JOSÉ FERNANDO SIMÃO

José Fernando Simão

Advogado de Yeda e Simão Advogados

Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP

Professor Associado da Faculdade de Direito da FAAP

Professor de Direito Civil do Curso PRIMA

A BOA-FÉ E O NOVO CÓDIGO CIVIL – Parte I

Não é de hoje que se ressalta a importância do tema referente à boa-fé e seus

desdobramentos no direito civil.

Enquanto o Código Civil alemão de 1900 (famoso BGB - Bürgeliches

Gesetzbuch), tratava da boa-fé em seu parágrafo 242 como uma cláusula geral, o

Código Civil brasileiro de 1916 ignorou essa noção e opta por tratar da boa-fé de

maneira específica, sempre vinculada a certos institutos (posse, casamento putativo).

Indaga-se: o tratamento da boa-fé como cláusula geral tem algum reflexo no

sistema jurídico? A resposta é afirmativa e é sobre isso que passamos a discorrer.

A doutrina ensina que temos dois conceitos distintos de boa-fé com relação à sua

natureza.

A boa-fé subjetiva e a boa-fé objetiva

A boa-fé subjetiva é aquela ligada a uma avaliação individual e equivocada de

dados da realidade. Significa que o sujeito tem ou não ciência de algo. trata-se de um

estado de consciência. É chamada pelos alemães de boa-fé crença (Gutten Glauben).

A boa-fé subjetiva se opõe à má-fé e já estava disciplinada pelo Código Civil de

1916. Assim, é considerado possuidor de boa-fé para fins da indenização das

benfeitorias, aquele possuidor que desconhecia os vícios da posse. Também, é

considerado cônjuge de boa-fé para fins do casamento putativo aquele que desconhece o

impedimento matrimonial apto a tornar o casamento contraído nulo ou anulável. A

ciência do alienante quanto ao vício oculto do bem e o surgimento do dever de indenizar

está ligada ao estado de consciência, e, portanto, à boa-fé subjetiva. Essas noções

contidas no Código Civil de 1916 a respeito da boa-fé subjetiva são também

reproduzidas no novo Código Civil.

Já a idéia de boa-fé objetiva é uma regra ética de conduta. Tem um caráter

normativo e se relaciona com o dever de guardar fidelidade à palavra dada. É a boa-fé

lealdade (Treu und Glauben).É a idéia de não defraudar a confiança ou abusar da

confiança alheia. Não se opõe à má-fé e não tem relação com a ciência que o sujeito tem

da realidade.

A boa-fé objetiva vem prevista no novo Código Civil como regra de

interpretação (artigo 113) e com relação aos contratos (artigo 422).

Entretanto, não podemos dizer que apenas com a promulgação do novo Código

Civil, a boa-fé objetiva entra para o direito brasileiro. O Código de Defesa do

Consumidor já traz em seu texto a idéia de boa-fé objetiva. Assim, a regra prevista no

artigo 4º, inciso III daquele diploma cuida da boa-fé como norma de conduta.

JOSÉ FERNANDO SIMÃO

José Fernando Simão

Advogado de Yeda e Simão Advogados

Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP

Professor Associado da Faculdade de Direito da FAAP

Professor de Direito Civil do Curso PRIMA

Exatamente por isso, e aqui mencionamos apenas um simples desdobramento da

boa-fé objetiva nas relações de consumo, é irrelevante a ciência ou não do fornecedor

quanto ao vício do produto para fins de indenizar o consumidor. Outro desdobramento é

o dever de informar do prestador de serviços com relação aos riscos que o consumidor

assume ao contratá-lo.

Tem a boa-fé objetiva três funções: a ativa, a reativa e a interpretativa, conforme

nos ensina ADALBERTO PASQUALOTTO.

A função ativa

A função ativa da boa-fé se verifica nos deveres acessórios ou secundários, ou

seja, nos deveres que não surgem da vontade das partes (a prestação principal é que

surge da vontade das partes), mas decorrem da boa-fé em si. São os deveres de lealdade,

cooperação, informação e segurança. Façamos uma breve digressão a respeito de cada

um deles.

