A previsão da norma do
inciso VII do art. 3º da Lei nº 8.009/90 é inconstitucional
Luiz
Roberto Hijo Sampietro
advogado em São Paulo (SP),
especializando em Direito Empresarial pela Escola Paulista de Direito
1. Considerações introdutórias
O
instituto do bem de família tem por objetivo proteger o lar e a residência da
família contra os percalços que a instabilidade econômica pós-moderna é capaz
de acarretar.
Em
atendimento ao princípio de tutela dos direitos da personalidade, o legislador
conferiu especial proteção à entidade familiar, que é o cerne da sociedade e do
Estado.
Todavia,
a indigitada proteção não é absoluta, haja vista que a lei apresenta situações
em que é possível a penhora do imóvel residencial da família.
Uma
das exceções é a previsão de penhora do bem de família por obrigação decorrente
de fiança dada em contrato de locação.
Comungamos
do entendimento que tal norma é inconstitucional, pois fere princípios
basilares do ordenamento jurídico pátrio, consoante será visto a seguir.
2. Do bem de família
2.1.
Bem de família convencional
No
que concerne ao instituto do bem de família convencional, o CC/16 tratou da
matéria na sua Parte Geral, em seus arts. 70 a 73. O Novo Código Civil andou
bem ao abordar o instituto em seus arts. 1.711 a 1.722, haja vista a sua direta
relação com o Direito de Família, como reflexo dos direitos da personalidade.
Por
não ser escopo do presente trabalho, deixaremos de analisar os requisitos
legais para a sua instituição, mas desde já vale deixar consignado que o
advento desse instituto não revogou o disposto na Lei 8.009/90, consoante a
norma do art. 1.711 do CC/02, in fine.
Após
essa breve consideração, impende analisar as disposições concernentes ao bem de
família legal. Senão, vejamos.
2.1.
Bem de família legal
As
normas pertinentes ao instituto em epígrafe encontram-se positivadas na Lei
8.009/90. Nesse viés, o seu art. 1º preconiza que "o imóvel residencial
próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por
qualquer espécie de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra
natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus
proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei".
Com
efeito, a proteção do bem de família é legal e de ordem pública, o que dispensa
a sua instituição pelos membros da entidade familiar, sendo que esta última
pode ter origem em um casamento, união estável ou comunidade formada por
qualquer dos pais e seus descendentes, ex vi dos §§ 2º, 3º e 4º
do art. 226 da Constituição Federal.
No
entanto, a proteção legal não é absoluta. SÉRGIO ANDRÉ ROCHA GOMES DA SILVA
averbou que o bem de família legal pode ser entendido como "a
impenhorabilidade relativa do imóvel residencial do casal, ou da entidade
familiar. Diz-se relativa a impenhorabilidade do bem de família, pois esta
admite exceções, que encontram-se previstas no art. 3º, da Lei 8.009/90"
[01].
Posto
isso, cumpre verificar as disposições pertinentes à penhorabilidade do bem de
família. Esse é o assunto de nosso próximo tópico.
3. Hipóteses em que a penhorabilidade do
bem de família é possível.
As
situações em que se admite a penhora do bem de família estão arroladas nos
incisos do art. 3º, da Lei 8.009/90, a saber:
a)créditos
de trabalhadores da própria residência e respectivas contribuições
previdenciárias;
b)pelo
titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou
aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos oriundos do contrato;
c)pelo
credor de prestação alimentícia;
d)para
cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas
pelo imóvel familiar;
e)para
execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou
pela entidade familiar;
f)por
ter sido adquirido como produto de crime ou para execução de sentença criminal
condenatória, a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens;
g)por
obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
A
hipótese da alínea "g" corresponde ao inciso VII do art. 3º da Lei
8.009/90. Tal disposição foi acrescentada pelo art. 82, da Lei 8.245/91, que é
a Lei do Inquilinato.
O
advento dessa disposição legal suscitou inúmeras controvérsias acerca de sua
constitucionalidade, tanto na doutrina quanto na jurisprudência. Antes de
discorrermos sobre o mérito da questão, é relevante tecer algumas considerações
sobre o contrato de fiança.
4. O contrato de fiança
A
fiança está regulamentada pelos arts. 818 a 839 do Código Civil de 2002.
Conforme o preciso ensinamento de ROBERTO SENISE LISBOA, a "fiança
é contrato por meio do qual uma das partes (o fiador) se obriga perante a outra
parte (o credor de outro contrato) a garantir o pagamento devido pelo terceiro
(afiançado), que é parte em contrato diverso celebrado com o credor, caso não
venha a adimplir suas obrigações" [02].
