórica. A escrita
desempenhou sua tarefa no momento histórico-político em que vicejou: contribuiu
para a libertação do processo de rituais desprovidos de sentido lógico;
garantiu, por sua precisão, que aquilo que era apenas tradição se transformasse
em princípios jurídicos, muitos deles ainda hoje caros aos sistemas positivos;
e, sem dúvida, não há nenhum elemento no horizonte que indique ou sequer sugira
que a escrita será algum dia abandonada por completo. Modernamente, porém, é
inegável que a escritura em excesso choca-se contra os movimentos de
humanização do processo e efetividade da justiça, e é só a essa superabundância
que os detratores da escrita dirigem suas acusações, embora nem sempre sejam
claros a respeito.
Considerada a circunstância de que a Constituição
brasileira (CF, art. 98, I), quanto aos juizados especiais, adotou claramente o
caminho da oralidade, para a dogmática jurídica este é ponto de partida
indiscutível; para o legislador é limite sério à sua atuação; e para o juiz que
atua nos juizados é um marco interpretativo fundamental para a aplicação de
qualquer norma ou instituto. Por isso, compreender a oralidade em todas as suas
dimensões é essencial para a plena concretização dos fins práticos dos
juizados.
3.Princípios que caracterizam a oralidade
Giuseppe Chiovenda, que foi um grande entusiasta da
oralidade, procurou reduzir a uns poucos postulados fundamentais toda a riqueza
de idéias que o procedimento oral encerra. Esses postulados se resolveriam,
segundo ele, na aplicação das seguintes regras (13):
a)prevalência da palavra como meio de expressão combinada
com o uso de meios escritos de preparação e documentação;
b)imediação da relação entre o juiz e as pessoas cujas
declarações deva apreciar;
c)identidade das pessoas físicas que constituem o juiz
durante a condução da causa;
d)concentração do conhecimento da causa num único período
(debate) a desenvolver-se numa audiência ou em poucas audiências contíguas;
e)irrecorribilidade das interlocutórias em separado.
O predomínio da palavra oral sobre a escrita é o grande
mote do sistema oral e provavelmente a razão mesma de sua denominação. Mas
predominância, bem entendido, não quer dizer exclusividade, e ninguém poderia
seriamente defender hoje um processo inteiramente oral. Isso seria impraticável
por várias razões. Em primeiro lugar, teríamos de retroceder ao tempo de
Licurgo (600 a. C.), quando as leis não podiam ser escritas e o povo devia
sabê-las de cor (14). Depois, facilmente se poderia criar confusão
num diálogo oral sobre pontos cuja precisão é essencial para a regular
tramitação de um processo: a) a quem o autor dirigiria um pedido oral? b) Se
não fosse diretamente ao juiz, o que iria garantir que ele chegaria ao
magistrado exatamente como foi formulado, se não fosse reduzido a escrito? c) E
o réu, de que estaria realmente a se defender? d) Aliás, como citar o réu? e)
Onde estaria a "cópia da inicial"? f) Finalmente, como recorrer de
uma sentença que não fosse escrita? Poder-se-iam multiplicar indefinidamente as
limitações práticas da oralidade pura, de modo que quando se fala na
adoção da oralidade aqui, cogita-se realmente de predominância da fala sobre a
escrita, nomeadamente na recepção da prova. Chiovenda afirmou que "todo
processo moderno é misto. Mas um processo misto se dirá oral ou escrito,
segundo a hierarquia que se dê à oralidade e à escrita, e sobretudo segundo o
modo em que sobre ele atua a oralidade".
A imediação e a identidade física do juiz complementam-se.
Significa a primeira que o magistrado deve, pessoalmente, estar presente
no momento da produção da prova oral; deve ser ele mesmo o responsável por
ouvir as partes, as testemunhas e eventualmente terceiros que possam ter algo a
esclarecer no feito, dirigindo os trabalhos de modo a formar seu convencimento
à luz de tudo que observar diretamente. Ora, está claro que a imediação
seria, porém, destituída de sentido se aquele que fosse julgar efetivamente a
causa pudesse ser outro juiz, diferente daquele que tomou as declarações das
pessoas ouvidas, pois todas as impressões deixadas por estas desvaneceriam em
meros escritos que porventura tivessem sido produzidos a título do registro dos
atos processuais praticados em audiência, e, em semelhantes circunstâncias, o
veredicto final em última análise redundaria fundado em papéis. Daí a
importância da identidade física do juiz. Outra relevante conseqüência
da imediação e da identidade física do juiz − características do
procedimento de tipo oral − é que os indícios, as máximas da experiência,
o conhecimento privado do juiz (para além dos autos), as presunções hominis,
enfim as provas atípicas em geral ganham aqui um status
inteiramente autônomo e prestigiado, a ponto de o magistrado poder fundamentar
sua sentença exclusivamente nessa espécie de elemento, ao contrário do que se
passa no processo escrito, em que, precisamente em vista da escassez de contato
real com a causa e as pessoas nela envolvidas, o convencimento judicial
precisa socorrer-se de provas que respondam mais facilmente à necessidade de
explicitação lógica do caminho percorrido até o dispositivo da sentença
(15).
