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A Desapropriação Judicial no Novo Código Civil



Mônica Castro *



Sumário: 1. O Código Civil: um novo paradigma. 2. A função social da posse como fundamento da perda da propriedade. 3. A desapropriação judicial. 4. O poder-dever do Estado de indenizar. 5. Aspectos processuais. 6. Conclusão.


1. O Código Civil de 2002: um novo paradigma



Para que se possa melhor entender as diferenças entre o atual e o novo Código Civil, cumpre analisar, ainda que superficialmente, os princípios que lastrearam a elaboração da nova lei, tendo presente que muitos dos seus dispositivos foram permeados pela chamada corrente do culturalismo.


Essa doutrina do pensamento compreende o Direito como uma experiência cultural e que se acha subordinada a princípios ético-sociais em que a cultura é colocada no foco central de apreciação das ciências humanas e a pessoa é o valor supremo do qual devem emanar todos os demais valores existenciais.


Longe, pois, de ser uma mera troca de uma lei por outra, o Novo Código Civil representa a adoção pelo legislador de um novo paradigma, aqui tomado naquela concepção engendrada por Thomas Kuhn para quem o paradigma é aquilo que uma comunidade partilha e, inversamente, uma comunidade cientifica consiste em homens que partilham um paradigma. [1]


Oportuno reconhecer que uma das grandes mudanças do novo Código, conseqüência da visão culturalista de REALE foi a modificação da linguagem.


Enquanto o Código Civil de 1916 foi concebido como sistema fechado uma vez que ao jurista era cometido o papel de mero exegeta, sob a visão pela qual a fonte exclusiva do direito era a lei, e ao Magistrado era proibido inovar a norma legal ditada, a linguagem do novo Código foi elaborada para que os operadores do Direito tenham papel ativo na determinação do sentido das normas jurídicas, consubstanciando, pois, um sistema aberto.[2]


De um lado, essa alteração operou-se no sentido de aliar a forma ao conteúdo da norma, sem perder de vista a existência de uma relação intrínseca e inseparável entre esses dois elementos.


De outro lado, essa modificação de linguagem pode ser percebida pela edição de normas abertas, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados em inúmeros de seus dispositivos e, em especial no art.1.228 que trata exatamente da matéria sob exame.


Em primeiro lugar, algo que distingue fundamentalmente os dois diplomas legais é o incontestável predomínio da socialidade sobre as concepções que dão mais valor ao indivíduo como tal.


Socialidade no sentido de prevalência dos valores coletivos sobre os individuais embora sem perder de vista que o valor fundamental do sistema é a pessoa.


Há, pois, um afastamento do sentido individualista que norteia as normas do Código Civil ainda em vigor.


Pelo principio da socialidade, apenas como exemplo, fez o legislador incluir, expressamente, sua definição de função social da propriedade e atribuiu também ao contrato uma função social.


Não bastaria, entretanto, a adoção desse primeiro princípio sem que o comentado diploma legal tivesse recebido forte impacto de natureza ética, de forma a possibilitar a realização da justiça social pretendida.


Para tanto, deixou-se permear pelo principio da eticidade, no sentido de garantir a absorção de conceitos desenvolvidos doutrinariamente como a equidade, a boa fé, a justa causa dentre outros e signos éticos diversos.


Em razão da eticidade, é posto, por exemplo, o princípio do equilíbrio econômico dos contratos como base ética de todo o Direito Obrigacional.


E, por fim, a operabilidade com vistas à efetivação do direito, sua execução, sua realização.


Nesse sentido a clara distinção entre prazos prescricionais e decadenciais. Aqueles enumerados na parte geral do Código Civil, os decadenciais alocados nos artigos específicos a eles pertinentes.


Como se vê, é todo um novo espírito que condiciona o novo diploma legal, sendo essencial, para interpreta-lo ter presente os seus pressupostos basilares.




2. A função social da posse como fundamento da perda da propriedade.




Poucas foram as mudanças ocorridas no direito das coisas, em comparação com as demais matérias alinhadas na parte especial do novo codex.


Dentre as mais importantes destaca-se a atribuição prévia pelo legislador de um valor diferenciado à posse trabalho em comparação à simples posse que se exerce como faculdade do direito de propriedade.


Essa escolha legislativa pode ser bem compreendida quando cotejada com a doutrina adotada por JAN SCHAPP para quem no exame do caso concreto em face da norma legal não há que se cogitar em separação entre o geral e o particular através da analogia ou da síntese, haja vista que a lei já é o particular pelo fato de decidir caso concreto futuro, isto porque o que se entende por universal na lei seria seu conteúdo fático, enquanto a ordem de conseqüência jurídica, ao contrário, seria concebida como decisão concreta.[3]


A metodologia adotada pelo Novo Código se apresenta inteiramente coadunada com essa decisão previamente realizada pelo legislador ao valorar a posse em relação à propriedade.