Pelo
acima exposto, tem-se que a fiança é um contrato acessório, pois depende de uma
avença principal. Como conseqüência, é possível ao fiador valer-se do benefício
de ordem, consistente em exigir, até a contestação da lide, que sejam primeiro
executados os bens do devedor (CC/02, art. 827).
Todavia,
o mencionado benefício não é absoluto, consoante demonstra a norma do art. 828
do mesmo diploma legal. Logo, o fiador torna-se devedor solidário do devedor
principal. É uma obrigação em que existe a responsabilidade sem o débito: há haftung
sem schuld, conforme o linguajar tudesco.
Comungamos
do entendimento que a previsão do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, está em
dissonância com o novo direito civil, o qual deve ser lido à luz dos princípios
constitucionais, conforme se verá em seguida.
5. Direito civil-constitucional: um novo
paradigma
Desde
o direito romano, difundiu-se a idéia de bipartição do direito em dois ramos:
direito público e direito privado. Essa dicotomia sobreviveu às intempéries do
tempo e às críticas de substanciosa parte da doutrina jurídica.
No
entanto, esse paradigma clássico não mais reflete a hodierna lógica do sistema
jurídico, nem o atual contexto econômico-social, os quais são fruto da
pós-modernidade.
A
ilustre professora MARIA CELINA B. MORAES demonstra que "no Estado
Democrático de Direito, delineado pela Constituição de 1988, que tem entre os
seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa, o antagonismo público-privado perdeu definitivamente o
sentido. Os objetivos constitucionais de construção de uma sociedade livre,
justa e solidária e de erradicação da pobreza colocaram a pessoa humana – isto
é, os valores existenciais – no vértice do ordenamento jurídico brasileiro, que
de modo tal é o valor que conforma todos os ramos do Direito. Daí decorre a
urgente obra de controle de validade dos conceitos jurídicos tradicionais,
especialmente os do direito civil, à luz da consideração metodológica que
entende que toda norma do ordenamento deve ser interpretada conforme os
princípios da Constituição Federal. Desse modo, a normativa fundamental passa a
ser a justificação direta de cada norma ordinária que com aquela deve se
harmonizar" [03].
Portanto,
o direito privado deve ser lido em consonância com os ditames constitucionais,
haja vista que a concepção jurídica moderna, na qual o patrimônio era a razão
de ser do ordenamento, cede lugar para o viés pós-moderno, que prega a
socialização do direito, cujo cerne é a pessoa humana.
FLAVIO
TARTUCE, ferrenho
defensor do direito civil-constitucional, discorre sobre os princípios
norteadores da pós-moderna feição civilística, in verbis:
"O
primeiro deles, a dignidade da pessoa humana, está estampado no art. 1º, III,
do Texto Maior, sendo a valorização da pessoa um dos objetivos da República
Federativa do Brasil. Um contrato nunca, jamais, poderá trazer lesão a esse
princípio máximo.
O
segundo princípio visa a solidariedade social, outro objetivo fundamental da
República, conforme art. 3º, I, da CF/1988. Outros preceitos da própria
Constituição trazem esse alcance, caso do seu art. 170, pelo qual: ‘a ordem
econômica, findada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem
por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça
social’.
Por
fim, o princípio da isonomia ou igualdade lato sensu, traduzido no art.
5º, caput, da Lei Maior, eis que ‘todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade’. Quanto a essa igualdade,
princípio maior, pode ser a mesma concebida pela seguinte oração:
‘A
lei deve tratar de maneira igual os iguais, e de maneira desigual os
desiguais’" [04].
Pelo
expendido, não há como admitir a constitucionalidade da fiança dada em garantia
de um contrato de locação, porquanto há violação dos princípios norteadores do
direito civil-consitucional.
6. Princípio constitucional da isonomia
O
insuperável mestre português JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO ensinou que
"ser igual perante a lei não significa apenas aplicação igual da lei. A
lei, ela própria, deve tratar por igual todos os cidadãos. O princípio da
igualdade dirige-se ao próprio legislador, vinculando-o à criação de um direito
igual para todos os cidadãos (...). O princípio da igualdade, no sentido de
igualdade na própria lei, é um postulado de racionalidade prática: para todos
os indivíduos, com as mesmas características devem prever-se, através da lei,
iguais situações ou resultados jurídicos" [05].
Mas
não é isso que acontece na sistemática da fiança concedida em contrato de
locação. Além de ser uma obrigação em que o débito exsurge sem
responsabilidade, a fiança obriga em maior intensidade do que o próprio
contrato de locação.
