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A Competência Absoluta
da Retificação de Registros Públicos na Lei 6.015/73
Julio Cesar de Castilhos Oliveira Costa
1. Trata-se de situação que vem ocorrendo em vários Municípios, devido ao
elevado contingente de descendentes de imigrantes europeu em nosso País, e que
por estar se repetindo bastante freqüência, necessita de uma maior análise, a
fim de não se incorrer em equívocos processuais.
2. É cediço que tais brasileiros descendentes de imigrantes europeus têm
formulado requerimentos administrativos às representações diplomáticas dos
países europeus no Brasil, mormente Espanha e Itália, pleiteando direito à
cidadania italiana, o que é, geralmente, garantido pela legislação alienígena.
Todavia, as referidas representações exigem que as certidões referentes ao
estado de pessoa (nascimento e casamento) contenham a grafia original do nome
do cidadão europeu, o que na maior parte dos casos não ocorre.
3. Em virtude disso, a maioria dos requerentes é forçada a ajuizar ação
com pedido de retificação de registro público, a fim de corrigir a grafia de
seus nomes, retificando prenomes e patronímicos constantes de suas certidões e
adequando-as àquelas de seu ascendente comum. Contudo, observa-se que um grande
número de ações desta espécie é impetrada nas mesmas comarcas, ou melhor, em
comarcas escolhidas ao bel prazer do demandante. Os advogados dos requerentes
costumam justificar isto baseando-se no fato de que a competência territorial é
relativa, não podendo o juiz reconhecê-la nem o Ministério Público
excepcioná-la de ofício.
4. Desta forma, vem-se notando uma acumulação de processos nas Comarcas
em que os membros do Ministério Público e os magistrados, por convicção íntima,
são favoráveis aos pedidos de retificação dos registros públicos, em detrimento
dos princípios do juiz e do promotor natural, situação com a qual não há a
nossa concordância.
5. A matéria é regulada pelo art. 109, L. 6015/73, que assim dispõe:
“Quem pretender que se restaure, supra ou retifique assentamento no
Registro Civil, requererá, em petição fundamentada e instruída com documentos
ou com indicação de testemunhas, que o juiz o ordene, ouvido o órgão do
Ministério Público e os interessados, no prazo de 5 (cinco) dias”.
6. Antes da análise do mérito da ação, é mister avaliar se estão
satisfeitas as questões formais autorizadoras do julgamento do pedido, ou seja,
as condições da ação e os pressupostos processuais. Na situação aqui posta,
penso demandar um estudo mais aprofundado a análise do pressuposto processual
da competência, para saber qual Juízo é competente para julgar o pedido em
tela.
7. No tocante à competência de justiça (também chamada de competência de
jurisdição), não há dúvidas, pois o entendimento pacificado pelo Superior
Tribunal de Justiça (STJ) é o de que compete à Justiça Estadual processar e
julgar pedido de retificação de assentamento do registro civil, ainda que o
objetivo último do requerente seja o de fazer prova perante o INSS (Autarquia
Federal) a fim de instruir pedido de aposentadoria (CC 29.890, DJU, 26.10.2001
e CC 24.808, DJU, 20.09.1999).
8. Quanto à competência de foro, assim pronuncia a L. 6015/73, art. 109,
§5º.:
“Se houver de ser cumprido em jurisdição diversa, o mandado será
remetido, por ofício, ao juiz sob cuja jurisdição estiver o cartório do
Registro Civil e com o seu “cumpra-se”, executar-se-á”.
9. Sobre o dispositivo legal acima, a jurisprudência pátria sufragou o
entendimento de que se abria ali a possibilidade de a ação de retificação do
registro civil ser proposta em foro diverso daquele em que assentado o
registro. Nesse sentido, a decisão do STJ no CC 10861-6/SC, DJU 10.03.95, in
verbis:
“Tal como fazia o CPC de 1939, a vigente Lei de registros públicos (Lei 6.015,
de 31.12.73) prevê a hipótese de averbação ou retificação do registro civil em
jurisdição diversa da Comarca dominante a respeito: o pedido pode ser formulado
no foro do domicílio da pessoa interessada (Rev. dos Tribunais, 413/371).
Walter Ceneviva, em sua obra “Lei dos Registros Públicos Comentada”,
aplaude esse entendimento, considerando-o afinado com a melhor doutrina. Além
disso, consoante bem evidenciou o ilustre representante do ministério Público
de Minas Gerais, é este o critério que confere maior comodidade aos requerentes
do pedido, permitindo-lhes que melhor acompanhem a tramitação do feito”.