A concentração aponta para um encurtamento formal e
temporal do procedimento, particularmente entre as fases instrutória e
decisória. O juiz deve decidir o caso sob a influência viva das impressões
deixadas pelas pessoas ouvidas em audiência; de preferência, deve julgar na
própria audiência. Isso decorre de duas idéias muito caras ao procedimento
oral: a imediação e a concentração em sentido estrito. Se, por um lado, a
imediação exige presença física do juiz na colheita da prova; de outra parte,
tal presença não seria garantia de julgamento atento às circunstâncias da causa
se decorresse um lapso de tempo muito amplo entre a prova e o julgamento,
porque em tal caso as impressões estariam já esmaecidas pela pátina do tempo.
Essa mesma exigüidade de tempo, entre a prova e a decisão, traz outro resultado
benéfico ao procedimento, que é a celeridade dos julgamentos, ao tempo em que
justifica também o fato de o procedimento oral ser mais recomendável para as
causas de "baixa complexidade", já que seria irresponsável e
temerário um julgamento em audiência de uma causa cuja complexidade
recomendasse meditação mais aprofundada.
Outro dos subprincípios da oralidade − a
irrecorribilidade em separado das decisões interlocutórias − é assunto
que precisa de séria maturação entre os estudiosos do processo civil
brasileiro. Atualmente, no âmbito do processo comum, onde tal regra é abominada
pela legislação, o juiz de primeiro grau tem uma influência modestíssima sobre
a condução dos feitos. A ampla e irrestrita recorribilidade das decisões
subtrai ao magistrado singular a direção do feito, logo nos primeiros
movimentos da dinâmica procedimental. Basta uma liminar denegada ou concedida,
conforme o caso, e já assomam os agravos de instrumento, com todos os seus
infinitos tentáculos recursais internos, a impedir que a causa receba um
julgamento definitivo em primeiro grau; a tal ponto que nem bem o processo vai
concluso ao juiz para sentença e, às vezes, já se tem notícia nos autos de
procedimentos recursais, relativos à mesma causa, tramitando no âmbito de tribunais
superiores.
Parece bastante claro que, em semelhantes circunstâncias,
a irrecorribilidade em separado das decisões interlocutórias é essencial para a
condução apropriada de um procedimento oral. Se o que se deseja com a
oralidade, em última análise, é um julgamento célere e concretamente
fundamentado sobre provas obtidas pessoalmente pelo magistrado singular, é
patente a exigência da irrecorribilidade em separado das interlocutórias.
Deve-se aguardar o desfecho do processo para, só então, levar o feito às
instâncias hierarquicamente superiores, em ordem a rever não só o julgado,
senão também os atos que o precederam, mantendo a direção do feito até a
sentença, porém, nas mãos do juiz de primeiro grau.
A Lei n. 10.259, de 12 de julho de 2001, adotou parcialmente
a regra da irrecorribilidade em separado das interlocutórias, ao estabelecer,
em seu art. 5º, que, exceto nos casos de deferimento ou indeferimento de
medidas cautelares, somente será admitido recurso da sentença definitiva.
4. Limitações à oralidade nos JEFs.
Apresentadas as linhas fundamentais da oralidade,
entendida como princípio doutrinário, faz-se necessário compreender as
limitações naturalmente concernentes a este princípio, de modo a encontrar o
ponto de equilíbrio para a sua justa aplicação prática, sem partidarismo
teórico, confrontando-o com outras exigências do procedimento, ponderadas pelo
direito positivo nacional e pela jurisprudência já nascida sob a égide das Leis
ns. 9.099/95 e 10.259/01.
