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A doutrina do adimplemento substancial e sua recepção pelo Direito brasileiro
1.
DOS
SISTEMAS DA COMMON LAW PARA A CIVIL LAW: A “SUBSTANTIAL
PERFORMANCE”
A doutrina do adimplemento substancial surgiu na Inglaterra, no século XVIII
quando os Tribunais ingleses, desejosos de fazer justiça entre as partes
contratantes, relativizaram a exigência do exato e estrito cumprimento dos
contratos.
A aplicação da regra, em rigoroso formalismo e um apego excessivo ao dogma da
absolutização dos direitos, levou a muitas decisões injustas, como a do caso Cutter
v. Powell, de 1795 [1]; em que, na verdade houve uma falha na
aplicação da doutrina do adimplemento substancial:
Powell contratou Cutter como imediato do navio na viagem que começou em 02 de
agosto de 1793, partindo de Kingston, Jamaica para chegada em 09 de outubro de
1794 em Liverpool. Porém, Cutter acabou falecendo abordo em 20 de setembro de
1794 (a 19 dias de Liverpool) não podendo terminar de cumprir o contrato.
A ação foi movida pela viúva de Cutter para receber uma proporção da soma
combinada pelo trabalho prestado a bordo. Foi julgada improcedente, pois pelos
termos do contrato o falecido era obrigado a cumprir com o seu dever antes que
pudesse demandar qualquer pagamento e Cutter não executou a obrigação de servir
como imediato de Kingston à Liverpool.
Nesse caso, Cutter não descumpriu com o contrato porque morreu no meio do
Atlântico, mas seu direito de receber o pagamento estava condicionado ao
sucesso da viagem.
É evidente que houve uma decisão iníqua e que de imediato foi observado pelas
Cortes da Equity que estabeleceram a doutrina da “substantial performance”,
possibilitando decisões mais adequadas às ordenações do Princípio da boa-fé
objetiva. [2] Houve uma inversão do ponto de vista do
julgador, passando a considerar que fora executada a quase totalidade do
contrato, apesar de sua imperfeição.
A doutrina do adimplemento substancial foi concretizada com o caso Boone v.
Eyre, de 1779, julgado por Lord Mansfield.
Boone demandou contra Eyre, pois este atrasou o pagamento estipulado pelas
partes no contrato. O contrato firmado propunha ao Eyre o pagamento de 500
libras e uma renda anual de 160 libras a Boone contanto que este transferisse a
propriedade de uma plantação nas Antilhas, com os escravos que ali viviam,
garantindo seu domínio e posse pacíficos. Eyre atrasou o pagamento e Boone
estava cobrando o que tinha de direito em juízo (400 libras de renda atrasada)
e Eyre alegava que a obrigação não tinha sido cumprida por Boone, pois não
garantiu o domínio sobre os bens alienados não existindo mais escravos.
Lord Mansfield julgou procedente, entendendo que o comprador não estava dispensado
de pagar o convencionado, pois distinguia em um contrato as obrigações
dependentes, chamadas de “conditions” e as obrigações independentes. No
caso em questão não configurava uma obrigação dependente, ou seja, não eram
cláusulas essências, constituindo a própria substância do contrato, cujo
cumprimento era imprescindível. [3] Considerou uma obrigação secundária se
resolvendo somente em perdas e danos e não cabendo a resolução do contrato.
Sendo assim, essa doutrina é antiga no sistema da common law, passando a
ter maior relevância com a reforma do judiciário de 1873, impedindo efeitos
negativos a uma parte em benefício de outra.
Como visto a doutrina do adimplemento substancial surgiu no Direito Inglês,
pertencente à família da Common Law. Posteriormente difundida e
recepcionada nos sistemas jurídicos da família da Civil Law.
2. CONTORNOS CONCEITUAIS DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL
Ocorre o adimplemento substancial quando a prestação for essencialmente
cumprida e assim os interesses pretendidos pelo credor serão satisfeitos. Nessa
situação o instituto resolutório é afastado em virtude do proveito da prestação
pelo credor e também os efeitos produzidos pela resolução seriam injustos.
Adimplemento substancial, na visão de Clóvis do COUTO E SILVA é: “um
adimplemento tão próximo do resultado final, que, tendo-se em vista a conduta
das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo tão somente o pedido
de indenização.” [4]
Já Anelise BECKER esclarece que: “o adimplemento substancial consiste em um
resultado tão próximo do almejado, que não chega a abalar a reciprocidade, o
sinalagma das prestações correspectivas. Por isso mantém-se o contrato,
concedendo-se ao credor direito a ser ressarcido pelos defeitos da prestação,
porque o prejuízo, ainda que secundário, se existe deve ser reparado.” [5]
No adimplemento substancial é
necessário avaliar se a relação obrigacional concreta foi atingida, isto é, se
o contrato atingiu seus objetivos. A relação obrigacional complexa exige a
satisfação dos interesses do credor, porém tem que se levar em consideração,
também, os interesses do devedor, de acordo com a boa-fé.