Imaginemos
uma situação em que o devedor principal não possui meios para solver a dívida
oriunda de contrato de locação. A avença possui como garantia o único bem
imóvel do fiador, sobre o qual recai a penhora. O bem é arrematado em praça e o
crédito é satisfeito. Nesse contexto, pergunta-se: poderá o fiador exercer seu
direito de regresso contra o devedor originário nos mesmos moldes em que
prestou a fiança? A resposta é negativa, uma vez que ele poderá argüir em sua
defesa a impenhorabilidade legal de seu imóvel residencial.
RITA
DE CÁSSIA CORRÊA DE VASCONCELOS
enxerga a transgressão ao princípio isonômico nos seguintes termos: "(...)
a exceção do inc. VII coloca o fiador em situação escancaradamente inferior em
relação ao afiançado. Lembre-se que até mesmo os móveis que guarnecem a
residência do locatário são impenhoráveis (art. 2º, parágrafo único); não há,
então, entendimento razoável que justifique a penhorabilidade do imóvel
residencial do fiador e de sua família, bem como dos imóveis que o guarnecem. A
discriminação é flagrante e incompreensível" [06].
Por
qualquer dessas razões, é forçoso concluir que a previsão do inciso VII do art.
3º da Lei 8.009/90 viola o princípio da isonomia, pois dispensa tratamento
desigual para o locatário e o seu fiador, nada obstante as obrigações de ambos
terem a mesma gênese, que é o contrato de locação.
7. Princípio constitucional da dignidade
da pessoa humana
A
excelsa diretriz está alocada no inciso III do art. 1º da Constituição Federal.
Sua redação apregoa que "A República Federativa do Brasil, formada pela
união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se
em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: a dignidade da pessoa
humana".
Consoante
o mencionado adrede, o direito privado, no linguajar do grande LUIZ EDSON
FACHIN, vivencia um período de "repersonalização" ou
"despatrimonizalização". Isso significa que a tutela da dignidade
humana é colocada em primeiro plano, como a ratio de todo o
ordenamento, haja vista que não pode ser contrariada em hipótese alguma.
No
que concerne ao alcance desse preceito, merece ênfase a autorizada cátedra de NELSON
ROSENVALD, um dos expoentes do novo direito civil-constitucional:
"Há
de se enfatizar que a dignidade da pessoa humana é fonte simultânea de direitos
humanos e de direitos de personalidade. Fechando o ciclo evolutivo, ambos,
quando positivados, convertem-se em direitos fundamentais de igual conteúdo.
Com modo e intensidade variáveis, serão eles de alguma maneira reconduzidos à
idéia primária de dignidade, como última instância de proteção a todo ser
humano.
O
ser humano e a dignidade antecedem o ordenamento jurídico, assim como os
direitos da personalidade. É de certa forma um equívoco conceber o direito
natural como uma ideologia conservadora – como pretendeu o positivismo. Ele possui
um componente revolucionário, por conduzir a um exame crítico de toda a ordem
existente. Se a pessoa não é criada pelo ordenamento, a incidência posterior de
determinadas regras não poderá aprisionar os elementos de sua
personalidade" [07].
Com
efeito, a validade da previsão de penhorabilidade de imóvel por força da fiança
dada em contrato de locação não se coaduna com os parâmetros do novo direito
civil, o qual busca ser mais justo e solidário.
8. Direito à moradia
Com
o advento da Emenda Constitucional 26/2000, o art. 6º da Constituição Federal
passou a ostentar a seguinte redação: "são direitos sociais a educação, a
saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados,
na forma desta Constituição". (destaques nossos)
O
legislador constituinte, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana,
reconheceu o direito à moradia. Nada obstante prevalecer a tese que admite a penhorabilidade
do bem de família no Superior Tribunal de Justiça, o que era seguido pelo
extinto 2º TAC/SP [08] (8), surge uma corrente minoritária,
capitaneada pelo Ministro Carlos Velloso, do Supremo Tribunal Federal, que
defende a inconstitucionalidade de tal previsão, com supedâneo nos arts. 1º,
III, 5º, caput e 6º, caput, com a redação da EC
26/2000, todos da Carta Magna.
Nesse
sentido, impende transcrever a ementa do Recurso Extraordinário 352.940-4/SP,
julgado em 25 de abril de 2005:
CONSTITUCIONAL.
CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA; IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE
FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de
1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora "por
obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação": sua
não-recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. aplicabilidade do
princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi
eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a
mesma regra de Direito.