10. Destarte, percebe-se que os tribunais superiores já uniformizaram a
posição no sentido de que a L. 6015/73 estabelece dois foros legítimos para a propositura
da ação de retificação: o do assentamento do registro e o do domicílio do
interessado. Logo, foram utilizados dois critérios para a determinação do foro
competente para o ajuizamento da ação devida: um legal (assentamento do
registro) e outro territorial (domicílio do interessado).
11. Ao utilizar o critério territorial na fixação da competência de foro
na ação de retificação, o STJ criou uma nova questão: como a chamada
competência territorial (na verdade competência de foro determinada pelo critério
territorial) é, em regra, relativa, a ação de retificação poderia ser, em tese,
proposta em qualquer foro. Isto porque, desde que não houvesse nenhuma exceção
de incompetência contraposta por outrem, a competência do foro em que foi
proposta a ação (qualquer que seja ele) seria prorrogada e o juiz seria
competente para apreciar a causa.
12. Além de estabelecer quatro critérios de competência (relativa ao
valor da causa, material, funcional e territorial), o CPC contempla dois
regimes distintos para tais modalidades de competência: as espécies competência
absoluta e relativa, segundo a maior ou menor disponibilidade da vontade das
partes sobre a regra determinadora do regime. Os indicadores de competência
absoluta constituem grupo de regras cogentes, determinadas no interesse
público, ao passo que as diretrizes de competência relativa são postas no
interesse das partes, razão pela qual podem elas dispor sobre esses critérios,
alterando o regime legal (e, por conseqüência, o juízo competente para a demanda).
A diferença entre as duas espécies é importantíssima, pois a competência
relativa admite a prorrogação de competência enquanto a competência relativa
não admite tal prorrogação.
13. Nos casos em análise, está-se diante de problema cuja solução consiste
unicamente em se definir qual o regime de competência se aplica à situação. Se
a competência for absoluta, não poderá haver prorrogação para nenhum outro
juízo, o qual, nesta situação, deverá se declarar incompetente, ao passo que se
a competência for relativa, haveria, em tese, prorrogação e o qualquer outro
juízo no qual a ação tenha sido proposta não poderia, a princípio, declinar de
ofício, tendo que julgar o pedido. Desta definição depende o julgamento ou não
do pedido.
14. Nos termos do art. 111, CPC, as partes podem modificar a competência
territorial, elegendo foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e
obrigações. Consiste numa faculdade que a lei concede às partes para que
disponham sobre o foro competente, da maneira que melhor atenda seus interesses
(desde que, é claro, não ofendam ao interesse público). Todavia, quando a
questão envolvida diz respeito á jurisdição voluntária, como é o caso, onde não
há partes e sim interessados, a situação se torna um pouco nebulosa.Por jurisdição
voluntária entende-se, consoante doutrina majoritária, como a administração de
interesses privados por parte de órgão do Poder Judiciário
15. Por jurisdição voluntária entende-se, consoante doutrina majoritária,
como a administração de interesses privados por parte de órgão do Poder
Judiciário. Cuida-se de manifesta restrição aos princípios “de autonomia e de
liberdade que caracterizam a vida jurídico-privada dos indivíduos – limitação
justificada pelo interesse social nesses atos da vida privada” (Cintra,
Pellegrini e Dinamarco, Teoria Geral do Processo, Malheiros Ed., 13ª.
Ed., nº. 78).
16. Assim, a jurisdição voluntária é uma atividade administrativa (e não
jurisdicional), onde não há lide nem partes. Pode surgir oposição do Ministério
Público entendendo ser prejudicial o negócio pretendido. Haverá, então, uma
controvérsia, mas o interesse tutelável será apenas um, dizendo respeito à
melhor forma de proteger e acautelar esse único interesse em jogo. É o que
ocorre no procedimento de retificação de registros públicos, em que não há réus
e o único interesse dos requerentes diz respeito à correção de seus registros.
17. Considerar a competência como relativa nesses casos de jurisdição
voluntária seria permitir que a parte pudesse violar o principal princípio da
competência, qual seja, o do juiz natural, pois “o direito brasileiro
assenta o exame da competência em três princípios fundamentais: o princípio do
juiz natural,o princípio da perpetuação da competência e o princípio da
competência sobre competência”. (Marinoni e Arenhart, Manual do Processo
de conhecimento, 3ª. Ed.,
RT, 2004, pág. 49). Ainda segundo os festejados autores “essas
três diretrizes básicas norteiam todo o sistema de determinação de competência,
informando a aplicação das regras específicas, estabelecidas na legislação
processual nacional”.
18. Ora, aplicando-se o exposto acima ao nosso caso, entendo não ser
possível ter como relativa a competência fixada na Lei 6.015/73. Admitir-se
isso seria tornar possível ao interessado escolher o juízo mais conveniente, ao
seu exclusivo bel-prazer, ferindo mortalmente o princípio do juiz natural.