Basicamente, em nosso direito positivo, há cinco possíveis
e importantes situações em que a oralidade sofre limitações nos juizados, quais
sejam: a) quando o feito comporta julgamento sem audiência; b) quando a lei não
admite prova oral de determinado fato; c) quando há prova oral a ser produzida
em localidade não abrangida pela competência territorial do juiz que dirige o
feito; d) na instância recursal; e e) na execução. Algumas dessas limitações
são compatíveis com o procedimento dos juizados, outras não.
Como já dito exaustivamente, a oralidade está relacionada
mais de perto com a colheita de prova em audiência por magistrado de primeiro
grau, para fins de formação do seu convencimento e a conseqüente produção da
sentença definitiva; é nesse âmbito que ela encontra ampla aplicação e notável
utilidade prática, inclusive e especialmente perante os juizados. Após a
sentença de mérito, sobretudo, a oralidade apresenta pouca ou nenhuma aplicação
concreta; tanto isso é certo que a legislação de regência dos juizados, em
harmonia com o espírito da Constituição, procura conceder proeminência ao julgamento
do juiz singular, prestigiando o resultado das impressões pessoais do
magistrado que teve contato pessoal e direto com a causa − o que
representa a essência da oralidade −, e dificultando, por outro lado, o
alongamento do feito para além desse limite.
4.1 julgamento antecipado da lide
"A
oralidade – diz Liebman (16) – tem por teatro necessário a
audiência, porque só nela o juiz entra em contato com as partes e com as
provas."
Então, seria de supor-se que a audiência seja sempre
necessária nos juizados especiais, porquanto somente assim seria atendido o
princípio constitucional da oralidade. O assunto assume ainda maior importância
no âmbito dos juizados especiais federais que nos estaduais, tendo em vista a
peculiaridade de a Justiça Federal brasileira ter um número considerável de
feitos em que a matéria discutida é exclusivamente de direito.
Seria, ainda nesses casos, necessária a realização da
audiência? É claro que não. O princípio
da oralidade não pode ser objeto de reverência cega, mesmo decorrendo de
mandamento constitucional. Faz-se necessário seu contrasteamento em face de
outros princípios que regem o processo. Nesse sentido, como dito acima, subjaz
ao ordenamento jurídico em geral princípio lógico segundo o qual é inconcebível
a prática de ato processual ou o respeito a formalidade legal cuja utilidade é
prévia e reconhecidamente nenhuma. E a realização de audiência em caso de
matéria fática incontroversa recairia justamente nesta hipótese.
O próprio Giuseppe Chiovenda (17), encarniçado
defensor do princípio em causa, concedeu em que "nem sempre a oralidade
terá a mesma importância. O valor da oralidade consiste essencialmente naquele
de seus poliédricos aspectos que se conhece por imediação, ou seja,
naquele que permite utilizar na apreciação das provas a observação direta."
No sistema processual civil comum brasileiro – que também
está teoricamente assentado sobre o princípio da oralidade –, o legislador
criou a figura do julgamento antecipado da lide (CPC, art. 330, com a redação
dada pela Lei 5.925, de 1o de outubro de 1973), por meio do qual o
juiz conhece diretamente do pedido, sem a necessidade de realização de
audiência, para os casos em que tal ato seria inútil. O Ministro Alfredo Buzaid
(18), justificando esse ponto do Código de 1973, expressou-se no sentido
de que o processo oral em sua pureza seria um tipo ideal, "resultante da
experiência legislativa de vários povos e condensado pela doutrina em alguns
princípios. Mas na realidade, há diversos tipos de processo oral (...)".
Acrescentou o emérito professor que exigências práticas da cada nação e de cada
sistema processual podem perfeitamente impor modificações ao tipo ideal para
acomodá-lo à experiência local e às exigências pragmáticas do direito. É
precisamente esse o caso do julgamento antecipado da lide, surgido da
necessidade de não se prolongar inutilmente processos que podem receber um
julgamento imediato, sem que com isso se abra mão da oralidade como princípio
reitor do sistema.
Como esclarece Jefferson Carús Guedes (19), em
opulenta monografia dedicada ao tema, "na busca de um procedimento
justo, por exemplo, não se pode impor a audiência, a todo custo, em
todos os procedimentos. Aliás, o reiterado malogro de tentativas de
implementação de procedimentos que prestigiavam as audiências fez acentuar a
descrença neste ato processual, seja como meio de instrução, seja como local de
decisão dos feitos."