O
eminente Ministro assim justificou o seu voto:
"Em
trabalho doutrinário que escrevi ‘Dos Direitos Sociais na Constituição do
Brasil’, texto básico de palestra que proferi na Universidade de Carlos III, em
Madri, Espanha, no Congresso Internacional de Direito do Trabalho, sob o
patrocínio da Universidade Carlos III e da ANAMATRA, em 10.3.2003, registrei
que o direito à moradia, estabelecido no art. 6º, C.F., é um direito fundamental
de 2ª geração - direito social que veio a ser reconhecido pela EC 26, de 2000.
O
bem de família - a moradia do homem e sua família - justifica a existência de
sua impenhorabilidade: Lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de
constituir a moradia um direito fundamental.
Posto
isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de
família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial
próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que
ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3º feriu de morte
o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se
do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio,
ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra
de Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado
dispositivo inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi
recebido pela EC 26, de 2000".
De
fato, a decisão vem em boa hora. A inconstitucionalidade da aludida previsão
legal reflete a incidência de outro princípio constitucional: o da função
social dos contratos, acerca do qual discorreremos logo em seguida.
9. Princípios do Novo Código Civil:
influência direta no direito privado
Mais
do que uma mera alteração vernacular de alguns dispositivos, o Novo Código
Civil revolucionou o direito privado, mediante a adoção de três princípios
gerais: eticidade, socialidade e operabilidade. Sem a pretensão de esgotar
vasto tema, teceremos brevíssimos comentários sobre cada um deles.
9.1
Eticidade
Diferentemente
do texto revogado de 1916, o Código Civil de 2002 adotou o princípio da
eticidade, consistente no abandono da formalidade e tecnicismo exacerbados, sem
a preocupação da perfeita subsunção entre fatos e normas. O sistema de
cláusulas gerais dá mais liberdade ao intérprete, o qual deverá se nortear pela
moralidade, ética, bons costumes e boa-fé objetiva.
9.2
Socialidade
Por
socialidade, devemos entender o abandono do individualismo oitocentista em prol
da vida comunitária. A indigitada socialização manifesta-se, verbi gratia,
por intermédio do princípio da função social do contrato, que é um dos
corolários do direito civil-constitucional.
9.3
Operabilidade
Esse
último princípio informador do Novo Código Civil tem por escopo a atuação do
juiz e do operador do direito perante o caso concreto, ante a facilitação da
exegese e aplicação dos institutos previstos no Código. O já referido sistema
de cláusulas gerais bem reflete tal corolário.
10. Função Social dos Contratos
Inegável
a idéia de mudança do paradigma do direito privado. A dignidade da pessoa
humana alterou a sistemática da teoria contratual, sendo que esta apresenta
nova roupagem a fim de se adaptar à novel realidade contratual.
Nesse
sentido, o preciso escólio de ANTONIO JEOVÁ SANTOS: "a
transformação que sofre o contrato é a que se concretiza com a realidade da
tendência de socialização, vale dizer, a ter um aspecto social, no sentido de
que os direitos e os deveres devem ser exercidos funcionalmente, sem
desviarem-se dos fins econômicos, dos fins éticos e dos fins sociais que o
ordenamento legal tem em conta. O direito contratual sofre uma modificação que
tende a fustigar os atos de exploração e de iniqüidade; os atos que sejam
abusivos e antifuncionais, são as palavras flamejantes de Spota."
[09]
Todo
e qualquer contrato possui um cunho social. Se se admitir constitucional a
penhora de imóvel residencial dado em garantia de contrato de locação,
estar-se-á privilegiando o individualismo do século XVIII em desfavor do
trinômio dignidade-solidariedade e igualdade, vértices do moderno direito
civil.
11. Inconstitucionalidade do inciso VII
do art. 3º da Lei 8.009/90
À
luz do expendido, os arts. 421 e 2.035, parágrafo único, do novo Código Civil,
erigiram o princípio da função social dos contratos ao patamar de norma de
ordem pública, com supedâneo na Constituição Federal. Logo, a previsão legal
acerca da penhora oriunda de fiança concedida em contrato de locação não se
coaduna com o princípio mencionado, tampouco com o direito constitucional à
moradia.
Para
dirimir qualquer dúvida em definitivo, vale citar o Enunciado n. 23, do
Conselho da Justiça Federal: "a função social do contrato, prevista no
art. 421 do novo Código Civil, não elimina o princípio da autonomia contratual,
mas atenua ou reduz o alcance desse princípio quando presentes interesses
metaindividuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa
humana". Destarte, o direito à moradia limita a autonomia privada.
12. Exemplos recentes
Felizmente,
é possível verificar que a tese de inconstitucionalidade da previsão do art.