O adimplemento substancial difere do inadimplemento fundamental, pois neste a
resolução é cabível, visto que o essencial da obrigação não foi cumprido e
assim não houve a satisfação do credor. Já no adimplemento substancial o
essencial da obrigação foi cumprido, satisfazendo os interesses do credor, não
cabendo a resolução do contrato, sob pena de estar agindo de má-fé. Neste caso,
a indenização por perdas e danos é imprescindível para manter o equilíbrio do
contrato.
Outorga, ao credor, o direito de perdas e danos para que se mantenha o
equilíbrio contratual, ao compensarem-se as diferenças ou prejuízos relativos à
prestação imperfeita e, se possível, o pedido de adimplemento da parte
faltante.
Através da doutrina do adimplemento substancial o devedor não perde todas as
prestações já quitadas, pois a resolução não tem fundamento e evita o
enriquecimento ilícito por parte do credor.
Para que o adimplemento seja considerado substancial é necessário três
circunstâncias: a proximidade entre o efetivamente realizado e o que estava
previsto no contrato; que a prestação imperfeita satisfaça os interesses do
credor e o esforço e a diligência do devedor e adimplir integralmente.
Segundo Anelise BECKER:
Para a jurisprudência norte-americana, é importante a conduta do devedor; é
dito que a doutrina do substancial performance pretende proteção e auxílio
daqueles que leal e honestamente esforçaram-se em executar seus contratos em
todos os particulares materiais e substanciais, de modo que seu direito à compensação
não deva ser perdido em razão de meros defeitos ou omissões técnicas,
inadvertidas ou não importantes. [6]
Neste aspecto, o contrato tem que ser considerado como um todo, visto que a
parcela não cumprida pode ser insignificante e desse modo a resolução não se
justifica. Porém, o adimplemento substancial não é cabível em alguns casos que
mesmo insignificante o descumprimento há perda total se interesse do credor,
sendo possível a resolução do contrato. O que será sempre decisivo é o
atendimento do interesse do credor.
O adimplemento substancial deve ser analisado pelo julgador de acordo com o
caso concreto, verificando o cumprimento realizado e a medida atingida para a
satisfação do credor, e assim “pressupõe uma mudança no próprio método de
aplicação do direito, ou seja, a superação do raciocínio lógico – subsuntivo
pelo da concreção.” [7]
De acordo com esta doutrina, se a totalidade do cumprimento é uma condição
precedente ou não para qualquer pagamento, trata-se de uma questão de
interpretação em cada caso. [8]
Nestas circunstâncias, a regra é a de que “enquanto houver o adimplemento
substancial o contratante tem o direito de receber o preço estipulado, sujeito
apenas a uma ação promovida pela outra parte pelas omissões ou defeitos na
execução”. [9]
3. A RECEPÇÃO DA DOUTRINA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL PELO DIREITO
BRASILEIRO
A doutrina do adimplemento substancial e o Código Civil
A doutrina do adimplemento substancial do contrato, versada no direito comparado,
notadamente na Common Law, apenas agora, ingressa no direito brasileiro,
encontrando na boa-fé seu fundamento ao limitar o exercício de direito de
resolução.
A doutrina do adimplemento substancial ou “substantial performance” pode
ser explicada como resultante da aplicação do Princípio da boa-fé objetiva, e é
assim que ela vem sendo recepcionada em nosso sistema jurídico.
O artigo 475 do Código Civil dispõe sobre o direito de resolução em caso de
inadimplemento, porém não cita o modo de descumprimento que cabe tal direito.
Já o parágrafo único do artigo 395 da mesma lei fala da inutilidade da
prestação para o credor e a possibilidade deste resolver o contrato com o
direito de indenização por perdas e danos.
Assim sendo, pode-se sustentar que o
direito brasileiro autoriza a doutrina do adimplemento substancial. Para
caracterizar o direito de resolução, o inadimplemento tem que atingir
substancialmente a obrigação. A prestação tendo utilidade para o credor, mesmo
não tendo sido cumprida de forma exata, poderá revelar um exercício abusivo de
tal direito, uma vez que contraria o princípio da boa-fé objetiva.
A boa-fé é manifestada na doutrina do adimplemento na medida em que o objeto
acordado entre as partes não necessariamente será igual em todos os detalhes,
podendo haver uma divergência de mínima importância, satisfazendo os interesses
do credor.
Através da incidência da boa-fé objetiva, as partes deverão sempre buscar a
satisfação dos interesses, evitando que os danos sejam causados. O dever de
diligência é muito importante para a obrigação ser cumprida.
Tal doutrina pode ser encontrada nos mais diversos ordenamentos jurídicos.
Na Itália é utilizado o “inadempimento de scarsa importanza” que não é
aceito o direito de resolução nos casos em que o inadimplemento é de escassa
importância.
Em Portugal, tem aplicação semelhante ao direito italiano, não sendo permitido
resolver o negócio quando o interesse do credor é atingido pelo cumprimento
parcial de escassa importância.