Atente-se que esta situação é distinta da prevista no art. 111, CPC, que
permite às partes dispor sobre o foro competente. Lá, por se tratar de jurisdição
contenciosa, se o réu for demandado em foro diverso do originalmente fixado,
poderá efetuar um acordo tácito, não opondo exceção de incompetência (art. 112,
CPC). Essa hipótese do art. 111, CPC, pressupõe um pronunciamento, expresso ou
tácito, das duas partes (autor e réu) concordando com a mudança de foro, com a
qual nem o juiz poderá se opor, pois a incompetência relativa não pode ser
declarada de ofício (Súmula 33, STJ).
19. A propósito, note-se que no caso de competência relativa, nem o órgão
do Ministério Público pode por exceção de incompetência, pelo fato de agir na
condição de custos legis (ERESP 222006/MG, 13.12.2004, STJ). E chegaríamos à
situação em que o juiz não poderia declarar a incompetência de ofício, o MP não
poderia opor a exceção por ser custos legis e não haveria parte para apresentar
a exceção. Ou seja, qualquer foro em que o interessado propusesse a ação de
retificação de registro civil teria sua competência prorrogada e estaria apto a
julgar a ação. Tal entendimento não parece ser plausível por ferir, conforme já
dito, o princípio do juiz natural.
20. Aliás, tal princípio constitucional, de ordem pública, se irradia de
tal forma no sistema processual brasileiro, que penso que mesmo na hipótese de
a competência territorial ser considerada relativa nos casos de jurisdição
voluntária, o juiz poderia declinar de ofício a competência. Isto em virtude do
entendimento consolidado pelo STJ no caso dos foros de eleição nos contratos de
adesão (CC 21540, DJU, 24.08.98). Segundo o Tribunal Superior, mesmo se
tratando de um caso típico de competência relativa, o magistrado poderia
declinar de ofício caso estivesse diante de infringência a regra de ordem
pública (no caso específico do julgado, a ofensa ao acesso à defesa, pois a
maior parte das empresas inclui como foro, nos contratos de adesão, o de suas
sedes, em São Paulo ou no Rio de Janeiro).
21. É de se salientar que, pela grande quantidade de imigrantes italianos
deste Estado, o que acarreta um sem-número de cidadãos que agora desejam obter
o passaporte de seus ascendentes para obterem os benefícios da comunidade
européia, corre-se o risco de se ter uma gigantesca concentração de ações de
retificação de registros civis impetradas em determinadas comarcas, bastando
para isso que o interessado saiba os posicionamentos do promotor e do
magistrado sobre o assunto, acarretando-lhes uma sobrecarga e, principalmente,
uma ofensa à ordem pública.
22. A doutrina se divide a respeito da natureza da competência nesses
casos, sendo que na Itália, considera-se, majoritariamente, que a competência
territorial nos casos de jurisdição voluntária é absoluta, ao passo que no
Brasil a corrente dominante é aquela que considera nesses casos a competência
como relativa. Todavia, no caso específico da competência dos registros
públicos, ambas as escolas doutrinárias apontam no sentido de tal
competência ser absoluta. Conforme dispõe Leonardo Greco:
"Louvado em julgado da Corte de Cassação italiana de 1925,
Liebman sustentou que a competência territorial na jurisdição voluntária seria
absoluta, o que teria justificativa na sua natureza administrativa. Esse
entendimento é ainda hoje reproduzido pela doutrina daquele país, com
fundamento no art.28 do seu Código de Processo Civil (em nota diz q o art.
28 fala da inderrogabilidade da competência territorial nos procedimentos in
camera di consiglio).
Nos procedimentos relativos a registros públicos, a competência
territorial é a do foro da circunscrição do cartório de registro, e nesse
caso a competência é absoluta, pois é ao controle e supervisão desse juízo
que está subordinada a atividade do serventuário" (Em nota cita Angelo
Januzzi). (Leonardo Greco, Jurisdição voluntária Moderna, Ed. Dialética, 1ª. Ed., fls. 46-47).
23. Diante do exposto, concluo que a competência prevista na L. 6015/73 é
absoluta, não podendo, assim, ser prorrogada. Desta forma, falece
competência a qualquer outro juízo para processar e julgar o pedido de
retificação de registro civil.
24. Assim, entendo que o membro do Ministério Público que atua nos feitos
de registros públicos, deve sempre opinar no sentido de que os autos ser
encaminhados ao juízo competente, nos termos do art. 113, §2., CPC.
Disponível em: <http://www.direitonet.com.br/artigos/x/26/09/2609/> Acesso em: 12 de mai. de 2006.