Igualmente relevante a valoração maior concedida à posse em detrimento da propriedade quando se depara o jurista com nova regra concernente às acessões artificiais que não mais serão de propriedade exclusiva do titular da área como se dá no Código Civil, mas do construtor ou plantador, desde que as acessões realizadas sejam de valor consideravelmente maior que o do terreno, como se constata do comando expresso no art.1255, parágrafo único do Código de 2002.




3. A desapropriação judicial:




Vislumbra-se a disposição do art.1228 como a grande mola propulsora desse instituto.


Diz o novo Código:




Art.1.228.O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.


.......................................................................................


§4º. O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicando consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de 5(cinco) anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.


§5º. No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores.




Essa desapropriação realizada diretamente pelo Poder Judiciário, sem intervenção prévia de outros Poderes é figura nova em nosso sistema positivo.


Como lembra o eminente Supervisor da Comissão Elaboradora e Revisora do Código Civil, Prof. Miguel Reale, surge uma nova via de desapropriação, instituto que não deve ser entendido como prerrogativa exclusiva dos Poderes Executivo ou Legislativo[4].


Em um mesmo artigo - §4º do art.1228 – o legislador faz uso de vários conceitos jurídicos indeterminados: considerável para qualificar o número de pessoas; de interesse social e econômico para adjetivar as obras e serviços e extensa para identificar a área.


Abre-se, então, um aparente leque de possibilidades para o preenchimento do conteúdo jurídico desses conceitos pelo Magistrado que, conforme relatado, será o artífice dessa desapropriação.


Aparente porque um conceito jurídico indeterminado pode ser determinado pelo conhecimento técnico, pela experiência comum, pelos antecedentes históricos, dentre outros fatores.


Ou, de forma mais exata, indeterminado por ser de fácil ou difícil determinação, nunca impossível.


Assim, para preencher o conceito de considerável em relação ao número de pessoas, há de ficar entendido que devem elas pertencer a mais de um núcleo familiar.


Uma única família, por mais numerosa que seja, não pode preencher o conteúdo jurídico indicado, porque o que parece pretender o legislador é que a desapropriação transcenda o interesse individual, refira-se à comunidade, e não a um interesse homogêneo limitado a uma entidade familiar.


Igualmente no que concerne a obras e serviços de interesse social e econômico, deve o Magistrado ter presente o caráter altruístico da medida, a afastar qualquer significado egoístico e, portanto, a visar os interesses de estabilidade social e não individuais dos ocupantes.


No que concerne à extensão, deverá verificar no contexto de situação do imóvel a área comum de semelhantes prédios na região.




4. O poder-dever do Estado de indenizar:




Oportuno realçar que a indenização deverá ser provida pelo Estado, não pelos beneficiados, porque o instituto da desapropriação é poder-dever reservado exclusivamente ao Estado.


O Magistrado atua como agente do Estado ao determinar a indenização.


Com efeito, o instituto que diz mais de perto com o direito administrativo, permite a transferência compulsória da propriedade e, no particular, autoriza que essa transferência seja realizada com escopo de propiciar justiça social, supondo a utilização inadequada do direito de propriedade. Busca, outrossim, o atendimento da função social da propriedade compatível com o bem estar da coletividade.


Não se pode permitir que essa perda da coisa seja feita sem a devida indenização, sob pena de violação do comando inserido no art. 5º, XXII e XXIV da Constituição Federal. Aliás, a norma expressamente veda a transferência da propriedade sem a previa compensação pecuniária precedente, como se constata da leitura do §5º do art.1228 antes transcrito.




5. Aspectos processuais.




Em discussões no âmbito acadêmico, vêm causando estranheza, especialmente aos processualistas, dois aspectos dignos de serem enfrentados no exame desse instituto.


O primeiro, o de que o Estado possa ao mesmo tempo ser órgão desapropriante e julgador a fixar inclusive o valor da indenização devida e que será por ele mesmo – Estado - paga.


O segundo o de que possa vir a ser chamado a pagar em um processo do qual não fez parte.


Acrescento a elas, ainda, uma terceira reflexão. A figura do Estado é representada por três âmbitos distintos: União, Estados e Municípios. Qual deles deve arcar com as conseqüências do ato?


A essas questões, lanço uma primeira reflexão que será, com certeza, melhorada por tantos quanto estejam nesse momento a se debruçar sobre o tema.