Assim, é igualmente compatível com rito dos juizados
especiais cíveis o julgamento antecipado da lide, em casos nos quais a
audiência de instrução se mostre inútil, e com isso nenhuma ofensa se perpetra
contra a oralidade.
4.2. Vedação de prova oral
Outro ponto importante, que ainda não mereceu a atenção
devida da doutrina e da jurisprudência, diz respeito à vedação legislativa de
prova oral para a demonstração de determinados fatos, quando aplicada no âmbito
dos juizados. Para ser mais claro: pense-se na regra do art. 55, § 3º da Lei n.
8.213/91, que impede a utilização de prova exclusivamente oral para a
demonstração do tempo de serviço para fins previdenciários. Esta norma já
recebeu o beneplácito da jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de
Justiça - STJ, o qual editou a súmula 149, com os seguintes termos: "A
prova exclusivamente testemunhal não basta a comprovação da atividade rurícola,
para efeito da obtenção de benefício previdenciário."
Bem, a questão é: será que no âmbito dos juizados, em que
há norma constitucional determinando a observância do procedimento oral (CF,
art. 98, I), seria plenamente aplicável a limitação probatória acima, fruto de
exigências criadas pelo legislador ordinário?
O Supremo Tribunal Federal ainda não enfrentou claramente
o problema da constitucionalidade do art. 55, §3º, da Lei n. 8.213/91. Em
apenas uma oportunidade − no julgamento do RE 226.588-9-SP, rel. Min.
Marco Aurélio − o STF chegou a cotejar o dispositivo legal mencionado com
o texto da Constituição, mais precisamente com os arts. 5º, LV e LVI; 6º e 7º,
XXIV, todos da CF. No entanto, além de o julgamento ter sido feito por um órgão
fracionário do STF (a 2ª Turma), não se encontra nesse acórdão uma discussão
crítica aprofundada sobre a constitucionalidade da limitação, por lei, de meios
de prova. Há apenas um obiter dictum do relator sobre o assunto, para
justificar a aplicação indiscriminada do art. 55, §3º, da Lei 8.213/91. Por
isso que se pode afirmar não ter ainda o STF uma posição consciente sobre o
tema, sob a perspectiva do direito material-processual.
Muito menos decidiu a Corte Suprema, ou mesmo o STJ, sobre
a constitucionalidade dessa limitação probatória quando a causa tramita no
âmbito dos juizados especiais, em que se inclui um elemento constitucional novo
na discussão, ou seja, o caráter oral do procedimento perante esses órgãos
judiciários (CF, art. 98, I).
Entendemos que a consagração da necessidade, sem exceção,
de prova escrita para a demonstração de certos fatos alegados em juízo, não
pode ser aplicada às causas que tramitam no âmbito dos juizados. Para chegar-se
a essa conclusão, há dois caminhos: ou se entende que a regra do art. 55, §3º,
Lei 8.213/91, não se dirige ao Judiciário, mas apenas à Administração
Previdenciária − solução esta que poderia ser aplicada tanto nos juizados
como no procedimento comum −; ou se reconhece que, à vista da regência
constitucional da oralidade nos juizados, o início de prova escrita seria
indispensável apenas se a causa tramita perante a Justiça Comum. A primeira
solução, posto seja viável sob certo ângulo hermenêutico, já foi afastada pelo
STJ, ao ter este tribunal editado a Súmula 149. No mesmo sentido, há também a
Súmula 27 do Tribunal Regional Federal da 1ª Região.
Já a segunda solução, que diz mais de perto ao tema aqui
tratado, é inteiramente aceitável e, de resto, está em sintonia com o querer
constituinte. Afinal, não é compatível com o princípio em causa − o da
oralidade − que a produção da prova, justamente o centro de imputação, o núcleo
essencial desse particular modo de julgar as causas, seja restringida por lei
ordinária. Mais incompreensível ainda é que essa restrição seja
estabelecida em favor da materialidade − que se resolve quase sempre na
escritura − e sem flexibilidade alguma, tolhendo definitivamente o livre
convencimento do magistrado, construído a partir da observação direta
(imediação) da situação sob exame. Ora, se a exigência legislativa impõe que o
juiz não pode julgar senão com suporte em algum escrito, está claro que a
imediação amesquinha-se até à inutilidade; por outro lado, sem imediação não há
falar em oralidade; e, sem oralidade, restam completamente frustrados os fins
político-jurídicos dos juizados e violada abertamente a cláusula do art. 98, I,
da CF.
