A inconstitucionalidade da previsão do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90
Flávio Tartuce
advogado em São Paulo (SP), mestre em Direito
Civil Comparado pela PUC/SP, professor do Curso FMB, coordenador e professor
dos cursos de pós-graduação da Escola Paulista de Direito (SP)
Como se sabe, um das exceções à
impenhorabilidade do Bem de Família Legal refere-se ao imóvel de
residência do fiador de locação, conforme previsão do art. 3º, VII, da Lei
8.009/1990 (c/c art. 82 da Lei n. 8.245/91).
Quanto
à essa exceção, divergem tanto doutrina quanto jurisprudência em relação à sua
suposta inconstitucionalidade.
Contudo,
AINDA prevalece no Superior Tribunal de Justiça, atualmente, a tese da
penhorabilidade do imóvel do fiador, o que também era acolhido pelo extinto
Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo em sua maioria. Nesse sentido,
vale transcrever:
"Locação
– Fiança – Penhora – Bem de família. Sendo proposta a ação na vigência da Lei
8.245/1991, válida é a penhora que obedece seus termos, excluindo o fiador em
contrato locatício da impenhorabilidade do bem de família. Recurso
provido" (STJ – REsp 299663/RJ – j. 15.03.2001 – 5.ª Turma – rel. Min.
Felix Fischer – DJ 02.04.2001, p. 334).
"Execução – Penhora – Bem de família
– Fiador – Inconstitucionalidade do art. 3.º, inciso VII, da Lei 8.009/1990 –
Não reconhecimento. Não é inconstitucional a exceção prevista no inciso VII do
art. 3.º, da Lei 8.009/1990, que autorizou a penhora do bem de família para a
satisfação de débitos decorrentes de fiança locatícia" (2.º TACSP,
Ap. c/ Rev. 656.658-00/9 – 1.ª Câm. – Rel. Juiz Vanderci Álvares – j. 27.05.2003,
Anotação no mesmo sentido: JTA (LEX) 149/297 – AI 496.625-00/7 – 3.ª Câm. –
Rel. Juiz João Saletti – j. 23.09.1997 – Ap. c/ Rev. 535.398-00/1 – 3.ª Câm. –
Rel. Juiz João Saletti – j. 09.02.1999 – Ap. c/ Rev. 537.004-00/2 – 4.ª Câm. –
Rel. Juiz Mariano Siqueira – j. 15.06.1999 – Ap. c/ Rev. 583.955-00/9 – 12.ª
Câm. – Rel. Juiz Arantes Theodoro – j. 29.06.2000 – Ap. c/ Rev. 593.812-00/1 –
10.ª Câm. – Rel. Juiz Soares Levada – j. 07.02.2001 – Ap. c/ Rev. 605.973-00/3
– 8.ª Câm. – Rel. Juiz Renzo Leonardi – j. 26.04.2001 – Ap. c/ Rev.
621.136-00/1 – 10.ª Câm. – Rel. Juiz Irineu Pedrotti – j. 12.12.2001 – Ap. c/
Rev. 621.566-00/7 – 10.ª Câm. – Rel. Juiz Soares Levada – j. 12.12.2001 – AI
755.476-00/1 – 6.ª Câm. – Rel. Juiz Lino Machado – j. 16.10.2002 – Ap. c/ Rev.
628.400-00/7 – 3.ª Câm. – Rel. Juiz Ferraz Felisardo – j. 26.11.2002 – Ap. c/
Rev. 760.642-00/0 – 9.ª Câm. – Rel. Juiz Claret de Almeida – j. 27.11.2002 – AI
777.802-00/4 – 3.ª Câm. – Rel. Juiz Ribeiro Pinto – j. 11.02.2003 – AI
780.849-00/0 – 12.ª Câm. – Rel. Juiz Arantes Theodoro – j. 27.02.2003).
Contudo,
uma posição minoritária entende ser essa previsão inconstitucional, por violar
a isonomia (art. 5º, caput, da CF/88) e a proteção da dignidade humana
(art. 1º, III).
Primeiro,
porque o devedor principal (locatário) não pode ter o seu bem de família
penhorado, enquanto o fiador (em regra devedor subsidiário – art. 827 do CC)
pode suportar a constrição. A lesão à isonomia reside no fato da fiança ser
contrato acessório, que não pode trazer mais obrigações do que o contrato
principal (locação).
Em
reforço, haveria desrespeito à proteção constitucional da moradia (art. 6º),
uma das exteriorizações do princípio de proteção da dignidade da pessoa humana.
Concordamos
com essa última tese.