O dever de lealdade é aquele segundo o qual uma das partes não pode agir de

maneira a causar prejuízo imotivado à outra parte. Trata-se em geral de uma abstenção

que evita causar danos desnecessários ao outro contratante.

O dever de cooperação é aquele que exige das partes certas condutas

necessárias para que o contrato atinja seu fim, sendo que, em certos casos essa conduta

de uma das partes só beneficia a outra contratante. Exemplo disso se dá quando uma das

partes necessita obter o Alvará para iniciar a obra em um contrato de empreitada.

O dever de informação é extremamente importante e já vinha disciplinado no

Código de Defesa do Consumidor, com rígidas punições ao fornecedor que o

descumprir (cf. regras sobre a publicidade enganosa). O contratante detentor de

informações ignoradas ou imperfeitamente conhecidas pelo outro contratante deve

fornecê-las, mesmo que tais informações lhe sejam prejudiciais. No caso dos

prestadores de serviço como os médicos e advogados (que tem uma situação

privilegiada em função de seus conhecimentos técnicos e profissionais) surge o dever de

aconselhar.

O último dos deveres é o de segurança. Trata-se do dever de garantir a

integridade dos bens e direitos do outro contratante, em situações contratuais que

possam oferecer perigo. Nesse caso, podemos citar o dever de fornecer aos funcionários

os Equipamentos de Proteção Individual para a prevenção de acidentes. Mesma hipótese

se verifica no dever que tem o Shopping Center de colocar um aviso “Cuidado Perigo

de Escorregar”, após lavar o assoalho.

Como se percebe, em certas situações, os deveres de conduta advém da própria

lei (ex: Dever de informar o consumidor previsto no CDC) e em outras da relação

contratual em si, mesmo que ausente previsão expressa. Independentemente da sua

origem, todos tem por princípio a boa-fé objetiva e sua função ativa.

JOSÉ FERNANDO SIMÃO

José Fernando Simão

Advogado de Yeda e Simão Advogados

Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP

Professor Associado da Faculdade de Direito da FAAP

Professor de Direito Civil do Curso PRIMA

A função reativa

A função reativa é a utilização da boa-fé objetiva como exceção, ou seja como

defesa, em caso de ataque do outro contratante. Trata-se da possibilidade de defesa que

a boa-fé objetiva permite em caso de ação judicial injustamente proposta por um dos

contratantes. Nessa breve digressão a respeito do tema, analisaremos três aspectos da

função reativa.

O primeiro deles e um dos mais interessantes é a idéia de venire contra factum

proprium. O venire parte da idéia de que as partes, em decorrência da confiança que

permeia a relação jurídica, devem agir de maneira coerente, seguindo a sua linha de

conduta, e, portanto, não podem contrariar repentinamente tal conduta, por meio de um

ato posterior. Exatamente por isso o contratante não pode contrariar a sua própria

atitude.

Dois exemplos aclaram a idéia do venire contra factum proprium. O primeiro

deles ocorre no caso do locador de um imóvel que, todo mês, aceita receber o aluguel

com 5 dias de atraso. Após meses, sem se opor a tal fato, resolve o locador mudar de

conduta e passa a exigir a multa moratória do período. Ora, essa mudança repentina

frusta a legítima expectativa do inquilino, já que durante meses o locador não se opôs

(tolerou) o pagamento do aluguel com dias de atraso. O segundo exemplo vem do

próprio Código Civil de 2002 que, em seu artigo 175 (cujo correspondente no Código

Civil de 1916 era o artigo 151), determina que o contratante que voluntariamente iniciou

a execução do negócio jurídico anulável, não pode mais invocar essa nulidade. O

cumprimento voluntário do negócio anulável importa em extinção de todas as ações ou

exceções que dispusesse o devedor, pois esse opta por seguir certa conduta e não pode,

posteriormente, surpreender a outra parte com tal mudança.