Conta-se, por exemplo, que em determinado "juizado
itinerante", dos muitos promovidos pelo TRF da 1ª Região nos rincões do
país, um magistrado reconheceu a condição de rurícola de um cidadão
fundamentalmente com base nos depoimentos verossímeis colhidos em audiência e
na "aspereza bruta e agreste das mãos do autor", o que, no fim das
contas, não deixa de ser uma prova material, mas com forte predomínio das
impressões do julgador, mercê do seu contato direto com a causa. Seria de se
duvidar da rigorosa compatibilidade de tal decisão com os postulados da
oralidade?...
À vista dessas seriíssimas objeções, é inaplicável aos
juizados especiais cíveis a restrição instrutória prevista no art. 55, §3º, da
Lei 8.213/91, ou qualquer outra regra de teor semelhante (v.g., art.
400, CPC).
4.3. Prova oral por delegação: a carta precatória nos
juizados
O Enunciado n. 33, do Fórum Permanente dos Coordenadores
dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais do Brasil, está expresso assim:
"É dispensável a expedição de carta precatória nos Juizados Especiais
Cíveis, cumprindo-se os atos nas demais comarcas, mediante via postal, por
oficio do Juiz, fax, telefone ou qualquer meio idôneo de comunicação.".
Tal entendimento toma por base o disposto no art. 13, §2º, da Lei n. 9.099/95.
As cartas precatórias, em princípio, estão vedadas nos
juizados, por serem desnecessárias. A regra geral deverá ser sempre a de que a
possível delegação da prática de algum ato processual dê-se por meio informal,
sem a necessidade do cumprimento de requisitos rígidos e solenes, comuns às
cartas expedidas com base no direito processual codificado (CPC, arts. 200 e
ss.).
Isso quanto à forma. Sobre o conteúdo também a delegação
processual deve receber tratamento diferençado nos juizados, tendo em vista as
exigências do princípio da oralidade.
Com efeito, como já foi dito acima, o pilar fundamental da
oralidade é a imediação; logo, não será possível nos juizados a delegação da
colheita de prova oral a outro juiz, porque isso implicaria ofensa manifesta às
exigências mais elementares para uma mínima observância do procedimento oral.
Acresce que o eventual tumulto provocado por essa delegação atingiria
gravemente a simplicidade e celeridade de que deve se valer o procedimento
sumaríssimo. Basta dizer que no rito comum as cartas precatórias expedidas
para a produção de prova por vezes implicam a suspensão do feito (CPC, art.
338), o que de modo algum se aceitaria nos juizados. Por fim, não será demais
mencionar que a causa cuja prova não pode ser toda ela produzida na sede do
litígio, onde tramita o feito, não pode também ser classificada como de
"menor complexidade" para efeito de competência dos juizados, tanto
mais porque o conceito de "causa complexa", como tem acentuado a
jurisprudência, está ligado ao grau de dificuldade de produção da prova, e já
se vê que a necessidade de dispersão territorial dos núcleos de recebimento dos
elementos instrutórios é motivo suficiente para não se considerar singela a
causa.
Por todas essas razões, não é cabível a delegação de ato
jurisdicional de coleta de prova oral em sede de juizados especiais cíveis.
4.4 Execução
A oralidade, naturalmente, está ligada ao processo de
cognição, porque na execução nada mais há para ser dito ou debatido, mas apenas
há o que se cumprir praticamente. É antes da sentença, notadamente no âmbito
probatório, que a oralidade desempenha seu importante papel de humanização do
procedimento (20).
Com o trânsito em julgado da sentença de procedência do
pedido no JEF cível, serão adotadas ex officio as providências
conducentes ao cumprimento do julgado, o qual já deverá, inclusive, ser líquido
(Lei 9.099/95, arts. 38, parágrafo único, e 52, I, aplicáveis aos JEFs por
analogia). A análise dos arts.16 e 17 da Lei 10.259/01 conduz a essas
conclusões. Por isso, é licito dizer que não existe propriamente nem
liquidação, nem execução ex intervallo nos JEFs cíveis, vez que o
legislador atribuiu natureza executiva lato sensu a todas as ações que
sigam o rito especial da Lei 10.259/01.