Aliás,
na jurisprudência paulista, a inconstitucionalidade da previsão sempre foi
sustentada pela renomada professora e atual Desembargadora Rosa Maria de
Andrade Nery, por esses mesmos argumentos. (2º TAC/SP, Apelação com revisão
593.812-0/1).
Pablo
Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho assim também concluem sustentando que:
"À luz do Direito Civil Constitucional – pois não há outra forma de
pensar modernamente o Direito Civil –, parece-nos forçoso concluir que este
dispositivo de lei viola o princípio da isonomia insculpido no art. 5.º da CF,
uma vez que trata de forma desigual locatário e fiador, embora as obrigações de
ambos tenham a mesma causa jurídica: o contrato de locação" (Novo curso de
direito civil. São Paulo: Saraiva, 2003, v. I, p. 289).
Sem
dúvidas, concordamos: à luz do Direito Civil Constitucional e da personalização
do Direito Privado, não há como aceitar tal previsão!
Isso
inclusive foi reconhecido pelo Ministro Carlos Velloso, em decisão monocrática
recentemente pronunciada em sede de recurso extraordinário em curso perante o
Supremo Tribunal Federal, nos seguintes termos:
"Em
trabalho doutrinário que escrevi ''Dos Direitos Sociais na Constituição do
Brasil'', texto básico de palestra que proferi na Universidade de Carlos III,
em Madri, Espanha, no Congresso Internacional de Direito do Trabalho, sob o
patrocínio da Universidade Carlos III e da ANAMATRA, em 10.3.2003, registrei
que o direito à moradia, estabelecido no art. 6º, C.F., é um direito
fundamental de 2ª geração - direito social que veio a ser reconhecido pela EC
26, de 2000.
O
bem de família - a moradia do homem e sua família - justifica a existência de
sua impenhorabilidade: Lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de
constituir a moradia um direito fundamental.
Posto
isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de
família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial
próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva
trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII do art. 3º feriu de morte o
princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do
velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em
vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de
Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado
dispositivo inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi
recebido pela EC 26, de 2000" (STF, Recurso Extraordinário, RECORRENTES:
ERNESTO GRADELLA NETO E OUTRA. RECORRIDA :TERESA CANDIDA DOS SANTOS SILVA.
EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA. IMÓVEL RESIDENCIAL DO
CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR. IMPENHORABILIDADE).
Ora,
tem crescido na jurisprudência uma análise do Direito Privado à luz do Texto
Maior e de três princípios básicos: a proteção da dignidade da pessoa humana
(art. 1º, III), a solidariedade social (art. 3º, I) e a isonomia (art. 5º,
caput). Esses justamente os princípios daquilo que se denomina Direito Civil
Constitucional.
Essa
a interpretação que se espera, visando consubstanciar um Direito Civil
renovado, mais justo e solidário. O contrato não pode fugir dessa concepção,
sendo certo que a interpretação de inconstitucionalidade do art. 3º, VII, da
Lei n. 8.009/90 mantém relação direta com o princípio da função social dos
contratos.
Por
esse princípio, os contratos devem ser interpretados de acordo com o contexto
da sociedade, o que constitui um regramento de ordem pública e com fundamento
constitucional, o que pode ser retirado dos arts. 421 e 2.035, parágrafo único,
do novo Código Civil e da tríade dignidade-solidariedade-igualdade.
Conforme
também já defendemos a função social dos contratos encontra fundamento na
função social da propriedade, que deve ser concebida em sentido amplo - art.
5º, XXII e XXIII e art. 170, III, todos da CF/88 (Função Social dos
Contratos. Do Código de Defesa do Consumidor ao novo Código Civil. São Paulo: Método,
2005, p. 200).
Assim
sendo e reforçando, vale citar o Enunciado n. 24, aprovado na I Jornada de
Direito Civil promovido pelo Conselho da Justiça Federal, pelo qual: "a
função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, não
elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance
desse princípio quando presentes interesses metaindividuais ou interesse
individual relativo à dignidade da pessoa humana". O direito
constitucional `a moradia acaba limitando a autonomia privada, portanto.
Por
isso, concordamos integralmente com a decisão monocrática transcrita, e também
entendemos pela inconstitucionalidade do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90. Com
esperança, aguardamos que os demais Ministros do Excelso Pretório confirmem a
brilhante decisão. Com isso, sem dúvidas deverá ocorrer uma reviravolta na
jurisprudência de nossos Tribunais.
TARTUCE, Flávio. A inconstitucionalidade da previsão do art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90 . Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 866, 16 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7591>. Acesso em: 16 nov. 2005.