No direito francês, em caso de inexecução parcial ou de pouca gravidade,
proporcionando ao credor o benefício essencial do contrato rejeita-se a
resolução, cabendo somente o pedido de indenização.
No direito alemão ao credor não é permitido resolver o contrato quando faltar
apenas uma pequena parcela em relação ao todo, e assim satisfeito o seu
interesse.
Na Espanha só cabe a resolução nos casos em que o incumprimento for substancial
e por fim, na Argentina só é possível a resolução quando o descumprimento
impedir de lograr o fim tutelado pelo ordenamento jurídico e proposto pelos
interessados ao utilizá-lo. [10]
A aplicação da doutrina nos países de Civil Law tem fundamento, uma vez
que não cabe resolução do contrato quando o inadimplemento é de pouca
importância. Sendo assim, o adimplemento sendo substancial limita o exercício
do direito de crédito, consolidando-se a idéia de que este não pode ser
exercido de qualquer maneira, ou ainda, de modo abusivo.
3.2 A doutrina do adimplemento substancial e as relações de consumo
A boa-fé também está prevista no Código de Defesa do Consumidor nos artigos 4°,
III [11] e 51, IV [12], devendo ser observada por ambos os
partícipes na relação de consumo.
A boa-fé surge no CDC como instrumento viabilizando a harmonia do contrato e
rejeitando as cláusulas abusivas, atuando desde a formação do contrato, na fase
contratual e na execução deste.
Ruy Rosado de AGUIAR JÚNIOR alega que o artigo 422 do Código Civil [13] complementa as disposições contidas no
CDC. O artigo 422 é uma cláusula geral que constata a boa-fé em todos e
quaisquer contratos:
A boa-fé objetiva é o princípio de lealdade que deve orientar as relações
humanas, de sorte que todos devem permitir sejam realizadas as expectativas que
os outros têm nas relações mantidas na vida social, princípio ético que preside
o ordenamento, está presente e serve de guia para todas as relações no campo do
Direito privado, e também no âmbito do Direito público. [14]
Porém, não obstante o CDC traga o seu fundamento, a doutrina do adimplemento
substancial não poderá ser aplicada de forma efetiva quando se tratar de
relações de consumo, pois todas as disposições que versarem sobre as
imperfeições do objeto da prestação, não interessando o grau de comprometimento
do produto ou serviço, trazem ao consumidor o direito de optar entre a
substituição por outro ou o abatimento do preço. Se tal doutrina fosse
aplicada, ela iria beneficiar o fornecedor e o equilíbrio contratual proposto
no CDC não seria realizado, visto que o CDC surge em face da vulnerabilidade do
consumidor. [15]
Para que a doutrina do adimplemento substancial seja adotada nas relações de
consumo, é necessário que o julgador avalie no caso concreto a gravidade do
inadimplemento, tendo como base o princípio da boa-fé objetiva e os demais
princípios consagrados no CDC.
[1] BECKER, A. A doutrina do adimplemento
substancial no direito brasileiro e em perspectiva comparativista. Revista
da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto
Alegre: Livraria dos Advogados, n. 1, v. 9, nov. 1993, p.62.
[2]
BECKER, A. op. cit. p. 62 e 63.
[3] É importante fazer uma distinção entre “conditions”
e “warranties” do direito inglês que dá encejo à doutrina do adimplemento
substancial. As “conditions” são cláusulas essenciais em um contrato,
precisando ser cumpridas, enquanto as “warranties” são acessórias,
secundárias e sua inexecução não afeta o equilíbrio contratual.
[4] SILVA, C. V. do C. e. Apud:
BECKER, A. op. cit., p.60.
[5]
BECKER, A. op. cit., p. 63.
[6]
BECKER, A. op. cit., p. 65.
[7]
Ibidem. p. 63.
[8]
Cheshire and Fifoot’s. Law of contract. London: Butterworths, 1981. p.
479, tradução nossa.
[9]
Cheshire and Fifoot’s. op. cit. p.480.
[10]
BECKER, A. op. cit., p. 67.
[11] “Art. 4°. A Política Nacional das
Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos
consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus
interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a
transparência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes
princípios:
[...]
III. harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e
compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento
econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda
a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé
e equilíbrio nas relações entre os consumidores e fornecedores.”
[12] “Art. 51.São nulas de pleno direito, entre
outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e
serviços que:
[...]
IV. estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o
consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
equidade.”
[13] “Art. 422. Os contratantes são
obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como na execução, os
princípios de probidade e boa-fé.”
[14] AGUIAR JÚNIOR, R. R. O novo código
civil e o código de defesa do consumidor – pontos de divergência. Revista de
Direito do Consumidor, n. 48, 2003. p. 59.
[15]
BECKER, A. op. cit., p. 69.
RETIRADO DE: http://www.direitonet.com.br/artigos/x/20/64/2064/p.shtml