3º, VII, da Lei 8.009/90, já começa a render frutos: recentemente, o Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo reconheceu a impenhorabilidade de imóvel
residencial do fiador, pois a garantia fora concedida em contrato de locação
comercial (Processo nº 789.652.0/6, relator Lino Machado).
Com
a mesma fundamentação, também se verifica decisão exarada pelo Juízo do 2º
Juizado da 3ª Vara Cível do Foro Central do Rio Grande do Sul em sede de
mandado de segurança impetrado para suspender o leilão do único bem imóvel dos
fiadores de contrato de locação (Processo nº 70011610292, Desembargador Otávio
Augusto de Freitas Barcellos).
Por
derradeiro, aguardamos que decisões como as acima apontadas tornem-se uma
tendência em nossos tribunais, o que, decerto, irá corroborar a nova visão do
direito privado, bem representada pelo que se convencionou intitular
"direito civil-constitucional".
Bibliografia
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constitucional e teoria da constituição, Coimbra: Livraria Almedina, 5ª ed.
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO,
Rodolfo. Novo curso de direito civil, volume I – Parte geral, 1ª ed., São
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GOMES, Orlando. Contratos – atualizado por
Humberto Theodoro Júnior, 23ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2001.
GOMES
DA SILVA, Sérgio André
Rocha. Da inconstitucionalidade da penhorabilidade do bem de família por
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Revista de Direito Privado, São Paulo: Ed.RT, abr/jun 2000.
LISBOA, Roberto Senise. Manual de direito civil
– Contratos e declarações unilaterais; teoria geral e espécies, São Paulo:
Ed.RT, v. 3.
MORAES, Maria Celina B. A caminho de um direito
civil constitucional, in Revista estado, Direito e Sociedade, Rio
de Janeiro: publicação do Departamento de Ciências Jurídicas da PUC-Rio, v. 1,
1991.
ROSENVALD, Nelson. Dignidade humana e boa-fé no
código civil – Coleção Prof. Agostinho Alvim, 1ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005.
SANTOS, Antonio Jeová. Função social do
contrato – lesão e imprevisão no CC/2002 e no CDC, 2ª ed., São Paulo: Método,
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TARTUCE, Flavio. A função social dos contratos –
do código de defesa do consumidor ao novo código civil, 1ª ed., São Paulo: Ed.
Método, 2005.
_______________.
A inconstitucionalidade da previsão do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90.
Disponível em: <http://www.flaviotartuce.adv.br/secoes/artigos/Tartuce_fiador.doc>.
Acesso em: 11 de julho de 2005.
VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A
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São Paulo: Ed. RT, 2002.
Notas
01 GOMES DA SILVA, Sérgio André Rocha. Da
inconstitucionalidade da penhorabilidade do bem de família por obrigação
decorrente de fiança concedida em contrato de locação, in Revista
de Direito Privado, São Paulo: Ed.RT, abr/jun 2000, v. 2, p. 52.
02 LISBOA, Roberto Senise. Manual de
direito civil – Contratos e declarações unilaterais; teoria geral e espécies,
São Paulo: Ed.RT, v. 3, p. 467.
03 MORAES, Maria Celina B. A caminho de um
direito civil constitucional, in Revista estado, Direito e
Sociedade, Rio de Janeiro: publicação do Departamento de Ciências Jurídicas da
PUC-Rio, v. 1, 1991.
04 TARTUCE, Flavio. A função social dos
contratos – do código de defesa do consumidor ao novo código civil, 1ª ed., São
Paulo: Ed. Método, 2005, pp. 65/66.
05 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito
constitucional e teoria da constituição, Coimbra: Livraria Almedina, 5ª ed.,
pp. 424/425.
06 VASCONCELOS, Rita de Cássia Corrêa de. A
impenhorabilidade do bem de família e as novas entidades familiares, 1ª ed.,
São Paulo: Ed. RT, 2002, p. 74.
07
ROSENVALD, Nelson. Dignidade
humana e boa-fé no código civil – Coleção Prof. Agostinho Alvim, 1ª ed., São
Paulo: Saraiva, 2005, pp. 32/33.
08 Vide AI 496.625-00/7, AI 755.476-00/1 e
Ap. c/ Rev. 760.642-00/0, todos do extinto 2º TAC/SP.
09 SANTOS, Antonio Jeová. Função social do
contrato – lesão e imprevisão no CC/2002 e no CDC, 2ª ed., São Paulo: Método,
2004, pp. 117
SAMPIETRO, Luiz Roberto Hijo. A previsão da norma do inciso VII do art. 3º da Lei nº 8.009/90 é inconstitucional . Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 866, 16 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7574>. Acesso em: 16 nov. 2005.