A segunda função reativa da boa-fé objetiva é o dolo agit qui petit quod statim

redditurus est. Trata-se de uma punição à parte que age com o interesse de molestar a

parte contrária e, portanto, age como dolo ao pedir aquilo que deve ser restituído. Caso

típico se dá na hipótese de o credor demandar por dívida já paga. Assim, determina o

Código Civil que aquele que demanda por dívida já paga fica obrigado a pagar ao

devedor o dobro do que houver cobrado (artigo 940 do Código Civil de 2002 e 1531 do

Código Civil de 1916). É verdadeiro desdobramento do princípio do dolo agit, pois

pune o credor que propõe demanda contra o devedor por puro espírito de emulação, já

que nada mais tinha a receber.

A última das funções que cuidaremos nesse artigo é o tu quoque. A expressão

ficou célebre pela frase de Júlio César ao ser assassinado nos idos de março: “Até tu,

Brutus!” Assim o tu quoque é a idéia de que ninguém pode invocar normas jurídicas,

após descumpri-las. Isso porque ninguém pode adquirir direitos de má-fé.

Um exemplo desse princípio é a exceção do contrato não cumprido (exceptio

non adimpleti contractus) que estava prevista no artigo 1092 do Código Civil de 1916

JOSÉ FERNANDO SIMÃO

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(476 do novo Código Civil). Se a parte não executou a sua prestação no contrato

sinalagmático, não poderá exigir da outra parte a contraprestação. Como poderia o

inadimplente exigir da outra parte o cumprimento da contraprestação se não prestou?

Não poderá invocar a regra que descumpriu em seu benefício.

A função interpretativa

A questão da interpretação da lei ganha força com a promulgação do novo

Código Civil. A idéia de um sistema fechado (que inspirou os Códigos dos séculos XIX

e XX), calcado em um modelo estático positivo não pode ser admitida nos dias de hoje.

Assim, o novo Código Civil opta por afastar-se da idéia de um estrutura fechada,

e por adotar modelos jurídicos abertos, cujos significados não são expressamente

limitados pelo texto de lei, mas sim conceitos jurídicos indeterminados. Não se trata de

imprecisão legislativa, mas de técnica intencionalmente adotada pelo legislador

conferindo aos aplicadores do direito maiores poderes decisórios no caso concreto, por

meio de preenchimento dos tipos que encontram-se indeterminados.

Nesse sentido, a boa-fé, no Código Civil de 2002, assume esta exata

característica: trata-se de cláusula geral cujos contornos vêm traçados pelo legislador

que propositadamente deixa ao intérprete o poder de preenchê-lo.

Então, interpretar a lei ou o contrato de acordo com a boa-fé será sempre a busca

da ética nas relações jurídicas, aplicando-se a norma ao caso concreto, da maneira que

melhor atenda à justiça naquela determinada hipótese. A boa-fé permitiria que,

excepcionalmente, o intérprete afastasse a aplicação do texto frio da lei, construindo “o

direito do caso”. Exemplo desta função, verificou-se quando o Poder Judiciário,

afastando-se do princípio do nominalismo adotado pelo Código Civil de 1916, admitiu a

aplicação da correção monetária para ilidir os efeitos nefastos da inflação (fenômeno

ignorado quando da promulgação do antigo Código Civil).

Assim, neste breve artigo referente à boa-fé objetiva, conseguimos trabalhar

algumas noções do instituto e seus reflexos no novo Código Civil brasileiro.

Obviamente, o tema não se esgota e para seu aprofundamento sugerimos a excelente

obra da Professora Judith Martins-Costa (A boa-fé no Direito Privado da Editora

Revista dos Tribunais) e o artigo de Adalberto Pasqualotto (A boa-fé nas obrigações

civis, in Faculdade de Direito da PUCRS: Ensino Jurídico no Limiar do Novo Século,

EDIPUCRS

JOSÉ FERNANDO SIMÃO

José Fernando Simão

Advogado de Yeda e Simão Advogados

Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP

Professor Associado da Faculdade de Direito da FAAP

Professor de Direito Civil do Curso PRIMA

 

Artigo retirado do site http://www.juspodivm.com.br/novodireitocivil/ARTIGOS/convidados/artigo_para_pablo_boa_f.pdf