Essas conclusões ainda mais confirmam a absoluta ausência
de debate – por conseguinte, de oralidade – após o trânsito em julgado da
sentença no juizado, já que nem mesmo o tradicional rito executivo do CPC, cuja
sistemática ainda permite "sobras de cognição" para além da sentença
com trânsito em julgado (CPC, art. 741), é observado nos JEFs.
Pode-se reconhecer, portanto, que a oralidade não é
aplicável à execução nem mesmo no rito comum do CPC, e muito menos no
procedimento abreviado dos JEFs.
4.5 Instância recursal dos JEFs
É também bastante escassa a oralidade, compreendida em seu
sentido mais puro, na instância recursal dos juizados. Isso porque as
impugnações dirigem-se contra decisões ou sentenças de juízes singulares, as
quais já documentaram, por escrito ou outro meio, as vicissitudes da instrução,
e servirão de base quase exclusiva para o julgamento do recurso. Geralmente os
órgãos colegiados, além de não receberem a causa em estado bruto, não têm por
função reapreciar a fundo a prova dos autos, mas somente rever a decisão
recorrida, para verificar a sua compatibilidade com o ordenamento jurídico. É
certo que as questões fáticas são também devolvidas à Turma Recursal, no
caso dos recursos nos JEFs contra a sentença de mérito, mas mesmo essas o são
segundo a forma com que foram plasmadas no primeiro grau. O que pode mudar é o
convencimento quanto ao material instrutório, mas o próprio procedimento de
tramitação do recurso impede nova produção de prova em segundo grau
quanto aos fatos discutidos no juízo a quo. Se for o caso de se repetir
uma prova, por qualquer razão, a prática é anular a decisão monocrática e
determinar o retorno dos autos ao juiz singular para esse fim, ficando
afastada, em todo caso, as características essencias da oralidade em segundo
grau, notadamente a imediatidade entre o órgão jurisdicional e as
partes.
Quando muito, a oralidade pode se manifestar nas Turmas
Recursais, em caso de julgamento de recurso contra sentença, na hipótese de
alguma ou ambas as partes, por seus advogados, fazerem sustentação oral (CPC,
arts. 554 e 565, aplicáveis por analogia), o que não é incompatível com o
espírito dos JEFs, e, aliás, parece até mesmo sugerido pelo art. 45 da Lei
9.099/95. Mas já aqui, longe do contexto de produção da prova, a oralidade
manifesta-se apenas formal e ancilarmente, sendo, por isso mesmo, facilmente intercambiável
com a escrita, pois não está a representar aquela peculiar maneira de julgar o
feito em primeiro grau: tête-à-tête com as partes.
Item, a circunstância de não haver necessidade de longa
fundamentação escrita no julgamento das Turmas Recursais (Lei 9.099/95, art.
46) também lembra o prestígio da oralidade nos juizados especiais.
Fora das situações lembradas acima, a oralidade dispõe de
modesta influência na segunda instância dos juizados.
Conclusões
A adoção da oralidade nos juizados, pela Constituição,
importou em uma opção fundamental: confiou-se ao magistrado de primeiro grau a
notável possibilidade de um julgamento muito próximo da situação real, do
conflito concreto; um julgamento quase destituído de forma prévia, porque livre
de superfetação maquinal-burocrática; um veredicto assentado sobre o sentire
do magistrado e à vista dos destinatários da decisão, por isso mesmo um
julgamento mais humano.
A oralidade, em conclusão, é um antídoto contra a
aplicação mecânica das leis, contra a profissionalização do ato de
julgar, mormente em primeira instância, quando muita vez a apreciação de
declarações pessoais é uma necessidade inarredável; é uma convocação do juiz
para a responsabilidade direta pelo caso a julgar; é um aguilhão da realidade
fora dos autos, para que não se caia na situação daquele "juiz
curtido", lembrado por Anton Tchekhov no conto "Enfermaria nº
6". "Todas pessoas − escreveu Tchekhov- que têm uma relação
oficial e profissional com o sofrimento alheio, por exemplo, juízes, policiais,
médicos, com o correr do tempo, por força do hábito, ficam a tal ponto curtidas
que, mesmo querendo, só podem tratar seus clientes de maneira formal; por esse
aspecto, não se distinguem em nada do mujique que mata carneiros e bezerros num
fundo de quintal e não nota sequer o sangue. E na ocorrência de uma relação
formal, sem alma, para com a personalidade humana, um juiz, para destituir um
homem inocente de todos os direitos civis e condená-lo aos trabalhos forçados,
só precisa do seguinte: tempo. Apenas tempo para a execução de umas poucas
formalidades, pelas quais o juiz recebe um ordenado, e a seguir tudo
acaba."