Assim, no tocante ao primeiro questionamento, entendo não existente qualquer colisão entre o Estado-Juiz e o Estado-parte, ainda porque tal situação se repete em todos os processos em que uma das partes é pessoa jurídica de direito público interno.


O segundo argumento também não prospera. Em sendo o caso de desapropriação, deverá, necessariamente, ser chamado ao processo o Estado para que possa se contrapor à pretensão dos possuidores ou reforça-la quando entender estarem cumpridas as exigências legais pertinentes à matéria.


Assim, sua intervenção será obrigatória e se dará na reconvenção manejada pelos possuidores, réus na ação de reivindicação proposta pelo proprietário.


O interesse social de justa distribuição da propriedade é de toda a coletividade.


Para os imóveis rurais, não resta dúvida que essa indenização deve ser arcada pela União, quer por força do comando do art.184 a 186 da Constituição Federal, quer por observância dos critérios estabelecidos pela Lei 8.629 de 25.2.93 com a redação que lhe foi conferida pela Lei 10.279 de 12.09.2001 e Lei complementar 76, de 6.7.1993.


Ocorre que o instituto, em que pese não haver qualquer limitação expressa na legislação, foi concebido tendo em vista, especialmente os imóveis localizados em área urbana. Nessa hipótese inadmissível a aplicação direta dos mencionados dispositivos. Perceba-se, outrossim, que não é exigida, como ocorre com a usucapião, o exercício da posse com animus domini.


Parece que o ônus será do Município em que localizada a área, haja vista que o comando do plano diretor da cidade é de competência exclusivamente municipal. Há uma co-responsabilidade na tolerância da ocupação de terrenos com a criação de verdadeiras favelas, nascidas de invasões pelos que não têm moradia.


Nesse sentido, a regra constitucional estampada no art.182 que impõe ao Poder Público Municipal o dever de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.


No mesmo diapasão, a norma inserida no art.39 do Estatuto da Cidade, ao estatuir que a propriedade urbana atende à sua função social quando cumprir as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.


Não se pode olvidar que a desapropriação administrativa prevista no art.8º do mesmo diploma legal, é efetuada pelo Poder Público Municipal como cumprimento de ser poder-dever de realizar o adequado ordenamento da cidade.


Possibilita-se, assim, minorar o desnível na relação entre população e moradia nas cidades com a desapropriação dita diretamente judicial.




6. Conclusão




Ao fixar um novo paradigma, o Código Civil de 2002 optou por conceber uma linguagem aberta, com a adoção de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados estrategicamente colocados em seu texto.


Não abriu mão o legislador, entretanto, da faculdade de valorar de logo alguns institutos, de que é exemplo a posse-trabalho em confronto com a simples posse.


Ao faze-lo, escalonou essa posse qualificada em patamar superior à propriedade quando presentes determinados requisitos apostos no art.1.228.


Esse dispositivo legal encontra-se permeado por vários conceitos jurídicos indeterminados, cumprindo ao jurista o papel de fixa-los.


A fixação desses conceitos deverá ser efetuada com fundamento na experiência cultural.


É desapropriação o instituto previsto no §4º do art.1.228 e em face dessa natureza jurídica, compete ao Estado a indenização pela perda da propriedade.


A compensação pecuniária devida deverá ser arcada, nos casos de imóveis rurais, pela União com escopo no interesse social pertinente e em face das normas constitucionais e infraconstitucionais que regem a matéria.


Os imóveis urbanos serão desapropriados pelo Município onde localizados, com base na co-responsabilidade municipal pela ordenação das cidades.


A pessoa jurídica de direito público interno desapropriante deverá, necessariamente, intervir no processo para afastar o alegado vício de efeitos da sentença além das partes.


Artigo publicado no Mundo Jurídico (www.mundojuridico.adv.br) em 14.04.2003


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[1] Thomas Kuhn. A estrutura das revoluções cientificas.p.219


[2] Judith Martis-Costa e Gerson Luiz Carlos Branco. Diretrizes Teóricas do Novo Código Civil Brasileiro. P.53


[3] Jan Schapp. Problemas Fundamentais da Metodologia Jurídica. P.19


[4] Cf REALE, Miguel. O projeto do novo Código Civil.São Paulo: Saraiva,1999.



*Juíza Federal, Professora de Direito Civil da UFBa, Mestre em Direito Econômico pela UFBa, Doutoranda em Direito Civil pela PUC/SP. E-mail: monicacastro@monicacastro.com



Disponível em: http://www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=486

Acesso no dia: 21.11.05