Notas
1 No Brasil, o art. 120 do Código de Processo
Civil de 1939 já consagrava explicitamente, e até com certo exagero, um dos
mais típicos subprincípios da oralidade, o "princípio da identidade física
do juiz", nos seguintes termos: "Art. 120. O juiz transferido,
promovido ou aposentado concluirá o julgamento dos processos cuja instrução
houver iniciado em audiência, salvo si o fundamento da aposentação houver sido
a absoluta incapacidade física ou moral para o exercício do cargo. O juiz
substituto, que houver funcionado na instrução do processo em audiência, será o
competente para julgá-lo, ainda quando o efetivo tenha reassumido o exercício. Parágrafo
único. Si, iniciada a instrução, o juiz falecer ou ficar, por moléstia,
impossibilitado de julgar a causa, o substituto mandará repetir as provas
produzidas oralmente, quando necessário." (grafia original). A adoção da
oralidade pelo CPC de 1939, aliás, foi objeto de ampla discussão na Revista
Forense de maio de 1938, que reuniu algumas dezenas de artigos sobre o tema,
alguns dos quais cito neste trabalho.
2 PERINE,
Marcelo. Oralidad y escritura em platón: estado actual del debate.
(texto extraído da internet)
3
Cf. BERMUDES, Sergio. Introdução ao processo civil. 3ª ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2002, p. 213.
4
Apud OLIVEIRA, A. Gonçalves de. "Oralidade e tradição".
Revista Forense, maio/1938, p. 93.
5 La tradición jurídica
romano-canónica. 2a ed., 4a reimp. México: Fondo de cultural
económica, 1998, p.214.
6
Introdução à ciência do direito. Trad. bras. de Vera Barkow. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, p. 158.
7
Sobre essa curiosa forma de julgamento, ver: WIEACKER, Franz. História do
direito privado moderno. Trad. de A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbekian, 1980, p. 200.
8
Bem julgar – ensaio sobre o ritual judiciário. Trad. port. Lisboa:
Instituto Piaget, 1997, p. 73.
9
Instituições de direito processual civil. Trad. bras. Campinas: Bookseller, 1998, t. III,
pp. 75-76.
10
Apud MACHADO GUIMARÃES, Luis. "O processo oral e o processo escrito".
Revista Forense, maio de 1938, p. 32.
11
BURKE, Peter. Uma história social do conhecimento: de Gutemberg a Diderot.
Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 111/112.
12
Apud SOUZA, Carlos Aurélio Mota de. Poderes éticos do juiz: a
igualdade das partes e a repressão ao abuso no processo. Porto Alegre:
Fabris, 1987, p. 28.
13
Instituições de direito processual civil. Trad. bras. Campinas: Bookseller, 1998, t. II,
pp. 61-68.
14
Cf. PRATA, Edson. "Oralidade antes de Chiovenda". Revista
Brasileira de Direito Processual, 1º trim. 1975, Uberaba, 1: p. 51.
15
Pedro Batista Martins, autor do anteprojeto que viria a ser o Código de
Processo Civil de 1939, refere-se claramente a essa peculiaridade do julgamento
oral, em um trabalho intitulado "Sobre o projeto de codificação do
processo civil e comercial", publicado na Revista Forense de maio de 1938,
nas páginas 38 e ss. Especificamente em relação aos juizados especiais cíveis
federais, J. E. Carreira Alvim dedica três páginas ao assunto, na sua obra Juizados
especiais federais. Rio de Janeiro: Forense, 2002, pp. 137-140.
16
Estudos sobre o processo civil brasileiro. Araras: Bestbook, 2001, p.
91.
17
Instituições.. ., cit, p. 74.
18
Exposição de Motivos do Código de Processo Civil, cap. IV, item II, 13.
19
Princípio da oralidade: procedimento por audiências no direito processual
civil brasileiro. São Paulo: RT, 2003, p. 139.
20
Sobre execução nos juizados especiais cíveis, vide: ASSIS, Araken de. Execução
civil nos juizados especiais. 3a ed. revista, atualizada e
ampliada. São Paulo: RT, 2002.
* juiz federal
da Seção Judiciária do Distrito Federal (TRF da 1ª Região).
Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5439>. Acesso em: 26 mai.
2006.